Resumo: Enunciado central na teoria sociológica clássica e contemporânea é aquele que concebe a modernização das sociedades como uma ruptura em relação a uma pré-modernidade totalizada pelo mito e pela religião e, ato contínuo, como o crescente encerramento das ordens, esferas ou subsistemas da sociedade em legalidades próprias ou códigos intrínsecos e intransitivos. Pretende-se, neste artigo, realizar uma leitura da tradição que vai da reificação (Lukács) à identidade promovida pela racionalidade instrumental (Adorno e Horkheimer) como uma crítica radical àquele imaginário, na medida em que concebe a constituição de uma nova forma de indiferenciação no caminho da modernidade capitalista.
Palavras-chave:ReificaçãoReificação,Racionalidade instrumentalRacionalidade instrumental,IdentidadeIdentidade.
Abstract: A central statement in classical and contemporary sociological theory is one that conceives the modernization of societies as a rupture in relation to a pre-modernity totalized by myth and religion and, as a consequence, the growing closure of the orders, spheres or subsystems of society in their inherent legalities or intrinsic and intransitive codes. This article intends to make a reading of the tradition that goes from the reification (Lukács) to the identity promoted by the instrumental rationality (Adorno and Horkheimer) as a radical critique to that imaginary in the measure in which it conceives the constitution of a new form of undifferentiation in the way of capitalist modernity.
Keywords: Reification, Instrumental Rationality, Identity.
Artigos em fluxo contínuo
Indiferenciação por identidade: de História e Consciência de Classe à Dialética do esclarecimento
Undifferentiation by identity: From history and class consciousness to dialectic of enlightenment

Recepção: 02 Outubro 2018
Aprovação: 10 Dezembro 2018
A despeito da sua incisiva autocrítica em 1967, denunciando o fundamento idealista implicado tanto na concepção do proletariado como sujeito-objeto idêntico da história como numa concepção de totalidade que tendia a menosprezar o caráter decisivo do econômico como momento predominante numa ontologia materialista do ser social, pode-se dizer que História e Consciência de Classe continuou, durante todo o século XX, a ser a obra de Lukács de maior importância para a compreensão de alguns desenvolvimentos posteriores da teoria social, sobretudo por sua influência no chamado marxismo ocidental (ANDERSON, 2004), principalmente seus ecos nas obras de Adorno e Horkheimer.
Como se sabe, não são estas tendências que fazem História e Consciência de Classe ter uma importância crucial em obras como Eclipse da Razão e Dialética do Esclarecimento, pois já aí Adorno e Horkheimer anunciam uma perspectiva crítica ao conceito hegeliano-marxista de totalidade, assim como, a partir de uma reflexão sobre a singularidade do capitalismo tardio e o fascismo, abandonam qualquer esperança idealista no papel revolucionário intrínseco ou necessário do proletariado. A importância do conjunto de ensaios de Lukács, escritos entre 1919 e 1922 e publicados como livro em 1923, reside na fundamentação de uma crítica dos fenômenos superestruturais e ideológicos nos elementos trazidos pela crítica marxiana da economia política articulados ao conceito weberiano de racionalização[1].
Essa primeira transição da crítica da economia política para a crítica da ideologia operada por Lukács está sintetizada no seu conceito de reificação[2], desenvolvido principalmente no célebre ensaio A Reificação e a Consciência do Proletariado.
O objetivo do presente artigo é o de ler a linhagem que vai da reificação à lógica da identidade promovida pela racionalidade instrumental como uma crítica radical, muito embora devedora do conceito weberiano de racionalização formal, à compreensão da modernidade como um processo marcado pela crescente autonomização das “ordens” ou “esferas” da vida em “legalidades próprias” (WEBER, 2016, pp. 367-368), dos subsistemas em “meios simbólicos generalizados” (PARSONS, 1969; 1974) e da modernidade definida como diferenciação funcional dos sistemas parciais em códigos binários intransitivos (LUHMANN, 1998; 2006; 2010).
Nas etapas a seguir buscarei, em primeiro lugar, evidenciar, através de leitura do ensaio A Reificação e a Consciência do Proletariado, a compreensão do conceito de reificação como síntese dos conceitos de fetichismo da mercadoria (Marx) e racionalização formal (Weber). Antes disso, enfatizarei algumas passagens do ensaio Consciência de Classe que dizem respeito à forma particular como Lukács estabelece um corte entre pré-modernidade e modernidade, ou melhor, entre pré-capitalismo e capitalismo.
Num segundo momento, tratarei das continuidades e descontinuidades em relação ao conceito de reificação na Dialética do Esclarecimento. Procurarei defender, segundo o interesse da problemática anunciada acima, que nessa obra Adorno e Horkheimer operam a passagem de uma visão paradoxal da reificação (legalidade do todo vs. legalidades específicas às partes) presente em Lukács, amparado em Engels, para uma afirmação da racionalização instrumental como promotora de uma lógica da identidade ou de um processo totalizante de homogeneização de todas as dimensões da vida.
Por último, na forma de considerações conclusivas, buscarei fundamentar a expressão indiferenciação por identidade como uma perspectiva alternativa, heurística e criticamente produtiva, ao enunciado da autonomização das esferas sociais, sobretudo da modulação sistêmica da modernidade como diferenciação funcional.
Para Lukács (2003, pp. 148-149), é só no capitalismo que podemos falar propriamente em “interesses de classe”, dado que em formações sociais pré-capitalistas tais interesses nunca “conseguem se distinguir claramente no que concerne ao aspecto econômico”, isto porque numa “sociedade dividida em castas, em estamentos etc.” há união inextricável entre os elementos econômicos, políticos e religiosos.
No encalço da célebre passagem d’O Manifesto de 1848[3], é só a “hegemonia da burguesia” que consegue, segundo Lukács (2003, p. 149), operar um verdadeiro desencantamento das relações de classe, expressas então em seu fundamento exclusivamente econômico. A diferença mais importante “é que toda sociedade pré-capitalista forma uma unidade incomparavelmente menos coerente, do ponto de vista econômico, do que a capitalista” (LUKÁCS, 2003, p. 149). Naquela, “a autonomia das partes é muito maior, e suas interdependências econômicas são muito menos desenvolvidas do que no capitalismo” (LUKÁCS, 2003, p. 149). A fragmentação das “partes da sociedade”, reproduzida pela débil “circulação das mercadorias”, impossibilita “a coesão organizacional da sociedade e do Estado”, a constituição de sua “forma unitária”, o que faz com que as relações econômicas apareçam sob “formas quer naturais e religiosas, quer políticas e jurídicas” (LUKÁCS, 2003, p. 152). Em tais sociedades, continua Lukács (2003, pp. 152-153), as “categorias econômicas e jurídicas são objetiva e substancialmente inseparáveis e entrelaçadas umas nas outras”.
Isso não nega “o fundamento econômico objetivo de todas as formas de sociedade” (LUKÁCS, 2003, p. 154), pelo contrário, afirma-se aqui que “as classes só podiam ser retiradas da realidade histórica imediatamente dada por intermédio da interpretação da história operada pelo materialismo histórico, enquanto no capitalismo as classes são essa realidade imediata e histórica” (LUKÁCS, 2003, p. 155).
Vemos assim, a partir dessas passagens, como Lukács compartilha com o “discurso sociológico hegemônico” (TAVOLARO, 2005; 2007; 2017) a visão das sociedades pré-modernas como formações sociais indiferenciadas[4], algo que repercute tanto em Adorno e Horkheimer quanto na teoria habermasiana do agir comunicativo. A peculiaridade do discurso lukácsiano sobre a modernidade é que a afirmação de uma dessacralização das relações de exploração que passam a se exprimir claramente como relações de classe e da autonomização do econômico em relação ao jurídico, ao religioso e ao político é imediatamente acompanhada de uma reflexão sobre a imposição de um novo fator totalizante de indiferenciação (formal): a reificação – proposição que defenderei a seguir.
A relação entre a crítica da ideologia presente em História e Consciência de Classe, característica do marxismo ocidental, e a crítica marxiana da economia política é explicitada já nas primeiras páginas de A Reificação e a Consciência do Proletariado, em que Lukács (2003, p. 193) concebe a mercadoria, ponto de partida da obra madura de Marx, como “o problema central e estrutural da sociedade capitalista em todas as suas manifestações vitais”. É na “estrutura da relação mercantil”, portanto, que se pode encontrar “o protótipo de todas as formas de objetividade e de todas as suas formas correspondentes de subjetividade na sociedade burguesa” (LUKÁCS, 2003, p. 193).
Nosso objetivo é somente chamar a atenção – pressupondo as análises econômicas de Marx – para aqueles problemas fundamentais do caráter fetichista da mercadoria como forma de objetividade, de um lado, e do comportamento do sujeito submetido a ela, de outro (LUKÁCS, 2003, p. 194).
Trata-se de uma afirmação continuamente reiterada ao longo do ensaio: o seu fim é o desdobramento das consequências subjetivas do fetichismo enquanto estrutura objetiva, central e singularizante das relações sociais no capitalismo. Podemos falar de uma abordagem filosófica e sociológica do problema do fetichismo, conhecida a relação de Lukács com Weber, da qual emerge a problemática da racionalização, e com Simmel, de quem irá assumir as reflexões sobre a tragédia da cultura.
Lukács reconhece que em Marx já existe uma significativa elaboração da dimensão subjetiva do desenvolvimento da forma-valor, de ascenso possível ao pensamento somente quando já está plenamente desenvolvida na forma-dinheiro, “categoria universal de todo o ser social” no modo de produção capitalista consolidado e em plena expansão. É no capítulo sobre a mercadoria, mais especificamente na seção sobre o fetichismo, que se encontra, para Lukács (2003, p. 198), a descrição do “fenômeno fundamental da reificação”.
Objetivamente, a reificação se exprime na cisão entre o mundo das coisas e a atividade humana, subjetivamente é a própria atividade do ser humano que aparece apartada da força de trabalho que a realiza. Por um lado, objetivamente, é o “trabalho humano abstrato (portanto, formalmente igual)” (LUKÁCS, 2003, p. 200) que permite a permutabilidade de distintas mercadorias; de outro, subjetivamente, tal trabalho humano abstrato “torna-se também o princípio real do processo efetivo de produção de mercadorias” (LUKÁCS, 2003, p. 200).
Se perseguirmos o caminho percorrido pelo desenvolvimento do processo de trabalho desde o artesanato, passando pela cooperação e pela manufatura, até a indústria mecânica, descobriremos uma racionalização continuamente crescente, uma eliminação cada vez maior das propriedades qualitativas, humanas e individuais do trabalhador (LUKÁCS, 2003, p. 201).
Até aqui, como se evidencia, nada além de Marx. A síntese que marca o conceito de reificação e certa linhagem interna ao marxismo ocidental se apresenta algumas linhas após o trecho acima transcrito. “Para nós, o mais importante é o princípio que assim se impõe [no processo industrial de trabalho]: o princípio da racionalização baseada no cálculo, na possibilidade do cálculo” (LUKÁCS, 2003, p. 202 – colchetes nossos), que expressa e é expresso na: 1) produção especializada, em que o “processo torna-se a reunião objetiva de sistemas parciais racionalizados, cuja unidade é determinada pelo puro cálculo, que por sua vez devem aparecer arbitrariamente ligados uns aos outros” (LUKÁCS, 2003, pp. 202-203); 2) consequente fragmentação dupla do objeto e do sujeito da produção.
É aqui que se liga de forma indissociável a racionalização do econômico pensada por Weber – a configuração metódica dos meios adequados para alcançar o fim de acumulação de capital privado, atrelada à passagem de uma racionalidade material para uma racionalidade formal, ou seja, a aplicação de métodos racionais universalizáveis – e a concepção marxiana (embora o Lukács dos anos 20 ainda não tivesse tido acesso aos manuscritos juvenis de Marx) de alienação ou estranhamento, cisão entre trabalho e força de trabalho, trabalhador e processo de trabalho, trabalhador e produto do trabalho[5].
A atitude contemplativa diante de um processo mecanicamente conforme às leis e que se desenrola independentemente da consciência e sem a influência possível de uma atividade humana, ou seja, que se manifesta como um sistema acabado e fechado, transforma também as categorias fundamentais da atividade imediata dos homens em relação ao mundo: reduz o espaço e o tempo a um mesmo denominador e o tempo ao nível do espaço. [...] O tempo é tudo, o homem não é mais nada; quando muito, é a personificação do tempo (LUKÁCS, 2003, pp. 204-205).
Vê-se aqui o pleno desdobramento das consequências implicadas nas oposições entre valor de uso e valor de troca, trabalho útil e trabalho abstrato, qualidade e quantidade e, finalmente, espaço e tempo, já elaboradas por Marx, mas agora num contexto histórico de radicalização dos processos de racionalização do processo de trabalho com a introdução dos métodos tayloristas de aumento de produtividade e economia de tempo. A temporalização “científica” do processo de trabalho, visando produzir a maior quantidade de mercadorias no menor intervalo de tempo possível, junto à concentração de todos os saberes (know-how) difusos entre os trabalhadores na “gerência científica” evidencia, de forma sensível, uma quantificação/abstração crescente de toda experiência concreta e qualitativa na relação entre o sujeito e o produto do seu trabalho.
Diante dessas forças objetivas levadas a cabo pela empresa moderna, entendida como a generalização do “trabalho racionalmente mecanizado” (LUKÁCS, 2003, p. 206), a subjetividade torna-se agente passivo, meramente contemplativo, “a personalidade torna-se o espectador impotente de tudo o que ocorre com sua própria existência, parcela isolada e integrada a um sistema estranho” (LUKÁCS, 2003, p. 205).
O ponto de inflexão fundamental é que tais processos necessariamente se estendem para além do mundo do trabalho e do espaço disciplinar da empresa moderna, de modo que “o destino do operário torna-se o destino geral de toda a sociedade” (LUKÁCS, 2003, pp. 206-207).
A separação do produtor dos seus meios de produção, a dissolução e a desagregação de todas as unidades originais de produção etc., todas as condições econômicas e sociais do nascimento do capitalismo moderno agem nesse sentido: substituir por relações racionalmente reificadas as relações originais em que eram mais transparentes as relações humanas. [...] o princípio da mecanização racional e da calculabilidade deve abarcar todos os aspectos da vida (LUKÁCS, 2003, p. 207).
A associação com as páginas finais d’A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo (WEBER, 2004) é imediata: o dever da profissionalização/ especialização desvinculado de qualquer ética, a ascese profissional convertida num fim em si mesma, a renúncia ao “homem universalista”, a atividade esvaziada de sentido, o poder crescente dos bens exteriores sobre os seres humanos e, sobretudo, a realização da tendência à generalização da racionalidade econômica – a metódica calculista, a ação racional referente a fins –, “das frias mãos esqueléticas das ordens racionais” (WEBER, 2016, p. 391) para todos os âmbitos da vida social, todos estes temas deixam de ser sugeridos para serem afirmados. No Lukács de História e Consciência de Classe, a relação entre racionalização e reificação deixa de ser uma interrogação possível no terreno dos juízos de valor (nos termos de Weber, 2004) para ser categoricamente exclamada.
O problema dos seus mestres em Heidelberg – Lukács (2003, pp. 213-214) se refere especialmente a Simmel, mas podemos facilmente generalizar para Weber – é que eles não conseguem, com seus conceitos respectivos de tragédia da cultura moderna e racionalização, ir “além da simples descrição”, mantendo-se no nível das “formas exteriores de manifestação da reificação”, separando assim “os fenômenos da reificação e o fundamento econômico de sua existência”. Lukács (2003, pp. 214-216), entretanto, não deixa de atentar para a perspicácia de Weber ao perceber a analogia entre o Estado moderno e moderna empresa capitalista.
Citando-o longamente, o autor húngaro chama atenção para a reflexão weberiana sobre a separação análoga entre funcionário/meios administrativos e produtor imediato/meios de produção, assim como para o processo similar de racionalização formal nos dois casos: tanto o juiz como a gerência produtiva baseiam a sua ação em saberes sistematizados em regras que conferem previsibilidade e calculabilidade aos procedimentos jurídicos e produtivos, respectivamente. “Surge uma sistematização racional de todas as regulamentações jurídicas da vida, sistematização que representa, pelo menos em sua tendência, um sistema fechado e que pode se relacionar com todos os casos possíveis e imagináveis” (LUKÁCS, 2003, p. 216).
O princípio do cálculo racional se orienta sempre mais para a generalização e para a eliminação do acaso existente em situações concretas imprevisíveis e no “arbítrio individual”, agindo assim como a condição principal na constituição do “caráter contemplativo da atitude capitalista do sujeito” (LUKÁCS, 2003, p. 218).
Lukács (2003, pp. 219-220, itálico meu) menciona explicitamente a “racionalização formal do direito, do Estado, da administração etc.” que, “objetivamente e realmente”, assim como a empresa capitalista moderna, decompõe “todas as funções sociais em seus elementos” através de uma “pesquisa semelhante das leis racionais e formais que regem esses sistemas parciais”. Subjetivamente, a racionalização de tais ordens implica em efeitos análogos na consciência, devido “à separação entre o trabalho e as capacidades e necessidades individuais daquele que o realiza”.
Podemos então afirmar que, para Lukács (2003), a reificação não significa apenas a afirmação da lógica da economia e do fetichismo – em que as relações sociais aparecem transfiguradas numa relação entre coisas – em todas as esferas da vida social, muito embora seja central para ele a imputação dos fenômenos da reificação aos seus fundamentos econômicos, ao fetichismo da mercadoria. Significa também, e aí está a influência do conceito weberiano de racionalização, o desenvolvimento de processos formais análogos em todas as esferas da sociedade capitalista moderna. Tal unidade, subjacente aos processos objetivos de estruturação formal das diversas esferas, liga-se necessariamente a processos também unitários de subjetivação: em todos os âmbitos, o desenvolvimento de processos de trabalho formalizados tecnicamente e crescentemente independentes dos sujeitos que o realizam (estranhamento) cria uma subjetividade puramente contemplativa, aniquilada, cindida em relação ao mundo que a rodeia.
“Foi o capitalismo a produzir pela primeira vez, com uma estrutura econômica unificada para toda a sociedade, uma estrutura de consciência – formalmente – unitária para o conjunto da sociedade” (LUKÁCS, 2003, p. 221). Essa estrutura de consciência é marcada por uma atitude contemplativa não só em relação ao mundo objetivo, mas também em relação à própria subjetividade, que aparece como constituída por “faculdades objetivadas e coisificadas”.
Exemplo maior da reificação da subjetividade se encontra, para Lukács (2003, p. 222), na “prostituição” da experiência presente no jornalismo, em que “a própria subjetividade, o saber, o temperamento e a faculdade de expressão tornam-se um mecanismo abstrato”. Cita, para ilustrar a reificação na vida íntima, “a franqueza ingenuamente cínica” de Kant, que define o casamento como “a união de duas pessoas de sexos diferentes em vista da posse recíproca de suas propriedades sexuais durante toda a sua vida” (LUKÁCS, 2003, p. 223).
A separação entre númeno e fenômeno, na Crítica da Razão Pura, é vista por Lukács (2003) como expressão maior, no domínio filosófico, do estranhamento entre a objetividade e a subjetividade característico da reificação. Na ciência, ou melhor, na concepção positivista da ciência, a reificação se expressa sobretudo no elogio ao dado, à factualidade, à especialização crescente, em suma, à imediaticidade do objeto construída pelas disciplinas parciais, tendentes a formar, cada uma, “um sistema formalmente fechado de leis parciais e especiais, para o qual o mundo que se encontra fora do seu domínio e sobretudo a matéria que ela tem por tarefa conhecer, ou seja, seu próprio substrato concreto de realidade, passa sistemática e fundamentalmente por inapreensível” (LUKÁCS, 2003, p. 229).
Essa resumida incursão, sobre a manifestação da reificação em distintos domínios ou esferas da vida, nos serve para abordar uma questão crucial no diálogo de Lukács com Weber: o paradoxo existente entre subordinação e autonomia no processo de racionalização das esferas, em outras palavras, o paradoxo da racionalização/reificação como desenvolvimento simultâneo de uma legalidade social geral e de legalidades particulares a cada esfera.
Tal paradoxo – “esse ‘sistema de leis’... que regula a totalidade, que por princípio e qualitativamente é diferente daquele que regula as partes” – é concebido por Lukács (2003, pp. 227) como uma “irracionalidade” produzida pela “divisão capitalista do trabalho”. O próprio processo generalizado de decomposição das diversas “funções parciais da sociedade” gera uma dinâmica particular de “interesses profissionais e de status dos especialistas” que intensifica as tendências à formação de legalidades e lógicas específicas a cada função. Tal “movimento divergente” é perceptível tanto nas “partes de um setor determinado” como nos “grandes setores produzidos pela divisão social do trabalho” (LUKÁCS, 2003, p. 227-228), e então Lukács cita uma passagem em que Engels discorre sobre “a relação entre direito e economia”:
... com a necessidade da nova divisão do trabalho, que cria juristas profissionais, abre-se um novo setor autônomo que, não obstante toda sua dependência geral em relação à produção e ao comércio, possui também uma capacidade particular de reagir nesses setores. Num Estado moderno, o direito deve não somente corresponder à situação econômica geral e ser sua expressão, mas também ser uma expressão coerente em si mesma, que não se deixa abalar por contradições internas. E, para consegui-lo, reflete de maneira cada vez mais infiel as condições econômicas [...]. (ENGELS, Carta a Konrad Schmidt, 27/10/1890, apud LUKÁCS, 2003, p. 228).
A importância da passagem acima, que justifica a longa transcrição, está no seu reforço da ideia de reificação não necessariamente como uma homogeneização das diversas esferas sociais no sentido de uma identidade crescente entre elas, mas como um processo de formalização unitária das esferas que, em suas dinâmicas particulares, diferem consideravelmente e até crescentemente, dada a afirmação progressiva dos “interesses profissionais e de status” próprios a cada uma das funções e/ou setores da sociedade.
Dito isto, a inquietação que imediatamente emerge refere-se à diferença entre reificação e racionalização:
1) Em primeiro lugar, vimos como em Lukács a racionalização como reificação considera o fetichismo implicado na forma-valor – a abstração real realizada pela relação mercantil em que relações entre seres humanos se dão como relações entre coisas – e o estranhamento no processo capitalista de trabalho como as bases causais para pensar a reificação das outras esferas da vida social. Desse modo, o “momento predominante [übergreifende Moment]” (MARX, 2011, p. 49) do econômico é preservado no raciocínio lukácsiano. E é por encontrar uma fundamentação causal para a reificação generalizada das relações sociais que Lukács vê uma saída para o niilismo implicado na ideia de tragédia da cultura moderna e nas passagens mais obscuras da obra de Weber. Para Lukács, é por se tratar de um processo formal, nunca inteiramente totalizante dos conteúdos da vida, que a reificação pode ser superada através da eliminação prática (implodindo a condição contemplativa do sujeito) dos seus fundamentos econômicos.
2) Em segundo lugar, reiteremos, aquilo que em Weber é abordado de maneira compreensiva e considerado como uma tendência possível na modernidade, em Lukács, é pensado de uma perspectiva fundamentalmente crítica sobre um pathos não só em plena realização como em crise.
Assim, para Lukács, se o processo de autonomização das esferas sociais não pode ser afirmado como ilusório, já que dinâmicas reais de legalidade própria se realizam no interior das esferas em particular, esta autonomia é paradoxalmente realizada por um processo geral que, em todos os âmbitos, revela a mesma lógica de racionalização/reificação/formalização. Todas as esferas tendem a ser presididas por princípios de calculabilidade e previsibilidade e, em todas, há a conformação de sujeitos contemplativos, cindidos e estranhos àquilo que produzem ou realizam. É a unidade da forma que determina a unidade da estrutura da consciência. Por outro lado, o paradoxo da unidade lógico-formal da autonomização/diversificação das diversas esferas é determinado pela reificação na esfera econômica, de modo que podemos falar, lendo Lukács, em um momento predominante do econômico na integração dos diversos processos de autonomização.
Uma primeira leitura d’A Dialética do Esclarecimento, principalmente do seu célebre ensaio A Indústria Cultural: O Esclarecimento como Mistificação das Massas, pode talvez levar à conclusão, apressada, de que se trata de uma mera ampliação da reflexão sobre a reificação na abordagem do fenômeno da cultura de massa. Na medida em que esta se forma e se expande através da indústria cultural, tratar-se-ia mais uma vez de demonstrar a estrutura formal unitária compartilhada pela empresa moderna no âmbito econômico-material e a empresa no nível da produção e difusão cultural. Tratar-se-ia novamente da percepção, numa esfera particular, da relação intrincada entre racionalização, estranhamento e dominação, da generalidade do fenômeno da reificação, portanto.
De modo algum estamos julgando tal leitura como equivocada, mas, como foi dito, trata-se de uma primeira leitura que deve ser aprofundada, articulando o ensaio sobre A Indústria Cultural... e o primeiro ensaio da obra, O Conceito de Esclarecimento. Só assim nos parece possível extrair os novos elementos trazidos por Adorno e Horkheimer em relação a Lukács. Nos primeiros, a percepção de uma lógica da identidade, operada pela generalização da racionalidade técnico-instrumental para todos os âmbitos da vida, nos leva para além da uma concepção crítica da estrutura formal unitária dos processos de racionalização/reificação, pois os próprios conteúdos das diversas esferas da vida social passam a exprimir um incômodo ar de semelhança, de identidade. Deste modo, é isso que buscarei defender nas páginas seguintes: a crítica ao enunciado da autonomização/diferenciação das esferas sociais em Adorno e Horkheimer singulariza-se por acusar a relação entre a unificação do princípio de estruturação formal das esferas sociais (racionalização, reificação) e a homogeneização dos seus conteúdos (identidade), o que denominarei mais à frente de indiferenciação por identidade.
N’O Conceito de Esclarecimento, ensaio central e introdutório d’A Dialética do Esclarecimento, a relação com a obra de Lukács publicada 24 anos antes e com aquela elaboração essencialmente crítica do conceito de racionalização como reificação se evidencia logo nos primeiros parágrafos.
“O programa do esclarecimento era o desencantamento do mundo”, escrevem Adorno e Horkheimer (1985, p. 19). Como sabemos, o desencantamento do mundo significa, na acepção weberiana, a sua desmagificação, a superação da causalidade ética mítica e das concepções carismáticas e concretas de causa e efeito típicas da magia. A racionalização operada pelas religiões salvíficas, tendo seu cume no ascetismo intramundano protestante, representou uma etapa fundamental no chamado desencantamento do mundo.
O “programa do esclarecimento”, fundado no conhecimento científico das coisas e dos seres humanos, representa outra etapa. Para Adorno e Horkheimer (1985, pp. 19-20), amplamente baseados nos escritos de Bacon, desencantar o mundo, livrar-se do mito e da magia, significa suplantar o medo que gera o mito, a ambivalência misteriosa do mana que se esconde por trás da aparência sensível das coisas, para assim investir os homens “na posição de senhores”.
Mas não são apenas as coisas da natureza que escondem mistérios, uma zona de ininteligibilidade que apavora; também os homens, na imagem de mundo mítica, são ambivalentes. Assim, para a natureza e para as relações humanas vale o mesmo princípio: conhecer é dominar. “Só o pensamento que se faz violência a si mesmo é suficientemente duro para destruir os mitos... Poder e conhecimento são sinônimos”. (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 20).
Conhecer para livrar-se do medo, para dominar a natureza e os seres humanos, implica a renúncia ao sentido e a substituição do “conceito pela fórmula, [d]a causa pela regra e pela probabilidade” (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 21 – colchetes meus). Impõe-se aquele elemento enfatizado por Lukács para pensar a racionalização/reificação nas sociedades capitalistas, o princípio da calculabilidade. Elimina-se o espanto através do conhecimento, torna-se conhecido quando se torna previsível. A formalização do mundo em um sistema de leis revela o anseio por uma transparência dócil, sem surpresas. A eliminação da treva traduz-se no anseio pela eliminação da possibilidade do contingente e do novo. “Doravante, a matéria deve ser dominada sem o recurso ilusório a forças soberanas ou imanentes, sem a ilusão de qualidades ocultas. O que não se submete ao critério da calculabilidade e da utilidade torna-se suspeito para o esclarecimento” (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 21).
Embora Adorno e Horkheimer empreendam um esforço (repetidas vezes acusado de a-histórico) de encontrar os elementos contraditórios do esclarecimento em Ulisses e em Platão (ver Adorno e Horkheimer, 1985, p. 21), assim como Lukács investiga as antinomias do pensamento burguês em Heráclito (ver Lukács, 2003, pp. 360-361, nota 146), tanto para os frankfurtianos como para o autor húngaro é só na modernidade capitalista que os fenômenos da reificação e da mistificação implicada no esclarecimento são radicalizados e acessíveis pelo pensamento.
[...] o número tornou-se o cânon do esclarecimento. As mesmas equações dominam a justiça burguesa e a troca mercantil. [...] A sociedade burguesa está dominada pelo equivalente. Ela torna o heterogêneo comparável, reduzindo-o a grandezas abstratas. Para o esclarecimento, aquilo que não se reduz a números e, por fim, ao uno, passa a ser ilusão: o positivismo moderno remete-o para a literatura. “Unidade” continua a ser a divisa, de Parmênides a Russell. O que se continua a exigir insistentemente é a destruição dos deuses e das qualidades (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 23).
A afinidade com o conceito lukacsiano de reificaçãose evidencia: a equivalência geral de trabalhos e mercadorias qualitativamente diferentes – a redução quantitativa de diferentes conteúdos pela forma-valor – aparece como fundamento da quantificação dos conteúdos conceituais (a sua eliminação) implicada numa ciência que toma como modelo a forma matemática. A abstração da troca mercantil leva às últimas consequências a utopia da unidade e a eliminação da heterogeneidade presente no “programa do esclarecimento”.
“O preço que os homens pagam pelo aumento de seu poder é a alienação daquilo sobre o que exercem o poder” (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 24). É a “identidade” da dominação que “constitui a unidade da natureza”, em que “a essência das coisas revela-se como sempre a mesma” (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 24).
O esclarecimento é fetichista – ao tornar mensurável e equiparável a heterogeneidade dos objetos – e por isso alienante – ao unificar e homogeneizar o mundo segundo o modelo abstrato e unificado da própria identidade que conhece (a identidade orientada para o domínio); são as qualidades do próprio objeto que se tornam inapreensíveis, estranhas[6].
Racionalização é, portanto, como em Lukács, reificação (fetichismo), alienação e dominação.
Nada de novo? A Dialética do Esclarecimento não iria além de uma modulação aforística, apesar dos longos parágrafos, e nietzscheana, apesar do marxismo, do Lukács de A Reificação e a Consciência do Proletariado? Ou seja, uma abordagem materialista, fundada na crítica da economia política, do fenômeno conceituado por Weber como racionalização da vida?
Por certo, diversos comentadores buscaram enfatizar não só as afinidades, mas também as diferenças na passagem de História e Consciência de Classe às formulações de Adorno e Horkheimer.
Quanto a um dos aspectos mais conhecidos da crítica de Adorno e Horkheimer ao jovem Lukács, escreve Musse (1994, p. 34) citando Teoria Tradicional e Teoria Crítica,
Horkheimer desconfia da afirmação de um sujeito global supratemporal e com isso esquiva-se do artifício dialético que concebe o proletariado como um sujeito-objeto idêntico. O sujeito da “filosofia materialista” – descartados os modelos do espírito abstrato ou da razão em si mesma – não é o Eu, tampouco o absoluto, mas sim os “homens de uma determinada época histórica”.
Puzone (2017, p. 241) reconhece a ausência de “qualquer menção explícita de Horkheimer ao livro de Lukács”, História e Consciência de Classe, mas percebe “com nitidez a quem se endereça o pequeno texto” intitulado “Transfiguração metafísica da revolução’”, “aforisma que foi excluído da edição final de Dämmerung”[7]. Aqui Horkheimer, continua Puzone (2017, p. 241), se refere criticamente a certos “intelectuais que simpatizavam com a revolução por motivos filosóficos, e não por conta da incapacidade de satisfazerem-se as necessidades materiais dos trabalhadores no capitalismo” e afirma que, contra este “reino da perfeita pecaminosidade” e o “modo de pensar ‘racional calculista’”, “seria necessária uma transformação na consciência dos seres humanos para que a ‘verdade eterna’ surgisse” (PUZONE, 2017, p. 241). Mais que idealismo, Horkheimer aponta para “‘o caráter estritamente religioso dessa radicalidade’”, da qual fazia parte o jovem Lukács à procura de um sujeito redentor.
Hall (2011), por sua vez e a partir da Dialética Negativa (ADORNO, 2009), evidencia duas principais críticas: a) a um “anticapitalismo romântico” (HALL, 2011, p. 62) na apreciação lukácsiana das sociedades pré-modernas, evidente na passagem sobre a supressão capitalista de “relações originais em que eram mais transparentes as relações humanas” (LUKÁCS, 2003, p. 207), romantismo que bloquearia pensar tanto o fenômeno da reificação em formações pré-capitalistas como a possibilidade de pensar relações de troca pós-capitalistas justas e não-reificadas; e b) à “conflação” idealista entre reificação e objetividade, entre uma “objetividade ilusória” que aliena a “subjetividade” e “uma objetividade genuína para além do sujeito” (HALL, 2011, p. 69). Maar (2006, p. 150) enfatiza o mesmo ponto:
O primado dialético do objeto constitui, nesta medida, por exemplo, a possibilidade de retirar a questão da reificação (Verdinglichung) do plano subjetivo em que Lukács a dispusera. Não porque apreendera a reificação como questão no plano da consciência (o que não fez), mas porque reificação e consciência de classe são tratadas sem uma adequada apreensão da objetividade, permanecendo assim limitadas no plano dos pressupostos idealistas do primado do sujeito, de ideias que perderam a referência de parte de seu conteúdo... A distinção entre objetividade (Objektivität) e reificação (Verdinglichung) constitui um dos resultados fundamentais da perspectiva dialética do primado do objeto.
Assim, os comentadores citados destacam, de um ponto de vista mais propriamente teórico, a dificuldade do conceito de reificação lukácsiano em pensar uma objetividade não-reificada, dificuldade que tem como consequência política a supervalorização (idealista, romântica ou mesmo religiosa) do sujeito, encarnado no proletariado, em detrimento do objeto.
Nosso problema, como já explicitamos, é distinto. Trata-se de demarcar as descontinuidades, não em relação à questão do materialismo ou de uma concepção propriamente materialista, que não abandona o primado do objeto, do sujeito revolucionário, mas em relação à questão da (in)diferenciação das esferas sociais na modernidade capitalista. Retomemos O Conceito de Esclarecimento.
“O princípio da imanência, a explicação de todo acontecimento como repetição, que o esclarecimento defende contra a imaginação mítica, é o princípio do próprio mito” (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 26).
O esclarecimento, em seu horror diante da imagem mítica do mundo, acaba por transfigurar-se em uma nova mitologia. Se de fato há uma ruptura na passagem do concreto ao formal, do difuso ao concentrado, típica dos processos de racionalização, nessa ruptura também há continuidade, pois, se o esclarecimento supera o mito através de uma racionalidade de domínio da natureza que se desdobra numa racionalidade de domínio dos próprios seres humanos, o medo, o assombro que antecede a emergência do mito permanece – de forma novamente generalizada, formalizada e unificada – no esclarecimento.
Para não voltar ao mito, o esclarecimento exclui a princípio a possibilidade da exterioridade ameaçadora e, desse modo, é o signo maior do desespero que, para aplacar o medo, busca transformar tudo em familiaridade especular. Se no mito o assombro é perceptível na ambivalência das coisas – que são sempre duais, elas mesmas e o mana, a divindade, o transcendente etc. –, a ciência busca anular a própria possibilidade do medo, afirmando a imanência absoluta do seu objeto. Vira os olhos para dentro ao conceber o seu domínio e se convence da inexistência do que está para além, do que é outro e está do lado de fora[8].
É por isso que Adorno e Horkheimer (1985, pp. 26-27) escrevem que o esclarecimento – ao afirmar no mundo a identidade unificada de si mesmo – acaba por reproduzir e ratificar “a sabedoria fantástica” do “destino que, pela retribuição, reproduz sem cessar o que já era. O que seria diferente é igualado... O preço que se paga pela identidade de tudo com tudo é o fato de que nada, ao mesmo tempo, pode ser idêntico a si mesmo”. Na formalização científica, a autonomia do singular deve ser aniquilada de antemão tal qual a vontade do herói trágico frente às forças divinas.
Mais uma vez nossos autores recuperam, já que estamos seguindo o curso do texto, o modelo da relação mercantil fetichizada para exprimir a lógica da identidade que o esclarecimento propaga: “O preço dessa vantagem, que é a indiferença do mercado pela origem das pessoas que nele vêm trocar suas mercadorias, é pago por elas mesmas ao deixarem que suas possibilidades inatas sejam modeladas pela produção de mercadorias que se podem comprar no mercado” (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 27). Ao entrar no círculo infernal da identidade – e nele já se nasce – que caracteriza tanto o mercado como a lógica formal das ciências, todo tom torna-se cinza.
A vitória da “racionalidade objetiva”, escrevem Adorno e Horkheimer (1985, pp. 38-39), é também a vitória da imediaticidade, “a submissão de todo ente ao formalismo lógico”, reduzindo a “pretensão de conhecimento” ao “mero perceber, classificar e calcular”, quando tal pretensão deveria se definir, na verdade, pela “negação determinante de cada dado imediato”.[9] Trata-se de mais um elemento que aproxima o esclarecimento do mito: “Na pregnância da imagem mítica, bem como na clareza da fórmula científica, a eternidade do factual se vê confirmada e a mera existência expressa como o sentido que ela obstrui” (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 39).
Pela mediação da sociedade total, que engloba todas as relações e emoções, os homens se reconvertem exatamente naquilo contra o que se voltara a lei evolutiva da sociedade, o princípio do eu: meros seres genéricos, iguais uns aos outros pelo isolamento da coletividade governada pela força (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 47).
Ao disciplinar tudo o que é único e individual, ele [o esclarecimento] permitiu que o todo não-compreendido se voltasse, enquanto dominação das coisas, contra o ser e a consciência dos homens (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 51).
A racionalização objetiva, formal, técnico-instrumental da natureza e dos laços sociais, em que a ciência positivista vê como num espelho a estrutura das relações mercantis, além de, como em Lukács, generalizar uma mesma estrutura de consciência (dimensão subjetiva), implica sempre na supressão do único e individual, do singular. É a afirmação de uma lógica homogeneizante da identidade que estabelece um elo entre a reflexão sobre o conceito de esclarecimento e sobre a indústria cultural.
Já nas primeiras páginas do ensaio A Indústria Cultural..., Adorno e Horkheimer (1985, p. 113) rejeitam a tese de que, com o capitalismo e o eclipse da “religião objetiva”, a “diferenciação técnica e social e a extrema especialização levaram a um caos cultural”. Para eles, pelo contrário, a “cultura contemporânea” é caracterizada por uma ordem implacável, que “confere a tudo um ar de semelhança. O cinema, o rádio e as revistas constituem um sistema. Cada setor é coerente em si mesmo e todos o são em conjunto” (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 113), implicadas aí a política, a arquitetura e a urbanização. O macro e o microcosmo exprimem uma “unidade evidente”. “Sob o poder do monopólio, toda a cultura de massas é idêntica, e seu esqueleto, a ossatura conceitual fabricada por aquele, começa a se delinear” (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 114).
A passagem é decisiva no que se refere ao nosso problema: a negação de que o processo de diferenciação social tenha dado lugar a um caos cultural é também a afirmação da cultura de massa, orientada pela lógica da identidade e da semelhança, como um substituto integrativo ao lugar ocupado outrora pela totalização religiosa. À indiferenciação religiosa segue a indiferenciação promovida pela indústria cultural.
Não se trata de buscar a legitimação da cultura de massas e sua lógica de monopólio, sob o véu aurático da obra de arte. “Eles [fala-se aqui do cinema e do rádio] se definem a si mesmos como indústrias, e as cifras publicadas dos rendimentos de seus diretores gerais suprimem toda dúvida quanto à necessidade social de seus produtos” (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 114 – colchetes meus). A indústria cultural afirma-se cinicamente.
E como opera a indústria cultural? Como opera a identidade/semelhança no mundo contemporâneo? Como estende as suas malhas?
Para Adorno e Horkheimer (1985), a dominação não se dá através da racionalidade técnica, esta não é um instrumento daquela. No capitalismo a técnica se converte em função da dominação[10]. “A racionalidade técnica hoje é a racionalidade da própria dominação. Ela é o caráter compulsivo da sociedade alienada de si mesma” (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 114). A “técnica da indústria cultural” sacrifica “a diferença entre a lógica da obra e do sistema social” em favor da “padronização” e da “produção em série” (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 114). Na medida em que também cria a sua própria estrutura subjetiva (de consciência, nos termos de Lukács), tal espraiamento do semelhante, da identidade de todas as coisas, faz prescindir inclusive da necessidade de uma instância central de controle e manipulação, assim como na estrutura mercantil a submissão a uma relação reificada dá-se por livre escolha.
Quando um ramo artístico segue a mesma receita usada por outro muito afastado dele quanto aos recursos e ao conteúdo; quando, finalmente, os conflitos dramáticos das novelas radiofônicas tornam-se o exemplo pedagógico para a solução de dificuldades técnicas, que, à maneira do jam, são dominadas do mesmo modo que nos pontos culminantes da vida jazzística; ou quando a “adaptação” deturpadora de um movimento de Beethoven se efetua do mesmo modo que a adaptação de um romance de Tolstói pelo cinema, o recurso aos desejos espontâneos do público torna-se uma desculpa esfarrapada (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 114).
Não há somente a homogeneização dos conteúdos culturais em seus vários setores específicos (dramaturgia, música, cinema etc.), há também identidade, indiferenciação, entre a “lógica da obra” e a lógica do sistema social, assim como entre trabalho e tempo livre. “Em seu lazer, as pessoas devem se orientar por essa unidade que caracteriza a produção” (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 117). Na matéria como na “alma”, atua um mesmo “esquematismo”, um mesmo sistema de classificação das supostas diferenças. Assim como o trabalhador deve apenas acompanhar o processo industrial de trabalho como se fosse mais um elemento da maquinaria, também o consumidor acompanha apático e com reações mecanicamente previsíveis o fluxo de sons e imagens da indústria cultural: “Desde o começo do filme já se sabe como ele termina, quem é recompensado, e, ao escutar a música ligeira, o ouvido treinado é perfeitamente capaz, desde os primeiros compassos, de adivinhar o desenvolvimento do tema e sente-se feliz quando ele tem lugar como previsto” (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 118). Em caso de mal-estar, escreve Zuin (2011, p. 13), a “provável sensação de monotonia é facilmente compensada pela felicidade de se sentir integrado”.
A vinculação entre o conceito de esclarecimento, que supera o mito mitologizando-se, e o conceito de indústria cultural torna-se ainda mais inteligível: se no mana está inteiramente expresso o medo que gera a necessidade do mito, por ser o símbolo de que sempre há algo por detrás das coisas ou que as coisas sempre podem ser algo além delas mesmas – fundamento do assombro –, tanto a ciência positivista como a indústria cultural, embora também sejam expressões de um espanto (contra o próprio mito), buscam suprimir o mana, atestar a previsibilidade de tudo, incorporá-lo a um esquema e a uma fórmula previamente concebida, evitar desesperadamente o espanto, e aí já são inteiramente mito.
Assim, ao dissertarem sobre a lógica compartilhada pela concepção positivista de ciência (o esclarecimento em sua forma contemporânea), pelos fenômenos da cultura de massa (em suas várias manifestações), pelo processo de trabalho industrial e o consumo de mercadorias, Adorno e Horkeimer parecem seguir a mesma trilha da apropriação marxista do conceito weberiano de racionalização consagrado como reificação na pena de Lukács. Percebem uma homologia entre as diferentes esferas da sociedade capitalista contemporânea, uma mesma estrutura formal, a saber, a formalização dos meios e fins de cada esfera segundo princípios de quantificação, calculabilidade e previsibilidade das ações, alienada do sentido ou dos conteúdos concretos e qualitativos das diversas formas de relação com a natureza e com outros seres humanos. Tal processo reificante de formalização cria também uma estrutura subjetiva ou de consciência também unificada, limitada à percepção imediata e estereotipada dos estímulos do mundo objetivo[11].
No entanto, após vivenciarem a ascensão fascista na Europa e a consolidação do capitalismo monopolista, acompanhada da expansão vertiginosa da maquinaria da indústria cultural, e observarem o momento termidoriano da revolução dos sovietes, Adorno e Horkheimer já não mais percebem aquele paradoxo, assinalado por Lukács, entre a legalidade do sistema em geral (racionalização/reificação) e as legalidades particulares às partes (funções ou esferas do sistema).
Na Dialética do Esclarecimento – estes “fragmentos”, estas “peças dispersas que exprimem, no que têm de inacabado e cheio de arestas, um mundo estilhaçado” (COHN, 1998, p. 12) – o fim do paradoxo é enunciado como um adeus à diferença e a constatação desesperada da identidade entre a “lógica da obra” (como parte) e a “lógica do sistema” (como todo totalitário)[12]. “A indústria cultural consiste... na repetição do idêntico”, no seu jogo de aparência e essência realiza-se uma “diferenciação sempre indiferenciada”, escreve Costa (2013, p. 149).
Na “identificação”, escreve Stoegner (2017, p. 141), “o sujeito reduz o múltiplo ao unitário, e o princípio que sustenta esse processo é o eu [self]. Por meio de conceitos e termos, o sujeito identifica o mundo exterior, isto é, o que não é ele próprio”. Assim, “identidade” é, neste contexto, “primeiramente o pensamento que pressupõe identidade entre pensamento e ser. Implicitamente, toda identidade é idealismo, enquanto que o idealismo é sempre um pensamento da identidade” (STOEGNER, 2017, p. 141). Lembremos que o princípio do eu [self], no contexto da Dialética do Esclarecimento, aparece como um princípio amputado de toda autonomia, como parte subsumida à sociedade administrada. A identidade do eu é mero reflexo do todo social. A história, no capitalismo tardio, aparece como “repetição do sempre-igual, do Immergleichen...” (BASSANI; VAZ, 2011, p. 18).
Colocando em nossa chave de leitura, em Adorno e Horkheimer há uma inflexão em relação a Lukács, na medida em que a autonomia das distintas esferas é concebida como completamente ilusória diante da integração totalitária de toda a sociedade por uma cultura de massas brutal, reprodutora da lógica do trabalho industrial. A diferença aparece, então, como falseamento da homogeneização, da identidade, definidora da sociedade produzida pelo capitalismo tardio. Por isso, propomos a expressão indiferenciação por identidade para demarcar a crítica radical de Adorno e Horkheimer (amparados no jovem Lukács recém convertido ao marxismo) à concepção da modernidade como um processo de crescente autonomização/diferenciação das esferas sociais.
Embora um conceito propriamente sociológico de diferenciação social remeta imediatamente a autores como Spencer[13] e Durkheim (2010, p. 152) – para quem a passagem da pré-modernidade à modernidade é narrada como a transição de sociedades em que “tudo o que é social é religioso” para sociedades em que “as funções políticas, econômicas e científicas se emancipam da função religiosa, constituem-se à parte e adquirem um caráter temporal cada vez mais acentuado” –, é principalmente na sociologia alemã que o imaginário da diferenciação é formulado nos termos da autonomização: a ideia de uma crescente singularização dos diferentes âmbitos da sociedade em lógicas internas.
Dilthey (2010, pp. 26-27), no seu A construção do mundo histórico nas ciências humanas, de 1910, escreve, por exemplo, sobre o direito e a arte cada qual como um “sistema de fins”. No primeiro, o “aparato visível, em um tempo e em um lugar determinados, de livros de direito, de juízes, de autores de processos, de réus, é inicialmente a expressão de um sistema de fins dotado de determinações jurídicas, graças às quais ele se mostra eficaz”. No outro, a “conexão de um drama consiste em uma relação própria entre matéria, atmosfera poética, tema, fábula e meios de apresentação. Cada um desses fatores cumpre uma função na estrutura da obra, funções que são ligadas entre si por meio de uma lei interna da poesia”.
Simmel (2006, pp. 61-64), nas Questões Fundamentais de Sociologia, de 1917, escreve sobre a autonomização das “formas” em relação aos “conteúdos” práticos que lhes deram origem, ilustrando tal processo através do direito, da arte, da ciência, todas formas que se autonomizaram em relação às necessidades práticas e vitais da sua gênese.
Mas é Weber (2016), em sua Consideração Intermediária à Ética econômica das religiões mundiais: ensaios comparados de sociologia da religião, publicados entre 1915 e 1919, que articula de forma mais acabada, entre os clássicos, o enunciado da autonomização das esferas sociais (ver Silva, 2018). Nesse ensaio, Weber (2016, pp. 367-368) reflete sobre a passagem de um mundo encantado e unificado pela magia para uma rejeição crescente do mundo pelas religiões de salvação, o que tem como consequência não só a crescente explicitação da diferença entre os “bens salvíficos interiores, concebidos como meios de redenção”, e os bens “exteriores” ou “mundanos”, mas também o desenvolvimento e a exacerbação das “tensões recíprocas” entre as “legalidades próprias [Eigengesetzlichkeiten] das diferentes esferas”: religiosa (ética da fraternidade), econômica (lucro privado por meios racionais), política (monopólio da ameaça e uso da violência legítima), intelectual (investigação empírica de causalidades naturais), estética (a forma como meio intramundano de salvação), erótica (a sexualidade valorizada em si mesma).
A gramática das legalidades próprias constitui pedra angular daquele enunciado, fundação particularmente produtiva na medida em que pensa, simultaneamente, a autonomia, mas também as afinidades e tensões entre as diversas esferas, permitindo inclusive vislumbrar o desenvolvimento desigual e mesmo a interferência direta de uma esfera na(s) outra(s). Em suas formulações ulteriores, funcionalista e sistêmica, é enfatizada e mesmo radicalizada a dimensão da autonomia em detrimento das tensões.
Parsons (1969; 1974) narra a passagem da indiferenciação pré-moderna, marcada pela fusão entre “estruturas gerais” e “organização religiosa”, para a diferenciação dos subsistemas Cultural-valorativo, Socionormativo, Político-governamental, Econômico-adaptacional, cada um deles encerrado através dos seus própriosmeios simbólicos generalizados: influência (cultura), poder (governo), dinheiro (economia), lealdade (subsistema socionormativo). Para o sociólogo norte-americano – que confere privilégio integrativo à dimensão socionormativa (comunidade societária) –, mais evoluída é uma sociedade quão mais diferenciados e integrados, através de estruturas emergentes em zonas de interpenetração, os seus subsistemas.
Luhmann (1998, p. 50), por sua vez, explicitamente define as sociedades modernas como “sociedades que têm a diferenciação funcional como seu esquema primário”, topo de uma escala evolutiva antecedido, em sequência, pelas diferenciações: segmentária, centro/periferia e estratificação. Apropriando-se do léxico parsoniano, para Luhmann (2006), os sistemas parciais se encerram através de meios de comunicação simbolicamente generalizados (baseiam-se na comunicação como diferença do sistema social em relação ao entorno) ou códigos binários: pagamento/não-pagamento (economia), governo/oposição (política), imanência/transcendência (religião), lícito/ilícito (direito), arte/não-arte (estética) etc.
Embora desenvolva o conceito de acoplamento estrutural para pensar as formas de integração entre os sistemas parciais, a abordagem sistêmica luhmanniana radicaliza a intransitividade e exclusividade dos códigos (BECK, 1997), assim como dificulta o reconhecimento das “discrepâncias evolutivas historicamente observáveis entre os diversos sistemas” (BACHUR, 2009, pp. 137-138), na medida em que o primado da diferenciação funcional implica na impossibilidade de primazia de sistemas parciais em particular.
É em relação a uma modulação rígida do enunciado da autonomização das esferas sociais que a formulação de uma indiferenciação por identidade, na passagem de História e Consciência de Classe para a Dialética do Esclarecimento, pode ser lida como antípoda[14]. Se há consenso na teoria sociológica clássica e contemporânea sobre a compreensão da pré-modernidade como marcada pela indiferenciação mítica, a modernidade, para Adorno e Horkheimer, ao contrário da diferenciação/autonomia das esferas ou sistemas parciais, revela-se pelo signo de uma nova indiferenciação/heteronomia de todas as dimensões da vida – ininteligível em termos de “zonas de interpenetração” ou “acoplamentos estruturais” – promovida pela tríade valor-positivismo-indústria cultural.
Tal crítica aos limites postos pela modernidade capitalista à efetiva autonomia (das esferas sociais e dos indivíduos) – que generaliza para toda a sociedade os efeitos do fetichismo da mercadoria e leva ao paroxismo os prognósticos weberianos mais sombrios sobre a racionalização formalinstrumental –, diferente de um “ceticismo em relação à razão”, pode ser lida como antecipação do projeto, explicitado na Dialética Negativa, de “possibilitar à razão a liberação do não-idêntico nela contido” (MAAR, 2006, p. 136-137).