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Uma sociedade capitalista sem os valores utilitários do egoísmo racional: O Brasil no início do século XXI
A capitalist society without the utilitarian values of rational selfishness: Brazil at the start of the 21st century
Revista Brasileira de Sociologia, vol. 7, núm. 15, pp. 235-254, 2019
Sociedade Brasileira de Sociologia

Artigos em fluxo contínuo


Recepção: 25 Julho 2018

Aprovação: 27 Novembro 2018

DOI: https://doi.org/10.20336/rbs.447

Resumo: Este artigo se volta para a análise da atual crise institucional no Brasil, buscando um estudo mais aprofundado dos fundamentos éticos e valorativos da sociedade brasileira. Seguindo a crítica de Souza (2017) à teoria sociológica brasileira, argumentaremos que a correta interpretação do ethos brasileiro requer uma análise do pensamento utilitarista. Existe no cerne do utilitarismo um lado revolucionário e ‘antipatriarcal’ que se contrapõe a um ethos sadomasoquista sustentado por uma servidão voluntária típica de uma sociedade escravocrata. Desenvolvemos este argumento por meio de uma breve reconstrução genealógica que nos remete a gênese do utilitarismo e por meio, também, de um engajamento com o pensamento antiutilitarista. Não negamos que haja valores utilitários de cunho mercadológico nas relações interpessoais no Brasil contemporâneo, mas que este tipo de utilitarismo é contrário à filosofia utilitária original e que, portanto, reforça os valores do familismo patriarcal e de um Estado burguês.

Palavras-chave: Brasil, Ética, Utilitarismo.

Abstract: This article addresses the current institutional crisis in Brazil by seeking a more indepth study of the moral and ethical values of Brazilian Society. Following Souza’s (2017) critique of Brazilian sociological theory, we argue that a correct interpretation of the Brazilian ethos requires an analysis of utilitarian thinking. There is a revolutionary and anti-patriarchal kernel within utilitarianism that opposes the sadomasochist ethos, which is sustained by a voluntary servitude characteristic of a slave-societies. We develop this argument by briefly reconstructing utilitarianism’s genealogy and also by means of an engagement with antiutilitarian thinking. We do not deny that there are utilitarian values associated with market logics in contemporary Brazilian interpersonal relationships, only that this type of utilitarianism is contrary to original utilitarian philosophy and which, therefore, reinforces the values of patriarchal familism and the bourgeoise state.

Keywords: Brazil, Ethics, Utilitarianism.

1 Introdução

A atual conjuntura de crise que passa o Brasil neste começo do século XXI fez ressurgir uma demanda por novas interpretações sobre a sociedade brasileira (CARDOSO; OLIVEIRA; FAUSTO, 2018; CASARA, 2017; CALDEIRA, 2017; KARNAL, 2017). Apesar de a crise ter um caráter prioritariamente institucional, seus fundamentos encontram-se na complexa interrelação entre certos valores que permeiam nossa cultura e política, economia e sociedade. Por se tratar de uma discussão relacionada ao ethos (WEBER, 2001, p. 46) da sociedade brasileira, teremos que buscar respostas em um arcabouço teórico que explique fenômenos políticos e econômicos por meio de valores morais da sociedade.

Souza (2017) nos oferece um arcabouço teórico que interpreta o Brasil por meio de uma antinomia valorativa. Ele discute a antinomia valorativa da sociedade brasileira estabelecendo uma contraposição entre o ‘familismo do patriarcalismo rural’ e os ‘valores universalizantes’ do Estado, que nascem em 1808 com a abertura dos portos e a chegada da família real portuguesa ao Brasil e se consolidam em 1888 com a libertação dos escravos (SOUZA, 2017, p. 72).

Acreditamos que essa antinomia valorativa está essencialmente correta, mas também que o arcabouço teórico ganharia em poder explicativo se incluirmos um terceiro elemento interpretativo-conceitual que representa uma ausência: o utilitarismo. O utilitarismo é um elemento moral e valorativo ausente na construção social, cultural e política do Brasil, que serve de contraposição ao ‘familismo patriarcal rural’ e também aos ‘valores universalizantes’ propostos por Souza. Nosso modelo transforma a antinomia original em uma dialética entre os três elementos: o Estado moderno, os mercados capitalistas e a escravidão (SOUZA, 2017, p. 41). Mostraremos que o utilitarismo, apesar de ser um elemento ausente da cultura brasileira, é um fator explicativo da ‘elite do atraso’.

Nossa insistência na análise dialética vem de um entendimento de que existe uma antinomia presente dentro dos ‘valores universalizantes’ e de que uma discussão sobre o ‘atraso brasileiro’ requer um entendimento mais detalhado desta. Descrita por Hobsbawn (2011, p. 20), a antinomia dos valores universalizantes surge historicamente através de seu conceito de ‘dupla revolução’, em que a Revolução Francesa e a Revolução Industrial marcam, em conjunto, o advento da modernidade. O importante para a presente discussão são as ideologias utilitárias que serviram de base para o sucesso da expansão capitalista (HOBSBAWN, 2014a), que se deslanchou após o fracasso das revoluções de 1848. Assim, a verdadeira antinomia que temos no ocidente é entre duas culturas: a patrimonial (tanto a de Estado quanto a de mercado) e a utilitária (tanto a da sociedade civil democrática quanto a de mercado), que coexistem no período da expansão capitalista e colonização europeia iniciada no século XVI (WOLF, 1997).

Vemos que, ao longo da história do capitalismo do século XX, o ethos utilitarista oscila entre fases ativa e dormente. O capitalismo não muda; o que varia é a presença ou ausência deste ethos em sua dinâmica. No caso dos Estados Unidos da América (EUA), por exemplo, temos uma forte presença do ethos utilitário no período do Pós-Guerra – mais especificamente nos Anos Dourados do Capitalismo entre 1951 e 1973 (SKIDELSKI, 2009, p. 116 - 126) –, o que gerou um ‘espírito’ do capitalismo americano de pleno emprego (KALLEBERG, 2009, p. 4). Já no período subsequente, entre os anos 80 e a crise econômica de 2007-2008, vemos um certo adormecimento destes mesmos valores utilitários com a chamada ‘virada neoliberal’ (HARVEY, 2007). É, neste vácuo moral, que ideologias mercantis e práticas coloniais passam a ser reinseridas no cerne das relações capitalistas no século XXI (ŽIŽEK, 2015, p. 11), especialmente no que diz respeito ao surgimento de novas relações servis pensadas extintas.

No caso do Brasil, não conhecemos um capitalismo remotamente parecido com o vivido pelos americanos nos ‘Anos Dourados do Capitalismo’. A modernidade brasileira – seja esta a presença de um Estado burocrático moderno ou o capitalismo de mercado – é marcada de maneira sui generis pela ausência do ethos utilitário. Nas palavras de Souza (2017, p. 32): “a escravidão é nosso berço”. Se não podemos dizer que o Brasil desenvolveu um capitalismo utilitário nos moldes dos países ricos, então não podemos afirmar que o capitalismo brasileiro se encontra em um momento de declínio moral. Dada que a ausência do ethos utilitário é estrutural, temos que trabalhar o problema com base na própria construção social do Brasil.

Entretanto, antes de descrever o caso brasileiro, temos que esclarecer o que é este elemento utilitário e por que está ausente em nossa cultura e modernidade. Temos que ir além da definição do utilitarismo como um conceito moral, discutido explicitamente e em detalhe nas obras de Jeremy Bentham e John Stuart Mill. O que nos interessa aqui é explicar o utilitarismo revisitando suas origens e certos aspectos de sua história cultural e sociológica. Iremos revisitar os trabalhos de Locke (2002) e Weber (2001), que descreveram não só certos princípios, mas também práticas associadas a uma moralidade utilitária, um ethos cuja alteridade se constrói a partir do indivíduo egoísta, mas não egocêntrico. Neste sentido, entendemos o egocentrismo como forma deturpada do utilitarismo.

De forma simplificada, podemos dizer que existem duas narrativas associadas ao utilitarismo. Nossa principal tarefa é identificar e distinguir, no nível teórico e da maneira mais clara possível, estas duas narrativas. Um diálogo com o pensamento crítico antiutilitarista parece-nos um bom ponto de partida, pois acreditamos que muitos aspectos do utilitarismo podem ser esclarecidos por meio de contrapontos com o associativismo (MARTINS, 2008). Em seguida, apresentaremos uma análise histórica e cultural do utilitarismo para dar maior sustentação aos argumentos apresentados ao longo do artigo.

A crítica do pensamento antiutilitarista (MARTINS, 2008) tem dois momentos. No primeiro, visa-se demonstrar que o utilitarismo promove valores de mercado alienadores baseados numa lógica do lucro que gera tendências individualizantes. Estes valores beneficiaram os projetos coloniais nos séculos XIX e XX e continuam beneficiando projetos imperialistas em pleno século XXI (PERKINS, 2006). É importante ressaltar que, de fato, argumentos utilitários são usados para promover a lógica do lucro às custas da valorização do trabalho. A história do capitalismo internacional (HOBSBAWN, 2014b) está repleta de exemplos que corroboram esta tese. Entretanto, defendemos que este é apenas um aspecto do utilitarismo.

O outro aspecto aparece num segundo momento do pensamento antiutilitarista, quando este se utiliza da teoria crítica para argumentar que o utilitarismo produz efeitos anômicos que minam o conteúdo associativista das inter-relações humanas (MARTINS, 2008, p. 108). Este argumento não possui nenhuma sustentação antropológica, pois significaria negar todas as formas de associação civil das sociedades ocidentais e, em especial, relegar o associativismo anglo-saxão ao status de mercado voltado para o lucro, coisa que não é.

O argumento também é problemático do ponto de vista histórico, porque o capitalismo não é um sistema estático. Se é verdade que o utilitarismo é seu núcleo ideológico, é verdade também que ele não é uma forma platônica imutável e, pelo contrário, possui uma genealogia. Assim, devemos levar em conta tanto sua evolução no contexto particular de cada sociedade quanto a possibilidade de que o ethos utilitarista pode se extinguir ou se reconfigurar.

Um exemplo é o caso dos EUA. Lá, o período posterior à década de 1970 foi desconstruído e reconstruído, transformando o que era um capitalismo “social democrata” – que até então formava o espírito da sociedade americana – em um capitalismo “neoliberal” (HARVEY, 2007). Este capitalismo foi construído a partir de uma justaposição com ideologias neoconservadoras (HARVEY, 2003), as quais se assemelham a configurações pré-modernas de servidão (CALDEIRA, 1999) voltadas para práticas mercantilistas de dominação similares às feitas pelos impérios coloniais do século XIX (HOBSBAWN, 2014b).

Assim, do ponto de vista histórico e evolutivo, o que temos é a mutação de um ethos que tem sua origem na concepção do que é “útil”, mas que gradualmente se reconstitui na racionalidade descrita por Martins (2008): instrumental e voltada para a maximização do lucro. Sem um estudo aprofundado desta dinâmica histórica e das transformações sociais, perdemos poder explicativo e deixamos de compreender as razões pelas quais o que era uma filosofia voltada para a liberdade e o bem-estar se transforma em uma lógica do ganho e do lucro como fim em si mesmo. Portanto, para traçar a genealogia do utilitarismo, teremos que entender as demandas sociais no contexto de seu surgimento, contexto este que precede sua solidificação como conceito claramente articulado nos trabalhos de Jeremy Bentham e John Stuart Mill.

Na concepção de Bentham (1996) e Mill (2015), a racionalidade instrumental do utilitarismo faz parte de todo e qualquer ‘cálculo social’ de busca pela felicidade e incorpora certos valores simbólicos que permeiam as relações de troca nas sociedades ocidentais, especialmente as de cultura anglo-saxã e germânica (WEBER, 2001). Porém, foi Durkheim (2015) quem demonstrou que a distinção entre as inter-relações simbólicas e associativas, por um lado, e as de cunho instrumental (LUKES, 1969), por outro, é artificial. Isto significa que buscamos na gênese do utilitarismo a demanda dos pensadores anteriores a Bentham e Mill, a dizer: John Locke (2002) e David Hume (2009). O argumento central a ser enfatizado para uma correta releitura do utilitarismo é que, na época de Locke, a demanda social, como veremos na próxima seção, era por um fim do patriarcalismo e do autoritarismo pré-moderno. O utilitarismo tem, portanto, um caráter historicamente ‘antiautoritário’, o que é contrário não somente ao sadomasoquismo institucionalizado (SOUZA, 2017, p. 41), mas também ao que La Boétie (CHAUI, 2013, p. 13) denominou vontade de servir.

Podemos demonstrar este aspecto antiautoritário no cerne da filosofia utilitarista, historicamente, lembrando a forte associação desta ideologia tanto com movimentos políticos da Inglaterra do século XVII quanto com a construção política e socioeconômica dos EUA no século XIX. Nestes contextos, vemos um claro elemento revolucionário centrado na ideia de democracia e liberdade oposta à vontade de servir e ao sadomasoquismo do Brasil colonial. Este lado revolucionário e ‘antipatriarcal’ do utilitarismo é pouco explorado nas leituras críticas, especialmente as leituras críticas no contexto da teoria sociológica brasileira. Argumentaremos que este lado do utilitarismo explica tanto o desenvolvimento de um Estado do bem-estar social nos países desenvolvidos quanto o atraso do Estado brasileiro por sua ausência.

Esta questão de ausência do utilitarismo surge quando perguntamos qual é a contribuição da cultura utilitária, no sentido proposto por Durkheim (2015) e Weber (2001), para a formação do Brasil. Existem evidências, especialmente no que tange a eficiência de nossas instituições (FERGUSON, 2011; SOTO, 2001), de que a contribuição do utilitarismo para nossa cultura é muito limitada. Por isso reafirmamos que é a ausência do utilitarismo um dos fatores explicativos da nossa cultura, política, economia e sociedade.

Nossa primeira tarefa é voltar às origens históricas do utilitarismo para distinguir o utilitarismo voltado para os interesses do mercado do utilitarismo que surge como negação do autoritarismo patriarcal, resquício da transição europeia do feudalismo para o capitalismo. Se os problemas da América Latina são resultado de um patrimonialismo autoritário, é possível que os ideais utilitários tenham algo a oferecer em termos de um discurso emancipatório.

2 Revisitando as origens históricas e conceituais do utilitarismo

A formulação explícita do pensamento utilitarista surge nos trabalhos de Bentham (1996) e Mill (2015) já nos séculos XVIII e XIX, respectivamente. Esta formulação é a base para toda formação do pensamento econômico neoclássico dos períodos subsequentes e é este pensamento que tanto marxistas quanto a teoria crítica do pensamento antitutilitarista (MARTINS, 2008) questionam. Existe, porém, um outro utilitarismo de cunho ‘antipatriarcal’, que é menos explorado pelas teorias econômicas e sociológicas. Este utilitarismo é desenvolvido no século XVII e surge no contexto histórico da Guerra Civil Inglesa (1642-1651).

Quando se pensam as grandes revoluções que impactaram a história do mundo, dificilmente lembramos da Guerra Civil Inglesa. Antes mesmo da Revolução Americana, da Revolução Francesa ou da Revolução Russa, a Guerra Civil Inglesa trouxe consigo os ideais do liberalismo e do que viria a ser o utilitarismo. Se no plano econômico tratou-se de um conflito entre a classe burguesa emergente e a aristocracia rural proprietária de terras, no plano moral, político e ideológico representou uma disputa entre o direito divino dos reis e os princípios da democracia parlamentarista.

Hill (1991) apresenta dados e argumentos para demonstrar que se tratou de uma verdadeira revolução filosófica e epistemológica, cuja a importância não deve ser subestimada: ao contrário de outras guerras civis que tratam apenas de quem deve governar sem mudar a cultura ou os princípios de uma sociedade, a Guerra Civil Inglesa tratou de definir como se deveria governar e o que significava governar através da inclusão dos indivíduos no processo decisório versus governar por meio da autoridade hereditária. A Guerra Civil Inglesa foi, portanto, uma “guerra de ideias” também e foi a primeira revolução vitoriosa da história europeia moderna, fazendo do parlamento o poder governante de facto.

No estudo da Ética Protestante, Weber (2001) explica o espírito do capitalismo como sendo “uma individualidade histórica (...) do ponto de vista do seu significado cultural” (WEBER, 2001, p. 43) e faz uso das obras do utilitarista americano Benjamin Franklin para elucidar, no cotidiano das práticas sociais, o significado desse espírito. Por exemplo, nos textos Necessary Hints to Those That Would Be Rich (1736) . Advice to a Young Tradesman (1748), Benjamin Franklin enuncia o que Weber (2001, p. 45) chama de “confissão de fé”, exprimindo o espírito do capitalismo como uma “filosofia de avidez”, em que o ideal dos homens honestos baseia-se no processo de acumulação de capital próprio como um fim ascético em si mesmo. A menção explícita e recorrente do termo “útil” nas obras de Franklin para descrever certas virtudes morais é o ponto chave desta nova epistemologia utilitária. De acordo com Franklin, “[a] honestidade é útil, pois assegura o crédito; e é assim com a pontualidade, com a industriosidade, com a frugalidade e essa é a razão pela qual são virtudes” (apud WEBER, 2001, p. 46).

A ênfase no termo “útil”, que obviamente reflete uma cultura e moralidade específicas do contexto histórico e geográfico em que viveu (a Nova Inglaterra do século XVIII), ressalta a ideia do dever do indivíduo para com sua carreira e defende esta postura como sendo aquilo “que há de mais característico na ética social da cultura capitalista [constituindo] sua base fundamental” (WEBER, 2001, p. 47 – colchete nosso).

Deve-se ressaltar que este ponto é muito similar à discussão trazida por Durkheim (2016, p. 192) a respeito da transição de uma solidariedade mecânica para uma orgânica. Ao contrário do que se pensa, é pelo fato de o utilitarismo se voltar para o individualismo e para a divisão social do trabalho que se torna possível o surgimento de configurações sociais orgânicas reguladas por relações contratuais. Assim, o ponto de partida para a discussão do espírito do capitalismo, antes mesmo de discutirmos seus aspectos imperialistas e coloniais, é o entrelaçamento inseparável de seu funcionamento ao da ideologia utilitarista que vem substituir a lógica das sociedades servis ou escravocratas.

Weber (2001, p. 49) argumenta que esta nova mentalidade baseada em uma moral capitalista teria sido vista na Idade Média como sendo “o mais baixo tipo de avareza e como uma atitude completamente isenta de respeito próprio” (WEBER, 2001, p. 49). Explica ainda que esse tipo de mentalidade medieval é válido também para qualquer outro sistema social pouco adaptado “às condições do capitalismo moderno” (WEBER, 2001, p. 49) e vemos que a cultura da sociedade brasileira apresenta em seu patriarcalismo o mesmo tipo de repulsa à moral capitalista de relações horizontais. De fato, o atraso sociopolítico e econômico explicado pela repulsa moral não é tão surpreendente assim. Weber já havia mostrado que, justamente, “naqueles países cujo desenvolvimento burguês-capitalista (...) permaneceu atrasado” (WEBER, 2001, p. 49), a “absoluta falta de escrúpulos na ocupação de interesses egoístas na obtenção do dinheiro” predominou de forma universal. De fato, este é um dos argumentos centrais de Holanda (2017, p. 92), quando explica o ‘malogro comercial de um Mauá’ pela incompatibilidade com nosso personalismo patriarcal.

Neste ponto, devemos ter cuidado para não cair no que Souza (2015) chama de racismo do culturalismo liberal-conservador. Não se trata aqui de defender a falsa dicotomia entre sociedades decentes e corruptas, artificialmente construída pelas elites que desejam justificar e, acima de tudo, legitimar seus privilégios (SOUZA, 2015, p. 105). O que estamos discutindo aqui é uma lógica utilitária em contraposição à lógica patrimonialista, que gera o tipo de capitalismo aventureiro, voltado para a aquisição de riqueza fácil e característico de todos os tipos de sociedade econômica que não conseguiram estabelecer uma ordem legal com leis e regras claramente estabelecidas (SOTO, 2001, pp. 87-89), sem dois pesos e duas medidas.

Por isso, enfatizamos que o cerne do utilitarismo em sua função ‘antiautoritária’ está centrado nos princípios descritos por Locke (2002), que desenvolveu sua filosofia liberal voltada para o individualismo e centrada no direito de propriedade que formaria a base da distribuição de terras e do direito de propriedades na formação dos EUA (FERGUSON, 2011, pp. 309-314). É justamente em Locke que vemos com maior clareza os instintos utilitários, antipatriarcais e contrários ao ethos patrimonialista. Já no início do Segundo Tratado sobre o Governo, Locke abre sua exposição com uma referência ao seu Ensaio Relativo a Certos Princípios Falsos dizendo:

Foi mostrado [...] que Adão não tinha [...] autoridade de qualquer natureza sobre seus filhos [...] [e, portanto,] é impossível que os governantes hoje existentes no mundo obtenham qualquer proveito ou derivem a menor sombra de autoridade daquilo que julgam ser a fonte de todo o poder, ou seja o domínio do privado e a jurisdição paterna de Adão. [...] Parece-me oportuno, para este objetivo, definir o que entendo ser poder político; que o poder de um magistrado sobre um súdito distingue-se do pátrio poder sobre os filhos, do senhor sobre servos, do marido sobre a mulher, e do nobre sobre o escravo. [...] Entendo, pois, poder político o direito de elaborar as leis [...] e de utilizar a força da comunidade para garantir a execução de tais leis (LOCKE, 2002, pp. 13-14 – colchetes nossos).

A passagem acima já sugere que Locke caminha na direção de fundamentar o governo de forma distinta da do “pátrio poder sobre os filhos, do senhor sobre os servos”. Vale ainda apresentar brevemente alguns dos principais pontos do trabalho de Locke para contrastar a conexão entre o utilitarismo liberal e o antipatriarcalismo autoritário. Analisaremos aqui apenas os capítulos Do Estado da Natureza . Propriedade, respectivamente, os capítulos II e V do Segundo Tratado.

Para Locke, o estado da natureza é “um estado de total liberdade [e] também de igualdade, no qual qualquer poder e jurisdição são recíprocos, e ninguém tem mais do que qualquer outro” (LOCKE, 2002, p. 15 – colchete nosso). Explica ainda que o fundamento deste estado é a “obrigação de amor recíproco entre os homens, sobre o qual baseia os deveres que temos uns para com os outros, donde deriva as grandes máximas de justiça e caridade” (LOCKE, 2002, pp. 15-16 – colchete nosso). É neste ponto que Locke esclarece sua noção de liberdade. O estado da natureza “mesmo em se tratando de um estado de liberdade não implica em licenciosidade” (LOCKE, 2002, p. 16).

Quase exatos duzentos anos depois[1], vemos em Durkheim (2016, p. 15) um argumento similar, mostrando que a ‘liberdade do indivíduo’ é fruto e não contrário à regulamentação. A dicotomia correta, tanto em Locke quanto Durkheim, seria, portanto, entre ‘liberdade’ e ‘licenciosidade’. A sutileza do argumento está na demonstração de que o estado de natureza, teorizado por Hobbes (2009), tem a licenciosidade em sua origem, gerando a conclusão equivocada de que somente com Estado ou Leviatã podem os homens viver em paz. Porém, se a liberdade já é oposta à licenciosidade, os homens não estariam “obrigados a submeter-se à vontade caprichosa de um rei” (LOCKE, 2002, p. 20).

É neste ponto que Locke introduz seus argumentos sobre a propriedade privada, dizendo que “fica patente que Deus [...] deu a terra aos filhos dos homens, concedendo-a em comum a todos os homens” (LOCKE, 2002, p. 29). O pulo do gato, em direção ao que se tornaria um argumento a favor do utilitarismo baseado na propriedade privada, surge na passagem seguinte, em que irá “demonstrar como os homens podem chegar à propriedade de partes daquilo que Deus deu à Humanidade em comum” (LOCKE, 2002, p. 29). A solução elegante de Locke é a associação que cria entre o trabalho e o direto de posse do indivíduo àquilo que é fruto do seu próprio trabalho. O autor escreve:

Embora a terra e todos os seus frutos seja propriedade comum a todos os homens, cada homem tem uma propriedade particular em sua própria pessoa; a esta ninguém tem qualquer direito senão ele mesmo. O trabalho de seus braços e a obra das suas mãos, pode-se afirmar, são propriamente dele. Seja o que for que ele retire da natureza no estado em que lhe forneceu e no qual o deixou, mistura-se e superpõe-se ao próprio trabalho, acrescentando-lhe algo que pertence ao homem e, por isso mesmo, tornando-o propriedade dele. Retirando-o do estado comum em que a natureza o colocou, agregou-lhe com seu trabalho um valor que o exclui do direito comum de outros homens. [...] Podemos fixar o tamanho da propriedade obtida pelo trabalho pelo tanto que podemos usar com vantagem para a vida e evitando que a dádiva se perca; [é] a condição da vida humana, que exige trabalho material com que trabalhar, necessariamente introduziu a propriedade privada (LOCKE, 2002, pp. 30-34 – colchetes nossos).

Podemos concluir esta seção dizendo que o utilitarismo pode ser recíproco, associativo e humanista sem cair na armadilha do individualismo licencioso e personalista. Talvez seja o momento de repensar a economia capitalista contemporânea e os seus resultados nefastos na condição humana através de uma genealogia do utilitarismo, procurando determinar o que é fruto de seu fracasso e o que é de fato um efeito de outras influências epistemológicas, ideológicas e culturais. É possível que esta seja a maior de todas as ironias do pensamento pós-colonial: o argumento utilitarista original, que começa como um tratado sobre o governo e se torna a base da lógica capitalista, é também o argumento mais ferrenho e devastador do patriarcalismo, que pôde ser incorporado ao capitalismo brasileiro sem dificuldade devido à ausência de ideologias utilitárias entre nosso povo e, acima de tudo, nossas elites.

3 Utilitarismo como colesterol: o bom e o ruim

Como argumentamos até agora, é a ausência do utilitarismo em sua acepção original que sustenta o tipo de solidariedade licenciosa responsável pela estruturação da sociedade desigual, violenta e sadomasoquista que ainda caracteriza o Brasil. Durkheim (2016) mostrou ser a solidariedade orgânica decorrente da divisão do trabalho e de um aumento de liberdade que produz uma redução dos efeitos nefastos da solidariedade licenciosa. Por outro lado, sabemos que o conceito de utilitarismo passou a ter o significado diferente do original, permitindo que os valores do ‘familismo do patriarcalismo rural’ sejam perfeitamente compatíveis com o espírito do capitalismo contemporâneo, seja em sua forma aventureira, seja em sua forma imperialista ou neoliberal. Assim, cabe um esclarecimento a respeito destas duas formas de utilitarismo.

Durkheim (2015), em sua discussão sobre a propriedade privada, foi um dos primeiros a perceber que existem dois significados quando nos referimos ao conceito de utilitarismo. Por um lado, é o vínculo simbólico que une pessoas a objetos por meio do trabalho, o que permite às relações utilitárias um caráter associativo:

[a] segunda regra da moral humana: aquela que [...] protege a propriedade da pessoa [...] contra atentados ilegítimos. A primeira pergunta a ser feita relaciona-se com as causas que determinam o estabelecimento dessa regra. De onde vem o respeito que a propriedade alheia inspira, respeito que a lei consagra por meio de sanções penais? [...] O problema reside em saber em que consiste o vínculo que une a pessoa a objetos que lhe são externos [...]. Diz Stuart Mill: ‘A propriedade não implica mais que o direito de cada um sobre seus talentos pessoais, sobre aquilo que ele pode produzir ao aplicá-los’ (Economia Política, 1, 256). (DURKHEIM, 2015, pp. 145-146).

Neste sentido, o utilitarismo, mesmo que voltado para a propriedade privada, tem um caráter essencial para a construção de uma sociedade orgânica e cosmopolita. Não se trata aqui do problema da exploração que busca a incessante acumulação de lucro, a qual estrutura a lógica do capitalismo, como afirma a interpretação antiutilitarista. O que o utilitarismo representava naquele momento histórico era mais uma reação do pensamento liberal às relações feudais[2] (BLOCH, 2015), relações estas de pouca transparência e muita arbitrariedade. Ao contrário do que sugere o pensamento antiutilitarista, a busca por relações sociais mais transparentes não necessariamente diminui ou elimina formas humanísticas de associação.

Durkheim percebeu a diferença entre estas duas interpretações do utilitarismo quando observou que, nas sociedades modernas, existem formas de propriedade que não são vinculadas ao trabalho, mostrando o caráter ideológico que os economistas conferem ao utilitarismo:

[o] postulado no qual essa teoria baseia-se parece ser tão evidente que o encontramos na base dos mais diferentes sistemas: os socialistas o invocam, assim como os economistas. [Porém,] a propriedade não é adquirida exclusivamente por meio do trabalho, pode derivar também de outras fontes [...]. O herdeiro é investido de bens dos quais não é o autor e que nem sequer deve a um ato daquele que os criou. [...] Restam as doações [...] se a propriedade só é respeitável e normal quando alicerçada no trabalho, como poderia ser legítima baseada na doação? [...] [O] próprio Mill reconhecia que é preciso haver algum limite justamente porque não é moral nem útil que os homens enriqueçam sem nada ter feito (DURKHEIM, 2015, pp. 146-147).

A separação do utilitarismo em seus dois sentidos mostra dois fenômenos distintos. Primeiro, mostra que em algum momento histórico houve uma deturpação de seu sentido original. Em segundo lugar, nada impede que nos apropriemos do utilitarismo em seu sentido original para influenciar relações sociais no Brasil, por meio de narrativas fortalecedoras de configurações sociais modernas e capazes de romper com a lógica sadomasoquista que permeia nosso tecido social contemporâneo. Porém, isso é uma questão que vai muito além da discussão semântica.

Soto (2001) demonstrou que a ausência de uma ética utilitarista na América Latina impede o surgimento de um capitalismo mais justo e democrático característico do Estado de direito e bem-estar social, similar ao que se vê nos países ocidentais com altos índices de igualdade e desenvolvimento humano. O autor argumenta ainda que são a clareza e a transparência quanto ao reconhecimento dos direitos de propriedade que garantem estes resultados socioeconômicos. É possível interpretar aquilo que Soto (2001, p. 123) chama de “mistério” da consciência política como sendo manifestações do que chamo de ethos utilitário (RAND, 1964; WEBER, 2001). Isto é o que Locke já havia descrito como uma questão dos direitos de propriedade privada baseados no trabalho e que Durkheim (2016, p. 187) apresentou como “solidariedade contratual”. Entretanto, ainda temos que responder: como chegamos a esse ethos utilitário?

É Durkheim (2016) quem vai sintetizar essa evolução social e, aqui, a descrevemos usando o trabalho de autores brasileiros contemporâneos. Começamos com a solidariedade mecânica regulada pelo ethos autoritário (CHAUI, 2013) e patrimonialista (SOUZA, 2017) e, “à medida que avançamos na evolução social” (DURKHEIM, 2016, p. 145), reparamos que uma de duas coisas pode acontecer. A primeira é que a consciência coletiva simplesmente se sobrepõe à individual, porque o agente utilitário entende que a solidariedade orgânica significa que o melhor para o indivíduo – ele próprio – é também melhor para o grupo, e vice-versa.

Em um segundo cenário, talvez mais comum, os impulsos sadomasoquistas continuam presentes mesmo com as mudanças sociais, gerando a antinomia valorativa com os impulsos da alteridade. Neste caso, Durkheim (2016) entende que a sociedade se mantém coesa por meio de uma forma de solidariedade híbrida, com partes iguais de elementos valorativos mecânicos e orgânicos. Sugere, então, que dois fatores são essenciais para que tal sociedade mantenha o mínimo de organicidade. O primeiro fator é a disciplina da ação (ou do trabalho), que deve ter um caráter de continuidade distinto dos impulsos ínfimos e intermitentes da solidariedade mecânica. O segundo fator é a clara definição das crenças e práticas, que, quando transparentes, deixam menos margem para divergências individuais e aumentam a intensidade da consciência coletiva.

Apoiado em Freyre (2016a), Souza (2017) traz uma discussão similar no âmbito de raça. Explica que processo de urbanização e industrialização foi um fator decisivo de mudança ao diminuir a importância da sociedade e cultura patriarcal e permitiu o surgimento do mulato habilidoso – “o elemento médio, sob a forma de uma meia-raça” (SOUZA, 2017, p. 64), intimamente associado à formação de uma classe média, tanto no sentido da mobilidade social quanto no sentido da criação de diferenciação social que transforma a outrora “raça condenada” em “classe condenada”.

Porém, o ponto chave deste argumento, para a presente discussão, é a natureza desta nova classe social, destes novos bacharéis que constituem “uma nobreza associada às funções do Estado e de um tipo de cultura mais retórica e humanista do que a cultura mais técnica e pragmática do mestiço artesão” [grifo meu] (SOUZA, 2017, p. 66).

Apesar da importância de contextualizar as mudanças culturais por meio de uma discussão de raça, vemos, no nível dos valores, a evolução de duas mentalidades a partir de uma mesma origem patriarcal: uma que é simplesmente a mesma lógica simbólica de dominação mascarada na forma de uma cultura “retórica e humanista”, e outra que tenta romper com o passado por meio de uma cultura “técnica e pragmática”. Temos, assim, três categorias: (1) o patrimonialismo original, (2) o patrimonialismo retórico e humanista da nova sociedade urbana (SOUZA, 2017, p. 60) e (3) o elemento utilitário técnico e pragmático, que é reprimido ou relegado a segundo plano ao longo do processo de construção social brasileira.

Souza (2017, p. 66) explica ainda que a consequência desta nova cultura, desta nova forma de ‘patrimonialismo de corte’, é o surgimento de novas rivalidades e preconceitos que se proliferam na medida que se intensifica a competição entre novos elementos da sociedade. Estas rivalidades funcionam como um mecanismo de distinção que provoca “o prazer da ‘superioridade’ e do mando” (SOUZA, 2017, p. 67) e cria uma classe que pode ser explorada a baixo custo. Entretanto, percebemos que, independentemente da questão de raça, temos o mesmo princípio do sadomasoquismo, que pode ser interpretado como a falta da ‘ética utilitarista’.

Conclusão

Temos no Brasil hoje o que podemos chamar de capitalismo sem os valores utilitários, um capitalismo que, ao mesmo tempo, exibe o ‘familismo patriarcal’, o ‘sadomasoquismo das relações patrimoniais’ e falsos valores universalizantes que não incluem os valores originais do utilitarismo. Neste artigo, procuramos mostrar a importância de uma separação epistemológica dos dois possíveis significados do utilitarismo, porque acreditamos que uma análise mais precisa de nossa condição social requer, além de um estudo genealógico de nossas origens, um estudo de valores que estão ausentes em nossa cultura.

Mostramos que utilitarismo emergiu como reação ao patriarcalismo e autoritarismo, característicos das relações sociais existentes na Inglaterra dos séculos XVII, XVIII e XIX. Também tentamos mostrar que foi a partir de uma demanda de emancipação das estruturas semifeudais dos séculos anteriores que o utilitarismo surge como uma filosofia voltada para a busca da liberdade, igualdade e felicidade humana. Finalmente, argumentamos que esta proposta original se deturpou em um utilitarismo que define as relações sociais por meio de uma visão mercadológica incompatível com princípios democráticos.

No caso dos EUA do século XX, esta distinção entre ‘utilitarismo democrático’ e ‘utilitarismo mercadológico’ foi expressa claramente na máxima de Ayn Rand, na qual afirmou que “[a] ética objetivista advoga e sustenta o egoísmo racional[3]” (RAND, 1964, p. 1 – colchete nosso). Não foi coincidência que Rand (1964) escreveu estas palavras proféticas no momento em que o capitalismo americano passava por um período de fraqueza intelectual, que inevitavelmente levaria para a virada neoliberal uma década depois. Como já proposto, este utilitarismo definiu o capitalismo no período de aproximadamente 22 anos entre o pós-guerra e o início do período neoliberal (HARVEY, 2007). Finalmente, buscamos neste embate ideológico uma explicação para o Brasil e, mudamos em nossa análise, concluímos que seria muito difícil utilizar o utilitarismo como variável explicativa para dinâmica evolutiva da sociedade brasileira. Porém, a ausência do ethos utilitarista, baseado em um “egoísmo racional Radiano”, em nossa cultura tem valor explicativo, pois sugerimos que ela está positivamente correlacionada com a presença de um sadomasoquismo enraizado em nossas instituições.

Pode-se argumentar, portanto, que a condição social brasileira é fruto de uma cultura autoritária e patriarcal (FREYRE, 2016b; SONDROL, 1991), e não de uma cultura utilitarista burguesa que surgiu na Europa Ocidental a partir das ideias revolucionárias dos séculos XVII, XVIII e XIX com as Revoluções Inglesa, Americana, Francesa e, posteriormente, com a ‘Primavera dos Povos’ (HOBSBAWN, 2014a; 2014b). Especulamos ainda que a ausência de uma ‘ética’ utilitarista pode ser um fator que promove e reproduz práticas autoritárias e patriarcais na esfera do Estado e dos mercados, sustentadas pelo ethos patrimonialista em nossa cultura. Concordamos com Souza (2017, p. 207) quando afirma que nosso liberalismo é falso e conservador: para ser liberalismo de verdade, deve por definição possuir uma base utilitarista.

Martins (2008, p. 113) menciona o “esforço de Durkheim de articular as representações coletivas com as experiências dos indivíduos em interação na vida cotidiana” como ponto de partida para “articular teoricamente suas reflexões sobre as representações coletivas, com as teses, aparentemente opostas, do pragmatismo social norte-americano”, representado nas figuras de William James, George Herbert Mead e John Dewey. Se olharmos atentamente para as influências e trabalhos destes autores, percebemos uma conexão com a proposta utilitarista, em seu sentido original, com a proposta associativista.

Devemos lembrar o texto O Individualismo e os Intelectuais (LUKES, 1969), em que Durkheim reafirma a dignidade do indivíduo como o objeto sagrado de qualquer sociedade cosmopolita, de forma que a solidariedade orgânica mais elevada não é mediada nem pela ‘cultura nacional’ nem pela ‘doutrina religiosa tradicional’, mas sim pela aderência a princípios e valores políticos associados aos direitos individuais e à defesa da dignidade humana. Logo no início do texto, Durkheim afirma que existe uma ambiguidade preliminar que deve ser esclarecida: “a condenação do individualismo foi facilitada pela indistinção deste conceito com o utilitarismo estreito e o utilitarismo egoísta de Spencer e dos economistas[4]” (apud LUKES, 1969, p. 20). De fato, o que impressiona no caso brasileiro é a completa ausência de qualquer ideologia remotamente ligada ao utilitarismo, com exceção das ideias neoliberais e ideais do capitalismo pós-moderno que têm tido certa inserção em alguns círculos da sociedade brasileira.

Referências

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Notas

[1] O Segundo Tratado sobre o Governo foi escrito em 1690 e o Da Divisão Social do Trabalho em 1893. Porém, é no prefácio da segunda edição de 1902 que esta análise aparece.
[2] Bloch (2015) explica que, além do período feudal, localizado por historiadores na Idade Média Europeia, existe o conceito de feudalismo que sociologicamente define um estado ou grau de civilização. De fato, foi durante a Revolução Francesa que o termo, ou melhor, o adjetivo “feudal” se popularizou e o famoso decreto de 11 de agosto de 1789 afirmou que “[a] Assembleia Nacional destruiu completamente o regime feudal”.
[3] O texto original é em inglês. A tradução apresentada aqui é de inteira responsabilidade do presente autor.
[4] O texto original é em inglês. A tradução apresentada aqui é de inteira responsabilidade do presente autor.


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