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“Menos política, mais eficiência”: uma análise sociológica das práticas de auditoria e produção de sentidos morais no campo burocrático

“Less politics, more efficiency”: A sociological analysis of audit practices and moral values in the bureaucratic field

Simone Magalhães Brito
Universidade Federal da Paraíba, Brasil

“Menos política, mais eficiência”: uma análise sociológica das práticas de auditoria e produção de sentidos morais no campo burocrático

Revista Brasileira de Sociologia, vol. 7, núm. 15, pp. 215-234, 2019

Sociedade Brasileira de Sociologia

Recepção: 30 Julho 2018

Aprovação: 27 Outubro 2018

Resumo: O objetivo desse artigo é discutir a experiência moral de auditores e os valores que organizam as práticas de auditoria para compreender, especificamente, como esses valores – centrados no ideal de transparência – informam ou pretendem afetar as disputas na elite do campo burocrático. A pesquisa é de natureza qualitativa, baseada em 17 entrevistas, com auditores de um órgão de controle interno (o Ministério da Transparência e Controladoria-Geral da União-CGU), sobre as políticas de transparência e suas experiências cotidianas de combate aos desvios.

Palavras-chave: Auditoria, Transparência, Valores Morais.

Abstract: This article aims to analyse the moral experience of public auditors and the moral values organizing audit practices in order to understand how moral values-particularly those connected to transparency- organize and inform disputes in the bureaucratic field. It is a qualitative research based on 17 interviews with public auditors about the routines of transparency policy and daily practices of fighting corruption.

Keywords: Audit, Transparency, Moral Values.

Esse artigo analisa a economia moral que organiza as práticas de auditoria e o ideal de transparência num órgão de controle interno. Longe de um diagnóstico sobre os órgãos de controle, sua ideia é apresentar as práticas de auditoria como uma rotina de produção de valores morais e, especialmente, como essa economia moral em andamento busca distinguir os auditores (e sua necessidade para o sistema) de outros quadros da burocracia brasileira, tentando estabelecer a sua necessidade para superação de problemas nacionais. Nesse sentido, busco demonstrar como os ideais de objetividade e racionalidade técnica estão conectados a tensões morais e a interesses na naturalização das lógicas de dominação.

Numa perspectiva teórica já bem estabelecida, é possível indicar como a sistemática de auditorias ganha cada vez mais o papel de uma tecnologia disciplinar (STRATHERN, 2000; SHORE, 2009). Assim, uma vez que o controle sobre a administração pública vem sendo realizado por burocracias em disputa, pretendo demonstrar como uma parcela dessa burocracia se utiliza dos valores produzidos nas técnicas de auditoria para fortalecer seu lugar na organização do Estado. A partir da experiência de auditores em um órgão de controle interno, busco apresentar o horizonte moral que ordena suas práticas ou a constituição dos outros da auditoria, e, a partir disso, objetivo indicar traços gerais de uma economia moral da burocracia em que os sentidos de virtude e desinteresse se tornam um capital importante nas disputas sobre a ‘divisão do trabalho da dominação’ (BOURDIEU, 2014).

1 Poder, burocracia e valores universais

A necessidade de abertura e conhecimento das ações do governo, a partir da disponibilização de informações que caracteriza o ideal das políticas de transparência, possui uma clara afinidade com o fortalecimento de uma sociedade de auditoria (POWER, 1999). Na base dessa associação entre transparência e cultura de auditoria, está a ascensão de um Estado regulatório (MORAN, 2003), movido pela necessidade de controle dos riscos, vigilância e equilíbrio de informações, num modelo derivado da lógica de mercado e das tentativas de construção de um ambiente de igualdade entre os jogadores. A ordenação desses elementos num conjunto de instrumentos para governar e, especificamente, a ampliação de um corpo burocrático encarregado de produzir a abertura do Estado são relativamente recentes. Contudo, enquanto uma promessa de ordenação do mundo, os valores que organizam auditorias e transparência não podem ser dissociados do fundamento do projeto do Esclarecimento, em que a imagem da iluminação em oposição às sombras da selvageria, superstição e mistério alimentou cruzadas civilizadoras e fortaleceu o imperialismo (COMAROFF; COMAROFF, 2003). É bastante tentador aproximar Adorno e Horkheimer (1985) e os Comaroff para dizer que a fundamentação moral das práticas de auditoria e transparência seria apenas uma atualização ou reforço dos ideais civilizadores, numa “dialética do esclarecimento” atualizada numa situação em que o acesso à informação, ao fortalecer a ideia de um jogo equilibrado, naturaliza os modos dos interesses corporativos e a expansão do capital. Porém, mesmo que essa filosofia crítica do mundo da transparência e auditoria aponte um caminho importante de entendimento da economia política contemporânea, carece ainda dos elementos essenciais da economia moral que organiza o Estado e, especialmente, de uma compreensão dessas transformações através do cotidiano das burocracias e das rotinas de produção da dominação (GUPTA, 2012). Portanto, é necessário começar por compreender o conjunto de valores em torno das políticas de transparência e como sua incorporação pelos agentes públicos reorganiza o campo do poder estatal.

A leitura particular da teoria weberiana que se tornou corrente nos estudos sociológicos sobre a burocracia enfatiza sua racionalidade técnica, criando uma situação em que tanto os teóricos quanto os burocratas compartilham da mesma compulsão pelas formas universais – os modelos de organização e administração do Estado. Aqui, para compreender o sentido das disputas morais nessa parcela da burocracia, tento situar as práticas de auditoria e os ideais de transparências num quadro de problematizações teóricas que, apesar de suas diferenças, são complementares no esforço de compreender a universalização de valores através de uma perspectiva prática – das figurações de interesses e disputas de poder:

1. A tentativa de qualificar a relação entre a vida moral e o Estado é um elemento central da filosofia política. A crítica de Hegel à perspectiva kantiana sobre a efetivação da liberdade, que seria baseada em formas abstratas e vazias (formais) da vida moral, propõe uma ênfase na experiência, na caracterização de suas circunstâncias e conflitos. Neste sentido, ainda que o Estado encarne a possibilidade de liberdade, sua forma é marcada pelas determinações do momento histórico. Aqui, a burocracia pode ser pensada como elemento de mediação entre a vida moral e as leis, ou entre o que o povo é e a realização da liberdade. Essa crítica apresenta o fundamento filosófico do debate em que se desenvolvem as diversas sociologias do Estado, sempre mantendo as burocracias como elemento de mediação, ora com mais ênfases nas leis e no dever ser, ora na experiência e no devir. Considero as teorias de formação do Estado de Elias e Bourdieu como exemplos dessa última, constituindo importantes horizontes de pesquisa, não apenas por enfatizarem a centralidade do Estado na compreensão dos valores e de sua universalização, mas, especialmente, pelo caráter processual de suas perspectivas. Para Bourdieu (2011), a ‘monopolização do universal’ pelo Estado, que é uma espécie de capacidade de naturalização dos valores da dominação, é realizada no próprio campo burocrático. Desse modo, uma vez que o campo burocrático necessariamente trabalha com a legitimação de valores, mudanças nos sentidos do oficial vão desequilibrar sua organização (BOURDIEU, 2014) e demandar uma nova estabilidade ou sintonia com um padrão de autocontrole das emoções (ELIAS, 1993). Desse modo, é importante destacar que o processo de universalização de valores se desenvolve em meio a uma intensa trama de interações que não é racional, no sentido de que não é resultado do planejamento de indivíduos ou grupos. No caso específico aqui analisado, percebe-se que os valores da transparência e auditoria permitem a abertura de condições de possibilidade para que frações da burocracia disputem capital e tentem assumir posições mais estratégicas no topo da organização estatal.

2. Dado o acirramento das disputas entre as parcelas da burocracia, a fragmentação de valores, a situação em que cada segmento da burocracia tentasse projetar um sentido distinto de Estado, pareceria uma possibilidade. No entanto, há em todos os campos de disputa um “reconhecimento universal do reconhecimento do universal”, ou um interesse no desinteresse, que permite compreender tanto a produção social de valor quanto a concordância sobre os valores que devem ser universalizados. Segundo Bourdieu, “é universal nas práticas sociais reconhecer como valiosas as condutas baseadas na submissão, ainda que aparente, ao universal” (2011, p. 153). Numa análise do campo burocrático, isso implica o fato de que as disputas entre parcelas da burocracia se dão sobre quem consegue ‘se submeter’ mais fielmente ao ideal do desinteresse. Diante do fato de que há lucros em seguir a forma virtuosa ou se adequar às demandas do oficial, é possível aproximar o modelo bourdieusiano da ideia de economia moral (THOMPSON, 2015). Falar de uma economia dos valores permite o tensionamento e a compreensão do movimento entre valores econômicos e “humanos”, financeiros e “sagrados” (ZELIZER, 2011), diluindo os modelos de compreensão da vida moral que traçam grandes divisões entre formas de racionalidade e solidariedade, economia e ética. Especialmente, essa perspectiva permite confrontar a ideia firmemente estabelecida na bibliografia de que a vida moral da burocracia é marcada pela indiferença (HERZFELD, 1991) e entender a relevância de sentir-se virtuoso.

3. Esse modelo que permite enxergar frações da burocracia envolvidas numa economia moral em que se disputa e se produz os sentidos universais (de desinteresse) precisa se aproximar dos trabalhos antropológicos recentes que buscam compreender as intercessões entre poder e moralidades nas rotinas de produção do Estado e da ordem (GUPTA, 2012; HULL, 2012; FASSIN, 2013; SHORE, 2009). Esse diálogo é interessante porque seu olhar etnográfico permite uma abertura no modelo teórico do campo burocrático e, especialmente, confronta as lógicas de pesquisa que assumem que o Estado é aquilo que ele projeta, que sua prática é uma simples confirmação dos projetos modernistas de ordenamento e conquista (SCOTT, 1998). Nessa perspectiva crítica, que percebe Estados como artefatos culturais (SHARMA; GUPTA, 2006) e políticas como tecnologias de poder, observa-se como uma história de disputas, uma forma fluida, multifacetada, marcada por distintas camadas e projetos, se representa como uma forma singular e coerente (SHARMA; GUPTA, 2006, p. 10).

Esses três horizontes teóricos não se encaixam de modo simples, suas tradições estão em conflito. No entanto, sua aproximação se justifica na tentativa de criar uma base teórica que permita compreender as rotinas de produção do Estado e de seus valores universais ou, mais especificamente, a dimensão moral do exercício da dominação.

Como já foi discutido (BRITO, 2018), a pesquisa encontrou os problemas de estudar o topo das hierarquias de poder - ‘studying up’ (NADER, 1972). Com base na perspectiva de Denzin (1997; 2001) de “mundos narrados”, foram realizadas entrevistas com auditores de órgãos de controle interno e externo, mas aqui tratarei exclusivamente de 17 entrevistas realizadas no Ministério da Transparência e Controladoria-Geral da União-CGU durante o segundo semestre de 2016. A maioria das entrevistas durou entre 45 minutos e 1 hora e o roteiro estava dividido em 3 blocos de questões (sobre como se aprende a ser auditor, rotinas de trabalho e percepção dos problemas éticos da sociedade brasileira). Conforme foi estabelecido no diálogo com os auditores, todos os nomes foram modificados, uma vez que não me interessa identificar indivíduos em particular, mas as rotinas e valores comuns.

2 “Nadando no sentido contrário”

As questões iniciais buscaram compreender o cotidiano dos auditores e as rotinas que engendram a conexão entre auditoria e transparência. De modo consistente, a apresentação do trabalho de auditoria começa enfatizando o caráter técnico de suas atividades, como um modo distintivo de se posicionar diante da realidade e dos problemas de qualquer organização administrativa.

Um jovem auditor sintetiza o sentido da auditoria e, especialmente, a “precisão de seus parâmetros” como um conhecimento objetivo e eficaz para transformar as práticas de administração pública. Segundo ele, quando sua instituição age baseada nesses parâmetros indicados pela auditoria, elimina-se o risco de interesses políticos. Ainda que esses existam, a instituição apresenta um modo de elaborar avaliações que lhe possibilita o distanciamento das disputas e o foco nas formas puramente administrativas. Esse conjunto de aparatos técnicos permite, por exemplo, construir uma separação entre os objetivos da instituição e os interesses da mídia (que, segundo alguns relatos, constantemente procura novas informações e potenciais escândalos):

A mídia eventualmente vai pinçar mesmo, mas se ela está fazendo isso é porque está entendendo que aquilo ali merece esse destaque. E isso faz parte... A preocupação que a gente tem é com o relatório de auditoria, que ele seja o mais preciso possível. A avaliação da gestão pode ter fatos positivos e negativos. Não posso exagerar nem os fatos positivos e nem negativos, tem que ter a medida exata. Se for um destaque positivo, precisa tratar como destaque positivo, mas sem passar do ponto que seja o correto, negativamente. Se a imprensa vai destacar o aspecto negativo, aí é da agenda dela. Isso pode acontecer? Pode. Para mim não é um problema, faz parte. Cabe aos órgãos responderem de forma satisfatória (Augusto, MT)

Para este auditor, a possibilidade de que os resultados de seu trabalho sejam utilizados e interpretados de um modo que foge do seu controle é algo que faz parte do jogo e que, num certo sentido, deverá ser corrigido pelos próprios padrões de eficiência do órgão. É verdade que essa percepção não é compartilhada por muitos auditores. No entanto, destaco a argumentação de Augusto porque, em suas palavras e modos, ele expressa um ideal de auditor, especialmente de burocrata. Em todas as entrevistas, geralmente havia uma certa negociação para o uso do gravador, alguns perguntavam se era mesmo necessário, afirmavam ter dúvidas sobre ter algo relevante a dizer ou mesmo se eram as pessoas indicadas para dar a resposta certa. Augusto aceitou imediatamente ser gravado e disse ter certeza de que eu também não me incomodaria se ele gravasse aquele encontro para o caso de “alguma eventualidade”. Sua fala é marcada pela ênfase em termos como na “medida exata”, “cuidado com as palavras”, “clareza”, “imparcialidade”, “eficiência”. Além disso, afirma que a transparência já é um fato nos diversos órgãos do sistema federal, restando aos estados e municípios acompanhar a mesma tendência. Ocupando um cargo de chefia, 31 anos, branco, possui graduação e mestrado em Economia numa das maiores universidades brasileiras e estava se preparando para o doutorado - segundo ele, requisito essencial para poder levar adiante a reflexão que seu cargo exige. Na sua opinião, a ciência da auditoria é um campo que congrega os conhecimentos e tecnologias mais avançados sobre administração, informação, mercado financeiro e psicologia, permitindo que instituições como aquele Ministério “entreguem” informações claras sobre o funcionamento do Estado. Aqui não é possível discutir o lugar dos órgãos de auditoria na produção de escândalos e nem a questão igualmente importante da afinidade entre políticas de transparência e políticas do escândalo, mas é interessante apenas pensar que essas performances para definir o desinteresse da auditoria ocorrem num contexto em que a economia do escândalo assumiu papel central no campo político (GRÜN, 2011). Por isso, a ideia de que existe (a) uma medida exata da avaliação e (b) uma função para as avaliações em que nenhuma das duas será perturbada pelo discurso midiático ou quaisquer outros interesses políticos é indicativo das rotinas de ritualização e integração do Estado transparente. Perguntado se era possível perceber mudanças a partir da ampliação dos processos de auditoria, Augusto afirma que sim e destaca a centralidade da CGU na realização dessa tarefa. Para ele, através de suas auditorias, a CGU possui um papel muito claro nas mudanças da administração pública:

A auditoria vai ser um dos fatores para influenciar a realidade, algumas vezes mais, às vezes menos, algumas vezes de forma mais qualitativa, outras não. Mas acredito que sim. Por exemplo, quando a gente vai num órgão e pergunta ‘como vocês estão divulgando informação disso?’, já passa a ser da agenda do gestor. Pode ser mais ou menos, mas a questão da divulgação vai agora ser da agenda. Quando a gente avalia a conformidade de algum relatório, de algum instrumento de transferência, aquilo ali também passa a ser prioridade pro gestor. Eu acho que a gente acaba ajudando em algum grau a definir a prioridade. Quando a gente estabelece alguma impropriedade, aquilo ali vai entrar na agenda do gestor de alguma forma que não aconteceria sem o trabalho de auditoria (Augusto, MT).

Aqui, mais uma vez, Augusto reúne e sintetiza elementos centrais do universo normativo da auditoria ao expressar a expectativa de que suas recomendações irão corrigir e direcionar as ações dos gestores. Ao longo da entrevista, seus exemplos buscaram demonstrar como esse exercício já é rotina naquele ministério, como os “diálogos” em torno dos processos de auditoria modificaram o sistema federal e permitiram que a transparência seja uma realidade e que a grande maioria dos gestores saiba que a auditoria é uma forma de ‘diálogo’. Outro auditor, Pedro, igualmente num cargo de chefia, afirmou que o trabalho agora era muito mais em termos de “afinação”, já que os sistemas de controle estão muito bem estabelecidos e os gestores sensibilizados sobre a necessidade de seguir o recomendado pela CGU. Pedro também citou o diálogo como a marca que a CGU estaria estabelecendo: já que a “a auditoria é um aprendizado”, o órgão modificou a antiga concepção de auditoria como fiscalização e criou uma abertura para que seja possível aprender a ser eficiente. Diante dessas perspectivas da auditoria como diálogo, algumas vezes perguntei por que algumas pessoas poderiam considerar que ser auditado não é uma posição confortável. As respostas sempre traziam o riso e um sentido de mudança: antes, as auditorias eram processo difíceis em que alguns auditores poderiam se sentir superiores aos auditados ou tratá-los com preconceito pelo fato de não conhecerem os padrões corretos de gestão, mas isso mudou bastante e hoje o auditor chega com a postura de “resolver problemas”, “ajudar na gestão”, “dialogar” e até “entender que às vezes a lei é complicada”.

A ideia de que a auditoria seria uma forma de “diálogo”, uma “mediação entre os ideais de gestão e a realidade dos gestores” ou uma “tentativa conjunta de resolução de problemas” surgiu como característica central da explicação dos auditores da CGU sobre seu trabalho. Na pesquisa com auditores de um tribunal de contas estadual (BRITO, 2017), essa perspectiva ainda é embrionária e há muito mais força na ideia da auditoria como um embate com formas dinâmicas de resistências e artimanhas para se opor à fiscalização e controle. Contudo, mesmo na CGU, especialmente nas conversas mais informais, sem o efeito do gravador, era comum a expressão da dúvida sobre a efetividade do trabalho, sobre a possibilidade de, por exemplo, ter formas transparentes, quando há uma cultura de tratar o público como propriedade pessoal. Nesse momento, quando não estava em jogo exibir a fachada do controle e do Estado transparente, ouvi que aquela confiança seria coisa dos cargos de chefia, “puro discurso” de quem coordena “de longe” e não tem que enfrentar “o trabalho lá na ponta”. Em conversa com um informante, perguntei sobre essa diferença tão clara, como se se tratasse de dois mundos – um mundo em que auditores e auditados dialogam e outro em que o auditor luta com uma corrupção endêmica. Ele confirmou essa diferença que, contudo, para ele, não teria qualquer relação com as técnicas do trabalho de auditoria, mas seria efeito de pessoas e suas posições na instituição: aqueles que acreditam que as auditorias têm um efeito positivo nos modos de governar são os que ocupam cargos de chefia e precisam dialogar com as pessoas fora da instituição; os outros (“mais realistas”) saberiam que as formas de desvio evoluem muito mais rápido do que os recursos disponíveis para desenvolvimento das técnicas de controle e, por sua experiência “na ponta”, saberiam que estavam “perdendo a batalha”. Apesar da importância dessa categorização nativa, essas variações são modulações na aplicação do mesmo ideal, têm em comum a crença na superioridade das técnicas de auditoria como fundamento para organização das práticas de governo. Em ambos os casos, auditar vai se construindo como imperativo categórico para as práticas que organizam o Estado. Esse imperativo circunscreve um modo de orientar e direcionar as ações dos auditados que, se for universalizado através da correta aplicação de instrumentos técnicos, pode produzir o Estado transparente.

No contexto de complexificação das atividades administrativas, esse imperativo da auditoria busca construir um caráter superior ao que antes era “apenas fiscalização”. O conjunto de práticas e demandas que superam a fiscalização surge como elemento importante na construção da imagem dos auditores e de sua necessidade para a ordem administrativa, especificamente, na justificação de seu lugar distintivo no conjunto das funções que organizam o Estado e o corpo burocrático. A aplicação “de regras e prazos” junto com as “antigas cobranças que caracterizam a fiscalização” são vistas como ações fundamentais à medida que diminuem as margens de desvio e garantem um sentido forte de observação e concordância sobre o que deve ser feito. No entanto, os auditores entrevistados consideram que há também um novo sentido que se sobrepõe a essas atividades: a definição de prioridades, a orientação sobre o que deve ser feito.

Não há dúvidas de que essa mudança já é conhecida como parte dos ideais do novo gerencialismo. Contudo, é importante perceber como seus valores vão se estabelecendo na prática e, especialmente, como seus objetivos são traduzidos na vida da burocracia e produzem tecnologias morais. Nesse sentido, os auditores elaboram (tanto no sentido psicanalítico quanto político) uma intensa afinidade entre suas práticas de auditoria e as políticas de transparência. Essa afinidade é tão estreita que vários auditores mais antigos afirmaram que essa sempre foi uma preocupação, a que só agora está se dando a devida atenção, pois o cerne do trabalho de auditar sempre foi revelar como o trabalho estava sendo feito, “não deixar nada escondido”. Uma auditora que se definiu como “auditora muito antes de existir a CGU” se disse impressionada com as pessoas que acreditam haver algo novo no mundo da auditoria. Para ela, sempre se soube que o olhar do “técnico sem partido” é o único capaz de solucionar os problemas do Estado. A diferença é que a política conseguia evitar a divulgação desses trabalhos e hoje a “população quer saber”. A fala de outra auditora indica algo dessa prática:

A questão da clareza tem que ser perseguida independente da mídia ou de qualquer coisa. Mesmo antes da LAI, os relatórios de auditoria já eram publicados e eles precisavam ser claros. Por isso, o trabalho da mídia é válido mesmo aumentando a demanda... A preocupação com a clareza passa ser maior, o cuidado com as palavras, a imparcialidade do trabalho... Tudo isso tem que estar presente. A imparcialidade sempre foi o foco. Claro que com a mídia há uma preocupação um pouco maior com esses aspectos, mas a CGU sempre teve que se preocupar com essa clareza (Sara, MT).

Clareza, imparcialidade, neutralidade política e eficiência são alguns dos valores que organizam a definição do trabalho de auditoria. Poderia trazer ainda muitas referências de entrevistas e do diário de campo, mas há um momento da pesquisa que foi muito significativo para a compreender a autoimagem do auditor e sua experiência moral e, especificamente, para entender a oposição de valores que ordena suas práticas. Quando um dos chefes de setor teve a ideia de, para me “ajudar a terminar as entrevistas”, reunir 5 auditores ao mesmo tempo, presenciei um pequeno debate sobre o que a sociedade percebe e o que, de fato, é a experiência do auditor. Como minhas perguntas não faziam muito sentido naquilo que mais parecia um grupo focal, eles começaram a me explicar as dificuldades do seu dia a dia e uma fala especificamente obteve grande concordância, de modo que os presentes pareciam se sentir contemplados e suas imagens foram sendo retomadas ao longo da conversa:

Você já viu a televisão: ela é formada por diversos pixels. Quando você olha de longe, você vê a imagem perfeitamente. Se você olhar bem de pertinho, você vai ver que são milhões de pontinhos, que, obviamente, você não vai enxergar dessa forma. Eu acho que a visão da sociedade é essa visão de longe da TV, a visão do auditor é minuciosa: em cima desses pontinhos que são milhões. Quando você tem, por exemplo, um programa como o Bolsa Família que transferia 15 bilhões e foi aumentando e em 2015 chegou a, salvo engano, 28 bilhões. Se você for levantar de forma geral o que se tem de fiscalização, o que é feito de transparência, para quem está de fora, realmente, é muita coisa. Mas quem atua com aquilo não enxerga esse todo, enxerga uma determinada área e você vê um montante imenso de coisas que precisam ser analisadas... E quando você enxerga isso, parece que você está nadando no sentido contrário. [...]. As políticas sociais no Brasil só têm aumentado, tanto em quantidade quanto em valor. Isso significa que há mais áreas para serem fiscalizadas e auditadas. A angústia do auditor é essa: ele vê aquele montante de recurso, parece que a gente não está evoluindo, cada dia chega mais demanda, parece que a gente não consegue evoluir na melhoria do controle, do gestor atuar. [...] A gente caminhou um passo, só que tem um caminho imenso. (Leandro, MT)

A relação imagem/pixel é usada para expressar a capacidade inerente ao processo de auditoria e aos auditores de perceber e revelar os desvios constitutivos de nossa organização social, chamando atenção para o modo como as irregularidades parecem compor o Estado e, especialmente, como as outras pessoas não conseguem enxergá-las. Nessa metáfora, através de sua técnica, o auditor é capaz de perceber as distorções e, ao mesmo tempo, o responsável por confrontá-las, “nadando no sentido contrário”. Ao longo da conversa, essa ideia foi várias vezes retomada pelos outros auditores por sua suposta capacidade de resumir a experiência da auditoria pública. Um deles parabenizou o colega pela imagem que resumia o seu cotidiano de tentar produzir uma explicação contrária ao discurso político. No final da discussão, um dos auditores reinterpretou essa metáfora para me explicar sua atuação através dos termos que utilizei no título: “a gente precisa de menos política e mais eficiência”. Desse modo, percebemos que a experiência moral da auditoria é descrita como uma agonística entre uma forma virtuosa e o mundo de desvios, entre o conhecimento técnico e os discursos políticos.

3 Os Outros da Auditoria

Para adensar a compreensão dessa tensão que compõe a experiência moral da auditoria, é necessário especificar melhor seus elementos, especialmente como os auditores buscam universalizar o sentido de suas ações ou, para usar mais diretamente os termos bourdieusianos, a constituição de seu interesse no desinteresse - que aqui se mostra num conjunto de virtudes no tratamento da coisa pública que emerge na relação com os outros que compõem o Estado. Assim, é importante entender quem são esses outros e que tipo de demandas apresentam:

Um grande desafio na implementação da Lei de Acesso foi exatamente os valores e essa resistência que a gente encontrou da parte dos gestores. São gestores que estão no governo há 20 ou 30 anos e que sempre agiram de uma forma, sempre encararam aquela informação, aquele relatório, aquela reunião que eles faziam, como uma coisa deles, não como uma informação pública. E essa mudança de mentalidade, de paradigma, foi custosa, teve bastante reuniões envolvidas, muitos eventos. E até hoje, quando um órgão recebe um pedido de informação e nega, o cidadão vai escalonando até chegar na CGU. A CGU não só precisa fornecer o acesso quanto esclarecer o gestor de por que aquele acesso é devido, porque aquela informação é pública (Rodolfo, MT).

A cultura política dos gestores, especialmente daqueles mais antigos e vindo de lugares pequenos e regiões distantes, seria marcada por formas arcaicas de administração, que são, em todos os seus elementos éticos e estéticos, exatamente o cenário a que a CGU pretende se opor. Desse modo, os auditores da CGU se apresentam como responsáveis pela estruturação de rotinas de contraposição à existência de segredos e lealdades tradicionais no Estado. O prestígio das ações de auditoria (e sua necessidade) depende da caracterização da política como manutenção de práticas que reforçam a opacidade e o poder, evidentes em alguns gestores de ‘perfil antigo’, mas que também podem se apresentar como risco se seus próprios auditores não tiverem o devido distanciamento do que está sendo auditado.

Uma vez que consideremos esses auditores como parte de uma burocracia que ajuda o Estado a “ver” (SCOTT, 1998) e que, principalmente, “projeta” e “imagina” o Estado (GUPTA, 2012), a sua negação sistemática das formas da política e o cultivo da técnica como realização do desinteresse se tornam elementos muito importantes. Nesse sentido, um dos melhores dados sobre a forma como os auditores tentam consolidar e fortalecer sua posição na burocracia estatal através de uma suposta negação da política é etnográfico. Minha semana de pesquisa na CGU em Brasília aconteceu no final de julho de 2016, momento marcado pelo intenso debate sobre o impeachment e por confrontos e protestos nas ruas. Nas 17 entrevistas, marcadas por várias conversas informais, sugestões de leitura e indicações de processo, em quase 22 horas de gravação, não há qualquer menção ao momento político. Foi dito algumas vezes que agora existia um público que ia às ruas lutar pelo seu direito, mas não houve menção específica àquele momento da política nacional. Perguntei a uma das auditoras especificamente sobre a mudança de nome da instituição. Para ela, era uma pena se houvesse mesmo tal mudança, porque CGU já era uma “marca”, mesmo pessoas que não entendiam nada do funcionamento do Estado sabiam que a CGU combatia irregularidades; contudo, “fora essa questão da publicidade”, não haveria problemas, porque o órgão não seria afetado por questões de governo. Não acredito que essa seja a totalidade da compreensão dessa auditora em particular. Certamente, é apenas uma estória que se conta aos visitantes. Todavia, é uma narrativa muito importante para a construção das imagens que se deseja projetar, como os auditores esperam ser vistos.

Para que a construção do desinteresse como valor fundamental desse grupo seja melhor compreendida, é necessário observar a relação dos agentes pesquisados com suas ideias de população ou povo. Essa relação é, em sua maior parte, mediada pela materialidade de processos - notícias, denúncias, pedidos de informação etc. No entanto, isso não impede que os sentidos atribuídos ao povo sejam elementos fundantes da experiência dos auditores e que a presença desse povo ausente seja um dos principais elementos na ordem de justificação de suas atividades. Alguns auditores fazem questão de indicar que a população vem se preocupando cada vez mais com o resultado do trabalho dos órgãos de fiscalização. Por isso, há a produção de uma agenda que seria guiada pelos pedidos e indicações de um público bem informado:

Também houve uma mudança no cidadão: o cidadão está mais atento, busca controlar mais. Você tem uma população na rua, questionando as políticas públicas, a decisões que são tomadas [...] Você vai abrindo espaços para que o cidadão não apenas exerça controle social, mas também contribua, fazendo que haja uma democracia participativa (Heloísa, MT).

Contudo, na maioria das vezes, o povo é caracterizado pelo seu alheamento às questões da transparência e combate à corrupção. Algumas vezes essa falta de preocupação se dá pelo próprio desconhecimento do trabalho dos órgãos de controle:

Embora tenha aumentado bastante a demanda por informações pelos cidadãos, ainda não se tem uma percepção do trabalho, do que faz um tribunal de contas ou a controladoria geral da União. Você percebe que o controle social é bem frágil, a legislação prevê que um determinado conselho vai ter que fiscalizar aquele programa e você chega lá e ninguém sabe que tem que fiscalizar aquele programa (Sara, MT).

A gente tem mais de 5000 municípios, mais de 90% deles tem menos de 50 mil habitantes, são muito pequenos. Quando você está numa capital há um certo nível de instrução, mas quando você vai pro interior, a questão da transparência é bem frágil. As pessoas não sabem a quem recorrer (Bernardo, MT).

Nessas falas, é possível perceber um problema sistematicamente indicado quando se caracteriza a população: o fato de que esta não sabe como ter acesso à informação e não entende o funcionamento do Estado. Essa caracterização lembra constantemente a necessidade e importância da própria CGU. Ao me mostrar o andar onde ficava a ouvidoria, uma auditora explicou como os que ali trabalhavam eram sobrecarregados, muitas vezes essas demandas nem eram atribuição da CGU, mas, segundo ela, como para muitas pessoas no Brasil existiam apenas o Ministério Público e depois a CGU “como órgãos responsáveis por resolver irregularidades e que funcionam”, as demandas nunca paravam de chegar. Algumas falas na ouvidoria caminham nesse mesmo sentido ao indicar que um novo trabalho foi incorporado a suas atribuições: orientar as pessoas a como percorrerem as trajetórias entre órgãos estatais para solução de seus problemas. Assim, a falta de participação popular, em geral, é associada ao baixo nível de conhecimento das funções e órgãos do Estado, condição que potencializa a necessidade do trabalho da própria CGU e traz ainda mais responsabilidades para seus membros.

Para estabelecer suas características, sentidos e valores morais, a auditoria pública precisa construir um sentido de população. No caso dos tribunais de contas, essa relação é tensa e marcada pelo sentido negativo (BRITO, 2017): uma população que não fiscaliza suficientemente. É interessante que, no caso aqui discutido, os aspectos negativos de uma população que não reconhece seus direitos e não entende o funcionamento do Estado terminam trazendo mais uma função para o órgão e garantindo sua centralidade no quadro da burocracia, uma vez que os discursos projetam uma população que precisa recorrer a CGU para entender o Estado.

Nas disputas internas da burocracia, o papel de mediação na produção de um Estado transparente pode ser um potente gerador de capital simbólico. As auditorias são pensadas como um conjunto de práticas que podem “afinar” ou “coordenar” os diversos setores do Estado. Dois auditores usaram a metáfora da afinação de instrumentos para explicar o que as auditorias realizam, produzindo a importante imagem de que se trata da produção de harmonia e consenso. Além disso, se considerarmos as auditorias públicas e os sistemas de transparência como tecnologias do poder, especialmente naquilo em que ultrapassam as ações de fiscalização, percebemos que seu projeto só ganha sentido quando existe um ‘feedback’ (ainda que esse feedback seja mediado ou imaginado), quando as pessoas respondem aos chamados para assumir seu lugar nas fiscalização e controle do Estado. Nesse sentido, a construção da transparência e o combate à corrupção a partir das práticas de auditoria produzem e projetam tanto um Estado ideal quanto a sua população. A fala seguinte exprime o sentido em que o auditor/burocrata indica que o trabalho daquela agência não é simplesmente disponibilizar informações:

A transparência é uma forma de prevenção da corrupção. Com a transparência a gente inibe que o gestor desvie, o gestor sabe que vai ser cobrado, que vai ter alguém de olho. Mas a transparência por si só acaba sendo inócua se, do outro lado, não há um controle social. Não adianta publicar todas as informações do governo se não tem ninguém que vá olhar. Então essa parte de fomentar o controle social, de criar cidadãos responsáveis para realmente cobrar dos gestores, é um trabalho que a gente faz aqui (Rodolfo, MT).

A ideia de “criar cidadãos responsáveis” lembra os grandes esquemas modernistas de controle da população pelo Estado (SCOTT, 1998). No entanto, os sentidos morais orientando esse processo, o chamado à participação, são apresentados como recusas das formas estabelecidas da política e, como já indicado, do conflito. Se estivéssemos diante de ordenações lógicas, essa negação do poder e da política seria incoerente: a argumentação sobre a centralidade das auditorias para combater os desvios se baseia na necessidade de mais poder aos auditores e à população. No entanto, esse jogo de sentido é produzido através imperativos morais que se contrapõem à aparência da dominação – a ênfase nas virtudes e nos imperativos que devem ser seguidos universalmente reforçam a possibilidade de que se creia no desinteresse dos auditores.

Em resumo, é possível observar que os “outros” da auditoria, aqui a que suas práticas se opõem, podem ser identificados com a política. Para que as potencialidades resultantes de uma administração baseada em auditorias surjam, é necessário que os interesses políticos sejam substituídos por formas mais técnicas de decisão e que a população se engaje como fiscalizadora - uma função quase técnica. A composição desses valores opera uma associação ou afinidade entre conhecimento técnico e imperativo moral, em que o primeiro não oferece qualquer tipo de oposição ao segundo. Na verdade, estes se moldam numa oposição à política e suas tradições. Seguindo a perspectiva bourdieusiana, podemos inferir como esse interesse nas formas desinteressadas de administração do Estado produz um sentido de centralidade para auditorias e seus auditores no campo burocrático. Do mesmo modo, se entendemos a burocracia como um campo de disputas em torno do trabalho de dominação, observamos que o esforço de construção das auditorias como uma nova prática, especialmente como uma rota para escapar do tensionamento do sistema político, coloca os auditores numa posição de centralidade na organização do Estado. Além disso, as práticas de auditoria produzem uma economia moral particular na medida em que deslocam as formas de racionalização como modo par excellence de ordenação da burocracia e permitem sua vivência como uma agonística, um conjunto de valores capazes de produzir sentidos de autenticidade e verdade.

Conclusão

A experiência apresentada acima traduz um quadro dos valores burocráticos muito distante dos sentidos de distanciamento e frieza que normalmente lhe são atribuídos. Na verdade, temos aqui que os ideais de transparência associados à confiança na neutralidade das técnicas de auditoria produzem um sentido quase messiânico de suas possibilidades e sua necessidade para transformação do país. A impossibilidade de confiar nos políticos traz uma obrigação ainda maior a essa parcela da burocracia que é: orientar tanto o povo quanto os outros segmentos da burocracia estatal, uma vez que a auditoria possui capacidade não só de analisar os gastos e o passado das gestões, mas também pode acompanhá-la e sugerir novos caminhos para o uso adequado dos recursos. É interessante notar que, seguindo um roteiro bem estabelecido na retórica internacional da transparência, todos os problemas nacionais parecem poder ser resolvidos a partir da ampliação do trabalho realizado pelos auditores. Não houve menção a qualquer tipo de problema ou condição que não seria contemplada e resolvida pelo trabalho de fiscalização e auditoria. Destaco que o esforço para fazer parecer que a auditoria é um diálogo está duplamente relacionado a uma estratégia de fortalecimento no campo burocrático: em primeiro lugar, transformar todas as reticências ao processo de auditoria em confissão de culpa cria uma separação muito clara entre puros e impuros, honestos e corruptos, que só pode fortalecer uma imagem positiva dos auditores. Segundo, diante dos outros segmentos da burocracia, especialmente daqueles que têm poder de polícia, destacar sua capacidade de diálogo e negociação se mostra como um importante caminho de fortalecimento da imagem do auditor à medida que a produção de acordos e consensos tem sido muito limitada. Além disso, a descrição da experiência de auditor é também o relato ou descrição de indivíduos que se destacam pela capacidade manter o desinteresse num país ou cultura marcados pelo vício e desvio.

Desse modo, percebemos que a negação da política e tentativa de construção de uma burocracia virtuosa têm um duplo fim político que é (i) tanto o seu estabelecimento entre as elites da burocracia (ii) quanto maiores espaços de poder na projeção do Estado. Através do caso dos auditores, é possível perceber como transparência e controle também se referem à tentativa de regular disputas internas à burocracia estatal e à reordenação do poder entre certas frações do serviço público. Quando se suspende a ideia simplista de que os ideais de transparência são como rotinas de revelação do poder, é possível observar (a) seu estabelecimento como a produção sistemática de um outro Estado; (b) sua fundamentação normativa através de práticas distintivas e exercícios de poder capazes de tornar os auditores e auditorias ‘mais relevantes’ que outras práticas, e (c), especialmente, seu papel na ‘divisão do trabalho da dominação’.

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