Resumo: Práticas de auditoria e valores como transparência e accountability tornam-se cada vez mais centrais nos processos de governança. Alguns teóricos das ciências sociais atribuem isto à chamada governamentalidade neoliberal, em que uma “cultura de auditoria” passa a gerenciar não somente as formas de governo como também a conduta humana. Nosso objetivo é propor um diálogo crítico entre essa perspectiva e a concepção bourdieusiana de campos de poder, com o objetivo de compreender os valores da auditoria a partir do cotidiano dos atores envolvidos. Neste artigo, analisamos um caso empírico de experiência local de auditoria, em uma Controladoria Geral do Estado. Defendemos que é necessário analisar as formas de tecnologias de governo a partir do cotidiano das burocracias e das disputas entre os diversos campos de poder, tensionando os ideais técnicos e os valores morais e políticos.
Palavras-chave:BurocraciaBurocracia,MoralidadeMoralidade,AuditoresAuditores.
Abstract: Audit practices and values such as transparency and accountability become increasingly central to governance processes. Some social science theorists attribute this to so-called neoliberal governmentality, in which an “audit culture” now manages not only forms of government but also human conduct. Our objective is to propose a critical dialogue between this perspective and the Bourdieusian conception of power fields, with the objective of understanding the values of auditing from the daily life of the actors involved. In this article, we analyze an empirical case of local audit experience, in a State Comptroller’s Office. We argue that it is necessary to analyze the forms of government technologies from the daily routine of bureaucracies and disputes between the various fields of power, stressing technical ideals and moral and political values.
Keywords: Bureaucracy, Morality, Auditors.
Artigos
Os valores da auditoria no Estado: um estudo de caso de uma Controladoria Geral do Estado
The values of the audit in the State: A case study of a state comptroller general

Recepção: 25 Agosto 2018
Aprovação: 05 Dezembro 2018
Se, por um lado, o Estado se torna cada vez mais complexo, especializado e burocrático, por outro lado, fortalecem-se os ideais de transparência e responsabilização, que trariam uma maior visibilidade das ações estatais e o fortalecimento de formas de controle, as quais fariam com que o Estado funcionasse de forma mais eficiente e mais justa. De modo geral, a opinião pública passa a tratar a questão da transparência e accountability como algo central para as práticas de boa governança.
Nesse contexto, práticas de auditoria emergem como um dos principais instrumentos de governança. Alguns autores falam na “explosão”[1] e no desenvolvimento de uma “cultura de auditoria” que extravasa o mundo das finanças e passa a dominar as mais diversas esferas das sociedades (STRATHERN, 2000; SHORE, 2009; POWER, 1994; SHORE; WRIGHT, 2015; KIPNIS, 2008). De acordo com Brito (2017):
A necessidade de abertura e conhecimento das ações do governo a partir da disponibilização de informações que caracteriza o ideal das políticas de transparência possui uma clara afinidade com o fortalecimento de uma sociedade de auditoria (Power, 1999). Na base dessa associação entre transparência e cultura de auditoria está a ascensão de um Estado regulatório (Heald, 2006, p. 38), movido pela necessidade de controle dos riscos, vigilância e equilíbrio de informações - num modelo derivado da lógica de mercado e das tentativas de construção de um ambiente de igualdade entre os jogadores. A ordenação desses elementos num conjunto de instrumentos para governar e, especificamente, a ampliação de um corpo burocrático encarregado de produzir a abertura do Estado é relativamente recente. (BRITO, 2017, p. 3-4).
Cultura de auditoria é um termo criado por antropólogos e sociólogos para descrever uma condição em que técnicas e princípios modernos de auditoria financeira passam a dominar outros contextos, como por exemplo as universidades e órgãos públicos estatais (SHORE, 2009). Além disso, o que é enfatizado por esses autores é que as técnicas e valores da auditoria, tais como prestação de contas, accountability, medições, ranqueamento e eficiência, passam a organizar e gerenciar não somente as formas de governo como também a conduta humana (relações sociais, hábitos e práticas). Portanto, para esses autores, os sistemas de auditoria e responsabilização estão construindo novas formas de governança hegemônica[2].
Todavia, em se tratando de cultura de auditoria, os argumentos defendidos por esses teóricos (que se fundamentam na concepção de governamentalidade de Foucault) não são consenso no campo acadêmico. Uma perspectiva diversa sobre a cultura de auditoria é apresentada por Kipnis (2008), que desenvolve uma crítica à concepção de governamentalidade neoliberal como explicação de processos contemporâneos de governança. A partir de uma análise comparativa de diferentes casos de auditoria na China e nos EUA, Kipnis percebeu que, apesar desses processos de auditoria apresentarem muitas semelhanças entre si, por vezes, as avaliações ideológicas das pessoas envolvidas nos processos de auditoria (para quem as auditorias de desempenho eram tidas como “socialistas”) divergiam da análise de alguns antropólogos, que as percebiam como uma forma de governamentalidade neoliberal. É, a partir da percepção dessa divergência, que Kipnis argumenta que práticas de auditoria de desempenho são melhor vistas como técnicas para manipular relações sociais locais do que como “regimes de verdade”. De acordo com ele, é através dessas técnicas que os Estados são projetados.
Além destas perspectivas, traremos uma outra perspectiva que eu acredito ser bastante relevante para refletirmos sobre o Estado, a burocracia e os sistemas de auditoria, que é apresentada por Bourdieu (2014). De acordo com Bourdieu, o poder simbólico é uma dimensão fundamental do Estado, uma espécie de crença ou ilusão bem fundamentada, e é através das estruturas cognitivas e de consensos sobre o sentido do mundo que o Estado organiza a vida em sociedade. Portanto, o Estado é compreendido como uma “ficção coletiva” que age sobre os indivíduos e que é o resultado de um conjunto de disputas.
Nesse sentido, podemos concordar com Brito e Schuch (2017) quando argumentam que:
O oficial é o resultado de interesses e disputas de distintos agentes, no caso brasileiro, diferenças entre os sistemas federal e estadual, o objeto das políticas, carreiras dos auditores, níveis de participação da sociedade civil, por exemplo, geram disputas capazes de modificar os sentidos de auditorias e avaliações. (BRITO; SCHUCH, 2017, p. 18).
Se, de modo geral, a teoria de Bourdieu o afasta dos teóricos da governamentalidade, o exercício bourdieusiano de desnaturalizar o sentido de Estado, entendendo-o como resultado de disputas e projeções de valores morais, acaba por aproximá-lo de algumas perspectivas que também estão pensando o Estado e as tecnologias de governo, abordados neste artigo (GUPTA, 2012; KIPNIS, 2008).
Apesar de saber das dificuldades em acessar o ambiente do trabalho interno da burocracia[3], minha intenção é compreender como os valores enfatizados pela cultura de auditoria tornam-se efetivamente parte da rotina da burocracia, ordenando o cotidiano das instituições e animando as disputas dentro do campo da burocracia estatal.
Adotaremos uma perspectiva teórica e metodológica ancorada em uma sociologia e antropologia da moral que desconstrói a ideia de Estado como uma entidade unificada e fetichizada e a pensa como um objeto cultural (FASSIN, 2015; GUPTA, 2012; BOURDIEU, 2014). Pretendemos contribuir para uma sociologia e antropologia da moral na medida em que iremos analisar as práticas de auditoria a partir de seus contextos, enfatizando os jogos de interação e os campos de disputas e tensionando os ideais técnicos e os valores morais a partir da experiência local de auditores de uma Controladoria Geral do Estado.
Nos últimos anos, no Brasil, a corrupção tem sido considerada como um dos principais problemas do país, principalmente com as denúncias de desvios do dinheiro público feitas pela mídia nacional. Diante disso, houve algumas mudanças nos processos de auditoria pública, em que foram criados alguns instrumentos de combate à corrupção - como a Lei de Responsabilidade Fiscal (de 2000) e a Lei da Transparência (2009). Com a implementação destas leis, todos os órgãos públicos são obrigados a prestar certas informações ao público. Desta forma, órgãos federais, estaduais e municipais foram criados para cumprir a função de auditoria das contas públicas, incremento da transparência e combate à corrupção, tais como a Controladoria-Geral da União (criada em 2003 e transformada em 2016 no Ministério da Transparência e Controladoria-Geral da União), as Controladorias-Gerais dos Estados e as Controladorias-Gerais dos municípios.
Uma Controladoria Geral do Estado se intitula oficialmente como um órgão autônomo, vinculado diretamente ao Governo do Estado e como instituição permanente e essencial ao controle interno do poder executivo estadual. Sua função consiste nas atividades de auditoria pública, de correição, de prevenção e combate à corrupção, de ouvidoria, de incremento da transparência da gestão no âmbito da administração pública e de proteção do patrimônio público.
Nossa escolha metodológica de pesquisar sobre os valores da auditoria no Estado no âmbito de uma Controladoria Geral do Estado deveu-se ao fato de este ser um órgão público que atua com práticas de auditoria interna a nível local e que possui, em seu quadro efetivo de servidores, uma quantidade de auditores ativos na função, o que me permitiria estabelecer um panorama das especificidades locais das práticas e valores da auditoria no Estado. Atualmente, a CGE possui um total de 70 auditores em seu quadro de servidores, destes, 40 estão exercendo a função e são todos concursados.
O argumento discutido neste artigo se baseia nas vivências de uma pesquisa de campo, de natureza qualitativa, sobre os valores morais da auditoria pública. Em nossa experiência de campo, realizamos um total de 10 entrevistas com auditores de um órgão de controle interno estadual (uma Controladoria Geral do Estado). A maioria das entrevistas durou cerca de 30 a 50 minutos e as questões relacionavam-se a percepção sobre a transparência e o combate à corrupção, a rotina de trabalho e os princípios éticos do trabalho de auditoria. Em todas as entrevistas, me foi permitido realizar a gravação, no entanto, os nomes dos auditores não foram identificados.
Irei analisar os valores da auditoria como uma forma de experiência liberal e as disputas dentro do campo burocrático como “disposições duradouras de desinteresse” (BOURDIEU, 2011, p. 152). Para melhor fundamentar a nossa análise, na primeira seção deste artigo, refletiremos sobre a relação entre capitalismo e valores a partir do argumento de Boltanski e Chiapello sobre as formas morais de engajamento na ordem capitalista; depois, iremos analisar a cultura de auditoria e os processos de governança a partir da perspectiva de autores que estão pensando a relação entre capitalismo e valores através de uma reflexão sobre as novas formas de governamentalidade (STRATHERN, 2000; SHORE, 2009; POWER, 1994; SHORE; WRIGHT, 2015); e, em seguida, iremos colocar essa perspectiva em um diálogo crítico com a perspectiva de Bourdieu (2014), sua crítica da visão idealista do Estado e sua teoria dos campos de poder. Na segunda seção, apresentaremos um caso de uma experiência local de auditoria que nos permite comprovar empiricamente a relação dinâmica entre práticas de auditoria e campos de poder.
Mesmo ciente da dificuldade em realizar um debate entre perspectivas que por vezes entram em conflito, sua justificativa se dá na medida em que pretendo formar uma base teórica que me permita, a partir de um modelo de experiência etnográfico, me aproximar do cotidiano das formas de burocracia e sistemas de auditoria, observando suas rotinas e realizando entrevistas, com o objetivo de desenvolver insights que possam contribuir para a compreensão dos problemas e ambiguidades próprios da auditoria. Para Brito (2017):
Esse modelo que permite enxergar frações da burocracia envolvidas numa economia moral onde se disputa e se produz os sentidos universais (de desinteresse) precisa se aproximar dos trabalhos antropológicos recentes que buscam compreender as intercessões entre poder e moralidades nas rotinas de produção do Estado e da ordem (Gupta, 2012; Hull, 2012; Fassin, 2013; Shore, 2009). Esse diálogo é interessante porque seu olhar etnográfico permite uma abertura no modelo teórico do campo burocrático e, especialmente, confronta as lógicas de pesquisa que assumem que o Estado é aquilo que ele projeta, que sua prática é uma simples confirmação dos projetos modernistas de ordenamento e conquista (Scott). (BRITO, 2017, p. 6).
No caso estudado, ficou demonstrado que para entender os valores da auditoria no Estado é preciso analisar o Estado e as formas de tecnologias de governo a partir do cotidiano das burocracias, dos seus valores e das disputas entre os diversos atores sociais. Na conclusão, enfatizamos a importância de realizar um tensionamento entre os ideais técnicos da auditoria e os valores morais, desnaturalizando a ideia de Estado como uma entidade unificada, e destacamos a presença de conflitos e disputas que animam o projeto de ordenação de valores das práticas de auditoria no âmbito do Estado.
Antes de continuarmos o debate, é preciso deixar claro que o objetivo deste artigo não é observar o funcionamento da burocracia, nem indicar o sucesso ou fracasso dos sistemas de auditoria, mas saber como os valores da auditoria se tornam efetivamente parte do cotidiano da burocracia. Dito isso, é necessário indicar como transformações que ocorreram nas sociedades capitalistas contemporâneas incidiram sobre as práticas burocráticas do Estado e sobre as normas e valores compartilhados.
No livro “O novo espírito do capitalismo”, Luc Boltanski e Ève Chiapello retomam o debate weberiano sobre as formas morais de engajamento na ordem capitalista, presente na clássica obra de Weber “A ética protestante e o espírito do capitalismo” (WEBER, 2004), e avançam no sentido de abarcar a discussão acerca da relação entre o interesse individual e o bem comum. O objetivo dos autores é desvelar os fatores que produzem e justificam a adesão ao capitalismo. Para isso, utilizam a ideia de “espírito do capitalismo”.
De acordo com esses autores, após a crise enfrentada pela reestruturação do capitalismo nos anos 60 e 70 e mesmo depois que “suas forças conseguiram se libertar em alguns anos de grande parte dos entraves acumulados ao longo do século passado” (BOLTANSKI; CHIAPELLO, 2009, p. 28), o capitalismo tendeu a renovar o seu “espírito”. Para não enfrentar novas crises, era necessária uma mudança de valores para “dar razões de esperança a todos aqueles cujo empenho é necessário ao funcionamento do sistema como um todo” (BOLTANSKI; CHIAPELLO, 2009, p. 28), ou seja, foi preciso que o capitalismo renovasse suas bases ideológicas. É esse novo conjunto de crenças e valores que dará respaldo e adesão a um estilo de vida que continue sendo favorável à manutenção do capitalismo. Neste sentido, o “espírito do capitalismo” seria “uma ideologia que justifica o engajamento no capitalismo” (BOLTANSKI; CHIAPELLO, 2009, p. 39).
Eles analisam as transformações que ocorreram no capitalismo nos últimos tempos, bem como as mudanças ideológicas que as acompanham, com o objetivo de apreender “a gramática moral do nosso tempo”. Tais transformações referem-se às mudanças nas formas de acumulação e trabalho, que passam a ser conhecidas como “acumulação flexível”[4]. De acordo com eles, as críticas ao sistema capitalista e as reivindicações de autonomia e autorrealização lançadas pelo movimento conhecido como “maio de 68” foram incorporadas pelo capitalismo fordista em crise e utilizadas na construção do “novo espírito do capitalismo”, espírito este que se contrapõe ao modelo industrial-burocrático e se caracteriza pela flexibilidade, pelo espírito empresarial das redes, pelo regime de projetos e pelo esmorecimento da crítica ao capitalismo.
Todavia, para Boltanski e Chiapello, “injunções sistêmicas” de bases políticas, econômicas ou religiosas não bastam, por si só, para engajar os atores a uma ordem econômica (2009, p. 41), são necessárias representações e justificativas que apresentem essa ordem como aceitável e desejável. Nesse sentido, o “espírito do capitalismo”, isto é, as crenças que justificam e respaldam uma determinada ordem se traduzem em práticas que compreendem princípios de justiça. Para eles, uma ordem não se impõe sem que haja elementos mínimos de convencimento e consentimento aos quais os atores aderem, não apenas em termos de ganhos individuais (benefícios para si e para os filhos, autorrealização), mas também coletivos, relativos ao bem comum (princípios de justiça e valores universais).
Pensar o Estado e a burocracia neste novo quadro requer compreender que a burocracia não se apresenta mais como um objeto frio e distante[5], mas que, através dos ideais de transparência, responsabilização e combate à corrupção, isso muda: o burocrata é alguém que está lutando pelo bem de todos, que está construindo um mundo completamente novo, o mundo da transparência. Ou seja, não se trata “apenas” de uma racionalidade instrumental, mas uma racionalidade que também define regimes morais, certas normas de vida.
Neste artigo, pretendo analisar a experiência de engajamento dos atores nas práticas de combate à corrupção por meio das auditorias dos gastos públicos no âmbito do Estado como uma forma de experiência liberal. Meu argumento é de que os valores da auditoria projetam um ideal ético capaz de dotar de sentidos, ou seja, de uma dimensão moral (construção de sentidos sobre o que é uma boa sociedade, como se deve agir) uma prática que de outra forma seria totalmente desencantada, instrumental.
Alguns antropólogos (STRATHERN, 2000; SHORE, 2009) têm apontado o fato de que os sistemas de auditoria têm se tornado, cada vez mais, uma tecnologia disciplinar. Essa perspectiva parte da ideia de que o neoliberalismo, como racionalidade e como um sistema normativo, estendeu sua lógica a todas as esferas da sociedade, tornando-se uma lógica normativa global (DARDOT; LAVAL, 2016, p. 7). A novidade, apontada por esses autores, baseada na ideia de governamentalidade de Foucault (2006), é que, além dos fatores econômicos, sociais e políticos, o neoliberalismo age na própria subjetividade dos indivíduos. Segundo essa perspectiva, o neoliberalismo produz certos tipos de relações sociais, maneiras de viver e subjetividades, através de um conjunto de discursos, práticas e dispositivos, alinhados com a lógica da concorrência (DARDOT; LAVAL, 2016). Além disso, ao invés de recorrer à disciplina e ao autoritarismo para conseguir certa adesão dos indivíduos, essa nova forma de poder visa um autogoverno dos indivíduos.
Portanto, é preciso mobilizar certos valores, para que os indivíduos possam conformar-se por si mesmo às normas coerentes com a lógica do capitalismo neoliberal. Este sistema de normas está profundamente arraigado nas “práticas governamentais, nas políticas institucionais, nos estilos gerenciais” (DARDOT; LAVAL, 2016, p. 30), produzindo uma subjetividade contábil e uma lógica de competição entre os indivíduos.
Uma importante vertente da antropologia da moral (GUPTA, 2012; STRATHERN, 2000; SHORE, 2009; POWER, 1994; SHORE; WRIGHT, 2015) ressalta a importância da moralidade para entender os modos como os Estados legitimam suas práticas. Esses teóricos buscam compreender como as tecnologias de poder, a exemplo dos sistemas de auditoria, incidem sobre a construção de projeções simbólicas e normativas que legitimam formas de poder.
De acordo com esses teóricos, a necessidade de mais controle, que está associada à cultura de auditoria, deriva da ideia de que vivemos em uma “sociedade de risco” e que por isso precisamos de tecnologias que produzam segurança e controle. O argumento que defende a necessidade do fortalecimento de uma cultura de auditoria se baseia na ideia de que houve, nos últimos tempos, uma maior demanda por mais transparência e prestação de contas, para que se estabelecesse a confiança pública nos sistemas de governo. É nesse contexto que as práticas de auditoria e controle se legitimam, sobretudo, na ideia de que elas atendem a uma demanda da sociedade e que, portanto, são funcionais ao desenvolvimento da sociedade.
Cris Shore (2009) critica essa ideia pois, para ele, as práticas de auditoria e prestação de contas não são neutras como querem parecer, destinadas a promover “transparência” ou eficiência, mas tecnologias disciplinares destinadas a instilar novas normas de conduta, que modificam valores e práticas e limitam a autonomia dos sujeitos. O conceito de cultura de auditoria reforça a ideia de que, nas sociedades neoliberais, as práticas de auditoria estão modificando as instituições públicas e criando novas normas de comportamento, baseadas nas ideias de eficiência, eficácia, de medição científica, controle, ranqueamento etc. Esses processos refletem a lógica do liberalismo econômico atrelada às tecnologias da burocracia moderna. De acordo com Shore (2009):
O alastramento da auditoria para diferentes cenários como hospitais, universidades, companhias de água e departamentos do governo não é simplesmente uma resposta óbvia aos problemas de governança e responsabilidade (accountability), antes, é uma questão de política de regulamentação e controle gerencial. (SHORE, 2009, p. 48).
Michael Power (1994) entende a auditoria como uma “forma peculiar de alquimia”, que transforma os auditados em auditáveis produzindo um “conforto regulatório”. Essa “forma peculiar de alquimia” teria ainda o poder de produzir qualidade, ou seja, garantir uma série de valores como eficiência, independência, visibilidade e racionalidade. Marilyn Strathern (2000) também reafirma a necessidade de refletir sobre a cultura de auditoria a partir de sua dimensão moral, pois, para ela, o mundo da auditoria é o lugar em que “o financeiro e o moral” se encontram.
O objetivo destes autores é refletir sobre o avanço dessa cultura de auditoria. De que forma esse conjunto de valores são incorporados e modificam subjetividades? E como são praticados? A ideia é entender como essas formas de organização, que se entendem virtuosas, produzem novas tecnologias de controle.
Apesar do argumento levantado por esses autores ser de grande importância para compreendermos melhor a relação entre burocracia, controle e sistemas de auditoria, acreditamos ser necessário também compreender as disputas dentro do campo burocrático como “disposições duradouras de desinteresse”. De acordo com Brito (2017, p. 3), ao emular um sentido de virtude e desinteresse para parcelas da burocracia, a ficção da transparência se torna um importante capital nas disputas sobre a “divisão do trabalho da dominação”. Portanto, iremos apresentar o argumento bourdieusiano de formação de um campo burocrático, no qual os atores se movem através do “interesse pelo desinteresse”, lançando luz aos interesses que animam as disputas dentro do campo burocrático.
Bourdieu (2014) em seu livro “Sobre o Estado” nos traz um ponto de vista bastante frutífero que nos ajudará a refletir sobre as práticas de auditoria no âmbito do Estado. Sua concepção de Estado está ancorada na ideia do espaço social como formado por diferentes campos, com seus agentes e lógicas próprias concorrendo entre si. Além de entender o Estado como lugar de elaboração do oficial, do bem público e do universal, Bourdieu aponta que funcionários e políticos também estão submetidos às obrigações próprias ao campo administrativo e que as lutas que definem os processos de universalização são acompanhadas de lutas entre agentes sociais pelo monopólio do acesso ao universal. Estas lutas se dão entre agentes do mesmo campo e entre agentes de diferentes campos (jurídico, político, econômico, intelectual etc.).
Bourdieu incorpora o poder simbólico como uma dimensão fundamental do Estado e o define como uma forma de crença, uma “ilusão bem fundamentada” que tem o poder de organizar a vida social através da imposição de estruturas cognitivas e de consensos sobre o sentido do mundo. Bourdieu define o Estado como produto de uma crença coletiva e aponta que, para compreender o trabalho de produção dessa representação e de fundamentação dessa crença, é necessário analisar o Estado como uma fonte de poder simbólico, isto é, como local em que se produzem princípios de representação legítima do mundo social.
Para compreender os fundamentos dessa crença e dos mecanismos que promovem o seu reconhecimento, Bourdieu adota uma postura que enfoca a análise de medidas e ações do Estado, com o intuito de esclarecer o mecanismo que dota os agentes, atos e efeitos do Estado de seu caráter oficial, público e universal. Para Bourdieu, é na “crença organizada” que se fundamenta a lógica de constituição do poder simbólico do Estado. Para ele, um ato de Estado é um “ato coletivo”, realizado por pessoas reconhecidas como oficiais. Os membros do Estado são “agentes particulares portadores de interesses particulares [...]. Esses interesses particulares trabalham numa lógica tal que vão conseguir essa espécie de alquimia que transformará o particular em universal”. (BOURDIEU, 2014, p. 67).
Ao analisar o campo burocrático, Bourdieu aponta o fato de que as disputas dentro do campo burocrático se dão pelo “reconhecimento universal do reconhecimento do universal” ou pelo “interesse pelo desinteresse”. A submissão ao universal se traduz em uma conduta virtuosa. Nesse sentido, existe um interesse, um lucro em disputar quem está mais a serviço do universal, dos interesses coletivos e não de interesses particulares, em troca de reconhecimento ou ganhos simbólicos.
Partindo da teoria de Bourdieu, é preciso entender como valores e projeções se efetivam no cotidiano de um órgão de controle estadual, sobretudo, tendo como horizonte a ideia de que os sistemas de auditoria se formam em campos de disputas. Na próxima seção, irei apresentar a minha experiência em um órgão de controle estadual, apresentando alguns elementos dos valores que ordenam suas práticas e procurando demonstrar o quanto as ambiguidades e disputas presentes nos processos de auditoria revelam lógicas de poder, em que valores morais e disputas políticas se sobressaem, minando a crença na ideia de tecnologias de controle politicamente neutras.
Minha primeira visita à Controladoria Geral do Estado foi realizada em novembro de 2017. Me apresentei como pesquisadora da universidade, disse que estava realizando pesquisa de campo para a construção da minha tese de doutorado sobre os valores da auditoria (como transparência e combate à corrupção) e que gostaria de conhecer o ambiente da Controladoria, observar a rotina de trabalho e conversar com alguns auditores.
Minha expectativa era encontrar um ambiente formal, frio, que fizesse jus à visão que se tem do caráter técnico do trabalho de auditoria. Não tive dificuldade em acessar o prédio, me identifiquei na recepção e logo fui direcionada para a sala da chefe de gabinete do secretário geral. Fui muito bem recebida pelas funcionárias e fiz algumas perguntas sobre como funcionava o trabalho dos auditores, quantos auditores trabalham atualmente na Controladoria, quais os tipos de processos mais comuns, como era a relação com o público, como se realizavam as fiscalizações e disse que gostaria de poder voltar algumas vezes para conhecer melhor o trabalho dos auditores e conversar com eles. Após revelar quais eram as minhas intenções, prontamente fui avisada de que não seria possível que eu frequentasse rotineiramente o ambiente, pois os auditores trabalhavam com relatórios e dados sigilosos, que exigiam uma certa discrição, e não iriam gostar de ter uma pessoa de fora observando[6]. Ademais, a CGE lidava especificamente com questões técnicas, burocráticas, com o controle interno, e não com investigações. Seu trabalho era uma “atividade meio e não uma atividade fim”, ou seja, que os auditores tratam de questões e processos técnicos e não diretamente com o combate à corrupção. Confesso que o impacto desse primeiro contato foi um pouco desolador. O quadro que me foi passado é de que aquele lugar não tinha nada a ver com o que eu buscava, que seria inútil insistir, já que ali eles não lidavam com valores, nem com transparência e combate à corrupção, que estes são consequências do trabalho realizado ali, mas não seu objetivo principal, e que, se eu quisesse conhecer um pouco mais sobre o trabalho de transparência que o Estado realizava, eu poderia acessar o Portal da Transparência, que está tudo disponível lá, os processos, editais, licitações, todas as informações estão lá disponíveis.
Como percebi que não obteria autorização para frequentar e circular pelo local tão facilmente, perguntei se poderia realizar entrevistas com alguns auditores e fui orientada a deixar os meus dados que eles entrariam em contato comigo para agendar uma reunião com o secretário geral para que ele pudesse me autorizar a fazer as entrevistas e que, quando eu retornasse, trouxesse uma carta de apresentação da universidade.
Alguns dias depois, consegui agendar uma reunião com o gerente de auditoria, que me perguntou quantas entrevistas eu gostaria de realizar. Eu respondi que gostaria de entrevistar pelo menos 15 auditores (pensei que este seria um número a que não haveria recusa e que me permitiria pelo menos frequentar um pouco o ambiente, conversar com os auditores, observar os valores, as disputas e ambiguidades presentes naquele lugar), porém, por problemas inerentes ao próprio campo, não consegui atingir esse número.
Ele disse que me enviaria por e-mail uma lista com o contato dos auditores para eu entrar em contato com eles e agendar as entrevistas, e que faria a seleção desses auditores de uma forma que tivesse na lista auditores mais antigos e mais novos na função, mas que eu já me preparasse, pois iria “encontrar de tudo”, principalmente um pessoal mais “desiludido”, mais “calejado”, pois geralmente os funcionários mais antigos têm uma visão mais pessimista da realidade, reclamam e tendem a “confundir um pouco as coisas”, tendem a “colocar seus sentimentos pessoais em jogo”, que até ele mesmo já se pegou fazendo isso no início, mas que um auditor tem que saber “deixar os seus juízos de valor de lado” e ser “neutro”. Recebi respostas de 5 auditores, mas só consegui agendar com uma auditora, a mais antiga. Os outros deram alguma desculpa, que estavam com a semana cheia, cheios de compromissos, mas que entrariam em contato para agendar. Mas eu imaginei que, quando estivesse lá fazendo a entrevista, seria mais fácil fazer contato com os outros auditores, observar o trabalho, enfim, que conseguiria entrar de alguma forma no mundo da auditoria.
A sala dos auditores fica no primeiro andar e é compartilhada entre os auditores, alguns outros funcionários que ocupam cargos comissionados e os gerentes. É uma sala impessoal, com paredes brancas, com algumas ilhas de mesas com computadores, armários, mas nada que possa identificar as pessoas que ali trabalham; tinha um aspecto bem neutro. Os auditores possuem uma carga horária flexível e trabalham em sistema de rodízio. Eles trabalham home office e dão plantão na Controladoria três vezes na semana, segundo os auditores, porque a sala é pequena e não comporta todos os auditores. Todavia, essa foi uma dificuldade enfrentada no decorrer da pesquisa, pois, em todas as visitas que fiz, as turmas de auditores eram diferentes, dificultando a possibilidade de construir algum tipo de vínculo com eles. Fiquei pensando até que ponto esse fato dificulta a criação de vínculos entre os próprios auditores.
Usei a tática de agendar com um auditor e, uma vez estando lá, tentava convencer algum outro auditor a me conceder entrevista. No início, percebi que eles ficavam um pouco hesitantes em participar, mas depois acabavam aceitando. Uma auditora, a mais antiga, me disse que lá era igual à “reunião de condomínio”, que sempre se marcavam reuniões, mas que quase ninguém participava. Os que aceitaram falar com mais facilidade foram os mais antigos, que sentiam uma maior necessidade de falar, de desabafar. Com o passar do tempo, as minhas visitas e a possibilidade de entrevistar os auditores foram ficando mais difíceis. Os auditores se esquivavam das entrevistas, sempre dando a desculpa de que estavam ocupados, que tinham que produzir os relatórios, que estavam com os prazos apertados e me passavam o número do telefone da sala da auditoria para que eu pudesse ligar e agendar diretamente com algum auditor para fazer entrevista. Este fato foi um pouco problemático para mim, pois imaginava que para eles seria mais fácil fazer uma dispensa por telefone. Dessa forma, em vez de me tornar mais familiarizada com os auditores, ocorreu exatamente o contrário, as portas foram se fechando e foi ficando cada vez mais difícil observar o cotidiano daquele lugar.
Pude perceber, ao longo das visitas, que há uma divergência sobre a relação que a Controladoria deveria manter com os outros órgãos de controle. Para os gerentes, cada um deveria exercer o seu papel e não se meter na competência do outro. Isso fica claro na fala de um gerente em que diz que, quando um outro órgão não tem gente com “expertise” para fazer o trabalho, eles cedem funcionários: “a gente empresta mão de obra, mão não é atribuição nossa, é atribuição deles”, ou ainda “há corrupção no Brasil porque as fronteiras dos órgãos é um passando do limite do outro, tem que definir claramente qual a competência de cada órgão”. Já para os auditores deveria haver uma maior cooperação e parceria entre os órgãos: “acho que as instituições tinham que estar mais próximas, fazendo tarefas conjuntas contra o crime organizado”.
De modo geral, as pessoas com quem conversei, principalmente os auditores que ocupavam algum cargo de chefia, desenhavam sempre, inicialmente, uma imagem da CGE e do trabalho do auditor como tendo um caráter técnico, que não teria nenhuma função valorativa. Eles diziam que o trabalho de auditoria não possui nenhum papel direto no enfrentamento à corrupção e que pensar isso é um equívoco que eles estão tentando desconstruir, pois a Controladoria não tem caráter investigativo e nem punitivo, mas que “trabalha no desenho de controle”, com controle interno, com prevenção de danos. Eles sempre relacionavam a metáfora de “um carro, em que é preciso fazer a manutenção das peças para evitar acidentes”, ou de “uma casa, em que é preciso pôr cadeados nas portas para evitar que seja assaltada”. Mas, por outro lado, no decorrer das entrevistas, acabavam por defender o aspecto normativo da auditoria, assumindo que o trabalho de auditoria tinha um escopo de “diálogo”, de “orientação”, em relação tanto à atuação dos gestores quanto à defesa dos interesses da sociedade. Alguns auditores até defendiam que a Controladoria é de “fundamental importância” no enfrentamento da corrupção, que está “na linha de frente”, e que eles contribuem muito com as “investigações” e com os “achados de auditoria”. Essa contradição ficou bem clara na fala de um auditor, que, quando questionado sobre qual sua opinião sobre o problema da corrupção no país, disse que é um problema técnico, que pode ser resolvido com “mais controle” e que o problema é que o país é “mal auditado”, mas, por outro lado, ele diz que falta “despertar nas pessoas os valores da “accountability”, do “dever da responsabilização, de prestar contas”, precisa de “gestão, competência e decisões estratégicas” e “de mais controle”, mas “não controles burocráticos, controle por controle, mas controle que vai agregar à gestão e quem é o grande agente transformador que propicia isso é a auditoria”.
Percebi ainda que havia uma diferenciação, uma espécie de disputa entre os auditores concursados e os outros funcionários que ocupavam cargos comissionados. Uma auditora reclamou que “não duvidava nada se daqui a pouco eles contratassem também auditores comissionados” e que a maioria deles estava ali “por indicação política”. Para a maioria dos auditores, o problema da corrupção é político. Eles apontam que “a lei de Responsabilidade Fiscal não é respeitada”, que há uma diferença entre “o que está na legislação e a prática, o dia a dia”, que “é muito difícil aplicar a lei e a administração ter gestão”, que “falta autonomia” pelo fato de eles serem subordinados a um Conselho e o Conselho ser subordinado ao Poder Executivo e “tudo o que a auditoria faz vai ‘pro’ poder executivo”. Apontam o problema de funcionários públicos de cargos comissionados e gestores da Controladoria que muitas vezes são “colocados por indicação política”, ou ainda que, muitas vezes, eles, os auditores, são “chamados para contornar” uma situação, principalmente quando um “gestor não consegue atingir as metas”, ou quando muda a gestão do governo. Ou ainda apontam, como indicado por um auditor, que o problema é “a política da coisa”.
Portanto, se, de um lado, os auditores descrevem o trabalho de auditoria como um diálogo, que orienta os gestores para uma melhor forma de governar, mais eficiente e responsável, por outro, apontam os limites e frustrações impostas pela realidade do dia a dia, ao se deparar com os conchavos e artimanhas políticas. No imaginário dos auditores, há uma oposição entre o trabalho técnico dos auditores e o mundo da política. Para eles, esse setor do campo burocrático estatal está totalmente à parte das formas de poder político, enfatizando a constituição do desinteresse como um valor inerente ao trabalho do auditor.
Fica demonstrado que há disputas e contradições, que são abertamente mencionadas pelos auditores, os quais apontam uma tensão entre os saberes técnicos e os acordos e conchavos políticos nos processos de auditoria e opõem o trabalho dos auditores com o da “gestão superior”. Dizem os auditores: “nós não temos nenhuma autonomia”, “a gente se empolga, é tão bonito fazer auditoria, encontrar os erros, ver, a gente orienta”, mas “quando chega no Conselho, depende da vontade política”. Portanto, no discurso oficial, os valores da auditoria são um, mas no cotidiano são outras lógicas que imperam.
As falas dos auditores demonstravam claramente suas experiências cotidianas, a forma como os valores e interesses se misturam na prática. Apresentavam seus dilemas e angústias, queixavam-se da falta de autonomia, de que “estavam enxugando gelo’, porque nada mudava no país”, de que a corrupção no país é um problema endêmico, como “um câncer que se espalha rapidamente”, e enfatizavam que “o povo precisa fiscalizar os políticos”.
Ao analisarmos as falas dos auditores a partir dos valores que ordenam as práticas de auditoria, podemos perceber que há divergências nos discursos, principalmente entre os daqueles que ocupam cargos de chefia e os dos demais auditores, ou mesmo disputas entre as diferentes instituições, devido a suas posições distintas no campo da burocracia, visto que há diferenças entre a distribuição de poder e de capital simbólico entre os auditores e que os que ocupam uma melhor posição dentro do campo burocrático estão em melhores condições de atuar nas regras do jogo estatal. Portanto, aqueles que exercem cargos de chefia têm melhor capacidade de exercer o ideal de desinteresse ou de projetar um ideal de transparência em conformidade com os padrões exigidos pelos grandes organismos internacionais. Já, nos discursos de alguns auditores, principalmente aqueles mais antigos, os problemas políticos locais, mais cotidianos, pronunciam-se com mais facilidade.
Pudemos perceber o quanto os vários níveis da burocracia atuam na projeção de um ideal de Estado. Na visão “oficial” dos gerentes, os sistemas de auditoria e controle atuam de forma neutra, livre de conflitos e contradições, “educando os gestores” e contribuindo para um mundo melhor, com menos corrupção, apoiados por agências internacionais, como o Banco Mundial, que fazem “consultorias gratuitas” e patrocinaram missões internacionais para “moldar” os gestores de acordo com as experiências internacionais, com exemplos bem-sucedidos de sistemas de controle “dentro do conceito do controle interno e auditoria interna mundial”. Nesse sentido, podemos ver uma coalizão de “forças e poderes que se apoiam uns nos outros em nível nacional e internacional” (DARDOT; LAVAL, 2016, p. 9). Já na visão dos auditores, podemos ver, com mais clareza, as disputas por poder, alianças, fofocas.
Todavia, nas duas perspectivas, podemos enxergar também as projeções de valores, de um ideal de Estado a ser construído. Faz-se presente a visão de que o trabalho de auditoria é um “trabalho inglório”, mas que eles precisam continuar lutando e “não esmorecer”, pois eles têm um papel fundamental na construção de um país mais “transparente e mais justo”, pois “isso faz parte da essência do meu trabalho, a partir do momento em que eu não acreditar mais nisso eu vou embora”.
Apesar das contradições presentes no discurso dos auditores e dos conflitos apontados por eles, há um ideal comum de projeção de um “bom governo” através de práticas e técnicas burocráticas. Há um ideal presente muito forte de que as práticas de auditoria têm um sentido fundamental na organização do Estado e de que é a partir da universalização de instrumentos técnicos e corretas práticas de auditoria que o Estado pode se tornar transparente, menos corrupto e mais justo.
Nesse sentido, a perspectiva de Simone Brito (2018) nos oferece uma importante contribuição para pensarmos os processos de auditoria, pois ela nos sugere que:
Os ambientes e auditores pesquisados atuam construindo o cotidiano do Estado. Em conjunto, suas rotinas extremamente especializadas, seus movimentos entre setores e as interações que produzem ao circular processos, realizar auditorias e ‘sugerir’ novas práticas para outros braços do sistema, são a própria organização ou apresentação do poder do Estado, especialmente se não quisermos lidar com formas transcendentais”. (BRITO, 2018, p. 39).
De acordo com Brito (2018), essas projeções criam sentidos que conectam um ideal de Estado imaginado com as experiências cotidianas, trazendo a experiência moral dos valores às práticas e retóricas burocráticas.
As observações e as entrevistas realizadas em campo foram analisadas à luz das teorias discutidas ao longo deste artigo. É preciso deixar claro que existe um solo comum a todas as perspectivas abordadas, pois todas estão pensando o Estado e as formas da burocracia a partir de uma perspectiva da sociologia ou antropologia da moral, demonstrando o quanto é importante trazer a dimensão dos valores para tratar a questão da auditoria. A auditoria não se trata apenas de uma questão técnica, de eficiência, mas é uma questão também de valores, de construção ou projeção de sentidos: de quem é bom, quem é mais superior, mais transparente, quem está pensando no bem da humanidade. Tudo isso é algo que está sendo absorvido pelas burocracias e, além disso, outra coisa extremamente importante, e que todas essas perspectivas trazem, é a concepção de que para estudar a burocracia é preciso observar o cotidiano, como esses processos estão sendo construídos.
A partir da nossa experiência no mundo da auditoria, concluímos que falar das formas de controles burocráticos implica necessariamente um tensionamento entre os ideais técnicos e os valores morais, e, sobretudo, a necessidade de confrontar a ideia de que as tecnologias de auditoria são politicamente neutras. Como foi demonstrado, os valores da auditoria atuam, em suas ações cotidianas, na projeção de um ideal de Estado democrático e transparente, livre de conflitos, em contraposição ao mundo da política. Vimos também que esse projeto é marcado por conflitos e tensões nos vários níveis da burocracia e que os valores que ordenam os processos de governança envolvem uma série de rotinas, interações, rituais e disputas de poder. Pensar o Estado e as formas burocráticas significa falar também da organização de valores, de suas raízes simbólicas, da construção de sentidos, dos conflitos, e não o imaginar como um aparelho unificado ou uma racionalidade transcendental.
Para além das contradições e disputas existentes nos vários níveis do poder (entre os auditores concursados e os funcionários que ocupam cargos comissionados; entre os auditores e o Conselho superior; entre a Controladoria e os outros órgãos de controle e entre os saberes técnicos e os poderes políticos), nossa experiência revelou um acordo tácito entre os valores da auditoria: a ideia de que a auditoria está pautada nos valores da responsabilização, de transparência e de justiça, e percebemos o quanto esses valores morais atuam na criação de normatividades que ordenam o Estado e a sociedade.
Ao universalizar o sentido de suas ações (no sentido bourdieusiano), os auditores efetuam um “interesse no desinteresse”, isto é, um consenso sobre os valores necessários para gerir a vida pública ou sobre como o Estado deve ser e como deve se organizar, de forma mais justa e transparente. Portanto, podemos inferir que o processo de universalização de valores da auditoria, como a transparência, permite que parcelas da burocracia disputem capital simbólico dentro do campo burocrático estatal.
A experiência de pesquisa, relativa aos valores da burocracia, desconstruiu aquela imagem que se tem da burocracia como algo frio e distante. Na verdade, o que pudemos perceber, por trás da ideia de transparência, é a presença de uma ideia de moralização e de decência, a ideia dos guerreiros da transparência, que precisam vencer uma grande batalha moral. Esse discurso traz um conjunto de valores que são morais e também uma ideia de vocação, que têm uma dimensão política de transformação e civilização do país, por se colocar como algo que irá solucionar os problemas do sistema capitalista. Todavia, não há, nas falas dos auditores, nenhuma menção a problemas mais amplos do capitalismo, às questões das desigualdades econômica e social. O que há é o fortalecimento do discurso da transparência como um antídoto para a desigualdade, porém, sabemos que a desigualdade no Brasil e no mundo permanece, apesar das políticas de transparência.