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A Trajetória Artístico-intelectual Glauberiana: Da Estética da Fome à Eztetyka do Sonho
The glauberian artistic-intellectual trajectory: From Aesthetics of Hunger to Eztetyka of the Dream
Revista Brasileira de Sociologia, vol. 6, núm. 14, pp. 222-241, 2018
Sociedade Brasileira de Sociologia

Artigos


Recepção: 10 Junho 2018

Aprovação: 21 Agosto 2018

DOI: https://doi.org/10.20336/rbs.418

Resumo: Partindo da hipótese de que Glauber radicaliza sua proposta de arte revolucionária, abordarei aqui a passagem, na trajetória artístico-intelectual (e política) glauberiana, da posição adotada no manifesto Uma Estética da Fome (2004 [1965]) para a perspectiva estético-teórica traçada na Eztetyka do Sonho (2004 [1971]), conferência realizada em Congresso na Columbia University. Rocha, além de cineasta de prestígio internacional, foi um dos principais teóricos do Cinema Novo e o estudo aqui de sua trajetória artístico-intelectual não pode separar sua prática cinematográfica e política de sua teoria estética, entendida como ética. Assim, a análise da passagem de um manifesto a outro nos permite observar os diversos sentidos da arte revolucionária teorizados por Glauber, suas transformações e tentativas de aplicação prática, sob uma perspectiva descolonizadorae do ponto de vista da Crítica Pós-Colonial.

Palavras-chave: Arte Política, Glauber Rocha, Crítica Pós-Colonial.

Abstract: Starting from the hypothesis that Glauber Rocha radicalizes his proposal of revolutionary art, I will approach here the passage in his artistic-intellectual and political trajectory from the position adopted in the Aesthetic of Hunger (2004 [1965]) to the aesthetic-theoretical perspective outlined in Eztetyka do Sonho (1971), in a Conference at Columbia University. Rocha as an international prestige filmmaker, was one of the main theorists of Cinema Novo. So this study on his artistic-intellectual trajectory can not separate his cinematographic and political practice from his aesthetic theory, understood as ethics. Thus, the analysis of the passage from one manifesto to another allows us to observe the various senses of revolutionary art theorized by him, its transformations and attempts to practical applications, from a decolonizing perspective and from the point of view of the Postcolonialism.

Keywords: Political Art, Glauber Rocha, Postcolonial Criticism.

Introdução

Foi o mundo moderno que fez surgir o conceito de razão, e foi a partir do momento em que o sentido da palavra razão foi fixado que a razão se tornou desracionalizável.

(MORIN, 2002, p. 9)

Analiso aqui os pressupostos teórico-estéticos esboçados por Glauber Rocha no manifesto do Cinema Novo (movimento organizado por Glauber no intuito de fundar um novo modo de fazer cinema em oposição ao modelo hollywoodiano hegemônico), Uma Estética da Fome, escrito em 1965 e apresentado no Seminário Cinemas do Terceiro Mundo, em Gênova, Itália, e a passagem, na sua trajetória artístico-intelectual, para a perspectiva traçada na Eztetyka do Sonho, conferência realizada em Congresso na Columbia University, em Nova York, em 1971, introduzida por ele, em sua apresentação oral, da seguinte forma:

No “Seminário do Terceiro Mundo” realizado em Gênova, Itália, 1965, apresentei, a propósito do Cinema Novo brasileiro, “A Estética da Fome”. Esta comunicação situava o artista do Terceiro Mundo diante das potências colonizadoras: apenas uma estética da violência poderia integrar um significado revolucionário em nossas lutas de libertação. [...] O Maio francês aconteceu no momento em que estudantes e intelectuais manifestavam no Brasil seu protesto contra o regime militar de 1964. “Terra em Transe”, 1966, um manifesto prático da estética da fome, sofreu no Brasil críticas intolerantes da direita e de grupos sectários de esquerda. […] Este Congresso é outra oportunidade que tenho para desenvolver algumas ideias a respeito de arte e revolução. (ROCHA, 2004, p. 248)

Um ponto fundamental a ser considerado diz respeito à questão do seu engajamento/distanciamento crítico em relação ao ideário político cultural que caracterizou, no Brasil, a efervescente década de 1960 – que constitui os limites da presente análise. É importante observar ainda que um intelectual não se faz sozinho e sem trabalho intencional, mas este se constitui (enquanto tal) ou se representa, como quer Said (2005), em relação a um dado contexto sociointelectual, com o qual necessariamente vai dialogar.

O Cinema Novo foi um movimento surgido no início dos anos 1960 em oposição ao “cinema industrial”, configurado na política cinematográfica dos grandes estúdios. Este movimento encontra em Glauber Rocha sua liderança. Como movimento cultural em oposição ao cinema de indústria, o Cinema Novo se insere numa ascensão sociocultural de dimensão internacional. A precariedade instrumental dos jovens cineastas que formaram o movimento foi um fator importante para a concepção estética de um novo cinema. Assim como a independência da produção possibilitou uma crítica da realidade brasileira, especialmente do modo de produção fílmica, em favor de uma nova linguagem, contra o colonialismo cultural da política dos grandes estúdios (hegemônica), voltada, do ponto de vista dos cinemanovistas, para interesses imperialistas.

Cabe observar ainda que a geração da qual fez parte Glauber Rocha foi fortemente marcada pela ditadura militar e pela ideologia nacional desenvolvimentista dos anos JK. Crítico a essas duas “situações históricas”, Glauber volta-se para a questão da “fome” e da “violência” que caracteriza a sociedade “subdesenvolvida”.

A análise da passagem do manifesto do Cinema Novo, de Uma Estética da Fome para a Eztetyka do Sonho, nos permite observar os diversos sentidos da arte revolucionária (teorizada pelo Centro Popular de Cultura – CPC ) empregados por Glauber em sua trajetória artístico-intelectual, suas transformações e tentativas de aplicação prática, sob uma perspectiva crítica do colonialismo que pode ser aproximada da chamada Crítica Pós-Colonial, perspectiva esta radicalizada naquele segundo momento, em que escreveu, na Eztetyka do Sonho, “a ruptura com os racionalismos colonizadores é a única saída” (ROCHA, 2004, p. 250).

Na passagem da estética da fome e da violência para a estética do sonho, Rocha foi, em tese, reformulando seu conceito de arte revolucionária, cujos pressupostos foram inspirados pelo teatro político de Brecht:

Eu sempre me interessei por um cinema épico e por isso sempre me interessei também por essas formas populares de representação. Depois me dei conta das semelhanças – claro, indiretas – que existiam entre esse tipo de estruturas teatrais e musicais populares e o trabalho de Brecht. […] Brecht, de fato, se inspirou nos modos populares e os utilizou para uma dramaturgia política. (ROCHA, 2004, p. 155).

Com isso Glauber se volta para uma dimensão crítica e reflexiva do pensamento e das artes – e não simplesmente adere (como fez o CPC, de forma acrítica) à concepção instrumental da cultura, própria da sociedade capitalista –, o que o aproxima da noção de cultura concebida por Gramsci sob o prisma da hegemonia. Segundo Marilena Chaui, Gramsci foi além da crítica da ideologia como exercício da dominação e propôs o conceito de hegemonia para designar “a luta no interior da sociedade política com o objetivo de operar mudanças nas ideias, nos valores, no comportamento e nas práticas visando à consciência dos explorados e dominados. Donde a importância que conferiu à cultura” (CHAUI, 1994, p. 10).

Porém, como Glauber, Gramsci, podemos dizer, propõe, de acordo com Chaui (1994), uma mudança na e da cultura. Não se trata, não obstante, de instrumentalizar a cultura para a luta política, como as esquerdas brasileiras tenderam (e tendem) a interpretar a posição de Gramsci, especialmente o CPC (grupo ao qual Glauber de contrapôs), para quem a luta pela hegemonia transformou-se em atuação pedagógica (ensinar a verdade às massas).

Com relação à questão da produção da verdade[1], coloca Glauber Rocha, no manifesto Uma Estética da Fome, apresentado em Congresso sobre o Cinema do Terceiro Mundo, em Gênova, na Itália, em 1965:

Eis – fundamentalmente – a situação das Artes no Brasil diante do mundo: até hoje, somente mentiras elaboradas da verdade (os exotismos formais que vulgarizam problemas sociais) conseguiram se comunicar em termos quantitativos, provocando uma série de equívocos que não terminam nos limites da Arte mas contaminam sobretudo o terreno geral do político” (ROCHA, 2004, p. 63).

Assim, acreditamos que a abordagem da trajetória artístico-intelectual glauberiana possa lançar alguma luz sobre os conflitos ideológicos e lutas políticas no campo cultural na década de 1960, dado que Glauber Rocha, além de cineasta de prestígio internacional, crítico e escritor, foi o principal teórico do movimento Cinema Novo, atuando como um protagonista político ativo no campo cinematográfico e cultural.

Por uma Estética da Violência

No primeiro manifesto do Cinema Novo, Glauber lançou a ideia da estética da fome como uma estética da violência – um modo de expressão possível da parte do colonizado, para que o colonizador compreenda a sua existência, como dita o método fanoniano (FANON, 2005). Enquanto na Eztetyka do Sonho, defendeu o irracionalismo na arte de vanguarda (contra a razão opressora do colonizador) como única arma do artista intelectual revolucionário, terceiro mundista.

O manifesto Uma Estética da Fome foi escrito em concomitância com um amplo debate acerca da libertação nacional dos povos colonizados. Faz referência explícita à obra Os Condenados da Terra, de Frantz Fanon (2005), para quem a violência é o elo fundador do colonialismo. Considerada a mais célebre das intervenções públicas do cineasta no exterior, traduzida e publicada rapidamente na Europa, nos EUA e na América Latina, representa uma tentativa de Glauber de defender o novo cinema latino-americano como dos mais originais, no bojo do movimento dos novos cinemas surgidos no pós-guerra. O cinema Novo era assim concebido por Glauber Rocha como vanguarda das vanguardas, tanto das brasileiras dos anos 1960 (REIS, 2006), quanto das vanguardas cinematográficas europeias, a exemplo do Neo.realismo, que aparece na segunda metade dos anos 1950, na Itália, e, em seguida, no final da década de 1950 e início dos anos 1960, surgem, na França, a Nouvelle Vague, na Inglaterra, o Free Cinema e nos Estados Unidos o New American Cinema. Ante estes movimentos, já que participava de um Congresso de Cinema, na Europa, na seção que abordava o Nuevo Cine Latinoamericano, Glauber procurou situar, em seu manifesto estético-teórico, o cinema novo brasileiro:

Aí reside a trágica originalidade do Cinema Novo diante do cinema mundial: nossa originalidade é nossa fome e nossa maior miséria é que esta fome, sendo sentida, não é compreendida. Nós [cinemanovistas] compreendemos essa fome que o europeu e o Brasileiro na maioria não entendeu. Para o europeu é um estranho surrealismo tropical. Para o Brasileiro é uma vergonha nacional.

Glauber procurou mostrar, entre outras coisas – assim como havia discutido no Deus e o Diabo na Terra do Sol, de 1964, e voltou a mostrar no Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro, de 1969 –, que a violência “rústica” de personagens como Corisco, Coirana, Antônio das Mortes ou o Santo Sebastião (alegorias de personagens históricos, como Lampião, Antônio Conselheiro etc.), tida pelo europeu como “primitiva”, não é pré-civilizatória, ou seja, não se trata de um fenômeno anterior à civilização, mas seu excedente. O objetivo ali (nos filmes do cinema novo) não era de expor um estado pré-capitalista, mas sim suas consequências. Da mesma forma se tratava, em primeiro lugar, especialmente nos filmes de Glauber Rocha, de realizar a crítica do chamado “processo civilizatório brasileiro”.

Sendo assim e tendo mudado, na última hora, o tema de sua Comunicação (da mesma forma que sempre modifica o roteiro de suas produções na filmagem, que por sua vez é reconstruída pela montagem), avisa Glauber, não sem ironia, ao iniciar sua fala no Seminário sobre o Cinema, na sessão Cinemas do Terceiro Mundo, em Gênova, Itália, em 1965:

Dispensando a introdução informativa que se transformou na característica geral das discussões sobre a América Latina, prefiro situar as relações entre nossa cultura e a cultura civilizada em termos menos reduzidos do que aqueles que também caracterizam a análise do observador europeu. (ROCHA, 2004 [1965], p. 63)

Ou seja, começa esclarecendo o lugar de onde está falando, e com isso distancia seu ponto de vista daquele do crítico europeu, logo de início. Ele, que fora convidado para falar sobre o cinema novo brasileiro, caracterizou-o sim (num texto que acabou por se tornar . manifesto dos novos cinemas latino-americanos) em termos não de um estilo, mas de uma prática (política) e de estética própria do cineasta latino.

Glauber, profundo conhecedor do cinema (antes de tronar-se cineasta foi, muito jovem, cinéfilo, escritor, teórico e crítico), ambicionava, com o movimento Cinema Novo, dar a sua contribuição prática (e política) para a história do cinema mundial, traçada por ele no livro O Século do Cinema[2]. E, assim, definiu o cinema novo: “onde houver um cineasta disposto a enfrentar o comercialismo, a exploração, a pornografia, o tecnicismo, aí haverá um germe do cinema novo […] onde houver um cineasta pronto a pôr seu cinema e sua profissão a serviço das causas importantes de seu tempo, aí haverá um germe do cinema novo” (ROCHA, 2004, p. 67), declarando ao final de sua fala no Congresso na Itália. Mas principia, como visto acima, já fazendo a crítica da crítica europeia acerca dos novos cinemas latinos. E passa então a expor o significado da estética da fome: “somente uma cultura da fome, minando suas próprias estruturas, pode superar-se qualitativamente e a mais nobre manifestação cultural da fome é a violência” (ROCHA, 2004, p. 63).

Deste modo, Glauber declara que uma estética da fome é necessariamente uma estética da violência, que “antes de ser primitiva”, como o europeu vê a arte brasileira e latino-americana, é “revolucionária”, na medida em que “o comportamento exato de um faminto é a violência, e essa violência não é primitivismo” (ROCHA, 2004, p. 66) – este é o primeiro ponto a ser esclarecido por Glauber em sua Estética da Fome, já que os processos de criação artística do mundo subdesenvolvido só interessam ao observador europeu na medida em que satisfazem sua nostalgia do primitivismo.

Em segundo lugar, Glauber coloca que essa violência, assumida como arma política no manifesto do Cinema Novo, “não está incorporada ao ódio” – símbolo do ressentimento (dos oprimidos), contra o qual também se colocara Nietzsche (1988) –, mas ao amor.

O amor que essa violência encerra é tão brutal quanto a própria violência, porque não é um amor de complacência ou de contemplação, mas um amor de ação e transformação. (ROCHA, 2004, p. 66)

Associa a violência ao amor porque essa violência, reivindicada em nome dos oprimidos, seria, como o amor, na perspectiva glauberiana, algo transcendental, ou uma força capaz de transformar, de revolucionar. Por essa razão é também posta a serviço de sua crítica da moral e da ordem social vigente, por meio de uma concepção revisionista da arte revolucionária, aplicada de diversas formas nos filmes e teorizada de diferentes perspectivas nos manifestos, de acordo com as novas circunstâncias.

Assim, o sentido atribuído ao amor, como uma força de ação e transformação, no manifesto estética da violência, como também é conhecido, pode ser melhor compreendido por meio de uma aproximação da noção de amor estudada pelo antropólogo francês Edgar Morin:

A questão da selvageria do desejo e da fascinação do amor se relaciona à ordem social. Mas é extremamente notável que o desejo e o amor ultrapassem, transgridam normas, regras e interditos... O amor, mesmo que decorrente de um desenvolvimento cultural e social, não obedece à ordem social: quando aparece, ignora barreiras, despedaça-se nelas ou simplesmente as rompe. (MORIN, 2002, p. 23).

Este era o objetivo do movimento cinema novo (naquelas circunstâncias, no momento de renascimento), qual seja: de transformar a realidade, em última instância, buscando antes atingir (ao expor) as consequências mais profundas da miséria social e da fome, que estavam inconscientes, para trazê-las à consciência. Logo, a meta era conscientizar, não no sentido tradicional, aquele tomado pelos isebianos e cepecistas, de levar a consciência do intelectual ao povo, mas através do choque – empregado como método, segundo fora utilizado também pelo teatro épico e político de Bertold Brecht (CHIARINI, 1967).

A mulher, símbolo do inconsciente e, ao mesmo tempo, de certa razão prática, posto que “em Barravento, Deus e o Diabo, e também Terra em Transe, as mulheres têm consciência do que se passa, consciência da história” (ROCHA, 2004, p. 115), é, nos filmes de Glauber e dos seus pares cinemanovistas, a principal representante desse amor, não romântico (não no sentido burguês adotado pelo modelo hollywoodiano de cinema, contra o qual se voltava o cinema novo), já que exerce um papel transgressor. Por esta razão, segundo Glauber,

O Cinema Novo não fez melodramas: as mulheres do Cinema Novo sempre foram seres em busca de uma saída possível para o amor, dada a impossibilidade de amar com fome: a mulher protótipo, a de Porto das Caixas, mata o marido; Rosa vai ao crime para salvar Manoel e amá-lo em outras circunstâncias; a moça do padre precisa romper a batina para ganhar um novo homem […]. (ROCHA, 2004, p. 66).

Afinal, Glauber, em suas colocações teóricas, evoca a violência como método e, na Estética da Fome, a associa ao amor em oposição ao ódio, representante do ressentimento, condenado por Nietzsche (1988) em sua crítica da moral burguesa, que exerceu clara influência sobre a crítica glauberiana das ideologias tipicamente burguesas, como o amor romântico e o humanismo.

Aproximando as considerações sobre o amor do antropólogo francês Edgar Morin, proferidas na Conferência “O Complexo de Amor”, pronunciada no Colóquio “Palavras de Amor”, em Grenoble, em março de 1990, podemos dizer que a estética da fome, aplicada no Terra em Transe, não é apenas uma estética da violência, mas é, também, uma estética do amor, assim como revelado por Edgar Morin “como o ápice mais perfeito da loucura e da sabedoria, ou seja, que no amor, sabedoria e loucura não apenas são inseparáveis, mas se interpenetram mutuamente” (MORIN, 2002, p. 9).

De fato, está presente no Terra em Transe (em que procura atualizar sua estética da fome) a questão da relação, mais do que isso, da imbricação, da não separação do amor, da loucura e da poesia (sabedoria) na figura de Paulo Martins, que, por fim, confessa: eu recuso a certeza, a lógica, o equilíbrio, prefiro a loucura. Na poética glauberiana (porventura, na vida de Glauber), assim como na poesia de Paulo Martins, loucura e sabedoria se misturam: “Todos vão dizer que sempre fui um louco, um romântico, um anarquista. (…) A minha loucura é a minha consciência e ela está aqui, na hora da verdade, no momento da decisão, na luta, mesmo na certeza da morte” (Terra em Transe, Brasil, 1967).

A revolução como tomada de consciência ainda está presente no que Glauber considera como um manifesto prático da estética da fome, que é o Terra em Transe. Conquanto, nesse filme, o poeta Paulo Martins já apresentasse sintomas de desrazão, rumo à estética do sonho, foi, todavia, no Der Leone Have Sept Cabeças, manifesto prático (como Glauber classifica sua obra artística) do Cine Tricontinental, que se deu a passagem, por assim dizer, da consciência ao mito. Não sem propósito, pois, como disse Morin, num determinado momento histórico, “a poesia é liberada do mito e da razão, mas contém em si sua união”, e, mais importante, no caso do personagem Paulo Martins, demonstra que “o estado poético nos transporta através da loucura e da sabedoria, e para além deles” (MORIN, 2002, p. 9).

Outro ponto importante ressaltado por Glauber na Estética da Fome é de que o Cinema Novo não poderia desenvolver-se apartado dos problemas políticos/econômicos do continente Latino-Americano, na medida em que o Cinema Novo era considerado por ele “um fenômeno dos povos colonizados e não uma entidade privilegiada do Brasil” (ROCHA, 2004, p. 67). Pois a integração econômica e cultural do cinema novo, buscada naquele momento, dependia, ainda segundo ele, da libertação da América Latina, para a qual o movimento Cinema Novo deveria contribuir, ao menos no campo cultural, a partir da revolução cinematográfica levada a cabo pelo movimento Cinema Novo na estrutura de produção fílmica, no campo econômico e traçada na Estética da Fome como um projeto a nível continental, depois será Tricontinental. Na visão de Glauber Rocha: “não é um filme, mas um conjunto de filmes em evolução que dará, por fim, ao público, a consciência de sua existência” (ROCHA, 2004, p. 65). Só assim, o movimento cinemanovista seria capaz de tirar o cinema do raquitismo filosófico e da impotência imposta pela tarja subdesenvolvimentista, fruto do processo colonizador.

O problema internacional da América Latina é ainda um caso de mudança de colonizadores, sendo que uma liberdade possível estará ainda por muito tempo em função de uma nova dependência. […] Esse condicionamento econômico e político nos levou ao raquitismo filosófico e à impotência, que, às vezes inconsciente, às vezes não, geram no primeiro caso a esterilidade e no segundo a histeria. (ROCHA, 2004, p. 64).

Assim, o principal objetivo (no campo da política das artes e da cultura) do manifesto do Cinema Novo, Uma Estética da Fome, era de potencializar, com todas as suas particularidades, o cinema latino-americano e projetá-lo internacionalmente (projetando também, no seu bojo, a diversidade cultural do continente), a despeito de, e, por isso mesmo, enfrentando seu subdesenvolvimento.

Empenhado, naquele momento, em afirmar um programa para o cinema brasileiro, postura que se exprime em sua típica linguagem de manifesto (inspirada nas artes de vanguarda – como classifica o Cinema Novo), assim finaliza sua Estética da Fome:

O cinema novo é um projeto que se realiza na política da fome, e sofre, por isso mesmo, todas as fraquezas consequentes de sua existência. Não temos por isso maiores pontos de contato com o cinema mundial. (ROCHA, 2004, p. 67).

Desse modo, Glauber conclui sua fala enfatizando o que já havia colocado no início do manifesto Uma Estética da Fome, ou seja, a distância entre o cinema novo latino-americano e o cinema europeu, e não as influências como era o esperado.

Pois o principal problema político do Cinema Novo, como proclamavam as vanguardas artísticas e políticas brasileiras dos anos 1960 (REIS, 2006), estava atrelado ao reconhecimento de um estado de subdesenvolvimento cultural, que não podia ser separado do problema econômico, nos países da América Latina. No artigo Teoria e Pratica do Cinema Latino Americano, ainda voltado para a questão do mercado interno, principalmente da distribuição (sempre obcecado por essa etapa da produção fílmica, controlada pela indústria cinematográfica norte-americana), Rocha assim colocou a questão:

Da teoria à prática existem contradições econômicas e políticas. Como todas as indústrias latinas, o cinema está controlado pelos americanos. Se a produção ainda é livre, a distribuição é americana, como em todas as partes do mundo capitalista. Uma produção sem distribuição é fatalmente destinada à falência. (ROCHA, 2004, p. 83).

Diante dessas circunstâncias, para projetar o cinema novo como “a mais importante manifestação de cultura latino-americana” (ROCHA, 2004, p. 86), como a “vanguarda das vanguardas”, seria imprescindível que os cinemanovistas se empenhassem em exercerem, eles próprios, as funções de produtores, diretores e distribuidores, a exemplo da DIFILM, constituída e mantida por produtores e cineastas do grupo do cinema novo brasileiro (até 1967, quando fora dissolvida pela ditadura militar). Esta distribuidora independente, assumindo uma “atitude política no campo da cultura e da economia” (ROCHA, 2004, p. 85), revolucionou o mercado cultural, de acordo com Glauber, criando, por extensão, um público para seu produto: “um público novo que começa a se desligar dos vícios do cinema comercial nacional e estrangeiro para preferir o filme brasileiro de caráter cultural” (ROCHA, 2004, p. 85). Durou pouco, porém, a revolução cultural da DIFILM.

Não obstante, Glauber continua sua “guerra anti-imperialista” no campo cultural, fora do Brasil, de onde pretendeu lutar pela liberdade de expressão e contra a ditadura. Publica, então, A Revolução é uma Eztetyka, manifesto crítico dos nacionalismos (e da ideologia nacionalista usada pela Ditadura Militar), em que propõe a “negação da cultura colonial e do elemento inconsciente da cultura nacional, erradamente considerados valores pela tradição nacionalista” (ROCHA, 2004, p. 99).

Seria, portanto, a tradição nacionalista, principal arma da ditadura que se instalou no Brasil em 1964, condizente com o colonizador, que deve ser combatida por meio de uma arte revolucionária crítica não somente dos valores da “cultura monárquica e burguesa do mundo desenvolvido”, mas da ideologia nacional-desenvolvimentista dominante (em especial entre os movimentos artísticos, políticos e vanguardistas, desde a era Vargas). Esses valores deveriam ser criticados em seu próprio contexto, segundo Glauber, para depois serem transformados em instrumentos úteis à compreensão do subdesenvolvimento.

O problema principal colocado no manifesto A Revolução é uma Estética, de 1967, diz respeito à desalienação do próprio artista intelectual, ou seja: “Como poderá o intelectual do mundo subdesenvolvido superar suas alienações e contradições e atingir uma lucidez revolucionária?” (ROCHA, 2004, p. 99). Glauber discute nos filmes, especialmente no Terra em Transe, e nos manifestos a questão da alienação (não somente do povo) como consequência do avanço do sistema capitalista sobre os países colonizados, com o objetivo de descolonizar – não apenas o público, acostumado ao modelo hollywoodiano de filme comercial ou de entretenimento, mas também o cineasta, submetido ao esquema de produção industrial norte-americano, que o alienava do seu produto, o filme.

No bojo de tais mudanças, que sufocaram a revolução cultural brasileira, surgirá então uma nova necessidade para o cineasta e crítico Glauber Rocha, exilado entre França, Itália e Portugal: a de propagar uma “ação desmistificadora dos nacionalismos”. Paradoxalmente, o fortalecimento das produções nacionais era uma das condições para que se desse a própria revolução cultural – invocada no manifesto Revolução Cinematográfica, ainda de 1967, que, mais uma vez, propunha um cinema independente e sem fronteiras:

Desde que o cinema é um método e uma expressão internacional e desde que este método e esta expressão estão dominados pelo cinema americano associado aos grandes produtores nacionais – a luta dos verdadeiros cineastas independentes é internacional. (ROCHA, 2004, p.101).

Antes de publicar nos Cahiers du Cinemá (ROCHA, 1967) o manifesto do Cine Tricontinental, Glauber Rocha publicou, no mesmo ano, um conjunto de artigos-manifestos sobre cinema e estética que iriam compor o novo manifesto Tricontinental, em que propõe um modo de fazer cinema ainda mais adequado e eficaz para os países colonizados do Terceiro Mundo. Daí os diversos sentidos que vai assumindo sua arte revolucionáriaao longo de sua trajetória artística e intelectual, conforme as mudanças no contexto no qual está inserida sua prática cinematográfica e política (seu cinema em processo).

Pois, antes mesmo de esboçar seu modelo de cinema épico-didático, no manifesto Tricontinental (que será aplicado no Der Leone Have Sept Cabeças, produção italiana, de 1970), voltou a Marx, ao propor o caminho da Revolução Cinematográfica com o manifesto dirigido às vanguardas cinematográficas de todo o mundo (uni-vos!), invocando-as a se tornarem independentes, através de um modo de fazer que atingisse não somente o espectador, corrompido pelo modelo hollywoodiano, como também o próprio cineasta alienado pelo modo de produção capitalista.

Glauber chama a atenção para o fato (econômico e cultural) de que a luta contra o sistema capitalista industrial de produção cinematográfica carecia de tomar o poder no campo da distribuição – enquanto etapa da produção fílmica crucial para a sobrevivência do cinema revolucionário –, como havia feito o movimento do cinema novo brasileiro, em sua segunda fase (entre 1964 e 1968), a mais próspera. Para isso, seria necessário que “o maior número possível de produção independente, com distribuição controlada pelos cineastas-produtores” (ROCHA, 2004, 103), invadisse as grandes salas em todo o mundo, extrapolando o circuito das cinematecas e festivais, aos quais estavam praticamente restritas as produções fílmicas independentes, com poucas exceções, a exemplo de grandes diretores como Orson Welles, Hitchcock, Bergman, Bertolucci, que, apesar de inseridos no modo de produção hollywoodiana, mantinham certa independência, mantendo a autoria de suas produções. Assim, a luta dos cineastas independentes, do ponto de vista de Glauber, seria contra a exploração dos produtores e, principalmente, dos distribuidores norte-americanos, que dominavam (e dominam) a produção cinematográfica mundial, e dar-se-ia por meio da Internacional Cinematográfica, que conduziria à verdadeira revolução.

O novíssimo cine Tricontinental

Não obtendo o apoio desejado para a revolução cinematográfica, Glauber partiu solitário para o projeto docine Tricontinental, cujo primeiro exemplar seria o Der Leone Have Sept Cabeças, filmado na África, com a ajuda dos produtores (seus amigos) Gianni Bartelonni e Claude Antoine, mas sem distribuição adequada, fato que contribuiu para o fracasso de público e de crítica. Mais uma vez, suas expectativas são fracassadas, ainda assim considerou uma vitória pessoal ter realizado o Leão de Sete Cabeças, manifesto prático do cine Tricontinental. De fato, a existência do filme um dia serviria de exemplo de sua luta anti-imperialista e descolonizadora, que assumiria um caráter um tanto solitário e controverso por, ao menos, duas décadas. Voltando-se contra a crítica internacional, em defesa de seu filme (e enquanto crítico da crítica), Glauber contesta a imprensa europeia: “Não reconheço a autoridade da crítica para julgar com uma linguagem burguesa meus filmes, que não falam segundo o sistema Lacan” (ROCHA apud BENTES, 1997, p. 46).

Aquele conjunto de ideias, colocadas nos manifestos anteriores, não deixará de fazer parte do novo manifesto Tricontinental, que marcou, na trajetória intelectual glauberiana, uma derradeira tentativa de dar forma à sua arte revolucionária, constantemente renovada de acordo com as novas circunstâncias. Com a desintegração do movimento Cinema Novo, a despeito do seu sucesso internacional e desdobramentos, o cineasta Glauber Rocha, exilado entre a França e a Itália, mas tocado pela ação e pelo discurso de Che Guevara aos povos latino-americanos, se lança no projeto do Cine Tricontinental, cuja proposta principal era combater os nacionalismos tradicionais, os colonialismos e neocolonialismos culturais e contribuir para a libertação do Terceiro Mundo, por meio de um discurso fílmico entendido como ato revolucionário. Segundo Glauber, “o ato revolucionário é produto de uma ação que se fará reflexão no processo de luta (tricontinental)” (ROCHA, 2004, p. 104).

Mas o que seria o filme tricontinental? Glauber se pergunta, no manifesto, e responde assumindo a contradição e ambiguidade de um possível cineasta tricontinental: “Um produtor aqui é como um general. […] Nenhum cineasta tricontinental é livre. Não digo livre da prisão ou da censura, ou dos compromissos financeiros. Livre, digo, desse se descobrir homem de três continentes”, sendo assim, “qualquer câmera aberta sobre as evidências do Terceiro Mundo é um ato revolucionário” (ROCHA, 2004, p. 104).

Na qualidade de ato revolucionário, Glauber define o cine Tricontinental como, ao mesmo tempo, “o cinema de autor, o cinema político, o cinema contra […]”, ou seja, tudo aquilo que fora o Cinema Novo e mais: “[...] é um cinema de guerrilha” que, inicialmente, se fez “brutal” e “impreciso”, mas se faria “épico-didático”. Logo, o manifesto do cine Tricontinentalserá aqui considerado como um desenvolvimento crítico do manifesto do cinema novo (e do próprio cinema novo, como atualização dos manifestos, um cinema em processo), Uma Estética da Fome, assim como poderá ser entendido, mais uma vez, como uma autocrítica, pois, ainda de acordo com Glauber,

Tricontinental – qualquer outro discurso é belo, mas inofensivo, é racional, mas cansado, é cinematográfico, mas inútil, é reflexivo, mas impotente, e mesmo o lirismo, este paira no ar, nasce da palavra, se faz arquitetura, mas é logo passiva ou estéril conspiração. Aqui, para lembrar Regis Debray, o verbo se faz carne. (ROCHA, 2004, p. 104).

Com estas ideias na cabeça, Rocha vai filmar na África, em 1969, o Der Leone Have Sept Cabeças, considerado manifesto prático do Cine Tricontinental, que, como o Terra em Transe, manifesto prático da Estética da Fome, enquanto arte, ultrapassa, todavia, seus limites (os de suas tentativas de normatização da arte revolucionária) rumo à estética do sonho.

A Eztetyka do Sonho

Logo na introdução à Eztetyka do Sonho, comunicação realizada na Universidade de Yale, em 1971, Glauber considera de suma importância, observadas as circunstâncias, distinguir três tipos de arte revolucionária:

“Arte revolucionária” foi a palavra de ordem no Terceiro Mundo nos anos 60 e continuará a ser nesta década. Acho porém que a mudança de condições políticas e mentais exige um desenvolvimento contínuo dos conceitos de “arte revolucionária. (ROCHA, 2004, p. 249).

O primeiro estaria representado naquele tipo de arte cinematográfica útil ao ativismo político, cujo exemplo mais evidente seria o filme La hora de los Hornos (Argentina, 1968, do cinemanovista argentino Fernando Solanas). O segundo tipo tem por característica principal abrir novas discussões, como exemplo cita alguns filmes do Cinema Novo e seus próprios filmes. Por último, a arte revolucionária rejeitada pela esquerda e instrumentalizada pela direita, a exemplo da obra de Jorge Luiz Borges, também argentino. No Brasil, porém,

O pior inimigo da arte revolucionária é a sua mediocridade. Diante da evolução sutil dos conceitos reformistas da ideologia imperialista, o artista deve oferecer respostas revolucionárias capazes de não aceitar, em nenhuma hipótese, as evasivas propostas. (ROCHA, 2004, p. 248).

Em permanente estado de revolta contra tudo que era tradição, tanto no campo da moral (da ética) como no das convenções sociais e dos valores estéticos, Glauber se volta contra a própria cultura cinematográfica europeia, da qual havia compartilhado, e contra o que chama de razão opressora, de origem europeia (ocidental). Não abandona por completo a tentativa de conscientizar (na origem das utopias vanguardistas dos anos 1960, nas quais está imersa sua prática cinematográfica e sua teoria estética), mas, no Der Leone Have Sept Cabeças, radicaliza sua busca do inconsciente coletivo, em direção à Eztetyka do Sonho, em que, invocando o surrealismo de Borges, lança a noção de irracionalidade na arte, seu grito de guerra de independência (ou de autonomia estética): “As vanguardas do pensamento não podem mais se dar ao sucesso inútil de responder à razão opressiva com a razão revolucionária. A revolução é a anti-razão” (ROCHA, 2004, p. 250).

Logo, no manifesto Eztetyka do Sonho, é o conteúdo irracional da cultura do Terceiro Mundo que vai ser valorizado – como uma forma de violentar a razão opressora do colonizador. Pois, como disse Edgar Morin, na tentativa de demonstrar a insuficiência da definição do gênero humano como homo sapiens (o que converge com a crítica glauberiana da razão, além de ajudar a explicar a construção dos personagens nos filmes de Glauber, a qual não pretende ser realista, mas mitopoética, sem jamais separar mito e história nem poética e política):

Ser homo implica ser igualmente demens: em manifestar uma afetividade extrema, convulsiva, com paixões, cólera, gritos, mudanças brutais de humor; em crer na virtude de sacrifícios sanguinolentos, e dar corpo, existência e poder a mitos e deuses (...) A loucura humana é fonte de ódio, crueldade, barbárie, cegueira. (...) sem as desordens da afetividade e as irrupções do imaginário, e sem a loucura do impossível, não haveria élan, criação, invenção, amor, poesia. (…) O ser humano é um animal insuficiente, não apenas na razão, mas é dotado de desrazão. (MORIN, 2002, p. 7).

A estética do sonho já estava presente também no Terra em Transe, anterior e considerado pelo próprio Glauber como aplicação da estética da fome, manifesto em favor do movimento cinema novo, mas já transcendendo seus limites, como já foi dito, podendo ser considerada a estética do sonho um desenvolvimento da estética da fome, no processo de radicalização do seu projeto estético, dada a natureza política de sua arte revolucionária.

Os dois filmes considerados explicitamente políticos, por Glauber e outros estudiosos, são Terra em Transe, 1967 (analisado no Capítulo II deste), em que coloca a questão do intelectual e faz a crítica do “populismo” (WEFFORT, 2003), e O Leão de Sete Cabeças, de 1970, considerado como o primeiro exemplar do Movimento Cine Tricontinental. Do ponto de vista adotado aqui, interessa a crítica do intelectual em suas relações com o poder discutidas por Glauber nestes filmes. Não só porque em ambos os personagens principais estão imbricados em questões propriamente políticas, ou seja, envolvidos nas lutas sociais (ou na luta de classes), como também, pensando paralelamente na trajetória artístico-intelectual de Glauber Rocha, representam os dois principais momentos de ruptura com o contexto cultural, artístico, sociointelectual de sua época, e, principalmente de seus próprios pressupostos estético-teóricos, na medida em que inauguram novo movimento nas ideias e na prática cinematográfica (não separadas) de Glauber Rocha. No entanto, não se trata de ruptura total, há pontos de continuidade, o que permite falar em passagem. Afinal, “a política está sempre em transe” (ROCHA apud BENTES, 1997, p. 328).

Considerações Finais

O verdadeiro progresso não consiste no ter progredido, mas no progredir.

(BRECHT apud CHIARINI, 1967, p. 34)

A progressiva démarche cinematográfica glauberiana, no sentido de uma crítica sempre mais radical à sociedade “burguesa” e ao sistema capitalista, caminhou na direção de abertura de novas perspectivas no campo cultural. Tal fenômeno foi particularmente notório nos anos 1960, quando floresceu o Cinema Novo, movimento do qual Glauber foi um dos principais organizadores e seu teórico por excelência. Mais especificamente, procuramos analisar uma passagem fundamental na carreira de Glauber: a transição entre os princípios normativos de sua arte revolucionária, esboçados primeiro na Estética da Fome (1965) e sua tentativa de aplicação prática no Terra em Transe (1967), o primeiro momento de transcendência frente ao manifesto do Cinema Novo, para aqueles princípios estabelecidos na Eztetyka do Sonho (1971), passando pelo manifesto do cine Tricontinental (1967), aplicado no Leone Have Sept Cabeças (1970), que enquanto obra de arte já os transcende rumo à estética do sonho.

Terra em Transe, enquanto manifesto prático da estética da fome, mostrou-se como um divisor de águas, tanto na trajetória artístico-intelectual de Glauber Rocha, quanto no contexto dos movimentos culturais, na passagem dos anos 1960 para a década de 1970, ultrapassando os limites da “estrutura de sentimento da brasilidade revolucionário” (RIDENTE et al., 2006) dos anos 1960 e já prenunciando seu esgotamento. Como bem notou Caetano Veloso, “as imagens de grande força que se sucediam confirmavam a impressão de que aspectos inconscientes de nossa realidade estavam à beira de se revelar”. Caetano, no momento em que foi tocado por Terra em Transe de maneira positiva, ao contrário da quase totalidade dos artistas e intelectuais daquela geração, foi um dos poucos a perceber algo que se revelou, podemos dizer, como um dos traços fundamentais da cinematografia glauberiana, a saber, aquele que se volta para desvelar os mitos mais profundos da cultura brasileira em busca do o inconsciente coletivo brasileiro, como instrumento de descolonização[3].

Rocha via nesse processo uma forma de superar o complexo de inferioridade do artista e do intelectual periférico, terceiro-mundista. Sua crítica radical se voltou, principalmente, contra a persistência na sociedade brasileira da lógica colonialista, sem retroceder jamais.

Comparando os manifestos Uma Estética da Fome (1965) a Eztetyka do Sonho (1971), passando pelo Cine Tricontinental (1967), com os filmes Terra em Transe (1967) e Der Leone Have Sept Cabeças (1970), considerados por ele mesmo como manifestos práticos, pode-se chegar à conclusão de que sua arte cinematográfica revolucionária, paradoxalmente, sempre ultrapassa suas tentativas teóricas de normatização (em que estabelece os princípios norteadores de sua obra), evidenciando um constante desenvolvimento dos seus escritos estéticos, publicados no Brasil, na Europa Ocidental e nos Estados Unidos, para sua prática cinematográfica (política). Assim, embora a sua obra artística e sua teoria estética estejam em íntima relação (e ele tenha buscado aproximá-las cada vez mais), a segunda sempre aponta para algo mais, para novos horizontes, seguindo sempre a máxima de Brecht: para novas formas, novos conteúdos e vice-versa.

Referências bibliográficas

BENTES, Ivana (Org.). (1997), Glauber Rocha, Cartas ao mundo. São Paulo: Cia das Letras.

CHAUI, Marilena. (1994), Conformismo e Resistência: aspectos da cultura popular no Brasil. 6 ed. São Paulo: Brasiliense.

CHIARINI, Paolo. (1967), Bertold Brecht. 1 ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.

DERRIDA, Jacques. (1971), A Escritura e a Diferença. 2 ed. São Paulo: Perspectiva.

FANON, Frantz. (2005), Os Condenados da Terra. 4 ed. Juiz de Fora: Ed. UFJF.

FOUCAULT, Michel. (1979), Microfísica do Poder. 8 ed. Rio de Janeiro: Graal.

MORIN, Edgar. (2002), Amor, Poesia, Sabedoria. 4 ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil.

NIETZSCHE, Friedrich. (1988), A Genealogia da Moral. 2 ed. São Paulo: Brasiliense.

REIS, Paulo R. O. (2006), Arte de Vanguarda no Brasil – os anos 1960. 1 ed. Rio de Janeiro: Zahar.

RIDENTE, Marcelo et. al. (2006), Intelectuais e Estado. 1 ed. Belo Horizonte: Ed. UFMG.

ROCHA, Glauber. (2004 [1965]), Estética da Fome. In: ROCHA, Glauber. Revolução do Cinema Novo. Rio de Janeiro: Cosac Naify. pp. 63-67.

ROCHA, Glauber. (2004 [1971]), Eztetyka do Sonho. In: ROCHA, Glauber. Revolução do Cinema Novo. Rio de Janeiro: Cosac Naify. pp. 248-251.

ROCHA, Glauber. (1985), O Século do Cinema. 1 ed. Rio de Janeiro: Alhambra.

ROCHA, Glauber. (1967), O Cineasta Tricontinental. Cahiers du Cinemá, n. 195, pp. 204-213.

SAID, Edward. (2005), Representações do Intelectual .As Conferências Reith de 1993).1 ed. São Paulo: Companhia das Letras.

WEFFORT, Francisco C. (2003), O populismo na política brasileira. 5 ed. São Paulo: Paz e Terra.

Notas

[1] Em certo sentido, Glauber aproxima-se ainda da concepção foucaultiana (FOUCAULT, 1979), em que o problema político essencial do intelectual não é mais, ou apenas, o de criticar os conteúdos ideológicos que estariam ligados à ciência ou fazer com que a sua prática seja acompanhada por uma ideologia justa, mas saber se é possível construir uma nova política da verdade.
[2] Conjunto de artigos publicados em jornais e revistas na época e reunidos em 1985, no livro O Século do Cinema, publicado pela EMBRAFILME.
[3] Todavia, “descolonizar” não implica necessariamente o esforço de apagamento da herança europeia, mas aponta para a possibilidade de acrescentar ou suplementar, no sentido derridiano do termo – em que suplemento (conceito formulado por DERRIDA, 1971) não é apenas aquilo que se adiciona, mas aquilo que, questionando o que foi recalcado desde a origem, contribui para alterar.


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