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Apresentação ao Dossiê Burocracias, Cotidiano e Valores
Simone Magalhães Brito; Patrice Schuch
Simone Magalhães Brito; Patrice Schuch
Apresentação ao Dossiê Burocracias, Cotidiano e Valores
Revista Brasileira de Sociologia, vol. 7, núm. 15, pp. 5-9, 2019
Sociedade Brasileira de Sociologia
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Apresentação

Apresentação ao Dossiê Burocracias, Cotidiano e Valores

Simone Magalhães Brito
Universidade Federal da Paraíba, Brasil
Patrice Schuch
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil
Revista Brasileira de Sociologia, vol. 7, núm. 15, pp. 5-9, 2019
Sociedade Brasileira de Sociologia

Este Dossiê busca explorar o cotidiano e as rotinas de produção das burocracias através de enfoques microssociológicos e/ou etnográficos. Sua ideia principal é confrontar as perspectivas de cunho normativo sobre a produção do Estado, enfocando as práticas e lógicas de justificação que borram os limites- próprios ao tipo ideal weberiano - entre política e burocracia.

Em suas aulas sobre o Estado, Bourdieu afirma que o “herói burocrático é alguém cuja função maior é permitir ao grupo continuar a crer no oficial” e desenvolve uma problematização do Estado como uma ficção, uma crença no consenso sobre certo número de valores. Na sua perspectiva, um dos problemas da Sociologia Política é tomar o Estado em sua forma fetichizada, esquecendo que o “oficial” é resultado de um conjunto de disputas. Apesar de suas diferenças, o sentido geral da perspectiva bourdieusiana, especialmente em sua crítica às perspectivas idealistas e legalistas, pode ser relacionado com tendências recentes que analisam o Estado e as tecnologias de governo através das disputas e projeções de valores morais-direcionando a pesquisa para o cotidiano das práticas de governo e suas rotinas e instrumentos (Scott, Wacquant, Comaroff e Comaroff, Fassin, Gupta). O que está em jogo é compreender como as ficções e valores, as projeções e imaginação de uma ordem justa, se tornam efetivas. Assim, a compreensão sociológica se move para uma problematização do poder estatal e das burocracias onde se torna necessário conhecer as práticas de validação de seu discurso, a construção de redes de apoio ao seu estabelecimento e a geração de gramáticas morais que pretendem organizar a vida pública, assim como os modos pelos quais movimentos e práticas de sua contestação e/ou resistência são efetivados.

Há uma longa e vigorosa tradição de pesquisas sobre burocracia no Brasil que não podemos mapear aqui[1], mas acreditamos ter reunido uma amostra interessante de pesquisas atuais sobre a construção do Estado através de seus agentes em interação e também sobre as diversas formas de dar eficácia a suas ficções e valores. A leitura dos artigos permitirá perceber a importância do diálogo entre Sociologia e Antropologia para essa perspectiva. É claro que um elemento central nesse diálogo será a etnografia, mas destacamos também outros problemas importantes sendo compartilhados que apontam para as raízes comuns entre as duas ciências: os esquemas de classificação, os modos de gestão e controle da temporalidade, as gramáticas e projeções de comunidades morais.

Como o leitor verá, o artigo de Fernanda Melo da Escóssia analisa a experiência de pessoas sem documentos tentando obter sua certidão de nascimento num serviço gratuito dentro de um ônibus no centro do Rio. Seguindo o insight bourdieusiano de que as formas de espera ajudam a compreender as conexões entre tempo e poder, essa etnografia lança luz sobre como, às margens do Estado, as rotinas de busca e espera por documentos produzem e reforçam formas de exclusão. Através da ideia de ‘síndrome do balcão’, o artigo não apenas sintetiza uma experiência recorrente dos mais pobres no contato com a burocracia como também permite pensar o papel da peregrinação e espera no reforço de lógicas de dependência e controle.

Por sua vez, ao analisar processos de mediação de regularização fundiária realizados na periferia de São Paulo, o artigo de Moisés Kopper e Isabella Hay Ide demonstra como o trabalho de uma start-up reordena lógicas burocráticas normalmente associadas ao Estado, criando novos procedimentos, racionalidades e dispositivos para governo da pobreza. A ideia de “burocracias cotidianas” apresenta um interessante caminho de pesquisa que permite entender a articulação entre a temporalidade da espera e a organização de sentidos morais.

O artigo de Talita Eger, Arlei Damo e Letícia Schabbach analisa as dinâmicas de produção de decisões e valores morais entre os agentes de implementação do Programa Bolsa Família e seu público alvo. Através de uma etnografia realizada em um município da Região Metropolitana de Porto Alegre, os autores focam nos assistentes sociais como “burocratas de linha de frente” (Lipsky) e demonstram como o processo de implementação dessa política é marcado por um jogo de negociações e performances para definição de pobreza e, especialmente, como os marcadores - “pobres”, “muito pobres”, “vulneráveis”, “sujos” -, adquirem sentido e importância.

Também tratando do papel dos burocratas na operacionalização de políticas públicas, o artigo de Annabelle Vargas e Mauro Macedo Campos analisa as relações entre cuidado e medicamentalização num CAPSad. Mesmo afirmando a necessidade de perspectivas desmedicalizantes, os burocratas estudados, através da ideia de “trocar uma droga por outra”, priorizam as lógicas de contenções químicas como ferramenta de cuidado às pessoas que usam álcool e outras drogas, reforçando o adestramento dos corpos.

A partir da experiência de tribunais do júri em casos de homicídio afetivo-conjugal, as autoras Marcela Zamboni, Helma Oliveira e Emylli Tavares do Nascimento discutem a instância burocrática judicial como uma esfera dinâmica e tensa, marcada por disputas e projeções de sentidos morais. Mais do que simples executantes das formalidades da lei, os operadores jurídicos tensionam moralidades e subjetividades. Nesse sentido, o trabalho demonstra, a partir do cotidiano dos tribunais, a conexão entre rotinas burocráticas e a manipulação de convenções morais sobre gênero e sexualidade.

O artigo de Otávio Ventura apresenta a formação de um espaço no campo burocrático brasileiro: as Carreiras Típicas de Estado. Através da análise etnográfica de documentos, somos apresentados a um exemplo de como os modos de ação na elite do serviço público se dá “de formas que não remontam a uma mera lógica hierárquica piramidal” e, especialmente, ao peso das rotinas de justificação moral no campo burocrático. Ao construir a ideia de tais carreiras e se opor a “governos da hora”, associações de “planejadores, auditores, delegados, procuradores, defensores, diplomatas, fiscais, reguladores, entre outros” buscam alterar o funcionamento do poder político e assumir um lugar de protagonismo projeção do Estado.

No mesmo caminho de análise das disputas no campo burocrático, o artigo de Simone Brito também analisa a experiência moral de auditores num órgão de controle interno para tratar de uma economia moral da burocracia em que os sentidos de virtude e desinteresse se tornam um capital importante nas disputas sobre a ‘divisão do trabalho da dominação’ (Bourdieu). As rotinas de engajamento moral no combate à corrupção diminuem o interesse nos modelos técnicos e permitem a vivência da burocracia como uma agonística, uma tentativa de produzir sentidos de autenticidade.

Também com foco nos valores morais que organizam o cotidiano do campo burocrático, o artigo de Ana Karolina Rosas estuda o caso de uma Controladoria Geral. Sua experiência demonstra os processos de tradução de uma “cultura de auditoria” em um cenário local, destacando a centralidade dos ideais de “moralização” e de “decência” nas interações entre agentes do Estado, performando no nível local o projeto de “guerreiros da transparência”, que precisam vencer uma grande batalha moral contra a corrupção.

O trabalho de Letícia Schwarz e Marco Antonio Acco dá continuidade a problematização sobre valores e engajamento político ao analisar a percepção de agentes públicos federais sobre a participação de Organizações da Sociedade Civil (OSCs) na implementação de políticas públicas. Diferentemente da ideia de que a contratualização com OSCs seria resultante da falta de capacidade do Estado de prover serviços, a pesquisa encontra um tipo de burocrata que orienta suas ações pela valorização da participação e debate com a sociedade civil. Engajados no debate sobre as burocracias ativistas (Abers), os autores desenham e tensionam as categorias ‘burocrata ativista’ e ‘burocratas técnicos’, demonstrando como percepções e valores dos membros da burocracia pública “interferem nas disposições, nos mecanismos de facilitação, nos recursos mobilizados, nos instrumentos de controle, enfim, em aspectos cruciais da vida prática das interações Estado-Sociedade”.

Por fim, acreditamos que, na medida em que as práticas burocráticas podem ser consideradas tecnologias de governo, seu estudo contribuirá para a compreensão dos meios envolvidos na construção de novas éticas em relação à formação de sujeitos e da cidadania no Brasil e seus sentidos e/ou contestações. Também esperamos que estes retratos da burocracia em ação possam contribuir para a compreensão das redefinições recentes no campo do poder brasileiro, suas tensões e valores em disputa.

Material suplementar
Notas
Notas
[1] Ver: LOUREIRO, M. R.; ABRUCIO, F. L.; PACHECO, R. S. Burocracia e política no Brasil: desafios para o Estado democrático no século XXI. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2010 e PIRES, R. (Org.); LOTTA, G. S. (Org.) ; OLIVEIRA, V. E. (Org.). Burocracia e políticas públicas no Brasil: interseções analíticas. 1. ed. Brasília: IPEA/ENAP, 2018.
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