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Entre o cuidado e a medicamentalização: os debates sobre “trocar uma droga por outra”
Annabelle de Fátima Modesto Vargas; Mauro Macedo Campos
Annabelle de Fátima Modesto Vargas; Mauro Macedo Campos
Entre o cuidado e a medicamentalização: os debates sobre “trocar uma droga por outra”
Between care and medication: the discussions on “exchange one drug for another”
Revista Brasileira de Sociologia, vol. 7, núm. 15, pp. 81-103, 2019
Sociedade Brasileira de Sociologia
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Resumo: Este artigo resulta de uma pesquisa realizada em um CAPSad (Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas) do Estado do Rio de Janeiro. Foi investigada a operacionalização das políticas públicas de saúde mental, álcool e outras drogas, a partir de seus operadores, os “burocratas de nível de rua”. Busca-se compreender como se efetiva a utilização de medicamentos psiquiátricos no CAPSad, a partir da relação imbricada entre as drogas lícitas e ilícitas. Trata-se de uma pesquisa qualitativa, construída através de observação participante, anotações em diário de campo e entrevistas em profundidade. Os achados no campo de pesquisa apontam para uma incômoda e crescente medicamentalização. A operacionalização do trabalho está fortemente centrada na utilização de medicamentos, relegando o uso das tecnologias leves a um plano de cuidado complementar e não principal.

Palavras-chave:MedicalizaçãoMedicalização,Políticas PúblicasPolíticas Públicas,DrogasDrogas.

Abstract: This article results from a research carried out in a CAPSad (Center for Psychosocial Care Alcohol and Drugs) of the State of Rio de Janeiro. It was investigated the operationalization of public policies of mental health, alcohol and other drugs, from its operators, the “street level bureaucrats”. It seeks to understand how the use of psychiatric drugs in CAPSad is effective, based on the overlapping relationship between licit and illicit drugs. This is a qualitative research, built through participant observation, field diary notes, and in-depth interviews. The findings in the field of research point to an uncomfortable and growing medication. The operationalization of the work is strongly centered in the use of medicines, relegating the use of the light technologies to a plan of complementary and not main care.

Keywords: Medicalization, Public Policies, Drugs.

Carátula del artículo

Artigos

Entre o cuidado e a medicamentalização: os debates sobre “trocar uma droga por outra”

Between care and medication: the discussions on “exchange one drug for another”

Annabelle de Fátima Modesto Vargas
Universidade Estadual do Norte Fluminense, Brasil
Mauro Macedo Campos
Universidade Estadual do Norte Fluminense, Brasil
Revista Brasileira de Sociologia, vol. 7, núm. 15, pp. 81-103, 2019
Sociedade Brasileira de Sociologia

Recepção: 12 Agosto 2018

Aprovação: 20 Novembro 2018

1 Introdução

Este artigo resulta de uma pesquisa realizada em um CAPSad (Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas) do Estado do Rio de Janeiro. Buscou-se investigar a operacionalização das políticas públicas de saúde mental, álcool e outras drogas, a partir de seus operadores, os “burocratas de nível de rua”. Tais burocratas são agentes públicos que atuam na linha de frente na implementação de políticas públicas. Direcionar a atenção para esses profissionais permite analisar a complexidade e desafios que envolvem o trabalho nos serviços de saúde (LIPSKY, 2010).

De acordo com o Ministério da Saúde, cabe aos CAPSad o atendimento diário a pacientes em uso prejudicial de álcool e outras drogas, de modo a possibilitar o planejamento terapêutico sob uma perspectiva singular. O serviço proporciona intervenções precoces, o que auxilia na redução do estigma vinculado ao tratamento. A rede de atendimento baseia-se em serviços comunitários, apoiados por leitos psiquiátricos em hospital geral. As atividades desenvolvidas vão desde o atendimento individual, que pode ser medicamentoso, psicoterápico e de orientação, até atendimentos em grupo. São também realizadas oficinas terapêuticas e visitas domiciliares. Neste sentido, a política de Redução de Danos ganha espaço como uma estratégia no cuidado aos usuários dos CAPSad, possibilitando o fornecimento de informações sobre os danos do uso de álcool e outras drogas e dando alternativas para atividades diversas de fortalecimento de vínculos afetivos e estreitamento de laços sociais, impulsionando a melhoria da autoestima (BRASIL, 2004).

Para o desenvolvimento deste artigo, partimos de dados coletados no campo que aludem à importância de uma discussão voltada à temática da medicalização/medicamentalização da vida (ILLICH, 1975; GAUDENZI; ORTEGA, 2012; AMARANTE, 2007; ROSA; WINOGRAD, 2011; BEZERRA et al., 2014; BEZERRA et al., 2016), uma vez que é frequente a afirmação “está trocando uma droga por outra” pelos burocratas e usuários do CAPSad. Eles se referem ao uso das drogas psiquiátricas como forma de “substituição” às drogas ilícitas, sendo essa prática ora entendida como terapêutica, ora entendida como “de abuso”.

Do esforço realizado para a construção dessa investigação, não foram encontrados na literatura trabalhos direcionados a compreender a utilização de psicotrópicos nos CAPSad, a partir da relação imbricada entre as drogas lícitas e ilícitas. Na maior parte das pesquisas (DUARTE, 2013; MORAES, 2005), a discussão sobre a medicalização/medicamentalização aparece como “pano de fundo” para outras questões principais ou se voltam a dispositivos de saúde mental, não especializados em álcool e outras drogas.

Neste artigo, então, busca-se problematizar a utilização de medicamentos em saúde mental, mais especificamente no que tange à temática do uso de álcool e outras drogas. Como apontado por Rui (2014, p. 89), “o fim da contenção física teria sido substituído por um novo modelo de gestão, baseado na contenção química [...]”. Avançar um pouco nessas questões é o que se pretende pautar, a partir dos achados no campo. Para tanto, faremos uma breve apresentação conceitual da temática da medicalização/medicamentalização, seguindo com a abordagem referente ao método utilizado na pesquisa. Na etapa seguinte, trazemos a análise dos dados coletados, apresentando os resultados e sua discussão. Por fim, tecem-se as considerações finais do artigo.

2 Da medicalização à medicamentalização

Parte considerável dos entendimentos sobre o funcionamento dos equipamentos públicos de saúde tem como elemento central a implementação das políticas públicas. Lotta (2010) chama a atenção para a lacuna existente na literatura no que tange a análises em relação a esse processo de implementação das políticas, no sentido de ampliar os diversos fatores, olhares e referenciais que envolvem a prática cotidiana. Segundo a autora, tal espaço torna-se ainda mais evidente ao direcionarmos nossa atenção a trabalhos empíricos com foco nos burocratas de baixo escalão. Podem-se destacar, nesse sentido, os estudos de Lima e colaboradores (2014), que analisaram a implementação da Política Nacional de Humanização nas unidades básicas de saúde no município de Porto Alegre (RS), bem como o de Dutra e Henriques (2016, p. 325), que discutiram o poder discricionário dos agentes institucionais que lidam com usuários de crack, cuja execução da política pode induzir “à formação de uma ‘micropolítica’”, que cumpre ou não os ditames estabelecidos pelas normas.

Enquanto agentes institucionais que controlam, alteram e aplicam os serviços e ações estabelecidas pelo poder político formal, as suas práticas tornam-se uma variável que ajuda a explicar o sucesso ou fracasso das políticas públicas. É por essas questões que Lipsky (2010) considera que os burocratas de nível de rua situam-se no centro do debate político por, de um lado, sofrerem pressão por parte das instituições no sentido de tornar as políticas mais efetivas e responsivas e, de outro, por padecerem de pressões por parte das pessoas que, na ponta, exigem o serviço público ao qual têm direito.

Nesta mesma linha, Oliveira (2012) ressalta que, na análise da discricionariedade dos burocratas do baixo escalão, não se podem deixar de lado as imprecisões e ambiguidades dos objetivos das políticas públicas. Tais questões podem ser notadas ao direcionarmos o nosso olhar para a utilização dos psicofármacos, tão presentes no cotidiano do CAPSad investigado, pois, embora a política pública estabeleça que o cuidado aos usuários dos serviços é realizado por meio de diferentes técnicas, é perceptível que os medicamentos estão no centro dessa terapêutica. Não significa dizer que as outras técnicas não são utilizadas, mas sim que as práticas permanecem medicalizantes, sendo seu pilar o uso das drogas psiquiátricas. Se as ações dos burocratas de nível de rua influenciam diretamente a forma de implementação das políticas públicas, as imprecisões favorecem a aplicação da regra de acordo com a discricionariedade dos executores, ou seja, quanto mais vago o conteúdo normativo e político, maior a ação discricionária dos burocratas.

O termo medicalização surge ao final da década de 1960, em referência à progressiva apropriação, pela medicina, das formas de vida das pessoas (GAUDENZI; ORTEGA 2012). Os autores entendem que os saberes produzidos no campo biomédico têm estabelecido normas morais de conduta, que proscrevem e prescrevem comportamentos. Uma das vertentes da medicalização se vincula ao crescente uso dos medicamentos como forma de cura, alívio ou solução para as mais diversas questões ligadas à vida cotidiana. Esse processo tem sido nomeado “medicamentalização” (AMARANTE, 2007; ROSA; WINOGRAD, 2011; BEZERRA et al., 2014).

Segundo Rosa e Winograd (2011), mais do que o tratamento de doenças mentais, o que está em jogo é a melhoria das performances individuais, oferecendo recursos para a eliminação de prejuízos que iriam desde uma constipação intestinal até a insônia, a solidão e o sofrimento. Alguns estudos demonstram que a medicamentalização é ainda mais perceptível no campo da saúde mental (AMARANTE, 2007; ROSA; WINOGRAD, 2011; BEZERRA et al., 2014; BEZERRA et al., 2016), e isso se dá, principalmente, pelo uso dos psicofármacos. No entanto, esse uso seria parte de uma discussão mais abrangente que envolveria biomedicina, poder e subjetividade (ROSE, 2013).

Autores como Bezerra et al (2016) ressaltam que há, nos serviços de saúde, uma excessiva indicação de drogas psiquiátricas para questões muitas vezes relacionadas a problemas sociais e econômicos, o que reflete uma visão reducionista de todo o contexto e uma possível fragilidade na relação profissional-usuário. Assim, o trabalho em saúde mental precisaria se construir a partir de uma perspectiva ampliada do cuidado, entendendo a importância do uso de tecnologias leves, relacionais (MERHY, 2005) e da autonomia para a reorganização desse processo.

Para Borges Júnior et al (2016), um empecilho para a integralidade do atendimento poderia ser a banalização das prescrições de psicotrópicos, uma vez que o foco permanece na doença e não o sujeito e toda sua singularidade. A questão parece se tornar ainda mais complexa ao envolver os serviços de saúde mental direcionados ao atendimento de pessoas que fazem uso de álcool e outras drogas. Não se trata aqui de desenvolver um debate sobre o estatuto das drogas prescritas e não prescritas, devido à sua complexidade e ao escopo do artigo. No entanto, citamos o trabalho de Volcov (2017, p. 8), que buscou demonstrar, em contextos privados, os sentidos do consumo de drogas ilícitas e lícitas. A autora destaca que “a problemática do consumo de drogas envolve a excessiva medicalização e psiquiatrização de comportamentos, além de uma demasiada testagem entre os usuários de fármacos prescritos [...]” (p. 8).

Os trabalhos acadêmicos encontrados que mais se aproximam a essa discussão dizem respeito à análise de experiências vivenciadas por usuários de CAPS geral e “ad” em grupos operativos para Gestão Autônoma da Medicação (GAM) (JORGE et al., 2012), bem como a utilização do Guia GAM (GONÇALVES; CAMPOS, 2017). O guia refere-se a um “instrumento que reconhece o direito ao consentimento livre e esclarecido para a utilização da medicação e a necessidade de compartilhamento de decisões entre profissionais e usuários”. Disponibiliza ainda informações sobre as medicações, como efeitos colaterais, doses terapêuticas etc. (GONÇALVES; CAMPOS, 2017, p. 3).

Tais discussões ressaltam as dificuldades e possibilidades inerentes à questão do uso dos psicofármacos em saúde mental. Não se trata de anular os benefícios terapêuticos conhecidos desses medicamentos, uma vez que promoveram importantes mudanças nas intervenções terapêuticas, especialmente nos casos mais graves (BEZERRA JÚNIOR, 1987). No entanto, o movimento crescente de intervenções e “invasão farmacêutica”, aqui citada sob a perspectiva de Dupuy e Karsenty (1979) – que destacam o avanço no consumo de medicamentos e a produção de mercadorias, refletindo sobre a indústria farmacêutica –, promoveu resultados iatrogênicos (ILLICH, 1975). Neste sentido, Dupuy e Karsenty (1979, p. 177), consideram que “o médico se encontra cada vez mais, portanto, nessa situação, onde sua nosografia se confunde com a indicação de produtos”.

No caso específico analisado nessa pesquisa, os psicofármacos aparecem como elemento central na terapêutica, tanto por demanda dos próprios usuários quanto no processo de argumentação profissional, no sentido de informar que sem os medicamentos não é possível realizar uma prática terapêutica. Tais discursos são por vezes paradoxais, pois, ao mesmo tempo em que se exalta a necessidade de práticas de saúde desmedicalizantes, informando que os fármacos somente são utilizados nos casos estritamente necessários, as práticas cotidianas ressaltam o contrário. Trata-se, neste sentido, de jogar luz sobre a controvérsia que parece existir para os burocratas sobre o estatuto da droga e do medicamento, sobre a simples substituição e prolongamento da relação de dependência da droga e do medicamento, e sobre o papel desses burocratas no melhor cuidado possível aos pacientes. É sabido, no entanto, que se refere a uma controvérsia de difícil equação para esses burocratas, mas que ocupa sua rotina a cada caso, envolvendo questões como “dependência”, “recaída”, “uso abusivo”, “desmame”, “equilíbrio”, que aparecem recorrentemente nos depoimentos.

Os medicamentos aqui tratados são principalmente psicofármacos, sendo sua característica geral a atuação no Sistema Nervoso Central (SNC). A pesquisa apontou para o fato de que há três grupos específicos de fármacos que são mais utilizados: os ansiolíticos, os antidepressivos e os antipsicóticos. Tecnicamente, os fármacos ansiolíticos atuam nos receptores benzodiazepínicos, que são subunidades dos receptores GABAa, possibilitando a ação do principal neurotransmissor inibitório do SNC, o ácido gama-aminobutírico (GABA). Esses fármacos são, assim, depressores do SNC. O Diazepam é um dos representantes dessa classe. Os antidepressivos agem, principalmente, por meio do aumento da neurotransmissão monoaminérgica, especialmente de neurônios noradrenérgicos, serotoninérgicos e dopaminérgicos, o que provoca o aumento da concentração desses neurotransmissores na fenda sináptica. Podemos citar a Amitriptilina como um de seus representantes. Já os antipsicóticos atuam por meio do bloqueio dos receptores de dopamina nas vias mesolímbicas e mesocorticais. Um dos mais conhecidos é o Haloperidol (BAES; JURUENA, 2017). Os fármacos e seus mecanismos de ação são aqui descritos apenas de modo a explicitar as categorias mais utilizadas e medicamentos observados no campo, mas, por não ser objetivo da pesquisa, não foi realizado um levantamento quantitativo e análise das prescrições.

O foco da pesquisa foi analisar a controvérsia existente em relação aos tratamentos e medicamentos oferecidos no CAPSad e vivida pelos burocratas de nível de rua, que são os implementadores da política de saúde mental. Como dito, em termos formais, é estabelecido na política que os serviços devem funcionar sob a perspectiva da Redução de Danos, de modo interdisciplinar e por meio da utilização de técnicas, como atendimentos individuais, em grupo e com oficinas terapêuticas. Isso de fato ocorre no CAPSad estudado. Esse artigo busca analisar as diversas nuances, perspectivas e controvérsias relacionadas ao uso dos psicofármacos, enquanto parte importante desse tratamento. No entanto, não se trata de dizer que as outras técnicas não são utilizadas pelo dispositivo.

3 Método

Este artigo é parte dos resultados de uma pesquisa de doutoramento, que ocorreu ao longo do ano de 2016. A pesquisa de campo foi construída através de observação participante, anotações em diário de campo e entrevistas em profundidade (MINAYO, 2007).

O lócus da pesquisa foi um dentre os oito CAPSad III existentes no Estado do Rio de Janeiro. Essa escolha foi motivada pela necessidade de uma completa imersão do pesquisador no campo, possibilitando a vivência e conhecimento aprofundado do cotidiano local. Foi feito o uso do diário de campo para registro detalhado das informações, de modo que fosse possível captar os “imponderáveis da vida real” (MALINOWSKI, 1978). Na etapa final da pesquisa foram realizadas entrevistas com profissionais da unidade, buscando aprofundar o conhecimento obtido através da observação participante. Na tabela 1, são apresentados os profissionais da unidade e o número de entrevistados.

Tabela 1
Profissionais da Unidade e Número de Entrevistados

elaborado pelos autores.

Do total de 36 pessoas, das mais diversas formações, envolvidas com cotidiano de trabalho do CAPSad III, foram entrevistados 61,1% dos burocratas. Em função de um quantitativo elevado e da diversidade de funções que exercem, apenas o cotidiano de observação foi suficiente em alguns casos. Essa unidade do CAPS possui um grande número de técnicos de enfermagem, o que, para o cumprimento dos objetivos na pesquisa, não acarretava a necessidade de todos serem ouvidos, visto que a saturação dos dados ocorreu após a realização das três primeiras entrevistas. Desse modo, não houve um rigor estatístico, a partir de um cálculo amostral, inclusive pelo caráter qualitativo da pesquisa. A estratificação por categoria profissional foi mantida, o que implica dizer que todas as funções profissionais que atuam no CAPSad III foram ouvidas. Ao longo do texto, buscamos trazer algumas falas desses burocratas, a partir de inserções pontuais, de forma que se pudessem encadear as discussões na estrutura do artigo.

Como forma de dar mais desenvoltura no momento das entrevistas e estimular os relatos, baseou-se em um roteiro semi-estruturado, com alguns eixos norteadores que, ao cessar das falas, serviriam para o desenvolvimento de um novo assunto. Nada rígido e nada escrito. Um roteiro apenas mental para que nenhuma das questões, ainda pouco compreendidas do cotidiano, pudesse ficar esquecida. Os temas norteadores foram: 1) inserção profissional naquele serviço de saúde; 2) cotidiano de trabalho; 3) Rede de Atenção Psicossocial; 4) doença e uso de drogas; 5) interferências externas da Justiça e Ministério Público; 6) internações; 7) internações compulsórias; 8) redução de danos; 9) uso de medicamentos psicotrópicos; 10) internação nos leitos do CAPS.

Esses temas norteadores foram sendo elaborados com o desenvolvimento do campo, a partir de questões que surgiam com maior frequência nos discursos e vivências. Isso significa dizer que, a partir do próprio campo, a análise de conteúdo proposta por Bardin (1977) já começou a ser utilizada e assim prosseguiu-se até a etapa final de investigação, quando foram analisadas as entrevistas por essa mesma técnica.

Foram analisados os dados colhidos a partir do campo e que se relacionam ao uso de medicamentos, buscando compreender, à luz da teoria socioantropológica e de achados do campo da saúde coletiva, como os mesmos se inserem no cotidiano do CAPSad. A pesquisa foi aprovada em Comitê de Ética, atendendo à Resolução CNS nº 466/2012, sendo garantido o anonimato e confidencialidade das informações prestadas pelos profissionais.

4 Resultados e discussão

O CAPSad estudado fica na região central do município, sendo de fácil acesso a outros equipamentos de saúde. Embora seja um local de assistência 24 horas, o atendimento ao público acontece de 08 às 17 horas, a não ser para casos de atendimento no chamado “leito psicossocial”. Durante o período noturno permanecem na unidade 1 enfermeiro, 2 técnicos de enfermagem, 1 vigilante patrimonial, profissionais que oferecem atendimento aos pacientes internados. O espaço é amplo, mas a estrutura precarizada. O cotidiano de trabalho é principalmente organizado a partir dos chamados “Grupos”, apresentados na tabela 2.

Tabela 2
“Grupos” desenvolvidos na unidade pesquisada

elaborado pelos autores.

Desde a primeira observação de campo as dificuldades estruturais foram apontadas pelos profissionais da unidade. A falta de pintura do local e a depreciação de cadeiras, mesas, computadores, papéis e os mais diversos insumos visivelmente dificultavam o trabalho. As informações sobre o número de usuários cadastrados na unidade, frequentadores ou não, o quantitativo de homens e mulheres, drogas mais utilizadas não foram disponibilizadas.

Segundo um dos profissionais, um levantamento a esse respeito nunca foi realizado na unidade. Pela observação, e não por uma relação precisa dos dados, pode-se dizer que a maior parte dos usuários são homens, pardos e pertencentes às camadas sociais mais baixas, o que leva à reflexão sobre como operam as formas de julgamento e classificação no desenvolvimento de uma política pública, determinando quem merece ou não determinada política e reforçando os aspectos relacionados ao processo de exclusão social (DUBOIS, 2010; MAYNARD-MOODY; MUSHENO, 2003).

Em um olhar sobre o que a literatura tem produzido sobre o tema, percebe-se que um conjunto considerável de estudos (SOUZA; OPALEYE; NOTO, 2013; WAGNER, 2015; AZEVEDO; ARAÚJO; FERREIRA, 2016) tem se dedicado a problematizar o uso considerado “abusivo”, “incorreto” ou “inadequado” de drogas psicotrópicas. Tais pesquisas apontam para uma preocupação relacionada à saúde pública no que diz respeito aos efeitos danosos ou prejudiciais causados por esse uso. Outras têm direcionado o olhar para as questões socioculturais, formatando um debate que envolve as ideias de modernidade e pós-modernidade, além de conferir aos medicamentos um status de “remédios do estilo de vida” (AZIZE, 2002, p. 13), os chamados “gadgets da contemporaneidade” (BRANT; CARVALHO, 2012, p. 623), ou também “gestores de conflitos” (MENDONÇA, 2009, p. 119), culminando na “medicamentalização do mal-estar psíquico” (ROSA; WINOGRAD, 2011, p. 37).

Mesmo diante da “estratégia” dos profissionais da unidade pesquisada, no sentido de “coibir” um consumo “excessivo”, ou “errôneo”, das drogas psicotrópicas, os usuários também elaboram seu discurso de modo a obtê-las. A observação no campo mostrou como esse dilema penetra nas relações entre os profissionais e usuários do sistema, em que pese o cuidado para lidar, no limite, com a medicamentalização, sem que se equivalha a “troca de uma droga por outra”. Tais questões ganham contornos mais complexos, pois são parte de uma sociedade altamente medicamentalizada, em que a centralidade do medicamento nas práticas terapêuticas acaba sendo reconhecida e enfatizada tanto por profissionais quanto por usuários.

Foram ouvidas afirmações que relatavam de um consumo superior ao prescrito de determinados medicamentos no final de semana, em função de ansiedade provocada pela “ociosidade” ou por ser aquele o momento que mais arremeteria ao uso de outras drogas. Os burocratas, por sua vez, retiravam-se para um momento de escuta ao usuário e decidiam o que deveria ser feito em cada caso. Grande parte das vezes, os medicamentos eram novamente fornecidos, respaldando a ideia predominantemente aceita de que “melhor os remédios que as drogas ilícitas”. Tal constructo é, ao que parece, proveniente de um discurso moral sobre o uso de drogas, legitimado pelo saber biomédico e jurídico (VOLCOV, 2017).

Rose (2013) amplia o debate sobre as práticas biomédicas e biotecnológicas no início do século XXI e seu grau de envolvimento com nossa cidadania e subjetividade. Chama a atenção para uma expertise somática (p. 19) que faz crescer novos meios de governo à vida humana, através do surgimento de variadas subprofissões que acabam por exercer seu poder em diversas esferas da vida. No caso do CAPSad, as categorias profissionais, ou subprofissões, confirmam e legitimam a autoridade médica com uma autoridade própria, realizável a partir de suas expertises. Mesmo que tais profissionais, em função de seu ato, não possam realizar prescrições, o controle da chegada do medicamento aos pacientes passa por eles.

Durante as entrevistas, muitas queixas surgiram em relação à carência de alguns medicamentos em estoque e ausência de especialidades farmacêuticas “inovadoras” para o tratamento dos usuários. Ocorriam em dois sentidos: 1) em relação à má gestão dos recursos públicos, ocasionando uma constante falta de formulações consideradas essenciais; e 2) no não incremento de psicotrópicos mais modernos e concebidos como de maior eficácia no tratamento. Como se percebe na fala de um dos burocratas: “Ah, você tá trocando a droga por um medicamento, trocando a droga por um remédio [...] às vezes sim. Só que esse remédio tem limite de tempo, tem acompanhamento, você vai usar durante um período, você não vai ficar o resto da vida usando aquele remédio. Talvez tenha que ficar se ele tiver um distúrbio psiquiátrico associado, mas geralmente a troca de uma droga pela outra é para você tirar períodos de abstinência primeiro, depois o que a gente chama de fissura que é o craving, você não ter vontade de usar. Alguns remédios hoje atuam nisso. E por último você ter a droga disponível, que a gente não tem as drogas boas, de estudos clínicos melhores [...] tudo a gente não tem. Porque são drogas relativamente caras e o SUS não [...] o Sistema Único de Saúde não dispõe elas a tratamento. Então a gente fica usando medicamentos mais antigos, que têm sua certa eficácia, mas que não são tão bons quanto os medicamentos mais novos que poderiam ter aqui e não têm e mesmo os mais antigos nós não estamos tendo. Tá em falta. Mais de um ano que está em falta. Falta remédio, medicamentos simples como haloperidol, barato, muito barato e eu tô aqui já há quatro semanas sem esse remédio. Diazepam, de vez em quando falta Diazepam. Nenhum antidepressivo eu tenho hoje para oferecer a eles, nenhum, nenhum de recaptação de serotonina, nenhum dos tricíclicos, que são mais antigos, que são bem baratos também, baratos, baratos com relação a outros né, de diferença de preço [...]” (E1 - Psiquiatra).

A fala de E1 traz uma multiplicidade de temas que, por si só, possibilitariam a construção de outras abordagens, como: 1) a substituição de uma droga ilícita por uma droga lícita, prescrita; 2) a incorporação de tecnologias ao SUS, através dos novos insumos, medicamentos e equipamentos que surgem a cada dia; 3) a judicialização da saúde; 4) a substituição das drogas ilícitas por drogas prescritas como estratégia de redução de danos. Embora se reconheça a importância de discussões aprofundadas sobre todas as temáticas, a ideia aqui é apresentar um debate direcionado ao uso em si das drogas psiquiátricas no cuidado aos usuários do CAPSad, englobando a temática da medicalização.

Dupuy e Karsenty (1979) problematizam a crescente incorporação de formulações farmacêuticas à prática clínica. Segundo os autores, a evolução das formulações parece ir em direção contrária à relação de cuidado estabelecida entre médicos e pacientes: quanto maior o número de especialidades farmacêuticas, mais distantes os profissionais se tornam das reais causas do adoecimento e de seu tratamento. Como ressalta Illich: “é também um sintoma da invasão do modesto saber médico tradicional por um pseudo-saber farmacêutico” (ILLICH, 1975, p. 38).

Isso parece ser ainda mais evidente no âmbito da psiquiatria, pois, como demonstra Volcov (2017), as drogas vão sendo testadas ao longo do tratamento para se verificar a que melhor se adéqua a determinado paciente. Segundo a autora: “as tentativas de erro e acerto no uso de medicamentos parecem ser uma prática usual no meio psiquiátrico” (VOLCOV, 2017, p. 59). Tal discussão ganha relevo ao considerarmos o uso dos medicamentos psiquiátricos juntamente com outras drogas, como o álcool. A esse respeito E1 aponta que: “[...] o DSM[1], que é a bíblia nossa, que fala de todas as doenças psiquiátricas, lá no final tem: afastar o uso de substâncias psicoativas ou outras doenças. Então eu só posso dizer que um paciente é esquizofrênico se ele estiver um mês sem usar droga. Mesmo achando que ele é esquizofrênico. Por exemplo, o bipolar, ou a mania, pode ser tudo causado pelo uso de álcool e droga. Mas, eu sei que se ele está na mania, tá grave na mania, mesmo com o uso de álcool e drogas, eu posso usar o medicamento para dar uma diminuída nesse processo, tentar tratar isso de uma forma mais rápida do que esperar um mês para ele estar sem droga, então a mania a gente pode tratar. Então a gente faz a experiência clínica de cada um, de cada médico. Um pouquinho diferente do que tá [...] o Guideline ele funciona para te orientar e não pra te deixar morto. Então a gente usa a experiência nossa para tratar um paciente com um medicamento ou não” (E1).

Freitas e Amarante (2015) discutem o processo de desenvolvimento do DSM enquanto uma “falsa narrativa” estabelecida pela psiquiatria americana no intuito de possibilitar a venda de medicamentos psiquiátricos. Sob a crença de que ansiedade, depressão e outros transtornos psiquiátricos seriam causados por desequilíbrios químicos cerebrais, estaria posta a ideia de que tais doenças cerebrais poderiam ser tratadas através dos psicotrópicos. Caponi (2014) ressalta que há uma multiplicação de diagnósticos psiquiátricos em função dos sintomas clínicos ambíguos, em que as condutas socialmente indesejáveis passam a ser classificadas como anormais, possibilitando o processo de medicalização, que ocorre em função das instáveis fronteiras entre o normal e o patológico no campo da saúde mental.

Na fala anterior do E1, o caráter difuso e impreciso das decisões psiquiátricas se faz presente, uma vez que, mesmo diante da considerada “bíblia da psiquiatria” e das guidelines, é a prática cotidiana discricionária que leva a tomada de decisões que envolvem (ou não) uma prescrição medicamentosa. É, neste sentido, que se expressa o cuidado quanto às intervenções dos burocratas junto aos pacientes, tanto no sentido da medicamentalização ou na extensão da abstinência. Ou seja, a conduta se materializa, no caso, a partir da expertise e do cuidado desses profissionais. Essa ideia se aproxima à afirmação de Foucault (2006), quando o autor problematiza o fracasso da tentativa de inscrever a loucura no campo da neurologia ou fisiopatologia. Segundo ele, fugindo o corpo neurológico e anatomopatológico da psiquiatria, o saber psiquiátrico fica limitado aos seguintes instrumentos de poder: “o interrogatório e a confissão; o magnetismo e a hipnose; a droga” (FOUCAULT, 2006, p. 299). Desse modo, na maioria dos casos, o medicamento acaba por ocupar um papel central na terapêutica, sendo os usuários dos CAPS potenciais consumidores das drogas psicotrópicas, o que denota uma relação estratégica de poder e disciplina, como aponta a fala do E2: “Se você for pegar os prontuários aqui, eu acho que 95% usam medicação, né? E aí eu acho que também a gente tem uma inversão totalmente, que o cara vem com a demanda já de medicação, né, se eu tô dependente daquela droga ali o que vai me salvar é o remédio. O que vai me tirar essa fissura é o remédio” (E2 - Enfermeiro).

A busca pelos medicamentos a partir dos próprios usuários se inscreve na ideia dos corpos úteis, dóceis e disciplinados (FOUCAULT, 2009; FOUCAULT, 2009a; FOUCAULT, 2010), que correspondem às exigências de controle e se inscrevem na lógica produtiva. Assim, através de uma relação de poder, busca-se, dentro de um padrão de normalidade/anormalidade, incitar a manutenção de corpos obedientes, saudáveis e aptos ao trabalho e à disciplina. Segundo Galindo, Lemos e Rodrigues (2014, p. 101), “os medicamentos agem conformando modos de ser e instaurando certa sensação de normalidade medicalizada [...]”.

Nota-se, também, que os medicamentos são utilizados de modo a suprimir sintomas imediatos, que são, na realidade, oriundos de questões psicossociais maiores, como desemprego, conflitos familiares e urbanos, a pausa ou retorno ao uso de drogas ilícitas; mas que desembocam na medicalização da vida. Tais questões podem ser percebidas nas duas últimas falas, em que o medicamento foi citado como importante para “tirar o sujeito da fissura e da mania”. Ou seja, o que se estabelece é uma supressão de sintomas a partir do uso dos psicotrópicos e não o tratamento das reais causas que levaram o paciente àqueles sintomas. Segundo Caponi (2014, p. 759), “como muitos profissionais de saúde relatam frequentemente, é negado a eles, pelo pouco tempo que dispõem para realizar as consultas, a possibilidade de escutar as narrativas de vida de seus pacientes”, o que favoreceria práticas restritas ao tratamento dos sintomas (DUNKER; KYRILLOS NETO, 2011, p. 621). O medicamento aparece como recurso terapêutico que reforça a controvérsia já apresentada para estes profissionais em relação ao uso da droga e à efetividade do medicamento, deixando claro o impasse que permeia as decisões cotidianas destes burocratas.

De acordo com Resende, Pontes e Calazans (2015), conjuntamente a uma epidemia de diagnósticos de transtornos mentais há o crescimento da prescrição de psicofármacos, podendo indicar uma relação entre a ideia de cura e supressão de sintomas e entre psiquiatria e farmacologia. Nesse sentido, E2 comenta: “é assim, o tempo todo assim, agora falando bem pessoalmente, eu tento desmedicalizar essa demanda, quando chega né, assim, eu entendo que pode ser importante o uso da medicação, sim, principalmente pra diminuir os efeitos da abstinência, sabe, “quando eu paro de usar drogas eu fico muito agressivo, eu fico muito [...] eu não durmo”. Então entrar pontualmente nesse momento para ele conseguir manter aquela abstinência, então assim, pontualmente eu acho importante nessa coisa da abstinência [...]” (E2).

Esse burocrata destaca a importância do uso de medicamentos em situações específicas, que estão ligadas, principalmente, ao alívio de sintomas imediatos de cessação de uso de alguma outra droga, como “agressividade” e “insônia”. No entanto, ressalta a importância de ser essa uma prática pontual, para alguns casos, favorecendo a “desmedicalização”. Mas o que pode ser visto, no entanto, é que a maior parte dos pacientes faz uso dos psicotrópicos, como ressaltado pelo próprio E2.

Segundo Vargas (2001), é curioso o fato de que a terapia com “drogas” tenha aumentado justamente no que se refere ao controle dos sintomas e eliminação da “dor”, experiência circunscrita em complexidade e carregada de sentidos subjetivos. Zanello, Fonseca e Romero (2011) ressaltam que há uma tendência dentro da Psiquiatria Biológica de se pensar a loucura como doença mental, algo que ocorre apenas no cérebro do indivíduo. O discurso do sujeito passa a ser desvalorizado, priorizando-se somente os sinais e sintomas. O medicamento seria uma possibilidade quase exclusiva e privilegiada de tratamento.

Há, no entanto, uma força quanto ao discurso da necessidade e importância dos psicotrópicos no cuidado ao usuário e, embora ponderem a “desmedicalização”, em situações específicas, como “recaídas”, “crises”, “conflitos”, lançam mão de uma pergunta ouvida diversas vezes na pesquisa: “você está tomando seu remédio?”. Essa frase remete a uma relação de causalidade inquietante, ao pensarmos que se trata de um serviço de abordagem psicossocial, pois, como afirmam Zanello, Fonseca e Romero (2011, p. 637), “[...] faz-se premente sublinhar a necessidade de ascender aos níveis intersubjetivo e cultural, nos quais o paciente se encontra, e não somente diagnosticar e dar remédio”.

Um dos pressupostos da Atenção Psicossocial é a pertinência do trabalho em equipe e a visão desses múltiplos atores no cuidado ao usuário de álcool e outras drogas. Todavia, o que se observa é um caráter biomédico hegemônico, com predomínio da valorização da terapia medicamentosa em detrimento das demais. Os dados de campo destacam que há uma relação de complementariedade, mas, nesse caso, não são os medicamentos que complementam as demais estratégias terapêuticas utilizadas, e sim o contrário, ou seja, as demais terapias são um complemento ao essencial: o uso de medicamentos. Na fala de outro burocrata: “Eu acho, penso, que nem tudo é medicação, mas na dependência química é necessária a medicação, mas depois tem que fazer esse desmame dessa medicação, né?! Porque quando o paciente já está em abstinência, já tá conseguindo controlar o impulso pra droga, essa compulsão, a gente já pode começar ir desmamando, né [...] vai desmamando [...] mesmo porque eles questionam muito: “Eu saio de uma droga para entrar em outra?” A gente dá é um olhar, eu dou sempre um olhar diferente. Não é sair de uma droga para entrar em outra. O remédio não vai te deixar dependente, só vai te deixar dependente se você começar a tomar por sua conta. Mas como você é monitorado pelo médico, acompanhado pelo médico, ele não vai deixar você dependente porque daqui a pouco o médico vai estar desmamando a medicação. Ah, não quero tomar o remédio porque vai me deixar brocha, mas é necessário, melhor você ficar brocha por um período do que a vida toda. Entendeu? Porque o álcool vai fazer, ou a cocaína, daqui a pouco vai fazer com que você perca seus estímulos, entendeu? Então eu acho importante a medicação. Mas desde que tenhamos um trabalho de equipe. Quando o médico dá em excesso eu questiono” (E3 – Assistente Social).

Embora a premissa “trocar uma droga por outra” surja com frequência no discurso dos burocratas entrevistados, a fala vem sempre seguida do contra-argumento de que, embora exista sim essa troca, o uso dos medicamentos será acompanhado por um profissional, que indicará uma dose, o período correto de consumo e a hora de suspender o uso. Isso quer dizer que a utilização das drogas prescritas passa pelo poder biomédico (VOLCOV, 2017), o que acaba por legitimar esse uso e torná-lo mais “aceitável” do que o de outras drogas. A fala denota a ideia de que, embora as drogas lícitas e ilícitas possam causar efeitos adversos, o uso das substâncias prescritas é apresentado como aceitável por possibilitar uma espécie de controle, enquanto as drogas ilícitas não. Essa perspectiva de controle se inscreve na lógica da biopolítica e adestramento dos corpos de Foucault (1988).

Vargas (2001) nos leva à reflexão sobre o poder investido à biomedicina, enquanto representante do discurso científico, o que acaba por respaldar suas práticas. Na fala de outro burocrata, há um destaque para a necessidade de se alcançar um “equilíbrio”, para que a droga prescrita não se torne também alvo de um uso considerado “abusivo” ou “inadequado”.

Nesse ponto, questiona-se: “e você acha que esse equilíbrio é alcançado?”. E como resposta: “na maioria das vezes não”, completando a fala ao dizer que “Eu observo que há necessidade, num primeiro momento, dessa medicação, isso é de suma importância para [...] porque o paciente quando ele vem em um primeiro momento, quando ele tá em uso compulsivo, ou está [...] nesse processo da dependência, nesse uso, ele tá iniciando o tratamento, eu vejo a necessidade da medicação para retirar essa ansiedade, porque o paciente estando em abstinência ele vai ficar muito ansioso, vai ficar muito agitado, vai ter insônia, então, assim, nesse primeiro momento eu vejo a necessidade dessa medicação. Mas isso também tem que ser equilibrado. Não adianta também, ah, vou super dosar e dopar o paciente, não, então tudo tem que ter esse controle e uma avaliação. [...] Mas a gente observa que acaba, né, paciente ficando com essas medicações um longo período, porque acaba né [...] se tornando né, troca uma dependência por outra. Falta esse equilíbrio né, de a gente conseguir chegar nesse equilíbrio aí (E4 - Enfermeiro).

Ferrazza, Rocha e Luzio (2013, p. 256), em pesquisa sobre a prescrição de psicotrópicos em um serviço público de saúde mental, apontam que entre os sintomas constantes nos prontuários dos usuários do serviço os que mais aparecem são: “ansiedade” (69%), “angústia” (63%), “nervosismo” (62%) e “irritabilidade” (55%). Apesar de não ter sido desenvolvido em um dispositivo específico de álcool e drogas e sim em um ambulatório de saúde mental, os sintomas com maior frequência relatados coadunam com aqueles apresentados pelos profissionais entrevistados no CAPSad III, frente às situações de abstinência.

Chama atenção a problematização feita por Birman (2014) no sentido de se pensar as relações causais entre o aumento da utilização de psicotrópicos e crescimento dos transtornos psiquiátricos. Seria o crescimento do consumo de medicamentos causado por um aumento dos transtornos psiquiátricos, ou tal processo estaria ligado à “psiquiatrização da vida”? (p. 36). No estudo de Ferrazza, Rocha e Luzio (2013), os dados apontam que oito em cada dez usuários atendidos pela psiquiatria não obtiveram uma determinação diagnóstica, mas todos receberam uma prescrição psicotrópica. Sobre essa questão, Dunker (2015, p. 28) considera que “os chamados ‘ajustes de medicação’ oscilam até que a medicação que se mostre eficaz determine, retrospectivamente, o diagnóstico que a justifica”.

Por fim, a argumentação de Dunker (2015) possibilita o retorno às indagações feitas por Rui (2014), no sentido de se pensar o novo modelo de gestão nos CAPS, baseado nas contenções químicas. O primeiro autor apresenta um cenário que coaduna com os achados dessa pesquisa de campo: “crescimento generalizado da medicalização e das intervenções farmacológicas no âmbito da saúde mental [...]. [...] substituição das práticas clínicas baseadas na palavra em favor da administração massiva de medicação” (p. 28). Neste sentido, chama a atenção para uma nova forma de gestão do mal-estar, que se centra na produção de espaços de anomia e exclusão, não valorizando a escuta qualificada, o vínculo, a responsabilização, que são pilares para a integralidade do cuidado e estabelecimento de ações biopsicossociais.

Considerações finais

Não se buscou, nesse artigo, produzir generalizações em torno da execução da política de saúde mental vigente, em função, inclusive, do escopo metodológico da investigação, que não possui tal alcance. Ao contrário, a intenção foi contribuir para o aperfeiçoamento de tal política, produzindo reflexões que embasem novas formas de cuidado que coadunem com a perspectiva antimanicomial. Os argumentos construídos pelos burocratas de nível de rua apontam para uma incômoda e crescente medicamentalização, ainda que sob a égide de uma controvérsia sobre o estatuto da droga e do medicamento.

A operacionalização do trabalho está fortemente centrada na utilização de medicamentos, relegando o uso das tecnologias leves a um plano de cuidado complementar e não principal. Os psicofármacos aparecem como elemento central na terapêutica, tanto por demanda dos usuários quanto no processo de argumentação dos burocratas. Porém, tais discursos são por vezes paradoxais: ao mesmo tempo em que se exalta a necessidade de perspectivas desmedicalizantes, informando que os fármacos somente são utilizados nos casos estritamente necessários, as práticas cotidianas demonstram exatamente o contrário.

Finalmente, problematizando os questionamentos feitos por Rui (2014, p. 89) em relação a um novo modelo de gestão em saúde mental baseado nas contenções químicas, pode-se afirmar que o processo de “medicalização e psiquiatrização de comportamentos” (VOLCOV, 2017, p. 8) perpassa a sociedade como um todo e tem sua tônica respaldada pela atuação dos burocratas de nível de rua, que, através do discurso científico, endossam a importância de tal prática como ferramenta de cuidado às pessoas que usam álcool e outras drogas.

Material suplementar
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Notas
Notas
[1] O DSM (Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders) foi publicado pela APA (Associação Americana de Psiquiatria) em 1952, com o objetivo de ser utilizado como instrumento científico para elaboração de diagnósticos psiquiátricos.
Tabela 1
Profissionais da Unidade e Número de Entrevistados

elaborado pelos autores.
Tabela 2
“Grupos” desenvolvidos na unidade pesquisada

elaborado pelos autores.
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