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Do Estado ao Empreendedorismo Social: Burocracias cotidianas, risco moral e gestão da vulnerabilidade em uma empresa de regularização fundiária em São Paulo

From the state to social entrepreneurship: Daily bureaucracies, moral and social risk in a land tenure company in São Paulo

Moisés Kopper
Max Planck Institute for the Study of Societies, Brasil
Isabella Hay Ide
Universidade de São Paulo, Brasil

Do Estado ao Empreendedorismo Social: Burocracias cotidianas, risco moral e gestão da vulnerabilidade em uma empresa de regularização fundiária em São Paulo

Revista Brasileira de Sociologia, vol. 7, núm. 15, pp. 30-52, 2019

Sociedade Brasileira de Sociologia

Recepção: 30 Julho 2018

Aprovação: 27 Outubro 2018

Resumo: Nos últimos anos, empresas sociais passaram a oferecer alternativas ao governo da pobreza e a ocupações informais de terra nas periferias urbanas brasileiras. Este artigo baseia-se em pesquisa etnográfica com a maior startup envolvida na mediação de acordos jurídicos de regularização fundiária em São Paulo. Mostramos como tais negócios recriam tecnologias de intervenção tipicamente associadas ao Estado e ao mercado, engajando moradores locais em encontros burocráticos contingentes pelos quais a terra é deslocada para o mercado e residentes são convertidos em mutuários-pagantes. O conceito de burocracias cotidianas ilumina o funcionamento prático e colaborativo dessas infraestruturas como dispositivos de gestão da espera, em que vulnerabilidade, risco moral e associativismo são convertidos em atributos de subjetividades aspirantes que projetam um futuro perfeito de titulação da terra.

Palavras-chave: Empresa social, Regularização fundiária, Burocracias cotidianas.

Abstract: In recent years, social enterprises have grown to provide market-ridden alternatives for poverty governance and informal land occupation in Brazil’s urban peripheries. This article draws on ethnographic research with the country’s largest startup involved in mediating legal settlements between landowners and squatters in São Paulo. It shows how such businesses recreate technologies of intervention typically associated with the state and the market, engaging local dwellers in emergent and contingent bureaucratic encounters through which land is brought into market frames and residents are recast as mortgage-owners. The concept of everyday bureaucracies illuminates the practical and collaborative functioning of these infrastructures as timing devices whereby vulnerability, moral risk, and associativism are woven into new aspiring subjectivities projecting a future perfect of landownership.

Keywords: Social enterprise, Land regularization, Everyday bureaucracies.

1 Introdução

Firmina abriu apreensivamente a portinhola que dava para a sua casinha. Atravessamos o beco estreito e mal-iluminado, enquanto desviávamos de roupas estendidas num varal precário sobre poças de xixi e cocô distribuídas pelo chão. Nos fundos, a entrada para a cozinha. O problema mesmo era os pancadões, ela dizia, relutante; sem iluminação apropriada, as festas promovidas pelo tráfico, tarde da noite aos finais de semana, atraíam toda sorte de gente. Vinham depositar excrementos, quando não usavam as paredes para relações sexuais. Firmina sabia. Ela quase nunca dormia. Precisava haver respeito, balbuciou.

Fomos convidados a sentar ao redor da mesa de jantar da casa desta senhora negra de cinquenta e cinco anos que se mudara para esta comunidade na Zona Sul da cidade de São Paulo aos vinte e cinco anos, após separar-se do marido e procurar abrigo para os três filhos menores. De início, circulara por duas invasões, até “descer”, aos poucos, pelo território, e instalar-se naquele terreno íngreme. Não demorou muito, veio a autoconstrução, oportunizada pelo dinheiro economizado do aluguel. E assim as coisas foram se consolidando. Firmina foi ficando.

Mas Firmina, como dissemos, estava apreensiva. Logo descobrimos a razão. “Não tenho como continuar pagando, não tenho!”, ela vociferou na direção de Simone, sua principal interlocutora, que havia intermediado nossa visita naquela tarde de julho de 2017. Em 2011, Firmina e outras trezentas famílias haviam assinado um acordo judicial com o proprietário das terras invadidas. O documento substituía uma ação de reintegração de posse e estabelecia que, em seu lugar, os ocupantes do loteamento assumiriam pagamentos mensais de indenização pelo valor das terras ocupadas. Após cinco anos de pagamentos regulares, a situação financeira de Firmina havia deteriorado significativamente. Desempregada, ela continuava sem condições de pagar as prestações do acordo.

Simone era formada em economia, mas trabalhava como “agente de campo” para “Área Verde”[1], uma empresa social especializada na mediação de conflitos em processo de regularização fundiária. Simone ouviu atentamente as palavras exaltadas de Firmina, de como esta não dormia pensando na incerteza de uma possível reapropriação, a qualquer momento. Tratou de acalmá-la, garantindo-lhe que não assinaria nenhum documento de despejo de pessoas que, como Firmina, falavam a verdade e, via-se, de fato não tinham condições de pagar. Firmina relembrou, então, das incertezas iniciais do projeto. Quando agentes da Área Verde bateram de porta em porta, na iminência da ação de reintegração de posse, muitas pessoas desconfiavam de sua idoneidade; como saber se o dinheiro pago traria, de fato, segurança jurídica? E se o proprietário mudasse de ideia? Simone tratou de reanimar o pacto de confiança mútua que dava condições mínimas para a efetivação da mediação da empresa social; assegurou a Firmina que não havia nenhuma ação prevista. Sua situação – provisória – de conforto jurídico estava garantida, graças à disponibilidade de Firmina de abrir as portas e produzir evidências de sua própria precariedade.

Em 2001, um grupo de advogados instalados no sul do país reuniu-se para criar uma startup capaz de resolver os conflitos entre proprietários, moradores e estado envolvidos em milhões de ocupações de terrenos privados pelo país. Cientes dos problemas humanos e espaciais causados pela rápida transição urbana e industrial nas grandes metrópoles brasileiras, esses profissionais ampliaram o leque de serviços, oferecendo suporte legal e social aos seus “clientes” através de um time multidisciplinar de assistentes sociais, economistas, sociólogos, psicólogos, arquitetos, administradores e urbanistas. Desde então, o Grupo Área Verde expandiu-se para as periferias de São Paulo e já concedeu mais de 20 mil títulos de propriedade de terra aos seus clientes.

Partindo do pressuposto de que a relação de ocupação de terras é iminentemente conflituosa, a Área Verde apresenta-se como instrumento capaz de “fazer prevalecer a função social da propriedade” condicionada “ao pagamento de uma justa indenização devida ao proprietário como contrapartida pela perda da propriedade”[2]. Nesse processo, o arranjo conciliatório está ancorado no pressuposto de que: a) o acordo é justo entre as partes; b) o poder público reduz gastos desnecessários com reapropriação e maximiza investimentos em infraestrutura; c) o acordo resolve o problema da insegurança da posse e confere autoestima e cidadania aos novos proprietários de terra. Supostamente incidindo nestas três áreas, a empresa justifica o selo “social” na medida em que visa atingir impactos que transcendem o fim meramente lucrativo, situando-se no controverso espaço de negócios entre o segundo e terceiro setor.

Neste artigo, examinamos o cotidiano das operações burocráticas colocadas em prática pela Área Verde na mediação de conflitos e os impactos gerados por essas infraestruturas na vida de seus beneficiários-clientes. Estamos interessados, sobretudo, em como a retórica do conflito e da mediação operam como instrumentos de criação, gestação e governo do que chamaremos burocracias cotidianas. Nesse processo, argumentamos que os contornos “sociais” da empresa são arquitetados e justificados através de narrativas ficcionais sobre a posse da terra, de sua ocupação e de sua titulação futura; através de noções disputadas de justiça; e da administração de noções de risco e vulnerabilidade.

Por meio de uma etnografia multissituada e multiescalar conduzida nas periferias das Zonas Sul e Leste da cidade de São Paulo entre junho e setembro de 2017, deslocamo-nos pela miríade de interações em que esse mercado imaginado é fabricado. Através da noção de burocracias cotidianas, captamos a temporalidade dessas interações e suas formas de materialização e enraizamento subjetivo. Com isso, buscamos responder e apontar para um deslocamento importante a ser realizado na literatura sociológica de burocracias: ao focar nos funcionamentos e efeitos sociais de infraestruturas burocráticas, ela tende a contar a história da “neoliberalização” do Estado, isto é, as consequências produzidas por racionalidades que visam reduzir e racionalizar os procedimentos de governo. Aqui, ao contrário, mostramos como lógicas burocráticas e estruturas de governo tipicamente associadas ao Estado, em sua atuação nas periferias brasileiras, deslocaram-se do perímetro de agência do Estado para outros registros – público-privados – de produção de procedimentos, racionalidades e dispositivos de governo da pobreza e da informalidade. Incorporadas por instituições do segundo e terceiro setor, re-organizadas em torno de uma linguagem simultaneamente social e comercial, tais burocracias produzem consequências inesperadas nas vidas de seus beneficiários-clientes.

2 Burocracias em Movimento

Nos últimos anos, a literatura antropológica sobre burocracias tem crescido e se destacado como um campo de estudos prolífico e profícuo para o exame de procedimentos, materialidades e documentos como artefatos de produção da modernidade (HOAG; HULL, 2017; HULL, 2012a; RILES, 2006). Uma abordagem etnográfica dos funcionamentos empíricos de burocracias concretas, das vidas e ideias de burocratas, e da circulação pública dessas pessoas e conceitos ajuda a revelar os elementos não-formais e não-racionais desses aparatos, para além das representações oficiais de seus atores (HEYMAN, 1995; 2004; 2012). Assim, linguagens e documentos tornam-se janelas privilegiadas para a analítica de poder e inscrição de significados em burocracias modernas, sendo o método etnográfico uma ferramenta de captura da circulação desses saberes e práticas através de materialidades e racionalidades não imediatamente evidentes. Burocracias são, assim, entradas importantes para o estudo de fenômenos sociais mais amplos, isto é, de como sociedades lidam com e articulam diferenças sociais e de poder por meio de aparatos institucionais que podem estimular ou retrair agência.

Em sua etnografia recente das formas de poder e violência reproduzidas por burocracias estatais na Índia, Akhil Gupta (2012) mostrou como fenômenos sociais complexos, como o governo multidimensional da pobreza, são dependentes de procedimentos sinuosos e arbitrários de tomadas de decisão em burocracias e seus universos sociais. Em seu conjunto, esses procedimentos revelam a prevalência de gradientes de poder mais amplos na economia política indiana, do privado sobre o público, do urbano sobre o rural, do mercado sobre a sobrevivência. Matthew Hull (2012b) mostrou como o estado é particularizado através de seus agentes situados em diferentes escalas do aparelho burocrático, e como a linguagem social e encriptada de reuniões, audiências e documentos – e de sua circulação – informa a configuração de formas urbanas no Paquistão. Esta visão do Estado menos como uma entidade totalizante (FOUCAULT, 2008; SCOTT, 1998) e mais uma assemblage de múltiplas forças e agências (DELEUZE, 2007) ancora-se no pressuposto de que arquivos, registros, mapas, textos etc., não são simples representações de conteúdos pré-existentes, mas ativamente compõem entidades materiais cuja simples presença expressa e organiza afetações (WHITE, 2017).

Nas ciências sociais brasileiras, o papel das burocracias foi estudado, sobretudo, a partir de seus estratos internos e modos de funcionamento, num movimento histórico que vai do patrimonialismo à administração pública gerencial (PIRES; LOTTA; OLIVEIRA, 2018). Temas transversais a esta literatura têm sido as escalas em que aparatos burocráticos se cristalizam e engendram conceitos de desenvolvimento econômico e democracia, mas também o papel de movimentos sociais e burocracias de rua na construção e implementação de políticas públicas (LIPSKY, 1980; LOTTA, 2015). Ainda tributárias de noções weberianas de burocracia, tais análises tendem a reduzir o estudo das burocracias ao estudo de governos, ignorando a crescente complexidade empírica em que burocracias se tornam operadores centrais de organização, como em formações público-privadas, empresas sociais, ONGs e mesmo universidades. Como notou Heyman (2012), a definição de governos como intrinsecamente burocráticos – e, conclui-se, pouco eficientes – é mesmo uma forma de manter despercebida a burocracia como instrumento de governo transversal a formações privadas de poder e administração.

Aqui, analisamos uma dimensão alternativa às burocracias estatais e públicas. Estamos interessados nas redes multissituadas (tanto geográfica quanto socialmente) de vozes, atividades e materializações semi-incoerentes, pelas quais racionalidades e aparatos burocráticos se deslocam do registro estado-movimentos sociais para os domínios elusivos de empresas sociais. Tais empresas passaram, nos anos recentes, a operar em arenas tipicamente associadas à presença do Estado, especialmente no que concerne à gestão da pobreza e da informalidade. Nosso olhar etnográfico recai sobre as infraestruturas, dispositivos e procedimentos engendrados nessas relações estabelecidas por “burocratas privados” com seus clientes, enquanto almejam inseri-los em redes de consumo e formalização. Prestamos atenção nas gramáticas e interações que forjam encontros burocráticos cotidianos (SCHUCH; VÍCTORA; SILVA, 2018), e nas novas mediações entre risco, vulnerabilidade social e futuro abertas por estas instâncias intermediárias e privadas de burocratização da vida social.

Nosso interesse não está em documentar a variabilidade e escalas de burocracias públicas, mas em produzir um olhar etnográfico sobre a circulação de expertises burocráticas em domínios privados e cotidianos, tipicamente considerados a-burocráticos e estritamente eficientes de um ponto de vista econômico-racional. Argumentamos, ao contrário, que é precisamente a extensividade burocrática, ao migrar de relações tradicionais de patronagem entre o Estado e grupos vulneráveis para relações entre empresas sociais e clientes vulneráveis, que garante a existência desses negócios sociais. Nesse processo, ideais de eficiência econômica são continuamente adaptados através de cálculos de vulnerabilidade e adimplência que visam manter, em novas bases, relações de dependência e risco econômico, intermediadas por tecnologias jurídicas de mediação de conflitos sobre a ocupação informal da terra nas periferias brasileiras.

3 Empresas Sociais e Burocracias Privadas

“Em março de 2013, nós resolvemos investir no Área Verde para ter retorno financeiro e gerar impacto socioambiental,” abriu Jorge Paulini, sociofundador da empresa VRU Investimentos, durante sua fala num evento sobre avaliação de impacto em negócios sociais. Nos últimos anos, modelos de negócios considerados como de “impacto social” proliferaram em todo mundo, incluindo-se o Brasil. Estas empresas condicionam a geração de lucro de suas atividades à geração de benefícios sociais às camadas mais pobres da população (MARTINS, 2015). Uma indústria de avaliação e certificação se estruturou no encalço dessas empresas, preocupada em estimar graus de impacto social futuro – informação usada para gerar novos ciclos de investimento nesses mesmos modelos de negócios.

“Quantas pessoas hoje moram no Brasil em áreas irregularmente ocupadas?,” ele prosseguiu, insistindo que o número era cercado de controvérsias. “O IBGE fala em 12 milhões de famílias; o Ministério das Cidade fala em 40 milhões de pessoas. É um desconhecimento muito claro de quanta gente realmente vive nessa problemática.” O primeiro passo, segundo Paulini, consistia em formular um mapa de impacto com metas de desenvolvimento sustentável, que incluíam a redução da pobreza e a criação de cidades sustentáveis. “Quantificamos o problema em 1,1 milhão de famílias que vivem em áreas privadas, e fizemos uma injeção no modelo de negócios da Área Verde. Estas são as metas de impacto que a gente usa para monitorar anualmente a gestão da empresa. Nós temos um objetivo de alcançar 36 mil famílias homologadas até 2022.”

A poucos metros da posição de onde Paulini falava, Ricardo Freitas ouvia atentamente. Dali a alguns instantes, o sociofundador da Área Verde subiria ao palco para apresentar sua grande ideia à audiência de empresários e estudantes de empreendedorismo. Após a exibição de um vídeo institucional que apresentava o mecanismo de funcionamento da empresa por meio de linguagem didática e acessível, Freitas fitou a plateia e alterou o tom da narrativa. Slides com textos substituíram o vídeo e passaram a exibir citações de Hernando de Soto, economista peruano fundador do Institute for Liberty and Democracy que, há duas décadas, sugerira que o problema do subdesenvolvimento poderia ser resolvido através de processos de titulação de lotes informais e irregularmente ocupados. A comodificação da terra, sugeria o economista (SOTO, 2000), transferiria a propriedade para “dentro” da esfera do mercado; sua formalização legal poderia, por isso mesmo, assegurar o seu uso como garantia e estimular o desenvolvimento econômico e a produção de riqueza. O argumento gozou de ampla influência entre burocratas estatais, consultores e representantes de organismos internacionais e tornou-se, como mostrou Hetherington (2012), a base para a produção de burocracias e documentos visando um futuro marcado pela “informação perfeita” (HETHERINGTON, 2016).

Apesar disso, críticos argumentam que não há evidências concretas de que o projeto de Soto tenha sido bem-sucedido, podendo mesmo gerar consequências negativas no longo prazo – como especulação imobiliária ao invés de investimentos produtivos –, ameaçando o objetivo último, qual seja a distribuição de riquezas entre os pobres. Fundamentalmente, a distinção entre mercados formais e informais de terra ignora que tal fronteira é, antes de tudo, porosa e fluída; vale dizer, na prática, mercados podem ter fronteiras contestadas, híbridas e disputadas econômica, política e moralmente. Ao circularem, as pessoas mobilizam e produzem representações (in)formais de riqueza que transcendem sua representação formal através do instrumento de titulação da terra. Dessa forma, a titulação pode ser vista não como uma tentativa de “representar aquilo que antes não era representado, mas de reorganizar a circulação e o controle dessas representações” (MITCHELL, 2007, p. 267).

Ouvindo as palavras de Paulini e Freitas naquela tarde de julho de 2017, ficou claro que a arquitetura empresarial armada entre a Área Verde e o grupo de investidores buscava enredar o discurso científico como base para a avaliação e a certificação do pretendido impacto social. “A gente sabe que existem várias pesquisas acadêmicas,” Paulini emendou:

Como a de Sebastião Galeno, que mediu, com estudos de tratamento e controle, os efeitos da titularidade em famílias de Buenos Aires. Ele verificou que elas aumentam o investimento em suas casas, têm menor tamanho, e investem mais na educação dos seus filhos. Esse mesmo acadêmico publicou que o conjunto de crenças das pessoas que são tituladas também muda. Elas tendem a acreditar mais na sua capacidade de relação futura, de seu sucesso, de seus próprios esforços, e aumenta o nível de confiança entre as famílias. Do ponto de vista do investidor, é um bom negócio: tem escala, é lucrativo, resolve o problema da desocupação, gera infraestrutura, e esses acadêmicos aqui estão dizendo que você pode gerar uma série de benefícios paralelos.

Apesar de não localizarmos as pesquisas do referido intelectual, algumas questões apontadas por Paulini merecem ser aprofundadas no contexto dos emergentes negócios sociais e de seus impactos concretos nas vidas dos atores envolvidos, em suas diversas escalas de atuação. Defourny e Nyssens (2010) sustentam que empresas sociais emergem em um espaço não-redutível nem ao mercado nem ao estado, isto é, elas proveem “soluções inovadoras de bens e serviços a pessoas e comunidades cujas necessidades não foram atendidas nem por companhias privadas nem por organismos públicos” (p. 284). Nesse contexto em que lucro e inovação social convergem e criam valores híbridos, novas subjetividades empreendedoras cristalizam, produzindo uma linguagem moral que se ampara simultaneamente em ideais de intervenção e produção de novos sujeitos ambivalentes. Aqui, o acesso a mercados é visto como uma função inescapável do desenvolvimento, produzindo “o social” como uma arena para a acumulação capitalista e a expansão organizacional da elite desenvolvimentista (HUANG, 2017).

Se entendermos que uma empresa social capitaliza e agencia uma modalidade particular de mercado associando às suas fronteiras um conjunto de expectativas futuras (BECKERT, 2016), podemos indagar acerca dos condicionantes sociais atrelados à busca desse impacto social no tempo presente. Nas entrelinhas do discurso de Paulini, os fatores de impacto mensuráveis aparecem articulados à produção de capacidades (SEN, 1999) que visam reintegrar os beneficiários-clientes ao tecido produtivo da sociedade. A titulação, supostamente, ativaria o desejo pela preservação da propriedade, a busca pela escolarização, e a produção de mecanismos individuais de resiliência. Em última instância, tais aspectos refletiriam o desejo das pessoas por mérito e esforço próprios – qualidades estas também presentes nas arquiteturas de políticas públicas, na medida em que criam fronteiras porosas entre pobres merecedores e não-merecedores da “boa vida” (KOPPER, 2019).

“Tudo começou com o meu irmão, Pedro, que é advogado e foi trabalhar na secretaria de habitação do município,” Freitas confessaria dias depois, em uma conversa por telefone, entre uma e outra ponte aérea. A história contada por Ricardo foi a de um secretário de habitação engajado na regularização fundiária de comunidades ameaçadas de despejo. Após conversar com o proprietário, o irmão de Ricardo aceitou a intermediação da prefeitura, apesar de não acreditar na idoneidade e poder de pagamento dos invasores. A iniciativa tornou-se uma política do município, até que eleições municipais sobrevieram e reviravoltas de cargos eliminaram o programa. Quando Pedro notificou as comunidades de que os projetos em andamento seriam interrompidos, estas indagaram sobre o seu futuro. “Meu irmão viu uma oportunidade. Ele disse: ‘se você quiser me pagar um pouquinho daqui, e o proprietário me pagar um pouquinho dali, eu posso mediar essa confusão pra vocês’. E aí nasceu a Área Verde”, Ricardo concluiu, com orgulho.

Assim como entre os beneficiários-clientes, a “principal qualidade de um empreendedor social tem que ser a resiliência,” Freitas sentenciou. As habilidades de convencimento geralmente esbarravam na negociação entre proprietários e prefeitura, reticente em arcar com custos de investimento em infraestrutura pública, sob o argumento de que a legalização poderia ser interpretada como “estímulo” a novas invasões. “Tudo depende de um processo,” Freitas continuou. “Hoje a gente ainda depende que o poder público faça a sua parte. E o que um prefeito promete o outro não necessariamente vai cumprir. O poder público é o grande responsável por todo o problema habitacional. Não dá para culpar os moradores.” Em um discurso à primeira vista pouco convencional, Freitas demarcava o espaço de atuação de seu próprio empreendimento social: criticando a atuação do Estado – e suas políticas tradicionais de concessão de habitação, tidas como pouco transparentes e clientelistas –, ele tampouco esperava que o mercado resolvesse o problema da infraestrutura. Ao contrário, seu papel era o de “marquetizar” a terra e “estatalizar” a infraestrutura, delegando responsabilidades e “fazendo funcionar” a mecânica multiescalar dessa maquinaria. Nesse processo, a visibilidade da Área Verde como interventora era dissolvida e concentrava-se no cotidiano (tornado invisível aos olhos da sociedade) de atuação junto aos beneficiários-clientes.

Porém, se a titulação traz consequências não tão facilmente mensuráveis – mesmo do ponto de vista econômico – posto que ignora os terrenos sociais, imaginários e morais em que territórios são organizados e materializados, perguntamo-nos: o que acontece neste interim – da persuasão e assinatura do acordo até o recebimento da titularidade do lote? Nas falas de Paulini e Freitas, os sujeitos-beneficiários são vistos como clientes destituídos de passado – assim como a terra, destituída de trajetória fora de seu marco legal – e investidos de uma teleologia em que o presente desaparece estrategicamente para alcançar um ponto final no futuro. Argumentamos, entretanto, que a temporalidade desse interim é fundamental para entendermos o relativo “sucesso” – ou impacto – da empresa. Mais que isso, um olhar etnográfico, ao debruçar-se sobre as trocas morais e simbólicas embutidas nesse processo, seria capaz de revelar as burocracias cotidianas envolvidas na negociação desses futuros incertos – isto é, capaz de revelar como aparatos e racionalidades transitam de uma relação entre governo e populações para outra, entre empresas sociais e beneficiários-clientes. Argumentamos, nas próximas seções, que atenção a essa temporalidade é capaz de desvendar como essas expectativas se desdobram em uma economia moral do presente, estruturada em torno das noções de dívida moral e risco social.

4 Temporalidades da Espera

Era setembro de 2017 quando Simone nos apresentou à favela Laje Alta, um dos projetos mais recentes da empresa, na Zona Leste de São Paulo. O acordo jurídico ocorreu assim que a Área Verde iniciara os trabalhos, em dezembro de 2016. “O proprietário ‘tava’ com a faca e o queijo na mão,” Simone referia-se à aprovação da reintegração de posse, com data marcada para acontecer, assim restava pouca margem de negociação à empresa social, elevando o preço acordado a R$ 1.300 o metro quadrado. “Fomos procurados pela Defensoria Pública, dias antes da data marcada para o despejo”, ela descreveu. Em geral, porém, os valores eram menores e gravitavam em torno de R$ 8 mil por lote, o que implicava uma parcela média mensal de R$ 350 por terreno. Desse total, 80% referia-se à prestação mensal do lote; 10% às taxas cobradas pela Área Verde pelos serviços de intermediação; e 10% para a criação de um fundo administrado pelas associações de moradores do bairro do projeto.

O preço elevado era justificado, segundo Simone, pela diferença na condição da negociação com o proprietário. Via de regra, a estratégia da empresa social consistia em apresentar um cálculo detalhado do custoso processo de reintegração de posse aos donos de terra. Devendo arcar com a manutenção dos bens e posses dos moradores e fornecer depósito por três meses, além de carreto para sua remoção e conservação, os custos da reintegração acoplavam-se aos dispêndios legais e poderiam assomar cerca de R$ 1,5 milhão. Além disso, o pagamento retroativo de IPTU, uma vez recuperada a terra, poderia acrescentar até R$ 2 milhões. “Estes são todos gastos que a gente tenta abater do valor cobrado pelo proprietário sobre a terra.” Mesmo assim, ela seguiu, o valor acordado dependia do bom senso dos proprietários e, portanto, estava relacionado a um balanço pragmático, decidido por aqueles, entre a função social da terra e um cálculo econômico do risco associado ao financiamento da titulação. Este balanço refletia-se na cobrança de preços inferiores aos praticados pelo mercado imobiliário, embora incluíssem a cobrança de juros anuais sobre o financiamento.

Se do ponto de vista do Estado o acordo judicial evitava uma série de gastos associados à reintegração de posse – como o emprego da força, a confrontação simbólica e literal com os moradores, sua inclusão em filas de espera por políticas habitacionais, e o uso da burocracia pública para mediar conflitos fundiários –, para o proprietário era a burocracia cotidiana criada pela empresa social na mediação com os moradores que diminuía o risco de não ser recompensado financeiramente pelo terreno ocupado. Estruturada para garantir o pagamento das mensalidades, a burocracia cotidiana da Área Verde garantia que rescisões contratuais por inadimplência fossem negociadas individualmente, sem, portanto, inviabilizar o negócio com moradores de outros lotes.

Para os moradores, os pagamentos mensais das prestações abriam uma nova temporalidade da espera direcionada para um futuro pontuado pela propriedade da terra. A instalação desse interstício temporal reconfigura a incerteza e o medo, até então vivenciados como um tempo passado afiançado pela ausência do Estado, em uma lógica de risco e vulnerabilidade, lógica esta doravante controlada pela empresa social e associada à materialidade do contrato de pagamento. Mais que automática, tal passagem requer um processo ativo e constante de positivação e convencimento radicado em representações conflitantes sobre a posse e uso da terra.

Em nossa conversa por telefone em julho de 2017, Freitas estimou que 60% dos moradores aderiam prontamente às propostas de acordo; os demais demandavam visitas esporádicas e a criação de mecanismos de flexibilização do pagamento. Parte dos problemas de convencimento, confessou Simone, vinculava-se à atuação do que chamou de “invasores profissionais”: pessoas que “vislumbram uma oportunidade para invadirem um terreno, fazem instalações precárias e vendem os lotes para interessados, que compram, pagam quantias significativas, R$ 30 ou 40 mil”. Ao concentrarem dezenas de lotes informais e manterem famílias sob sua influência por meio de redes de dependência financeira e moral, esses agentes[3] não estavam interessados na titulação, seja pelo custo implicado, seja pela perda de sua autoridade no território. Com isso, dissuadiam “moradores honestos” a não participarem do acordo judicial[4].

Os anos de tramitação legal criavam novas camadas de incerteza entre os beneficiários-clientes atendidos pela Área Verde. “Muitos deles já vêm com a sensação de que já pagaram pelas terras quando invadiram e compraram as chaves,” Simone relatou sobre os moradores “resistentes”. Nesses casos, os caminhos do convencimento passavam pela retórica da regularização, que implicava a visibilidade formal da terra no espaço do mercado, diante do Estado. Para as pessoas, porém, a titulação parecia implicar, simplesmente, a produção de um documento cujas afetações jurídicas não se faziam imediatamente visíveis; ao contrário, tal documento transferia a relação de risco moral entre proprietário-invasor (mediada por um Estado conivente e interessado nos benefícios eleitorais desse arranjo informal) para outra relação, entre proprietário-cliente (mediada doravante por uma empresa social que também via na criação de novas invasões uma oportunidade de lucro e sustentabilidade financeira).

Ao redirecionar a relação de risco moral, os agentes da Área Verde acabaram por recriar a temporalidade da espera associada à ocupação da terra. Por meio de burocracias cotidianas, expectativas passaram a ser redirecionadas à imaginação de um futuro perfeito, “esse tempo suspenso que um dia será o passado de um futuro melhor” (HETHERINGTON, 2016, p. 40) Nas próximas seções, ilustraremos como esse reordenamento burocrático produz novas subjetividades relacionais, performadas nas ações cotidianas de indivíduos com agentes da Área Verde, em que a apreensão pela perda da casa é traduzida em uma nova temporalidade de ânsia pela conquista do título da propriedade.

5 O “Bom Pagador”

Chegando ao posto de atendimento da empresa na Laje Alta, conhecemos Fernanda, agente de campo responsável pelo atendimento dos clientes moradores do bairro; entre suas atividades diárias, estavam atualizar Simone sobre a situação do projeto, responder dúvidas de clientes sobre a burocracia da empresa, manter um cadastro com informações de contato atualizadas dos moradores e estabelecer o contato direto entre estes, o bairro, o posto de atendimento e a agente comunitária.

Esta rede interconectada de agentes e suas diversas escalas de interação encontravam-se no posto de atendimento, uma estrutura central para entender os tipos de relacionamento que os agentes da empresa mantinham com seus clientes e as subjetividades criadas durante o tempo de espera inaugurado por sua burocracia cotidiana. Situado nas bordas da comunidade, este espaço era composto de salas de recepção com mesas de reunião e computadores com cadeiras, onde eram recebidos os clientes. Nas paredes, mapas da área atendida com alfinetes de cores variadas davam uma dimensão topográfica do andamento das negociações. Quatro cores eram usadas para caracterizar os lotes segundo sua situação atual: em acordo, desistência, inadimplente, indefinido. Essas divisões informavam ainda uma política cotidiana de visitação às casas através das quais casos problemáticos eram intermediados e conflitos emergentes entre vizinhos relativos à agrimensura, minimizados.

Neste espaço, novos arranjos temporais e econômicos tomavam forma e reorganizavam a relação das pessoas com a terra, seus mercados e infraestruturas. Para alguns moradores, o posto de atendimento simbolizava o princípio de uma relação mercadológica e formal com a moradia, isto é, era o local onde se buscava a reimpressão de boletos e a conferência de pagamentos, mas também onde performances de empenho individual eram dramatizadas com vistas à obtenção do título.

Em uma de nossas visitas a outro projeto na Zona Sul, por exemplo, topamos com um senhor, Davi. Raquel, agente de campo daquela região, interceptou o morador e disse-lhe que ela tinha um “BO” – referência figurativa a Boletim de Ocorrência – esperando por ele no ponto de atendimento. Davi aguardava um novo acordo sobre os valores mensais de pagamento, já que ele perdera o período inicial em que a Área Verde oferecia um “pacote promocional” aos moradores em troca de sua adesão ao projeto. No terreno em que nos encontrávamos, as prestações mensais iniciais haviam sido fixadas em R$ 170 por metro quadrado; a segunda leva pagava R$ 200 e, na época de nossa visita, o valor girava em R$ 270. “Campanhas promocionais” eram ativadas de tempos em tempos para instigar inadimplentes[5] e indecisos a fecharem acordos pelos valores iniciais. Davi contava com essa possibilidade para liquidar sua dívida[6].

Converter-se em “bom pagador” era uma das maneiras de navegar o presente, possibilitada pela interveniência das burocracias da empresa social. O pagamento em dia, fruto do trabalho cotidiano, fazia parte da construção desse novo sujeito doravante mediado pela representação da terra como bem de mercado. “Os terrenos costumam valorizar 900% nos primeiros anos de titulação”, Simone relatava; tal raciocínio era apresentado aos beneficiários-clientes, persuadidos a permanecerem nos terrenos pelo período de pagamento das prestações como forma de cultivar sua progressiva valorização de mercado.

O posto de atendimento operacionalizava uma relação empresa-cliente para aqueles moradores que conseguiam satisfazer as demandas da burocracia voltada ao cumprimento do compromisso financeiro assumido no contrato de regularização fundiária. Para aqueles que não conseguiam satisfazer os requerimentos desse tipo de relacionamento, ainda lhes era dada a possibilidade de entrar na “Câmara Técnica”, tecnologia burocrática criada pela empresa capaz de manter até mesmo os inadimplentes engajados com o futuro perfeito.

6 Vulnerabilidade e Risco Moral

Para lidar com conflitos emergentes, funcionários da empresa social haviam desenvolvido um sistema de “abordagem” para a Área Verde “aterrissar” sua infraestrutura burocrática nas áreas de projeto. “Agentes de campo” com conexões comunitárias eram escolhidos cuidadosamente por residirem nos locais para acompanhar de perto o desenvolvimento da regularização fundiária. Aos intermediadores sociais de projetos, como Simone, cabia visitar rotineiramente os moradores e monitorar o andamento das negociações.

Naquele dia em vista à Laje Alta, Simone buscava conversar com clientes que estavam em situação de análise para entrada na Câmara Técnica: um mecanismo previsto no contrato que permitia que uma moradora deixasse de pagar as parcelas por até seis meses, sem risco de rescisão, desde que passasse por um “estudo social” que comprovasse sua situação de “dificuldade financeira”[7]. Este era o caso de Firmina, que, como vimos, encontrava-se desempregada no tempo de nossa conversa. Após tais visitas, Simone produzia um parecer sobre a situação financeira, familiar e social das moradoras a fim de aferir seu grau de vulnerabilidade e administrar o capital moral (WILKIS, 2017) de que dispunham.

Uma dessas conversas aconteceu brevemente após nossa chegada ao posto de atendimento na Laje Alta. Presenciamos uma conversa em que Simone analisava a situação de Luciana, cliente da empresa social. Uma mulher jovem, desempregada, casada, com o marido preso, ela se ocupava do cuidado da filha. Durante a conversa, Simone foi trafegando pelas bordas do merecimento, tentando aferir a validade de uma combinação tênue entre vulnerabilidade e proatividade. Ser mulher, jovem, com uma filha pequena eram atributos da vulnerabilidade. O estado de casada diminuiria, em tese, o risco, porém a ausência física do marido e sua impossibilidade de contribuir financeira e emocionalmente no cuidado da filha aumentava a percepção de insegurança e risco moral. Por outro lado, ações performadas diariamente por Luciana eram vistas por Simone como atestados de sua capacidade de sair da situação difícil: sua filha estava saudável, bem vestida, sua casa estava organizada, ela tinha elaborado e distribuído um currículo em busca de emprego. Ademais, naquele mesmo dia, faria uma celebração do aniversário da filha, fato que Simone não considerou um ato de ostentação, mas um símbolo do cuidado maternal e da vontade de propiciar tempos melhores para a família.

Convencida de que o caso da Luciana “daria certo” e que ela merecia entrar na Câmara Técnica e ter a chance de “ter seis meses para se recuperar”, Simone mostrou-lhe uma vaga de emprego. “Agora é a hora de você juntar um dinheirinho”, ela aludia, oferecendo-se para intermediar o contato com o empregador e apostando na efetivação da contratação de Luciana e na própria narrativa que havia arquitetado para o futuro da cliente.

O “estudo social” feito por Simone não servia simplesmente para avaliar a “vulnerabilidade” financeira e familiar da cliente. Para além da mensuração de indicadores objetivos, como a renda ou o número de familiares empregados, ela avaliava o conjunto de ações subjetivas performadas por Luciana em resposta às adversidades, como a busca proativa por empregos, distribuição de currículos, o cuidado de sua filha e a manutenção de uma casa bem-cuidada. Operando a burocracia, Simone valia-se desses elementos combinados para avaliar o risco moral de sua interlocutora.

Estudos sobre implementação de políticas públicas já mostraram como categorias de vulnerabilidade são ativamente negociadas, mobilizando um efetivo trabalho moral de adequação às expectativas construídas no contexto volátil e contingente dessas economias em fluxo (EGER; DAMO, 2014; KOPPER, 2019). A partir do caso de Luciana, compreendemos que a própria burocracia cotidiana passou a funcionar como uma tecnologia de gestão automatizada desse risco moral, ao permitir que o cliente se aproxime das agentes de campo e, nesse processo, reconstrua sua subjetividade. Tributários dessa nova relação, os residentes precisavam reconstruir o risco moral que inevitavelmente representavam, não mais em relação ao Estado e seus agentes, mas à discricionariedade da empresa e de suas burocracias contábeis.

Administrando a informação acumulada sobre suas clientes, as agentes de campo operacionalizam telefones, andam pelo território, conversam com moradores, absorvem a sociabilidade local e redirecionam o conhecimento produzido. Como figuras centrais no funcionamento dessa tecnologia, é a partir de seu contato face a face com candidatos à Câmara Técnica, da sua interpretação da situação de vida e do perfil moral dos clientes, que elas constroem avaliações de seu merecimento.

Na prática, esse mecanismo engendra modos de pensar e agir cotidianamente performados pelos clientes em suas ações e escolhas individuais. Além de singularizar famílias e beneficiários-clientes, a burocracia privada cria engajamentos cotidianos similares àqueles produzidos pelas políticas públicas e seus aparatos técnico-burocráticos. Aqui, também, a burocracia da empresa está articulada para ser capaz de reconhecer e acentuar diferenças entre merecedores e não-merecedores; entre pobres com e sem futuro.

7 Lapidando Subjetividades Políticas

Em um dos postos de atendimento visitados, encontramos Gabriel, um rapaz jovem e bem vestido que nos contou a história de como a associação de bairro Pedra Pequena havia surgido e se consolidado, após a chegada da Área Verde na área. “Há muito tempo o Estado abandonou as periferias. A classe abastada precisa da periferia pra exercer seu discurso de superioridade. Mas se esquecem que a periferia é geradora de riqueza,” versou articuladamente. Gabriel fora uma liderança ativa no processo de convencimento dos moradores para a regularização da terra e agora trabalhava como assessor parlamentar para trazer melhorias—como creches e canchas de esportes – ao bairro. “No início falavam mal, achavam que a gente ‘tava’ enriquecendo no processo. Mas eu não preciso disso. Quero ajudar a comunidade. Hoje é difícil preparar um sucessor. Ninguém quer trabalhar de graça”, sentenciou.

“É como numa empresa”, interferiu Simone, “tem que ter um líder, uma estrutura de funcionamento, um tesoureiro”. De fato, constituir associações de moradores era parte do trabalho desempenhado pelos agentes da Área Verde. A busca ativa por “líderes natos” – como na feliz coincidência de Gabriel – juntava-se aos esforços de gestação de lideranças, em que era preciso ensinar a fazer atas, reuniões e contabilidade.

Lideranças confiáveis e ativas como Gabriel eram a exceção. Com o tempo, a empresa percebeu que não bastava destinar 10% dos pagamentos para um fundo gerido pelos moradores. Era preciso educá-los quanto à utilização prudente e imparcial do dinheiro. Simone nos contou do caso de uma presidente de associação que resolveu aplicar os R$ 100 mil acumulados no fundo para a construção de uma nova sede. “Ela não teve a preocupação de pensar na manutenção por uns dois anos com o dinheiro que estava em caixa” nos disse Simone, inconformada. Em vista da alegada falta de visão do todo, a Área Verde passou a fiscalizar e aprovar os gastos realizados pelas associações – mais uma instância de controle da agência e de subjetivação econômica dos beneficiários-clientes.

Deslocando-se para a Laje Alta, na Zona Leste, Simone procurava passar uma “lição de casa” aos membros da associação de moradores. Ela pretendia que eles organizassem uma lista com as ruas sem serviço de água e esgoto, para que esses dados fossem passados à Sabesp e o serviço fosse implementado no bairro. A tarefa de Simone provaria não ser trivial. Rapidamente, o pequeno grupo dispersou e passou a divagar sobre questões pessoais.

Durante toda a reunião, Simone permaneceu atenta ao comportamento dos participantes a fim de identificar possíveis lideranças. Dona Lourdes, que vendia churrasquinho, era apontada como provável tesoureira. Seu José, aposentado, conversador e popular, possuía uma lojinha na rua principal e era cotado para a presidência. Ambos eram figuras conhecidas no bairro por suas atividades e seu caráter; embora não apresentassem histórico de atuação política, poderiam ser modelados segundo as necessidades comunitárias do acordo de titulação.

Fomentando um espírito de liderança e organização, Simone visava transformá-los em um coletivo político independente e capaz de “andar com suas próprias pernas”. Seu esforço pedagógico recriava assim as fronteiras políticas do associativismo através da instalação de novas formas burocráticas alicerçadas em tecnologias de controle da vida social possibilitadas pela titulação da terra.

Ao longo dessas interações, Simone estabelecia contrastes entre ambas as associações: na Pedra Pequena, Gabriel era uma figura responsável, que inspirava confiança, tanto para a empresa quanto para a comunidade; logo, o fundo social era bem administrado e requeria menos intervenção de sua parte. A sintonia entre empresa e associação era tal, que, na mesma construção, em salas paralelas, um morador atendido por Gabriel poderia demandar uma cesta básica, enquanto seu vizinho com dificuldades de pagamento era atendido na sala ao lado por um agente da Área Verde. O compartilhamento de espaço entre a sede da associação e o posto de atendimento materializava o sucesso da empresa no emprego do fundo social como burocracia de engajamento político e social dos moradores em seus projetos.

Conclusão

“Olha como são verdadeiros mestres na construção, fazem tudo por conta própria”, Simone nos contava, enquanto caminhávamos pelas ruelas do bairro e nos familiarizávamos com o trabalho de base da Área Verde. Atravessamos corredores estreitos e íngremes; avistamos propriedades inacabadas feitas de materiais improvisados e tapumes, enquanto as agentes da empresa apontavam os relógios individuais de água e luz – sinais de modernidade e da presença do Estado, trazido pela Área Verde. Em meio a poças de água, canos abertos e moradores irriquietos, Simone parecia descrever outra realidade. “Aqui acaba nosso projeto, tá vendo como é diferente? Lá é desorganizado”; procuramos, com alguma dificuldade, pelas mudanças em meio ao contínuo de precariedade e casas autoconstruídas que atravessava o local.

Para as agentes da Área Verde, as melhorias territoriais eram autoevidentes e justificavam a atuação da empresa nas comunidades. Mesmo que, na prática, a vida social em meio aos escombros parecesse inalterada, Simone apostava nas promessas futuras do título de propriedade como agente transformador de subjetividades. Se as suas vantagens não eram imediatamente perceptíveis, era porque a melhoria de vida requeria o trabalho do tempo: era na gestação de temporalidades de espera que a materialidade da Área Verde e de suas burocracias cotidianas adquiria forma concreta e intervia na vida dos moradores.

Ao longo do artigo, mostramos como esse processo de mercantilização da terra e de seus ocupantes instaurou camadas de renegociação e aspiração do futuro. Operacionalizados, concretamente, pelo tempo das burocracias cotidianas, tais procedimentos criaram espaços subjetivos que redesenharam os contornos da vulnerabilidade social, do risco moral, e do associativismo, projetando-os para um futuro perfeito marcado pela propriedade individual da terra.

Referências

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Notas

[1] Todos os nomes de pessoas, empresas e lugares aqui adotados são fictícios.
[2] Trecho extraído do website da empresa.
[3] Freitas chamou os invasores profissionais de “especuladores imobiliários”, operando uma rede de experts que incluía advogados “picaretas” que prometiam o fim da reintegração, cobravam altos valores e, invariavelmente, perdiam a causa.
[4] Segundo Simone, outros problemas incluíam a atuação de militantes políticos e de vereadores que viam na regularização uma ameaça à sua influência, baseada em relações informais e contrapartidas gratuitas do Estado. Tais inconvenientes eram contornados apelando-se à agência de formadores de opinião, como pastores evangélicos e padres (muitas vezes também ocupantes).
[5] A taxa de inadimplência apresentada por Simone era de 25% e era composta sobretudo de pessoas que, insatisfeitas, abandonavam as terras e seguiam para outra ocupação, (ainda) não regularizada pela Área Verde.
[6] Segundo Simone, os pacotes e campanhas promocionais eram decididos diretamente com o proprietário e dependiam de sua “boa-vontade” para colocá-los em prática.
[7] Termo utilizado pela empresa em seu “Guia de perguntas e respostas”, destinado a moradores e disponível em postos de atendimento.
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