Resumo: Neste trabalho, investigamos como os operadores jurídicos disputam valores morais em casos de homicídio afetivo-conjugal. A pesquisa de campo foi realizada nos dois Tribunais de João Pessoa, Paraíba, sendo o seu corpus composto por autos processuais e julgamentos. As narrativas dos operadores jurídicos ressoaram convenções morais contingenciais ajustadas às reiteradas formas de exclusão enquadradas nas performatividades de gênero e sexualidade (em disputa com outros marcadores sociais da diferença). Contudo, o comportamento subversivo das vítimas e dos acusados gerou desestabilizações nas narrativas discriminatórias. Isso indica que as fronteiras do que é considerado culturalmente inteligível podem ser expandidas normativamente e resultar em mudanças relativas ao controle da sexualidade.
Palavras-chave:Homicídio afetivo-conjugalHomicídio afetivo-conjugal,Operadores jurídicosOperadores jurídicos,Valores moraisValores morais.
Abstract: In this work, we investigate how forensic practitioners dispute moral values in cases of intimate partner homicide. The field research was carried out in the two Courts of João Pessoa, Paraíba, and its corpus consists of procedural records and judgments. The narratives of forensic practitioners resonated with contingent moral conventions adjusted to the repeated forms of exclusion within the performativity of gender and sexuality (in dispute with other social markers of difference). However, the subversive behavior of the victims and the accused generated destabilization in discriminatory narratives. This indicates that the boundaries of what is considered culturally intelligible can be expanded normatively and result in changes relative to the control of sexuality.
Keywords: Intimate partner homicide, Forensic practitioners, Moral values.
Artigos
Intersecções de gênero, sexualidade e classe em tribunais do júri: valores morais em disputa
Perception and performance of forensic practitioners in cases of intimate partner homicide: intersections of gender, sexuality, class and moral values

Recepção: 28 Agosto 2018
Aprovação: 07 Dezembro 2018
Este trabalho teve a intenção de evidenciar valores sociais em disputa em dois tribunais do júri, a partir das intervenções dos operadores jurídicos – promotor de justiça, juiz e defensor público ou advogado particular –, no que concerne ao crime de homicídio[1] afetivo-conjugal[2], mediante a análise de duas fontes de pesquisa distintas: autos processuais e julgamentos. As considerações formuladas no presente estudo obtiveram materialidade a partir de dois casos selecionados.
No ano de 2011, com o apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), iniciamos a pesquisa sobre homicídio afetivo-conjugal no Fórum Criminal Ministro Oswaldo Trigueiro de Albuquerque Mello, da cidade de João Pessoa, Paraíba, investigando a performance adotada pelos operadores jurídicos que atuam nos dois Tribunais do Júri da Capital. Esse estudo foi elaborado com o intuito de dar continuidade aos debates existentes no âmbito das Ciências Sociais acerca da temática de homicídios praticados no espaço privado e íntimo, considerando as implicações dessas interpretações jurídicas no mundo social. Por ora, apresentamos parte dos resultados da pesquisa de campo, demonstrados por meio de casos cujas decisões jurídicas ocorreram nos anos de 2012 e 2013, mas que dão o tom dos resultados da investigação realizada até aqui.
Essa curiosidade científica nos direcionou para a última fase do fluxo do Sistema de Justiça Criminal, quando os comportamentos criminalizados estarão sob julgamento jurídico. Sendo os homicídios crimes dolosos contra a vida, ou seja, crimes violentos letais intencionais (CVLI), cabe aos tribunais do júri, em processo bifásico, responder sobre a absolvição ou a condenação do sujeito incriminado. Quando os operadores jurídicos realizam a investigação criminal e o juiz de direito entende que estão configurados a materialidade do crime e os indícios de autoria, a discussão sobre o caso passa para a fase de recomposição dos “fatos” a fim de que representantes da sociedade civil – os juízes leigos – decidam sobre a culpabilidade do réu (cf. NUCCI, 2013). Esta é a característica particular dos tribunais do júri: a atribuição legal concedida às pessoas da sociedade civil para constituir o conselho de sentença responsável por emitir o veredicto final sobre os casos julgados. Aos operadores do direito cabe o exercício, em plenário, do poder da argumentação e do uso da retórica jurídica, no intuito de alcançar o convencimento dos juízes leigos.
Buscamos os registros documentais[3] dos casos escolhidos para que as linguagens e discursos escritos servissem de parâmetro comparativo para um “ponto central” da pesquisa: a performance argumentativa dos operadores jurídicos nas sessões de julgamentos de homicídios afetivo-conjugais. Quer dizer, não acompanhamos todo o trâmite temporal de construção da narrativa jurídica sobre os casos, porém, com a permissão ofertada pelos Juízes, pudemos conhecer da “realidade construída” (VIANNA, 2002) no âmbito da esfera administrativa e compilada nos autos processuais. Isso porque sabemos que “os autos vão sendo montados no tempo, através do esforço em codificar de forma burocraticamente adequada as experiências que ali se desenrolam” (VIANNA, 2002, p. 86). E, quando já construídos, seguem para a decisão final proferida pelo juiz de direito, que, no nosso estudo, traduz juridicamente os votos dos juízes leigos.
Destacamos, assim, a importância da análise de um mesmo tema a partir de perspectivas distintas, ou seja, a feitura dos autos processuais e a análise situacional do julgamento. A elaboração analítica dessas duas fontes de pesquisa revelou a importância do caráter situacional que tece as decisões jurídicas, não apenas pela existência de uma adequação da linguagem entre uma e outra fonte – oral ou escrita; formal ou informal –, mas também porque o resultado do julgamento depende em grande medida da atuação e percepção dos operadores jurídicos.
Na obra Outsiders: estudo da sociologia do desvio, Howard Becker (2008, p. 157) criou o conceito de empreendedores morais, dividindo-o em duas categorias: criadores de regras e impositores de regras. Enquanto os criadores de regras estariam interessados na elaboração e/ou reformulação de regras, de modo que o conteúdo delas tenha aplicabilidade e esteja de acordo com sua diretriz moral – o que considera justo, por exemplo –, os impositores de regras agiriam no sentido de aplicar uma regra e demonstrar que tal aplicação está sendo eficaz, está combatendo o problema que originou a regra – a investigação de determinado crime, por exemplo.
Consideramos neste trabalho que os operadores jurídicos atuariam tanto como criadores de regras – levando em conta o espaço subjetivo que se tem para julgar a conduta do acusado e o caráter situacional do julgamento – quanto como impositores de regras – na medida em que os seus argumentos são também baseados na lei e os resultados de tais julgamentos igualmente dependem dos preceitos jurídicos adotados por esses operadores do direito[4]. Assim, apresentaremos percepções, performances e disputas travadas entre os operadores jurídicos, em casos de homicídio afetivo-conjugal, tomando-os como empreendedores morais.
A fim de compreender a dinâmica do procedimento processual e o seu registro documental, iremos analisar, simultaneamente, os autos processuais e os julgamentos dos dois casos selecionados, com o intuito de evidenciar a questão de gênero, classe, o exercício da sexualidade e os valores morais. Este trabalho está dividido em três seções: I. Caso 1: “Será que era conhecida pelo quartel todo? Maria Quartel?”, II. Caso 2: “Você sabe dizer se ele era namorador? O que não se configura defeito” e III. Intersecções de gênero, sexualidade, classe e valores morais.
O primeiro caso em que pudemos analisar tanto os autos processuais quanto o julgamento tratou de uma tentativa de homicídio, praticada por um policial militar, de 47 anos, contra a sua ex-namorada, de 18 anos, com quem manteve um relacionamento amoroso durante nove meses. O crime ocorreu em um bar. A vítima foi atingida com três disparos de arma de fogo, deixando-a gravemente ferida. Constam nos autos que, antes desse ocorrido, o acusado havia atingido a vítima com golpes de faca peixeira no interior do Batalhão da Polícia Militar, tendo sido preso em flagrante. Depois de sua fuga, praticou o crime relatado aqui. Os autos processuais também mencionam que a vítima já havia recebido várias ameaças de morte por parte do acusado. No julgamento, a Acusação sustentou a tese de homicídio qualificado na forma tentada, pedindo pela condenação do acusado, por não ter havido chance de defesa por parte da vítima e ser a conduta do acusado desproporcional aos motivos do crime. A Defesa sustentou a tese da negativa de autoria, pedindo a absolvição do acusado.
Analisando os dados etnográficos sobre a sessão do julgamento, restou explícito que a performance dos operadores jurídicos estava alicerçada na invocação de convenções morais relativas ao gênero e à sexualidade. No interrogatório do acusado, por exemplo, o Juiz conduziu as perguntas partindo de uma narrativa que questionava a liberdade sexual da vítima:
Juiz: O senhor tinha conhecimento, quando o senhor tinha essa convivência com a vítima, que a vítima não era assim tão exclusiva do senhor? Que ela ficava com outras pessoas?
Acusado: Eu sabia, mais ou menos...
Juiz: Desconfiava?
Acusado: Mas eu não era realmente casado com ela.
Juiz: Não era casado com ela. Não vivia com ela. Não era companheiro dela, não era nada, ela podia de vez em quando dar uma “ficadinha”.
Acusado: A vida é dela. Eu não tinha compromisso nenhum com ela.
[...]
Juiz: E entrava assim, normalmente? Qualquer pessoa entra no quartel assim, querendo, chega lá e é só meter a cara e “emburacar”, ou não?
Ou é porque ela era conhecida lá da tropa?
Acusado: Chegando lá, falando com o pessoal, entra.
Observamos que o decurso de nove meses de relação íntima foi desconsiderado pelo operador jurídico ao intitular o relacionamento como mera “convivência”, ou, posteriormente, ao indicar que o acusado “não era nada” da vítima. Com efeito, a prática de atos sexuais pelos envolvidos, de forma casual e sem obedecer ao pressuposto de “exclusividade”, resultou na ilegitimidade do relacionamento aos olhos do magistrado, uma vez que não se enquadrava no modelo “casamento reprodutivo”, fundamentado na monogamia heterossexual (RUBIN, 2012). Com suas indagações, o Juiz acabou por favorecer as argumentações da Defesa, ao sugerir que a vítima poderia ter sofrido tentativa de homicídio por parte de qualquer um, já que sua conduta sexual indicava fácil aproximação com outros homens, além do acusado.
Devemos considerar que tais convenções discursivas denotam as disputas políticas do campo, tal como sugerido por Bourdieu (1989). Neste sentido, é preciso “enclausurar” o discurso que foi apresentado como chave interpretativa, confrontando-o com sentidos diversos ao do controle sexual da vítima. Segue trecho da oitiva de uma das testemunhas, o homem com quem a vítima encontrava-se no dia do crime:
Juiz: Será que era conhecida pelo quartel todo? [...] Maria quartel?
Depoente: Não sei informar ao senhor.
Juiz: Quanto tempo faz que o senhor deixou essa “ficância” com a vítima? Depois desses tiros, o amor arrefeceu?
Depoente: Tive três contatos com ela por telefone, aí eu peguei e troquei meu chip.
[RISOS DA PLATEIA]
Juiz: É, né? Já pensou o cara entrar numa fria dessa, né? Aí acabou o amor?
O fato de a vítima ter estado acompanhada, no momento do crime, por outro homem – com quem esteve envolvida por algumas semanas – possibilitou aos operadores jurídicos o desenvolvimento de uma construção argumentativa baseada em uma suposta infidelidade conjugal feminina, denotando uma posição semelhante à de ré. Mediante as perguntas formuladas pelo Juiz, ficam expressas as conjecturas sobre a mulher colocar-se em condição de vulnerabilidade por ter relacionamentos amorosos descomprometidos com diversos homens; ou seja, a vítima poderia ter contribuído com o atentado contra a sua vida.
Noutro viés, as respostas “desinteressadas” do réu revelaram que a mulher (a vítima) não o traía, pois ele não era “realmente casado com ela”, não havia um relacionamento “sério” entre ambos. Tais narrativas foram acionadas pelo Juiz como reforço da negativa de autoria do crime, pois, em tese, a desobrigação da fidelidade evitaria um descontrole emocional ou uma atitude passional por parte do acusado. Essa associação de argumentos é frequente na atuação dos profissionais do direito em casos de homicídio afetivo-conjugal (cf. BLAY, 2008, p. 213), e indicativa da persistente (re) produção de decisões judiciais consubstanciadas em preconceitos contra as mulheres vítimas de violência, consoante verificaram Pimentel, Pandjiarjian e Belloque (2006), ao realizarem um estudo crítico sobre as legislações e as jurisprudências firmadas em países da América Latina e do Caribe.
No campo jurídico, apesar de a existência das regras escritas tender a limitar a variabilidade de comportamentos dos agentes do direito, resta certo arbítrio nos atos desses profissionais (BOURDIEU, 1989, p. 223). Os juízos de valor desvendados no momento das inquirições sobre os comportamentos morais de réus e de vítimas ressaltam essa condição de “flexibilidade”, ou seja, o arbítrio na construção das decisões jurídicas. Em resumo,
o juiz, ao invés de ser sempre um simples executante que deduzisse da lei as conclusões diretamente aplicáveis ao caso particular, dispõe antes de uma parte de autonomia que constitui sem dúvida a melhor medida da sua posição na estrutura da distribuição do capital específico de autoridade jurídica; os seus juízos, que se inspiram numa lógica e em valores muito próximos dos que estão nos textos submetidos a sua interpretação, têm uma verdadeira função de invenção (BOURDIEU, 1989, p. 223, grifo do autor).
As transcrições acima corroboram com a nossa compreensão de que a figura do juiz pode vir a dizer muito sobre as narrativas morais que interferem na atuação do Poder Judiciário, nos casos de homicídio afetivo-conjugal julgados.Neste sentido, ele pode ser considerado tanto um moderador quanto um empreendedor moral, tanto por criar quanto por impor regras (BECKER, 2008).
O manejo de convenções morais verificado não só na atuação do juiz, bem como na performance do promotor de justiça, do defensor público e/ ou do advogado particular, expõe as narrativas do júri sobre a sociedade (SCHRITZMEYER, 2012, p. 31), isto é, exibe a compreensão social quanto aos padrões de relacionamentos afetivo-conjugais esperados. Mais do que isso, revela como os discursos jurídicos são constituídos por convenções de gênero e de sexualidade (e outros marcadores sociais da diferença) e como tais normas organizam as estratégias argumentativas exibidas nas sessões de julgamento.
O termo Maria quartel foi utilizado pelo Juiz que presidia a sessão. Na análise documental do processo, essa e outras narrativas foram modificadas pela técnica judiciária que transcreveu o julgamento. A comparação entre esses dois métodos de análise – documental e situacional – evidencia a necessidade da análise in loco da sessão de julgamento. A passagem entre a linguagem utilizada no julgamento e os termos técnicos presentes nos autos processuais não é um mero formalismo. Em verdade, ela é indicadora das disputas que compõem e percorrem os processos judiciais. Se por um lado o termo “Maria Quartel” é invocado em plenário para intervir simbolicamente no julgamento, por outro lado ele desaparece nos autos documentais, em uma tentativa de omitir o emprego de uma linguagem moral nas práticas judiciárias.
Tais ponderações remetem ao “campo de lo estatal”, noção empregada por Eva Muzzopappo e Carla Villalta, na qual o Estado pode ser visto como uma arena de disputas em que o poder é exercido para “transformar, inovar ou manter condições que repercutem de diversas maneiras e com distinta intensidade na vida cotidiana dos sujeitos”[5] (2011, p. 18). Por consequência, as autoras afirmam que as práticas burocráticas e os documentos produzidos pelo Estado, como as leis, os regulamentos, os processos e os discursos institucionais, devem ser considerados como resultantes das relações de poder que compõem esse campo estatal.
Em termos de análise documental, isso implica dizer que os dados estatais devem ser submetidos a um “campo de indagação” (MUZZOPAPPO; VILLALTA, 2011, p. 25), no qual sejam ponderadas as circunstâncias temporais e os contextos que possibilitaram sua produção, considerando, principalmente, que a elaboração do documento foi viabilizada no interior de disputas entre atores sociais pelo poder de legitimação via Estado.
Os relatos apresentados também nos fizeram perceber, nas argumentações dos operadores do direito, uma relação entre a fugacidade das muitas relações amorosas da contemporaneidade e a reprovada infidelidade entre os casais. Não constava nos autos processuais nenhuma informação de que a vítima traiu o acusado enquanto se relacionava amorosamente com ele. Mesmo assim, durante o julgamento, as repetidas narrativas dos operadores do direito mencionavam a possibilidade de o acusado ter sido traído. A desconfiança do acusado era plausível, na visão desses profissionais. Por outro lado, recaíam sobre ele outras acusações criminais, como tortura de preso, deserção, maus tratos aos filhos[6] etc. Esses fatores parecem ter contribuído para a condenação dele a dez anos de reclusão. Por maioria de votos, os jurados acataram a tese acusatória de tentativa de homicídio duplamente qualificado. Neste caso, o estigma acerca dos “maus predicados” da vítima relacionados à forma com que ela exercia a sua sexualidade foi menor do que aquele do réu.
A performance dos operadores jurídicos foi norteada pelo sistema de valores vigentes na sociedade. No cenário do tribunal do júri, revelaram-se as convenções morais constituídas por performatividades[7] de gênero e de sexualidade. As discussões sobre a conduta sexual da vítima, especialmente, conjugaram expressões contemporâneas representativas de determinada liberdade sexual (“ficância”, “a vida é dela”), porém há significados tradicionais referentes ao controle da sexualidade feminina (obrigação de fidelidade por parte da namorada, caso houvesse “compromisso sério”). Deste modo, contextos de reprodução, de apropriação, de deslocamento e de transformações de práticas sociais passam a ser percebidos no campo das decisões jurídicas (cf. BOURDIEU, 1989; 2002), justamente quando a construção dessas decisões influencia a (re)produção de padrões de comportamento para as relações amorosas.
A encenação dos fatos contados pelos operadores jurídicos no momento do julgamento do réu denota o que Mariza Côrrea (1983) chamou de composição de fábulas – ou o caráter teatral presente no ritual do júri. Segundo Schritzmeyer (2012, p. 166-167), a narrativa construída se instrumentaliza através de um discurso dramático-sociológico, posto que se fundamenta em certa lógica de organização social. Assim, os operadores jurídicos se valem de performatividades culturalmente inteligíveis que se atualizam ao serem aplicadas no julgamento do réu e na descrição de comportamentos sociais de réu e de vítima.
A ideia de uma abordagem “dramática” dos fatos sociais foi introduzida pelo filósofo Kenneth Burke[8] e utilizada por Erving Goffman. A organização social foi traduzida na metáfora teatral, a partir da diferenciação de duas regiões de atividade: o palco e os bastidores. Segundo Goffman (1989, p. 29-41), a cerimônia ocorre quando os valores oficiais comuns da sociedade são enfatizados em uma representação – através da reafirmação das crenças. O indivíduo tende a incorporar os valores cultuados em seu grupo social, utilizando a máscara que possa responder à situação. O estudo do rito deve considerar não só o espaço onde a cerimônia ocorre como também os gestos corporais e o padrão de linguagem utilizado. No caso em questão, as risadas do público leigo, quando das observações do Juiz, denotaram a cumplicidade de ambos e a inadequação ritualística, do ponto de vista do direito de defesa e da vida privada e íntima da vítima.
Nesse sentido, a análise do julgamento por meio de fontes e de perspectivas distintas mostrou-se técnica relevante, sem a qual não seria possível alcançar a “dramaticidade” dos fatos sociais nem as performatividades de gênero e de sexualidade invocadas narrativamente pelos operadores jurídicos. A investigação empreendida revelou a importância dos episódios que não puderam ser transcritos no processo, não só porque existe uma adequação da linguagem entre o julgamento e o texto produzido, mas também porque esse último oculta a importância do que é dito ou silenciado no ritual de julgamento.
O desfecho deste caso processual era esperado pela sociedade pessoense há três anos. Diferentemente do julgamento anteriormente relatado, houve grande repercussão na cidade. Os meios de comunicação informavam que uma estudante de 18 anos havia sido morta por seu “namorado”[9], após ter revelado que estava grávida do acusado. Conforme as informações jornalísticas, o corpo da vítima havia sido encontrado em um matagal distante da residência da família e continha indícios de crime sexual. Além dos elementos do crime mencionados acima, os envolvidos pertenciam a famílias com boas condições financeiras e certa influência política. Este caso também é um dos poucos, dentre os registrados na pesquisa sobre homicídio afetivo-conjugal, em que atuaram no julgamento tanto o advogado particular quanto o assistente de acusação.
Na sessão de julgamento, o acusado informou que, a princípio, propôs o aborto à vítima, sob a justificativa de que ele seria expulso de casa. Tendo deixado a “namorada” em dúvida sobre o que fazer, marcou um encontro, tarde da noite, para conversarem sobre o assunto. A vítima recebeu uma ligação telefônica do seu “namorado” (número confidencial) e minutos depois foi pega pelo réu na casa de uma amiga. Após discussão dentro do carro dele – porque a vítima estava temerosa em abortar –, o réu disse tê-la deixado em uma rua “esquisita” do bairro em que moravam e que logo em seguida outro carro se aproximou. O acusado declarou também que partiu em seu veículo, não sabendo o que ocorreu com a moça.
Como a vítima não retornou à sua casa, foi dada como desaparecida. As famílias não sabiam do relacionamento íntimo do casal e, após informações de amigas, alguns dos familiares da vítima chegaram até o trabalho do acusado para perguntar-lhe quando teria estado com ela. Segundo o testemunho de um primo da vítima, o acusado demonstrou certa frieza quanto à notícia do desaparecimento e, estranhamente enunciou: “vou colaborar”. O acusado negava ser namorado da vítima, mas afirmava ter mantido relações sexuais com ela.
A tese da Defesa, composta por dois advogados, profissionais de competência reconhecida, era de negativa de autoria. O réu só estava sendo acusado por exclusão, por não terem encontrado o “verdadeiro” agressor da vítima. Já a Acusação trabalhava com a tese de homicídio triplamente qualificado[10] – por ter sido crime praticado por motivo torpe, pelo uso da asfixia e pela impossibilidade de defesa da vítima – e aborto não consentido. Ao final do julgamento, o Conselho de Sentença acolheu a tese da Acusação, sendo o réu condenado a dezessete anos e seis meses de reclusão, em regime fechado.
O crime foi bastante divulgado pela mídia e por grupos sociais, entre eles, o Mães na Dor[11]. O estranhamento quanto a um crime afetivo-conjugal ocorrido entre famílias de classe média, com influências políticas, aguçou a curiosidade da população. O auditório do Tribunal do Júri permaneceu lotado durante quase todo o julgamento. Neste sentido, Debert, Ferreira e Lima (2008, p. 185) já haviam assinalado que, nos crimes em que os sujeitos envolvidos são de extratos medianos e altos da sociedade, a cobertura midiática costuma ser intensa, buscando reunir informações capazes de tornar o crime inteligível, haja vista a quebra da noção sacralizada de família.
A Defesa convocou uma ex-namorada e uma “ficante” de condições socioeconômicas semelhantes às do réu para serem testemunhas. Em plenário, ambas enfatizaram a boa conduta do acusado:
Juiz: Você ficava com o acusado?
Testemunha: Isso.
Juiz: Mas era a ex-namorada dele?
Testemunha: Isso.
Juiz: E ele ficava com a vítima?
Testemunha: Não sei dizer...
Juiz: Em outras palavras, você sabe dizer se ele era namorador? O que não se configura defeito, lhe adianto logo, né? Ele era um rapaz tranquilo, era um rapaz calmo?
[...]
Juiz: Mas ele tinha muitas namoradas ou ele era um rapaz que despertava a atenção e o desejo das moças do bairro? [...] O que é que você me diz dele como pessoa atraente, como pessoa que fascina o sexo oposto? Testemunha: Na época eu perguntei a Fulano[12], um amigo dele. E ele me disse que não era namorador, era pessoa de muitos amigos. Juiz: O que eu quero perguntar é se ele era um rapaz que era muito assediado pelas moças, ou não tem conhecimento? Testemunha: Não tenho conhecimento.
A análise dos dados etnográficos colhidos na sessão de julgamento mostra que o Juiz denotava cuidados, no sentido de não constranger a testemunha a dizer algo que desabonasse a imagem do réu. As questões sobre os atributos sexuais deste, isto é, ser “namorador”, “muito atraente”, “pessoa que fascina o sexo oposto” e “muito assediado”, logo ganharam a ressalva de que ser namorador “não se configura defeito”. Se o acusado é atraente e muito assediado, recai sobre a mulher a posição de quem assedia, de quem provoca o encontro amoroso. Semelhante ao Caso 1 apresentado neste trabalho, as performatividades de gênero e de sexualidade, especialmente o controle da sexualidade feminina, estão comumente “mediando” a acusação de assassinato de mulheres e, mais uma vez, atribuindo a elas parte da responsabilidade pela violência imposta.
O Promotor de Justiça iniciou sua investigação considerando o princípio jurídico da presunção de inocência do réu[13]. No entanto, no decorrer do caso constatou que os indícios das provas apontavam para a culpabilidade do acusado. Deste modo, a posição de moderador das regras jurídicas se revelava diante de colocações de terceiros sobre a idoneidade do réu, sobre suas origens familiares “estruturadas”:
Gostaria de dizer, antes de tratar, de seguir, confidenciando a todos aqui, e todas, que quando este processo me chegou às mãos, muitas foram as pessoas que chegaram a minha pessoa para dizer que não poderia ter sido o acusado. Vieram pessoas públicas, advogados, amigos, [...] diziam: “Não pode ter sido esse rapaz, ele é de uma família muito estruturada, ele é educado, ele jamais poderia ter tirado a vida dessa moça”[14]. Então, naquele primeiro momento eu preferi aceitar que não teria sido ele. Outra pessoa teria sido o verdadeiro autor desse crime. Bárbaro crime. E foi assim que eu comecei a investigação judicial. [...] Para minha surpresa, para todo caminho que eu percorria, a informação retornava ao réu. [...] Ora, se eu tinha o réu como inocente até aquele momento, recorri a sua versão, da forma como ele houvera narrado à autoridade policial e comecei a esmiuçar. Se eu conseguir provar no processo tudo aquilo que ele diz, não foi ele, foi outra pessoa. Então comecei a esmiuçar esse interrogatório. E cada coisa que ele falava, cada atitude que tomava, cada reação dele no processo me trazia ou me deixava cada vez mais convicto de que ele era o autor (Promotor de Justiça).
Naquele dia[15] ocupamos o espaço que é destinado à Promotoria de Justiça, a convite de um dos membros do Ministério Público. Assim, vez ou outra, também registrávamos comentários de bastidores de outros promotores de justiça e ouvintes. Um desses profissionais do direito, por exemplo, admirava-se: “É um sociopata, esse cara”, referindo-se ao réu. Enquanto isso, o Promotor de Justiça se declarou surpreso com a “frieza” do réu no curso do processo.
As informações reunidas acima se tornam relevantes na medida em que evidenciam a atuação desempenhada por certos marcadores sociais da diferença (BRAH, 2006) no processo de sujeição criminal e de criminação. Por ser considerado um “rapaz educado”, de “família estruturada”, o acusado não carregava consigo o estigma de “bandido”, consoante definição de Michel Misse (2010). Com efeito, a influência de marcadores sociais, como classe e gênero, permitiu-lhe usufruir do princípio constitucional de presunção de inocência, posto que sua imagem não guardava correspondência com “o sujeito criminal que é produzido pela interpelação da polícia, da moralidade pública e das leis penais” (MISSE, 2010, p. 17). Por conseguinte, as narrativas manejadas pelos operadores jurídicos, visando tornar inteligível o cometimento do crime, precisaram se voltar para outros estigmas psicossociais, como é o caso de “sociopata”.
No transcorrer da sessão de julgamento, o réu manteve o comportamento contido e o olhar cabisbaixo, sempre com um terço nas mãos e com postura corporal voltada para o Juiz. Essa imagem corporal assume elementos da figura do homem pecador, que jura inocência (negativa de autoria) e adere à prática orante, a fim de demonstrar sua competência moral; ao passo que os predicados “frio” e “sociopata”, destinados ao acusado, tentavam construir a figura do criminoso contumaz e, portanto, irrecuperável. Assim, esses esforços discursivos e performáticos levavam a um balanceamento entre os modelos biopsíquico e moral de (des)construção da figura do criminoso (TEIXEIRA, 2012).
De outro lado, a Defesa tentou desqualificar a vítima, questionando se ela seria uma “menina desregrada”, pois foi à casa do “ficante” quando pretendeu manter relações sexuais com ele. De forma bastante tendenciosa, disse o advogado: “a Defesa não quis dizer que a vítima era vadia...”. Aqui, mais uma vez, percebemos o esforço em inverter a posição da mulher de vítima de homicídio à posição de corresponsável por sua morte violenta, visto que sua conduta sexual foi apresentada como “moralmente inadequada”, tal como em outros casos investigados.
A indagação acerca dos vínculos sexuais e/ou afetivos costuma ser direcionada à mulher, como forma de questionar práticas sexuais que tendem a escapar de um contexto social de maior controle normativo. Comumente, os apelos morais sobre comportamentos sociais esperados numa relação afetivo-conjugal exigem que ela seja fiel e dedicada ao companheiro (Cf. SESTINI, 1979; CORRÊA, 1983; BLAY, 2008; ELUF, 2009; FACHINETTO, 2012; ZAMBONI; OLIVEIRA, 2016). É o que foi sugerido pela Defesa: “[...] a moça era ‘desregrada’ por ter procurado o acusado na casa dele, quando decidiu estabelecer um vínculo sexual com ele” (Advogado de Defesa).
O controle sexual feminino, presente não só nos argumentos construídos pela Defesa – quando apresentou a vítima como “desregrada” –, mas também na forma com que o Juiz conduziu as perguntas a uma das testemunhas, indagando-a se o acusado “fascinava” o sexo oposto ou era muito “assediado” pelas mulheres, não difere de um dos primeiros estudos realizados no Brasil por Mariza Corrêa (1983, p. 54), ao transcrever a fala de um operador do direito: “A argumentação tem que ser dirigida para o que a sociedade acredita, e nessa sociedade ainda é difícil argumentar com o amor livre ou com a igualdade de direitos de ambos” (CORRÊA, 1983, p. 54).
Neste caso, o relacionamento da vítima com o acusado não foi esmiuçado pelo Juiz de modo a sugerir que aquela não se comportou segundo os padrões morais exigidos – tal como o fizera no Caso 1, referindo-se à vítima como Maria quartel. Entretanto, o réu foi tratado como possível objeto de desejo, assediado pelas mulheres. Nos processos interacionais, os atores realizam um recorte que define o que é relevante e apropriado em uma determinada situação. Tal seleção foi chamada por Goffman (1989) de moldura. A moldura funciona como um dispositivo cognitivo e prático, viabilizando o processo de interação social. No caso em questão, pode-se dizer que a moldura apresentada pelo Juiz foi marcada, nos dois julgamentos, pelo controle da sexualidade feminina e liberdade sexual masculina.
As regras morais podem, de alguma forma, se sobrepor às leis, mesmo, ou especialmente, em um ambiente legal. O registro dos discursos fundamentados em certa moralidade reafirma que o cenário do tribunal do júri é um espaço no qual se expressam os valores que norteiam as práticas sociais por meio das performances dos operadores jurídicos. Este entendimento se apoia na contribuição de Weiss (2015, p. 16):
[...] “moral” refere-se, em sentido bastante abrangente, à dimensão prática da vida humana, à esfera da ação, conquanto essa se oriente por princípios que dividem as coisas entre bem e mal, bom e ruim, certo e errado, justo e injusto. Desse modo, é possível perceber que a moral é algo indissociável da vida coletiva [...].
A análise dos discursos e performances dos operadores jurídicos dos Tribunais do Júri, portanto, demonstra a importância deste estudo no sentido de atualizar as circunstâncias em que esses julgamentos jurídico-morais se processam e quais valores sociais são por elas salvaguardados (SCHRITZMEYER, 2012, p. 165).
No plenário do Júri, são perceptíveis as disputas narrativas sobre a vida íntima e pregressa dos sujeitos envolvidos no crime, para além das discussões sobre regras jurídicas formais. Notadamente, as principais estratégias argumentativas utilizadas pelos operadores jurídicos são aquelas que dão centralidade ao correto desempenho de performatividades[16] de gênero e de sexualidade por vítimas e acusados(as). Logo, quando manejadas em plenário, tais performatividades são articuladas e constituídas reciprocamente com modalidades sexuais, raciais e classistas (dentre outros marcadores sociais), passando a compor a moldura representativa dos cenários e dos atores sociais implicados no crime.
Significa dizer que, nas disputas narrativas travadas nos tribunais do júri, as personagens protagonistas do crime precisam se conformar a certas representações, forjadas mediante convenções culturalmente inteligíveis de feminilidade e de masculinidade, para serem reconhecidas como sujeitos jurídicos, correspondendo aos papéis de vítima ou de acusado(a). Conclui-se também que, muito mais que a análise da conformação dos tipos legais e das qualificadoras do crime, o julgamento dos casos permite negociações em torno das situações de morte – nas quais pode haver perdão ou condenação – a depender da adequação dos sujeitos a outras normas sociais.
Tais considerações são corroboradas pelas análises de Adriana Vianna, em sua tese de doutoramento, particularmente a noção de que as “ações judiciais não podem ser deduzidas exclusivamente da legislação” (2002, p. 21), bem como de que nelas há margem para negociações, ou seja, não se trata apenas da aplicação de regras formais a um caso concreto, mas da vivência de situações que variam conforme os sujeitos envolvidos, constituindo “experiências judiciais”.
Ao aplicarmos essas ponderações ao Caso 2, descrito anteriormente, percebemos a disputa narrativa promovida pelos operadores do direito sobre a representação da mulher falecida. Sua caracterização como vítima foi questionada por meio do exercício de sua sexualidade, ao praticar atos sexuais em um relacionamento “casual”. Não obstante, sua representação como vítima “de fato” foi concretizada pelo reforço a outras convenções de gênero, embasadas na qualificação da maternidade, afinal, sua morte teve como motivação a recusa em realizar um aborto cirúrgico, em que pese as tentativas de convencimento realizadas por seu parceiro. Em outras palavras, sua morte adquiriu significado na medida em que performatizou o sofrimento e o sacrifício materno. Tal recurso narrativo trata-se da “maternagem da ação política”, nos termos de Efrem Filho (2017, p. 202), estratégia discursiva comumente acionada em cenários de reivindicação da violência. Neste contexto, a correspondência com certas convenções generificadas assegurou o reconhecimento da mulher assassinada como uma “vida perdível”, cuja morte é passível de luto (BUTLER, 2017).
No tocante ao Caso 1, além do relacionamento da vítima não se enquadrar no parâmetro de “arranjo familiar”, não havia possibilidade de performatizar a figura materna. O exercício da sexualidade (frequentemente contestado pelos operadores do direito) ocorria de forma “não exclusiva”, de modo que as relações da vítima nem ao menos se assemelhavam ao modelo monogâmico e marital. Com efeito, os atos sexuais praticados não apresentavam nenhuma “desculpa” razoável para afastar o axioma da “negatividade sexual”, explicado pela antropóloga Gayle Rubin (2012). Segundo a autora, o pensamento ocidental sobre o sexo, produzido e difundido por instituições como igrejas, escolas, mídia, família, psiquiatria e o sistema criminal, é alicerçado na noção de que ele deve ser tratado com suspeita. De acordo com essa lógica, “virtualmente todos os comportamentos eróticos são considerados maus a menos que uma razão específica para isentá-lo tenha sido estabelecida. As mais aceitas desculpas são o casamento, a reprodução e o amor” (RUBIN, 2012, p. 13).
Ademais, considerando o sistema de hierarquia de valor sexual traçado por Rubin, o sexo praticado pela vítima do Caso 1 ocuparia a base de uma pirâmide erótica, em razão de uma série de fatores: os encontros entre o casal ocorriam em locais públicos (no Batalhão da Polícia Militar), existia grande diferença geracional (a vítima possuía 18 anos e o acusado 47 anos) e, certamente, os atos sexuais eram executados com o fim de obter prazer, sem intenção reprodutiva:
De acordo com esse sistema, a sexualidade que é “boa”, “normal”, e “natural” deve idealmente ser heterossexual, marital, monogâmica, reprodutiva e não-comercial. Deveria ser em casal, relacional, na mesma geração, e acontecer em casa. Não deveria envolver pornografia, objetos fetichistas, brinquedos sexuais de qualquer tipo, ou outros papéis que não o masculino e o feminino. Qualquer sexo que viole as regras é “mal” (sic), “anormal” ou “não-natural”. O sexo mal (sic) pode ser homossexual, fora do casamento, promíscuo, não-procriativo, ou comercial. Pode ser masturbatório ou se localizar em orgias, pode ser casual, pode cruzar linhas geracionais, e pode se localizar em locais “públicos” [...] (RUBIN, 2012, p. 15).
Ressaltamos, ainda, que os operadores jurídicos investiram em uma estratégia argumentativa alicerçada na infidelidade conjugal da mulher do Caso 1 para promover sua desconstituição narrativa enquanto vítima “de fato”[17]. Eles fomentaram uma explosão discursiva sobre a suspeita ou a prática efetiva de sexo extraconjugal, visando à desaprovação pelos juízes leigos, cujos valores morais foram contrariados.
Ocorre que a notória repercussão da infidelidade conjugal feminina nos Tribunais do Júri é resultante da influência recíproca entre normas de gênero e de sexualidade. Neste sentido, as convenções morais acionadas em plenário revelam as bases das desigualdades de gênero e, simultaneamente, evidenciam que a experienciação da sexualidade por homens e mulheres é julgada de forma distinta. Aqui, gostaríamos de considerar o argumento de Rinaldi (2015, p. 29) quando afirma que os depoimentos dos envolvidos poderiam afetar os rumos dos processos, inclusive, no que diz respeito ao moralmente intolerável, a ponto de justificar o crime.
Os agentes do Direito, ao defender, acusar e julgar, não agiam apenas disciplinando e normatizando os litigantes por meio de valores universais ou dominantes, nesse sentido, a moralidade construída pelos envolvidos, em seus depoimentos, seria capaz de afetar os rumos do processo, os contornos, criados por vítimas e acusados, do que seria o moralmente intolerável a ponto de justificar um crime, poderiam ser, por vezes, incorporados pelos profissionais do Direito quando tratavam, em âmbito jurídico, de um delito.
No Caso 2, o Promotor de Justiça destacou a sua dificuldade em considerar o réu culpado, quando do início das investigações, identificando-o como oriundo da classe média-alta e detentor de respeitável comportamento social. Este operador jurídico disse a si mesmo: “Não pode ter sido esse rapaz, ele é de uma família muito estruturada”. Outros profissionais do direito, em momentos diversos, enfatizaram perante o público e, especialmente, o Conselho de Sentença a posição de estudante universitário do réu, com um “belo futuro pela frente”. Inversamente, percebemos o entrelaçamento entre pobreza, instrução educacional e violência. Nos homicídios afetivo-conjugais, o recorte de classe se aproxima do recorte de gênero e norteia os julgamentos dos operadores jurídicos enquanto sujeitos sociais e agentes do Poder Público:
A análise da posição concreta dos indivíduos nas relações de poder, consideradas as formas que essa posição assume na vivência cotidiana, é necessária para se avaliarem direitos constituídos e disputas por direitos (BIROLI, 2018, p. 10).
A articulação entre classe e gênero nas construções narrativas dos operadores jurídicos também pode ser visualizada pelo recurso ao modelo “cidadão útil à sociedade” (CÔRREA, 1983). No Caso 1, o mau desempenho das funções relativas ao trabalho enquanto policial militar corroborou para a condenação do acusado, pois sua utilidade social passou a ser contestável. Outros fatores como maltratar os filhos e ter sido pego em flagrante agredindo a vítima contribuíram para a feitura de um quadro de degeneração social constituído por convenções de gênero e de classe em torno de uma masculinidade agressiva e bestial (McCLINTOCK, 2010), presumivelmente voltada para a prática de violência. A conformação a tais convenções permitiu o ajuste da sua figura à de “algoz”, personagem masculino construído em narrativas que envolvem violência para atuar como o “monstro”, o “assassino”, para dar materialidade ao que é extremo e inadmissível e para consolidar o “avesso narrativo” da vítima (EFREM FILHO, 2017, p. 172).
Diversamente, no Caso 2, a figura masculina foi suavizada pela mobilização discursiva permeada por noções de gênero e de classe, da “família estruturada”. A caracterização narrativa do acusado em torno de sua família impediu que ele fosse visto com ares de agressividade, como homem capaz de praticar atos violentos. Por outro lado, o pertencimento à classe social privilegiada forjou obstáculos que auxiliaram no seu distanciamento do estigma de “bandido” ou de “criminoso de carreira”, pois, como evidenciado por Misse, “a sujeição criminal é um processo de criminação de sujeitos, e não de cursos de ação” (2010, p. 21). Nestes termos, a condenação do acusado no Caso 2 tornou-se possível não porque ele fugia completamente do modelo “cidadão útil à sociedade”, mas porque o seu “avesso narrativo” (a vítima) se conformava mais concretamente às convenções de gênero, ao desempenhar a performatividade materna.
O Caso 1 também expõe a aquiescência do público leigo em relação ao termo “Maria quartel”, o que pode indicar uma consonância entre o comportamento do juiz e as ditas “regras da sociedade”. Como os casos de homicídio ou tentativa de homicídio são julgados pelo Tribunal do Júri e quem profere a decisão é o Conselho de Sentença, representando a sociedade civil, o social deve estar profundamente conectado com as leis. Como esclarece Weiss (2015, p. 16):
Os princípios morais orientam a vida dos indivíduos, o que, por sua vez, exerce um impacto sobre a vida em grupo. Por outro lado, diferentes configurações sociais criam ou validam diferentes princípios morais com diferentes consequências sobre a vida dos indivíduos.
No estudo sobre a construção social dos crimes de homicídios dolosos, Klarissa Silva (2008) lembra que os jurados são pessoas comuns, com diferentes saberes e valores morais e que são chamados a decidir individualmente sobre a liberdade do réu, em conformidade com o princípio do livre convencimento. Em estudo sobre contágio social no tribunal do júri, Zamboni e Faria (2018, p. 202) também ressaltam a função jurídico-social destinada aos jurados, quando se discutem a liberdade e a particularidade das decisões, no tocante à avaliação sobre o quanto a ação delituosa fere as regras sociais e morais ou pode receber a benesse do perdão da sociedade, através do Conselho de Sentença.
As teses de defesa e de acusação associam os aspectos legais a vertentes da moralidade, a fim de influenciar os jurados[18], que alcançam temporariamente a condição de “juízes” e acabam por reproduzir convenções morais manipuladas em juízo. Assim, surge um consenso acerca do sentido do mundo social que interfere na produção da decisão judicial.
As estratégias argumentativas observadas neste trabalho estão relacionadas com a (re)produção de certo padrão afetivo e sexual, promovido e difundido através da performance dos operadores do direito. Tal padrão decorre de uma matriz cultural que demanda a coerência entre normas de gênero, sexo e práticas do desejo como condicionante para que ocorra a inteligibilidade e o reconhecimento da identidade do sujeito e de seu modo de viver (BUTLER, 2014, p. 39).
A persistência dos operadores jurídicos em conformar discursivamente as qualificações dos sujeitos envolvidos no crime com certas convenções morais, fundadas em performatividades de gênero e de sexualidade (em sua constituição recíproca com outros marcadores sociais da diferença), oportuniza a demonstração de que esse campo de inteligibilidade opera por meio de lógicas de exclusão, produzindo “exteriores constitutivos” à norma.
Todavia, ao refletir sobre a construção dos processos e o julgamento dos casos, não devemos pensar em uma instância burocrática judicial completamente rígida, em que não há espaço para dinamicidade. Como bem notou Adriana Vianna (2002, p. 92), embora nas ações judiciais não seja possível apreender, totalmente, a complexidade por trás da realidade social, é exatamente por tratar da vida de pessoas concretas que essas práticas judiciárias permitem a abertura para mudanças nas disputas de narrativas. Afinal, os atores sociais envolvidos no crime – e que participam da feitura da decisão judicial – são dotados de agência, isto é, são capazes de subverter o sentido das normas sociais e provocar desestabilizações narrativas. É por meio desse movimento que as fronteiras do que é considerado culturalmente inteligível podem ser expandidas. São exemplos dessa mobilização os vocábulos “ficância” e “ficante”, reveladores de novas configurações afetivas.
Além disso, a capacidade narrativa possibilita representar nossos estados morais como também permite constituir relatos de ação moral (BUTLER, 2015, p. 24). Portanto, a repetição dos relatos e a tentativa de manipular convenções morais, conforme as contingências das percepções pessoais e profissionais dos operadores do direito sobre as performatividades de gênero e de sexualidade e sobre as relações sociais afetivas, podem repercutir na composição de novas formas de assimilar as liberdades sexuais de mulheres e homens.