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A síndrome do balcão: razões, burocracia e valores no cotidiano de brasileiros sem documento

The syndrome of the counter: reasons, bureaucracy and values in the daily life of Brazilians without document

Fernanda Melo da Escóssia
Fundação Getulio Vargas, Brasil

A síndrome do balcão: razões, burocracia e valores no cotidiano de brasileiros sem documento

Revista Brasileira de Sociologia, vol. 7, núm. 15, pp. 9-29, 2019

Sociedade Brasileira de Sociologia

Recepção: 30 Julho 2018

Aprovação: 27 Outubro 2018

Resumo: O artigo condensa dois capítulos da tese da autora, em processo de defesa no CPDOC/ FGV. Numa abordagem etnográfica, examina de que forma brasileiros adultos sem documento buscam o primeiro documento de sua vida – a certidão de nascimento – num serviço gratuito instalado pela Justiça do Estado do Rio de Janeiro dentro de um ônibus no centro da cidade. Em diálogo com o conceito de margens do Estado (DAS; POOLE, 2004), o artigo aborda dois pontos: os motivos que levam aqueles adultos a buscar a certidão de nascimento e os meandros que percorreram nas instâncias estatais ao longo dessa busca. Permite rediscutir o conceito de burocracia (WEBER, 1982) enfocando as vivências desses brasileiros em busca de documentação e as instâncias do Estado acionadas nessa busca – no vaivém que uma funcionária chamou de “síndrome do balcão”.

Palavras-chave: Documentação, Burocracia, Etnografia.

Abstract: The article synthesizes two chapters of the author ‘s thesis, in a defense process in the CPDOC / FGV. In an ethnographic approach, he examines how Brazilian undocumented adults search for the first document of their lives - the birth certificate - in a free service installed by the Justice of the State of Rio de Janeiro within a bus in the city center. In a dialogue with the concept of state margins (DAS; POOLE, 2004), the article addresses two points: the reasons that lead adults to seek the birth certificate and the intricacies that they have gone through in the state courts throughout this search. It allows us to rediscuit the concept of bureaucracy (Weber, 1982) by focusing on the experiences of these Brazilians in search of documentation and the state instances triggered in this quest - in the shuttle that an employee called “the syndrome of the counter”.

Keywords: Documentation, Bureaucracy, Ethnography.

1 Introdução

Rio de Janeiro, setembro de 2016. É sexta-feira de verão no Centro da cidade. Uma mulher loura, muito magra, é uma das primeiras na fila de mais de 50 pessoas à frente do ônibus estacionado no pátio do Juizado da Infância e da Juventude. Sem perguntar, sei por que ela está ali: como todas aquelas pessoas, Maria da Conceição quer tirar a certidão de nascimento, que será o primeiro documento oficial de sua vida. Mas não esperava que, para responder, Maria me chamasse ao banheiro e erguesse a blusa, me mostrando um tumor do tamanho de uma laranja no seio esquerdo. “Quero me operar. Só me operam se eu tiver documentos”, contou.

Maria não sabia ainda, mas o ônibus seria o ponto final de sua busca pelo registro de nascimento. O ônibus é resultado de uma parceria entre dois projetos do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro: a Justiça Itinerante[1], que desde 2004 (GÁULIA, 2018) leva serviços judiciais a áreas pobres ou distantes, e o SEPEC (Serviço de Promoção e Erradicação do Sub-registro de Nascimento e a Busca de Certidões), criado em 2009 (MARINHO, 2017) para auxiliar juízes de todo o Estado em diligências solicitadas nos processos de registro tardio. O ônibus da Praça Onze foi instalado em 2014 e trabalha apenas emitindo certidões de nascimento para brasileiros que nunca obtiveram tal documento. O atendimento realizado no ônibus e as trajetórias desses brasileiros adultos indocumentados são o objeto da pesquisa de doutorado que dá origem a este artigo.

A certidão de nascimento é gratuita no Brasil desde 1997. No entanto, dados oficiais do IBGE para o ano de 2002 situavam em 20,3% o percentual de sub-registro[2], nome técnico para o fenômeno de crianças sem registro de nascimento. São considerados tardios registros feitos até três anos depois do nascimento da criança. Em 2003 o governo brasileiro iniciou uma ação nacional de erradicação do sub-registro[3] (GARRIDO; LEONARDO, 2017). Em 2015, o sub-registro de crianças havia caído para 3,2% (IBGE, 2016). Hunter e Sugiyama (2017) apontam a implementação de políticas de transferência de renda, entre elas o Bolsa Família e o Benefício de Prestação Continuada (BPC), como fator decisivo para a redução do problema, pois, para ser incluída nas políticas sociais, a família precisava ter todos os seus membros documentados.

Em diálogo com a pergunta de Peirano (2006) – de que serve um documento? – e com o conceito de burocracia de Weber (1982), este artigo condensa dois capítulos da tese de doutorado em processo de defesa no CPDOC/ FGV. A partir de relatos de funcionários do ônibus e usuários do serviço, desvenda motivos apresentados pelas pessoas sem certidão de nascimento para buscar o documento e reconstitui que instâncias do aparato burocrático estatal são acionadas por elas nessa busca – que uma assistente social nomeou de síndrome do balcão. O artigo justifica a opção metodológica pela etnografia, por entender que ela permite valorizar a experiência e as vivências desses usuários, em diálogo com estudos na área de antropologia do Estado e antropologia do direito.

A abordagem antropológica nos ajuda a compreender o Estado e suas margens em duas dimensões (SHARMA; GUPTA, 2006): as práticas cotidianas (as rotinas, os procedimentos burocráticos que muitas vezes parecem banais) e as representações deste Estado, ou seja, as formas que ele assume e através das quais se apresenta. Ao mesmo tempo, etnografar o adulto sem documento é mergulhar no que Das e Poole categorizam como “margens do Estado”, “os lugares a partir dos quais tentamos entender o que conta no estudo do Estado na antropologia” (DAS; POOLE, 2004, p. 3), ou seja, práticas, lugares e linguagens existentes em espaços que parecem estar nos limites do funcionamento regulamentado do estado-nação, entendido o estado como a presença que formata o sentido e as formas do poder em qualquer sociedade. O desafio é refletir sobre que relações se desenrolam nessas margens, tradicionalmente percebidas como áreas nas quais o Estado parece não estar presente – mas está, ainda que de modo não regular nem regulamentado. Margens do Estado também constituem o que chamamos Estado, pois o Estado também se faz nas margens (DAS; POOLE, 2004). Outra reflexão necessária é sobre como tais margens, muitas vezes entendidas como áreas nas quais o Estado foi inábil para impor ordem e como lugares onde haveria apenas exclusão e desordem, reorganizam suas práticas e experiências, numa construção que não é monolítica, mas sim processual e dinâmica. Nas margens do Estado, a observação etnográfica de práticas e vivências mostra que exclusão e desordem convivem com resistência e pluralidade.

Para esta pesquisa, é fundamental o diálogo com o conceito de margens, pois pessoas sem documentação vivem nas margens do Estado brasileiro, menos no sentido geográfico, mas principalmente pelo fato de serem ilegíveis por este Estado (DAS; POOLE, 2004). Entender as margens como não inertes ajuda que nós, cidadãos documentados, possamos compreender de que modo se constrói uma vida inteira sem documentação. Nesse sentido, qualifico aqui essas pessoas como invisíveis, no sentido de que foram legalmente ilegíveis pelo arcabouço estatal.

2 Nota metodológica

O ônibus azul e branco estaciona no pátio do Juizado da Infância e da Juventude, no Centro do Rio de Janeiro, por volta das 8 horas de uma sexta-feira. Lúcia, comissária de Justiça, anota, por ordem de chegada, os nomes das pessoas que querem atendimento. Como o ônibus da Praça Onze só emite registro de nascimento, quem busca outro serviço é encaminhado a outro endereço. Na triagem começa mais uma sexta-feira que acompanhei no trabalho de campo, durante o qual tive acesso ao funcionamento do ônibus, no período de setembro de 2016 a junho de 2018. Optei pela etnografia, com observação participante, por entender que ela permitiria reconstituir as experiências dos usuários em sua vida indocumentada, bem como compreender as dinâmicas de atendimento do ônibus. Becker (1997) destaca que a observação participante aborda as pessoas “enredadas em relações sociais que são importantes para elas” (BECKER, 1997, p. 75), e eram essas relações que eu precisava conhecer.

Acompanhei passo a passo o atendimento no ônibus, que inclui: triagem, entrevistas dos usuários realizadas pelos funcionários, audiências com os juízes e recebimento, no cartório do Juizado da Infância e da Juventude, da certidão de nascimento. Entrevistei cerca de 80 pessoas, entre usuários do ônibus e funcionários da Justiça, como oficiais de justiça, técnicos, promotores, defensores e juízes. Havia muitas conversas informais e observação. Na triagem, eu observava, me apresentava e iniciava uma conversa com quem esperava na fila. Pedia que a pessoa contasse como havia chegado até ali e por que buscava o documento. Coletava informações sobre idade, renda, escolaridade e ausência de documentação na família. Gravei algumas entrevistas, mas percebi que as pessoas ficavam intimidadas, então optei por anotar tudo em cadernos. Produzi cerca de 12 entrevistas gravadas, 250 fotos e cerca de 30 vídeos durante a pesquisa etnográfica.

Toda sexta-feira o ônibus realiza pelo menos 50 atendimentos. Dados obtidos por mim junto ao SEPEC mostram que, de 2015 a 2017, o cartório da Justiça Itinerante do Sub-Registro iniciou 893 novas ações de pessoas solicitando o registro tardio. Foram emitidas 795 certidões de nascimento. O número não inclui pessoas que solicitaram mudança de nome, segunda via da documentação ou reconhecimento de paternidade. Refere-se apenas e tão somente a pessoas jamais registradas que obtiveram a primeira certidão de nascimento.

Por decisão metodológica e para proteger meus interlocutores, troquei os nomes de todas as pessoas que trabalham no ônibus da Praça Onze. Quanto aos usuários, identifico-os apenas pelo prenome, e justifico: achei injusto chamar de forma diferente quem demorou tanto para obter um documento com o próprio nome.

3 De que serve um documento? As razões de cada um

Como vive um adulto sem documentos numa sociedade documentada? O que fez essas pessoas que sempre viveram nas margens do Estado, tal como definem Das e Poole (2004), buscarem a certidão de nascimento? Essa foi uma pergunta que repeti aos usuários do ônibus da Praça Onze. “Quero o registro de nascimento para receber o Bolsa Família (programa de transferência de renda do governo brasileiro)”, dizia um. “Quero para tirar a carteira de trabalho”, afirmava outro. “Quero dar entrada na aposentadoria”, esclarecia o terceiro. “Quero colocar meu filho na escola”, ressaltava o quarto. Na pesquisa de campo, foi possível reconstituir e analisar motivos apresentados pelos usuários do ônibus da Praça Onze para obter o registro de nascimento e se tornar legíveis diante do Estado. Por que decidiram buscar o documento? Com base nas entrevistas realizadas por mim com usuários, mas também com juízes, promotores, defensores públicos e técnicos da Justiça Itinerante, proponho um mapeamento desses motivos, sabendo que as motivações se entrelaçam e que dificilmente um usuário apresenta uma única razão em sua busca pelo documento.

Um motivo frequentemente listado pelos usuários do ônibus para obter a certidão de nascimento é o acesso pleno a documentos, políticas públicas e benefícios sociais. O sistema de documentação brasileiro funciona por encadeamento, e, para obter qualquer documento, exige-se um anterior, sendo que a certidão de nascimento é, no dizer de DaMatta (2002), o documento fundador. Sem a certidão, é impossível obter carteira de identidade e CPF. Assim, o ônibus da Praça Onze é procurado por indivíduos que desejam a certidão de nascimento para, a partir dela, obter outros documentos e com eles solicitar acesso a programas e benefícios sociais, notadamente o Programa Bolsa Família, criado em 2003.

Inscrever-se no Bolsa Família era o propósito de Damiana, de 28 anos, moradora de Costa Barros, na zona norte do Rio. Entrevistei-a em 14 de outubro de 2016, em sua segunda ida ao ônibus, quando recebeu as certidões de nascimento sua e dos filhos Lázaro, de 10 anos, e Ana Raquel, de 4. Sem emprego nem renda fixos, analfabeta, Damiana vivia em situação de miséria. Cresceu na rua, filha de mãe alcoólatra. Sempre viveu sem documentos, nas margens, tanto como habitante de uma periferia em que as pessoas são menos socializadas, quanto na acepção de alguém ilegível pelo Estado e cujos direitos são mais facilmente violados (DAS; POOLE, 2004).

Mas, mesmo nas margens, o Estado se faz presente. Damiana foi levada ao ônibus pela assistente social Yara, funcionária de uma ONG que, através de um convênio com a prefeitura do Rio, busca crianças que não frequentam a escola. Um dia, quando percorria Costa Barros, Yara achou Lázaro jogando bola de manhã. Perguntou por que não estava no colégio, chegando em seguida à casa de Damiana, um barraco na comunidade Terra Nostra. A história de vida de Damiana traz uma contínua negação de direitos através de gerações. Sua mãe não tinha documentos e foi enterrada como indigente. Damiana, sem estudo, sem trabalho, sem documento, não registrou os filhos. Era ilegível. O documento representaria, para ela, o acesso a políticas sociais – o Bolsa Família – e a chance de se tornar legível.

Ser legível é outro motivo que leva os usuários até o ônibus em busca da certidão de nascimento. Isso ocorre quando algum evento os obriga a ter um documento de modo urgente, caracterizando o que, a partir do conceito original de legibilidade de Das e Poole (2004), nomeio como urgência de legibilidade: o usuário precisa do documento para fazer uso, de modo urgente e imediato, de um serviço do Estado. Nas margens do Estado, nas quais ele está acostumado a transitar, as estratégias de negociação se esgotaram.

Um exemplo claro da urgência de legibilidade aconteceu com Maria da Conceição, a mulher que abre este artigo. Doméstica, 52 anos, Maria conta que veio de Pernambuco para o Rio há cerca de 30 anos, já sem documentação. É uma das personagens mais marcantes de minha pesquisa e entrevistei-a várias vezes. Sobre não ter documentos, repetidas vezes me disse: “Eu me sinto um cachorro. Sou uma pessoa que não existe”. Sempre trabalhou como diarista, sem carteira assinada nem documento algum. Teve companheiros, filhas e netos. Nunca votou. Não sabe ler nem escrever. Construiu sua existência nas margens do Estado, ilegível diante do mesmo. Vivia numa ocupação em São Gonçalo, município da Região Metropolitana do Rio. Um dia viu um caroço na mama esquerda, mas, sem documento, conseguiu apenas tratamento de emergência na rede pública. Em setembro de 2016, quando a conheci, o caroço tinha crescido e projetava-se para fora do corpo. No posto médico, foi diagnosticado um tumor que precisava ser operado, mas tanto o tratamento quanto a cirurgia só poderiam ser feitos caso ela apresentasse documentos.

A situação de Maria explicita o papel do documento como chave para acesso pleno a políticas públicas – e para a cidadania, tal como analisam Peirano (2006), DaMatta (2002) e Santos (1979). Do mesmo modo que Maria, outros adultos sem documento buscam o registro de nascimento para resolver a urgência de legibilidade, quando há um problema que não mais pode ser solucionado pelas estratégias até então utilizadas por eles. Outra mulher, Vânia, contou que sempre conseguiu matricular a filha na escola, mesmo sem documentos, porque conhecia a diretora do estabelecimento. Quando a jovem chegou ao ensino médio, mudou-se para uma escola estadual, com nova regra: sem documento não há matrícula. Vânia teve de buscar outra solução. A urgência de legibilidade se caracteriza, assim, pela situação extrema, que exige a apresentação de documentação oficial e uma tomada de atitude por parte do usuário.

O terceiro motivo que leva o usuário ao ônibus é o que chamo de conversão – não necessariamente religiosa, ainda que muitas vezes o processo inclua a conversão religiosa. São pessoas cujas trajetórias são marcadas por abuso de drogas lícitas ou ilícitas, e a chegada ao ônibus da Praça Onze se dá ao final de um processo de mudança de vida, com o fim ou a redução da dependência. Opto pela categoria conversão por causa dos relatos que obtive durante a pesquisa de campo, em diálogo com estudos (LINS; DA SILVA, 1989; TEIXEIRA, 2009; CORRÊA, 2015) que analisaram, em áreas pobres do Rio, a conversão religiosa e a forma como o fenômeno é constitutivo de uma nova identidade[4]. Teixeira (2009), em estudo etnográfico sobre os chamados ex-bandidos que se tornaram evangélicos, observa, nas narrativas destes, que a conversão é um processo atravessado por numerosas mediações e não pode ser entendida como uma mudança individual, subjetiva, mas sim como “ápice de um processo que envolve o indivíduo e os contextos (social e religioso) em que ele está inserido” (TEIXEIRA, 2009, p. 81).

Durante a pesquisa de campo, deparei-me, no ônibus da Praça Onze, com numerosos usuários que traduziam na conversão o motivo de sua busca pelo registro de nascimento. Eram principalmente ex-usuários de drogas que, ao longo dos anos de dependência, perderam documentos ou nunca os tiveram. Aproximei-me mais de Natália, que me deu entrevista pela primeira vez em novembro de 2016. Depois disso, entrevistei-a mais duas vezes. Aos 30 anos, Natália, de acordo com seu relato, nunca tivera documento. Sua primeira lembrança era do Conjunto Amarelinho, zona oeste do Rio, onde vivia na casa de uma mulher que cuidava de muitas crianças – e, segundo Natália, espancava todas. Ela me contou:

Resolvi fugir, porque ali não dava mais pra viver. Fui ficando pela rua, vivendo de pedir, fazendo tudo de ruim. Roubei, me prostituí na avenida Brasil, usei maconha, cocaína, crack. Fiquei muitos anos na droga, mendigando na rua, roubando... Pior mesmo foi a pedra, o crack. Na rua conheci o Alessandro, que também usava droga, era crackudo, mas não tanto quanto eu. A gente trocou telefone, ficou namorando. Ele me levou pra casa dele, e a mãe dele começou a cuidar de mim, me levou pra igreja. Faz três anos que não estou usando mais. O Alessandro saiu da rua também. Paramos de usar juntos. Mudei totalmente de vida.

Natália relatou que, com a ajuda de Nilza, mãe de Alessandro, entrou para uma igreja evangélica em Santa Cruz, também na zona oeste do Rio. Saiu da rua, deixou de consumir crack e de se prostituir. Começou a trabalhar como faxineira. Vivenciou o processo de conversão, que, no caso dela, incluiu também a conversão religiosa. Segundo Natália, o que lhe faltava na nova vida era um documento, para que pudesse voltar a estudar e buscar um emprego de carteira assinada, e por isso procurou o ônibus da Praça Onze.

Um processo parecido foi vivenciado por Márcia, de 40 anos, que entrevistei no dia 17 de março de 2017, quando ela chegou ao ônibus levada por uma sobrinha e uma vizinha. Acompanhei a entrevista de Márcia feita pela assistente social do SEPEC e continuei conversando com ela até receber a certidão de nascimento. Márcia relatou que tinha nascido na roça, no interior do Rio, e que sua mãe tivera mais de dez filhos, nenhum registrado. A mãe também não tinha documentos. A família vivia entre violência e pobreza, relembrou Márcia: “Todo marido que ela arrumava batia nela. Muitas vezes não tinha nada para comer”. Márcia era frequentemente espancada por um irmão, que batia nela “até tirar sangue”. Com medo, saiu de casa e foi morar na rua. Nunca teve documentos. Por volta de 18 anos, foi morar com um companheiro, usuário de drogas. Márcia também passou a usar drogas. “Caí no mundo, pedia, roubava, me prostituía, fazia de tudo”, relembrou.

Viveu mais de 20 anos com este companheiro, que, segundo ela, a espancava e trancava em casa. A sobrinha disse que a família sabia da vida que Márcia levava: “Ela não era santa não”. Um dia uma vizinha encontrou-a desmaiada e com sangramento vaginal intenso. Na emergência hospitalar foi diagnosticado um câncer do colo do útero. O hospital, para fazer cirurgia e tratamento, exigiu documentos, e a família foi encaminhada ao ônibus da Praça Onze. Levada pela vizinha, Márcia começou a frequentar uma igreja evangélica. Quando a conheci, estava sem usar drogas. Queria se registrar, iniciar o tratamento e pedir a aposentadoria. Saiu da Praça Onze com a certidão de nascimento na mão. Sua trajetória mescla vários motivos para obter um documento, pois buscava tanto o acesso pleno a políticas públicas (aposentadoria) como vivenciava a urgência de legibilidade, já que a cirurgia dependia da documentação. Destaco também a conversão, num processo que passa pelo abandono das drogas, e no qual o documento seria, segundo sua visão, uma chave para uma vida diferente.

Por fim, constatei que muitos usuários do serviço da Justiça Itinerante expressavam não um propósito facilmente definível, mas um sentimento difuso sobre conhecer melhor suas origens, no que defino como recuperação da trajetória familiar. Estabeleço essa categoria em diálogo com o que propõe Schritzmeyer (2015) em estudo etnográfico sobre adultos ex-internos da Fundação CASA (Centro de Atendimento Socioeducativo ao Adolescente). A autora analisa de que forma os ex-internos buscavam seus prontuários nos abrigos públicos do estado de São Paulo, num processo que ela denomina de recuperação dos “fios das vidas” (SCHRITZMEYER, 2015). De modo similar, os relatos obtidos no ônibus indicavam que o registro de nascimento tinha finalidade imediata, mas não apenas imediata. Muitos usuários buscavam saber mais sobre suas famílias, e tal observação me obrigou a voltar sobre meus passos, abrindo a pesquisa para incluir um grupo que, tecnicamente, não seria abrangido por ela. Eram pessoas que já tinham documento, mas mesmo assim buscaram o ônibus da Praça Onze.

Conheci Valderez no ônibus, em 2 de setembro de 2016, enquanto ela esperava na fila. Gravei parte de sua entrevista neste dia e reencontrei-a outras duas vezes. Moradora de Belford Roxo, na Baixada Fluminense, Valderez me contou que nasceu e foi registrada em Maceió, Alagoas, em 1970. Quando tinha oito anos, a mãe foi assassinada a facadas pelo pai. Ela e os irmãos, trazidos para o Rio, foram divididos entre parentes. Valderez foi morar com uma tia, mas, aos 15 anos, foi expulsa pela tia e passou a viver na rua – quando perdeu a certidão de nascimento. Mais tarde, a jovem encontrou uma família que a acolheu e, tempos depois, levou-a a um cartório. Valderez foi registrada pela segunda vez, agora no Rio de Janeiro e com o nome Fabiana, mais um sobrenome sem relação com os originais. “O homem do cartório disse que Valderez era nome de homem”, lembrou ela. O novo documento alterou sua data de aniversário e omitiu os nomes dos pais. Com o novo documento, a jovem obteve identidade, título de eleitor, casou e registrou suas filhas.

Valderez não era, tecnicamente, uma “invisível”, ilegível, ausente dos cadastros nacionais e tema principal desta pesquisa. Tinha casa em seu nome, uma vida organizada na pobreza, documentos, filhos e netos registrados com seu nome de Fabiana. Tinha acesso a políticas públicas e legibilidade. Não vinha de um processo de conversão. Por que queria um documento? Sua história de vida me trouxe nova reflexão.

Valderez/Fabiana jamais se conformou em ter os nomes dos pais retirados da certidão. Depois de anos tentando fazer o acréscimo, chegou ao Comitê de Erradicação do Sub-Registro da Prefeitura de Belford Roxo. A partir das informações fornecidas por ela, o serviço municipal localizou o documento original no cartório de Alagoas onde ela fora registrada e obteve a segunda via. Com os nomes dos pais, o mesmo serviço municipal localizou uma de suas irmãs, Valdenice, e elas se reencontraram após 21 anos de separação. Conheci as duas no ônibus, e elas ficavam de mãos dadas. Quando perguntei a Valderez/Fabiana por que estava ali, ela me contou que desejava ter nos documentos o nome antigo. Porém os técnicos da Justiça explicaram-lhe que, se anulasse a certidão com o nome Fabiana, automaticamente ficariam nulos os documentos dos filhos registrados por Fabiana. Valderez decidiu manter a certidão como Fabiana, mas queria que ao documento fossem acrescentados os nomes de seus pais.

Valderez, reitero, já tinha acesso pleno a políticas e benefícios sociais, não vivia uma urgência de legibilidade nem passara por uma conversão. Sua busca era motivada por outro motivo: queria recuperar sua história. A busca pelo documento fez com ela se transformasse, achasse a família de origem, repensasse quem ela era.

Reencontrei Valderez no dia 30 de setembro de 2016, ao lado da irmã Valdenice. Assisti à audiência dentro do ônibus da Justiça Itinerante. Uma nova juíza apresentou a Valderez outro argumento: legalmente, a certidão que a nomeava como Fabiana era falsa, pois fora emitida para registrar alguém já registrado, o que é proibido por lei. Colocar os nomes dos pais na certidão falsa seria validar um documento falso. Uma opção, caso ela gostasse muito do nome Fabiana, seria acrescentá-lo ao documento original, e ela passaria a se chamar Valderez Fabiana. Mas, de qualquer modo, os documentos dos filhos teriam de ser modificados.

Assim, foram oferecidas a Valderez/Fabiana duas opções: ou ela seguia como Fabiana e sua certidão cheia de falsificações, como se nunca tivesse sido registrada antes, e não mudava nenhum documento dela nem dos filhos; ou optava pelo documento correto, anulando o falso em que era identificada como Fabiana, e teria de modificar todos os seus documentos e os de seus filhos. No caminho para recuperar suas origens, teve de escolher entre duas certidões de nascimento, sendo que cada uma representava um pedaço da vida: Valderez, a menina que perdeu a mãe e foi expulsa de casa, ou Fabiana, a jovem que reconstruiu a vida e teve filhos.

Valderez assistiu à audiência ao lado de Valdenice. Elas choraram várias vezes. Depois de pensar, Valderez anunciou: queria o nome da mãe e do pai na certidão e, para recuperá-los, abria mão de todos os documentos como Fabiana. A juíza emitiu uma ordem determinando que tudo fosse alterado e explicando a quem fosse realizar o processo que Fabiana e Valderez eram a mesma pessoa, que não havia falsidade ideológica ou tentativa de burlar a Justiça. A decisão valia também para qualquer programa social ou escritura de imóvel. Valderez teria de chamar os filhos e pedir que mudassem toda a documentação, para que o nome verdadeiro dela ocupasse o lugar que lhe era devido na vida. Valderez, assim, decidiu ser Valderez.

Ao longo da pesquisa de campo, encontrei outros usuários que, como Valderez, já tinham registro de nascimento, mas buscavam o ônibus da Praça Onze como solução para essa busca pelo fio da vida, pela recuperação da trajetória familiar. Reelaborei minha hipótese e percebi que, na busca pela documentação, a dimensão imediata e inegável de “para que serve o registro de nascimento” se junta a uma outra, que remete a outra busca, por direitos, acesso à cidadania e recuperação da própria história familiar. O documento, mais do que nunca, surge como rastro para recuperação da trajetória familiar, do fio de sua vida, e definidor da identidade.

4 A síndrome do balcão e a cartela de carimbos

Corria dezembro de 2014 quando cheguei ao Comitê de Erradicação do Sub-registro de São João de Meriti, município na Baixada Fluminense. À época, eu era repórter do jornal O GLOBO e escrevia uma série de reportagens sobre pessoas sem documento, tema que acompanhava desde 2002 (ESCÓSSIA, 2014a; 2014b). A coordenadora do comitê, assistente social do município, concordara em me atender por sugestão de uma juíza que eu havia entrevistado para a reportagem. Em São João de Meriti, a coordenadora me relatou que o comitê fora criado em março daquele ano. Era um dos nove existentes até então no Estado do Rio, como parte da política nacional de erradicação do sub-registro implementada no Brasil a partir de 2007 (GARRIDO; LEONARDOS, 2017). A assistente social disse perceber, nos relatos das pessoas que buscavam o registro, que elas tinham percorrido vários lugares em busca do documento. Em suas palavras:

Cada vez que alguém se dirige a um balcão do serviço público para tirar o registro de nascimento, ouve que não é ali. Então a busca recomeça. É a síndrome do balcão. (ESCÓSSIA, 2014b)

Com esta expressão ela se referia às dificuldades enfrentadas por quem buscava documentos e, especificamente, ao modo como o funcionamento dos balcões – usados por ela como sinônimos de instâncias estatais – atrasava a busca. Agradeço a esta funcionária pública por ter me atendido e fornecido as informações de que precisei à época. Agradeço por ter, com sensibilidade, cunhado a expressão “síndrome do balcão”, fundamental para esta pesquisa na reflexão sobre o conceito de burocracia.

O senso comum costuma entender burocracia num sentido pejorativo, como sinônimo de atraso e mau funcionamento do aparelho estatal. Esta pesquisa dialoga com a definição de burocracia no âmbito das Ciências Sociais, a partir do conceito fundador de Weber (1982). Na formulação weberiana, burocracia é uma forma de administração; especificamente, uma das formas de que o tipo de dominação racional-legal pode tomar. Nos Estados-nacionais modernos, essa dominação racional-legal é característica. Em Weber, a autoridade democrática do Estado moderno tem três pilares, quais sejam: a distribuição de atividades regulares como deveres oficiais; a distribuição estável dessa autoridade democrática, com uso de meios de coerção pelos funcionários do Estado; a adoção de medidas metódicas para a realização desses deveres e dos direitos correspondentes, sendo que apenas quem tem a qualificação prevista pode executar tais medidas (WEBER, 1982, p. 229). Assim, falar da síndrome do balcão também é percorrer os meandros da burocracia, no sentido weberiano, que deu ao estado-sistema o poder de registrar pessoas – para controle dos indivíduos e para concessão de direitos a eles.

Esta pesquisa busca uma abordagem etnográfica do cotidiano, de como a burocracia é exercida numa instância estatal específica, a da documentação, num percurso que permite dialogar com Ferreira (2009), Peirano (2006), Pinto (2014; 2016) e Miranda (2000). Tal abordagem se dá a partir de alguns eixos, quais sejam: a reconstituição de como os usuários do ônibus relataram suas formas de enfrentamento das práticas burocráticas do Estado-sistema, o qual a assistente social denominou de síndrome do balcão; as representações que eles constroem deste estado, no sentido de estado-ideia de que fala Abrams (2006); o acompanhamento do atendimento desses usuários no ônibus, permitindo analisar de que forma uma representação do Estado-sistema se configura, para esses usuários, na ideia de um Estado que, depois de empurrar um problema durante anos com a síndrome do balcão, irá finalmente resolvê-lo.

No Brasil, os cartórios de Registros Civis de Pessoas Naturais (RCPN) recebem do Estado a concessão que os torna responsáveis por lançar em seus livros ocorrências de nascimentos e mortes, emitindo a partir daquele registro uma certidão – de nascimento ou de óbito (MAKRAKIS, 2000). O cartório é o primeiro balcão procurado por quem deseja um registro tardio, emitido fora do prazo. Quando se trata de um adulto, é preciso que seja feita uma busca para saber se aquela pessoa ainda não foi registrada, evitando duplicidade, e também para saber se a pessoa não está querendo mudar de nome por algum motivo – fugir de dívidas ou acusações criminais, na concretização da documentação como instância de controle, na perspectiva de Foucault (2015).

O relato da juíza coordenadora do serviço de sub-registro da Justiça Itinerante, que identificarei como Dra. Sylvia, ajuda a entender de que modo a síndrome do balcão atuou na vida de pessoas sem documento. Em entrevista concedida a mim no dia 10 de março de 2017, Dra. Sylvia contou como, há mais de 15 anos, se deparou com a temática do sub-registro:

Eu chegava para uma audiência na Vara de Família em São João de Meriti quando vi no cartório um homem fora de si. Indaguei do que se tratava. Ele tinha na mão uma folha de ofícios com vários carimbos. Disse que não tinha registro de nascimento e tentara tirar um na minha Vara. O cartório tinha dado a ele uma lista de cartórios aos quais ele deveria ir, para saber se não fora previamente registrado em nenhum deles. Em cada cartório ele deveria obter um carimbo, uma espécie de nada consta, dizendo que não fora registrado. Ele já estava naquela busca fazia cinco anos, e não tinha nem metade da folha preenchida.

E seguiu:

Como uma pessoa pobre vai ter tempo e dinheiro para percorrer dezenas de cartórios em busca de um carimbo atestando que ele não fora registrado ali? Enquanto isso, a pessoa continuava sem registro. Aquilo me chocou, porque eu esperava ver tal situação nos rincões, não no Rio de Janeiro. Para uma pessoa conseguir um registro tardio levava mais de dez anos.

A partir do relato da juíza, é possível perceber que o Estado, personificado no funcionário do cartório, exigia, daquele adulto que buscava sua certidão de nascimento, que ele próprio construísse a prova de que não tinha certidão de nascimento. A burocracia, no sentido weberiano, exige a comprovação de algo dentro de sua lógica, e a prova documental seria representada, naquele caso, pelo carimbo na cartela.

Durante a pesquisa de campo no ônibus da Justiça Itinerante, numerosos usuários me relataram, sem usar a expressão da assistente social de São João de Meriti, como vivenciaram a síndrome do balcão e a espera por uma solução que lhes garantisse o acesso ao registro de nascimento. Contaram como haviam procurado durante meses, às vezes anos, com mais ou menos empenho, mas até ali sem sucesso, instâncias do Estado para obter o documento. No arcabouço do estado-sistema (ABRAMS, 2006), haviam percorrido numerosos balcões, especialmente de cartórios, juizados e fóruns, sem sucesso.

“Faz oito anos que tento registrar. Já fui à maternidade, disseram que o livro (de anotações) pegou fogo. Fui ao Conselho Tutelar, à Defensoria Pública” (Jaqueline, mãe de Kamila, 22, e Raquel, 18, as duas sem documento).

“Já fui no cartório, no fórum, já me mandaram fazer busca não sei quantas vezes. Já faz seis anos que estou nessa busca, parece que o Estado faz pra gente não conseguir” (Cristiane, mãe de David, 22 anos).

“Mandaram que eu fizesse a busca nos cartórios. É uma burocracia danada, o Estado não está nem aí pra nós. Enquanto isso vou passando vergonha” (Jefferson, 22 anos, instrutor de surfe).

“Tentei tirar o registro várias vezes, fui num canto, em outro. Fui no cartório, no fórum, nada. É a maior burocracia. E a gente que leva a culpa. Dá muita vergonha” (Daniel, 24 anos).

“Desde que vim do Recife tento essa certidão de nascimento. É muito tempo esperando, como é que o Estado faz isso com a gente?” (Maria da Conceição, 52 anos).

Os relatos mostram claramente que, a partir de seus encontros com instâncias do Estado-sistema, esses usuários constroem uma ideia particular de Estado (ABRAMS, 2006): o Estado que, de balcão em balcão, alonga a espera de quem busca documentos e atrasa a obtenção de direitos aos quais o documento garante acesso. Nesse sentido, esta pesquisa dialoga com o estudo de Ayuero (2011) sobre o atendimento de pessoas inscritas em programas sociais da Prefeitura de Buenos Aires e sobre como essas pessoas eram submetidas à espera. Para Ayuero, as experiências dessas pessoas são conduzidas de modo a persuadi-las de que precisam esperar indefinidamente, sem reclamar, para obter acesso ao programa. Seu trabalho indaga que efeitos a espera longa e forçada produz naqueles que esperam e, especificamente, como a espera produz os efeitos subjetivos de dependência e subordinação. “Como a espera objetiva se torna submissão subjetiva?”, indaga (AYUERO, 2011, p. 8, tradução minha). De acordo com os relatos dos usuários do ônibus, o mesmo processo de transformar a espera objetiva em submissão subjetiva acontece nestes anos em que eles percorreram variados balcões em busca de documentos. A síndrome do balcão não apenas atrasa a obtenção de direitos: também fortalece nas pessoas sem documentos o sentimento de submissão a um estado-sistema onipotente diante delas, de passividade na busca por direitos.

Também é possível observar como a ausência de documentos é associada pelos usuários do ônibus à vergonha. A fala de Daniel é explícita: “E a gente que leva a culpa. Dá muita vergonha”. Vergonha, fazer algo de errado, uma coisa ruim, são expressões dessa dimensão moral curiosamente acionadas num espaço de formalidade, afinal, a Justiça Itinerante é uma representação do Estado-sistema. Em estudo etnográfico sobre pessoas que buscam cadastramento no Programa Bolsa Família, programa de distribuição de renda do governo brasileiro, Marins (2014) observa a existência de uma matriz moral, com constrangimento, humilhação e preconceito. Do mesmo modo, pude perceber entre os usuários do ônibus o acionamento desta matriz moral quando eles falam de culpa e vergonha por não terem documentos.

5 Caminhos a percorrer

Originado de uma pesquisa ainda em andamento, este artigo sistematiza algumas conclusões, especialmente no que diz respeito aos motivos pelos quais um brasileiro adulto sem documento que sempre viveu nas margens do Estado busca o registro de nascimento. Listo um conjunto de motivos que chamo de acesso a políticas públicas, urgência de legibilidade, conversão e recuperação da trajetória familiar. Ao longo de dois anos de pesquisa de campo no ônibus da Praça Onze, pude observar que o registro de nascimento tem uma finalidade imediata, mas não apenas imediata. Os relatos obtidos durante o trabalho indicam que, no processo de obtenção do documento, muitos usuários buscam reconstruir a própria história e recuperar laços familiares. Na busca pela documentação, a dimensão imediata e inegável de “para que serve o registro de nascimento” se junta a outra, que remete a outra busca, por direitos, acesso à cidadania e recuperação da própria história.

Outro caminho indicado pela pesquisa de campo leva ao percurso do usuário do ônibus em busca de seu documento junto às representações do Estado-sistema. Na arquitetura do edifício burocrático estatal, a síndrome do balcão pode ser entendida como parte do processo de construção de uma espera submissa, que gera vergonha e culpa.

Nesse sentido, o ônibus da Praça Onze pode ser entendido como um “checkpoint”, o lugar no qual o indivíduo vai encerrar a busca de balcão em balcão e onde receberá o documento que o tornará legível aos olhos do Estado. Para Jeganathan (2004), o checkpoint integra uma arquitetura epistemológica na qual o posto que concede documentação é, na verdade, um lugar de sentido, onde os usuários são escrutinados e o que eles dizem é considerado ou não verdade – para, a partir da verdade aceita e oficializada, ser concedido a cada usuário um documento que se tornará chave para acesso a direitos num Sri Lanka marcado pela guerra. De modo análogo, o ônibus da Justiça Itinerante é um checkpoint no qual as vidas dos usuários são escrutinadas para que eles provem que são quem de fato dizem ser; a partir dali, são emitidos para aqueles usuários documentos que se transformam em chave para acesso a direitos – teoricamente, a chave para que deixem de viver nas margens do Estado.

Ao longo da pesquisa, entrevistei alguns dos usuários do ônibus mais de um ano depois de terem obtido o registro de nascimento. O objetivo era saber se, agora documentados e legíveis, continuavam nas margens do Estado. Maria da Conceição fez o tratamento contra o câncer e a cirurgia, e conseguiu se aposentar. Cristiane tirou a carteira de trabalho, Márcia fez o tratamento, Valderez reencontrou a família. Diante da pergunta sobre para que serve um documento, constato que o registro de nascimento, para além de sua finalidade imediata, é também um documento que pode se transformar em chave para a cidadania – e que permite discutir o conceito de cidadania e a forma como ele é expresso pelos usuários ao longo de sua busca. Em “Cidadania Insurgente”, estudo etnográfico e político ambientado em bairros populares de São Paulo, Holston (2013) recupera o conceito de “cidadania regulada” de Santos (1979) e traz outro que muito ajuda a analisar a condição dos sem-documento. No dizer de Holston, a partir de dois pilares – a incorporação da cidadania pelo Estado e distribuição de direitos para os que são considerados cidadãos – o Brasil construiu historicamente um tipo peculiar de cidadania, que o autor define como “cidadania diferenciada”, “universalmente includente na afiliação e maciçamente desigual na distribuição de seus direitos” (HOLSTON, 2013, p. 258). Em outras palavras, afirma Holston, a cidadania brasileira, tecnicamente, é universal e oferece direitos a toda a população, mas é de fato desigual na distribuição desses direitos.

No caso dos brasileiros que procuram o ônibus para obter a certidão de nascimento, nada nunca lhes foi negado, já que o registro de nascimento é gratuito e garantido por lei. Na prática, porém, para essa parcela da sociedade brasileira, a cidadania diferenciada se reflete na ausência de vários direitos e na dificuldade de pessoas que, na busca desses direitos, esbarram na síndrome do balcão, que as obriga a esperar anos. A espera, diz Bourdieu, “é uma das maneiras privilegiadas de experimentar o poder e o vínculo entre o tempo e o poder” (BOURDIEU, 2001, p. 279). Fazer alguém esperar, portanto, é um exercício de dominação que implica a submissão daquele que espera. No caso das pessoas sem documento, a síndrome do balcão é construtora de uma espera submissa que pode chegar ao ponto final quando o usuário recebe seu documento no checkpoint do ônibus. Ou não. Depois de tantos anos de espera submissa e cidadania diferenciada, sem acesso pleno a direitos, que lugar o documento terá na obtenção concreta e no acesso contínuo a esses direitos?

Investigar isso é um dos desafios que esta pesquisa tem pela frente.

Referências

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Notas

[1] A criação da Justiça Itinerante em todos os Estados foi determinada pela Constituição Federal no artigo 125, §7º, em emenda incluída em 2004: “O Tribunal de Justiça instalará a Justiça Itinerante, com a realização de audiências e demais funções da atividade jurisdicional, nos limites territoriais da respectiva jurisdição, servindo-se de equipamentos públicos e comunitários. ”
[2] O sub-registro é definido pelo IBGE como o conjunto de nascimentos não registrados no ano de ocorrência ou até o fim do primeiro trimestre do ano seguinte. A estimativa é calculada pela diferença entre os nascimentos estimados e os informados pelos cartórios. (IBGE, 2016)
[3] A partir de 2003, iniciou-se, sob a coordenação da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, um movimento de redução do sub-registro, com a criação de comitês no âmbito da União, dos Estados e dos municípios para implementar ações de combate ao problema. Em 2007, o governo brasileiro, por intermédio do Decreto 6.289, lançou o Compromisso Nacional pela Erradicação do Sub-Registro Civil de Nascimento e Ampliação do Acesso à Documentação Básica, um programa nacional, com a participação da União, dos Estados e dos municípios, além de órgãos do governo e da Justiça. Este plano estabeleceu como documentação básica, além da certidão de nascimento, o Cadastro de Pessoas Físicas - CPF; a Carteira de Identidade ou Registro Geral - RG; e a Carteira de Trabalho e Previdência Social - CTPS (GARRIDO; LEONARDO, 2017).
[4] O crescimento das denominações evangélicas pentecostais e neopentecostais no Brasil é explicitado no Censo de 2000, quando a proporção de evangélicos subiu de 9% para 15,4%, e confirmado no de 2010, quando chegou a 22,2% (IBGE, 2010).
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