Resumo: Neste artigo, apresentamos como, através da Biblioteca Virtual do Pensamento Social (BVPS), a área de pesquisa em “pensamento social no Brasil” vem enfrentando alguns dos desafios recentes trazidos pela pesquisa informacional. Para tal, destacamos três seções: (a) uma apresentação do universo BVPS, em que explicamos o que é a biblioteca, suas origens e potencialidades; (b) uma breve discussão sobre o possível papel da BVPS na ampliação dos diálogos interdisciplinares e dos estudos comparados nesta área de pesquisa, uma vez que a biblioteca fortalece o intercâmbio com outras tradições intelectuais nacionais (e transnacionais); (c) um mapa da área de pesquisa em “pensamento social”, feito através da extração de dados da Plataforma Lattes (com a ferramenta Stela Experta), que identifica o comportamento da área em termos de concentração temporal, disciplinar e temática, bem como o interesse crescente pelos temas e autores latino-americanos.
Palavras-chave:Pensamento socialPensamento social,Biblioteca virtualBiblioteca virtual,Pesquisa informacionalPesquisa informacional,Estudos comparadosEstudos comparados,América LatinaAmérica Latina.
Abstract: This article examines the way in which, through the Digital Library on Social Thought (BVPS), “Brazilian Social Thought” as a research field has dealt with the recent challenges brought by informational and digital technologies. It is divided in three sections: a) a presentation of the BVPS universe, in which we explain what it is, its origins and possibilities, b) a brief discussion of the BVPS’ possible role in widening both the interdisciplinary and transnational horizon within this research field, as it seeks to stimulate dialogues with other national and transnational intellectual traditions; c) a map of the research field in “Brazilian Social Thought”, elaborated through the extraction of data from the Stella Experta Platform, which allows the field’s visualization: its temporal, disciplinary and thematic concentration, in addition to the growing interest in Latin American topics and authors.
Keywords: Social Thought, Digital Library, Informational Research, Comparative Studies, Latin America.
Artigos
Pensamento social e pesquisa informacional: o caso da Biblioteca Virtual do Pensamento Social (BVPS)
Social Thought and Informational Research: the case of the Biblioteca Virtual do Pensamento Social (BVPS)
Recepção: 14 Fevereiro 2019
Aprovação: 20 Abril 2019
As novas tecnologias de informação e o acesso ao chamado big data, isto é, o acesso ao enorme volume de dados armazenáveis e disponíveis online, têm implicado vários desafios teóricos, metodológicos, empíricos e mesmo políticos às ciências sociais. Este texto explora como estes desafios têm sido assumidos pela área de pesquisa em “Pensamento social no Brasil”, mais especificamente a partir da iniciativa da Biblioteca Virtual do Pensamento Social (BVPS)[1]. Esta biblioteca virtual leva para o campo das ciências sociais uma iniciativa já há muito consolidada nas ciências da saúde, o que vem acarretando problemas novos e questões inéditas para este tipo de criação, gestão, difusão e indexação do conhecimento. Pretendemos explorar aqui as várias contribuições possíveis deste tipo de ferramenta, como: (a) o estímulo ao trabalho interdisciplinar entre as ciências sociais, as ciências humanas, a crítica literária e os estudos culturais, as artes, a filosofia, a biblioteconomia e as ciências da informação; (b) a identificação, o armazenamento, a classificação e o mapeamento da produção intelectual em “pensamento social no Brasil”, favorecendo, na medida do possível, a divulgação dos “intérpretes do Brasil”[2]; (c) a potencialidade da comparação e do intercâmbio entre tradições e comunidades científicas de países e regiões diferentes, entre as diferentes áreas do Brasil, os outros países da América Latina e os Estados Unidos, o que tem sido estimulado a partir da BVPS.
Nesse sentido, tentamos refletir sobre os modos pelos quais tecnologias da informação, como a Biblioteca Virtual do Pensamento Social (BVPS), podem levar a novos modos de entender a interação entre os praticantes da disciplina do pensamento social (internamente marcada por assimetrias e desigualdades, como qualquer campo de conhecimento), assim como podem levar a repensar as interpretações do Brasil em sua relação com a sociedade[3]. Assim, o trabalho visa a contribuir com as investigações recentes sobre as tecnologias da informação como modos de estimular novas dinâmicas da prática científica na sociedade contemporânea (BAUMGARTEN, 2009). Com o surgimento de novas formas produtivas e societárias que caracterizam a “era do conhecimento”, a análise dos modos de produção, apropriação e divulgação da informação e sua aplicação na sociedade se torna cada vez mais central[4].
Nesse novo contexto, os processos de circulação e difusão do conhecimento não podem ser mais pensados como um caminho de mão única, isto é, como se partissem já “prontos” dos grupos especializados para os diversos públicos, vistos como despossuídos de instrumentos próprios de interpretação da realidade social. Historicamente, essa concepção se viu reforçada especialmente nas sociedades periféricas, em que a produção do conhecimento sempre se viu cronicamente afetada pelas forças do campo do poder (BASTOS; BOTELHO, 2010; SARLO; ALTAMIRANO, 1997) bem como pelas urgências impostas pela percepção compartilhada do “atraso” – tanto da sociedade quanto do próprio universo cultural, se comparadas às sociedades tomadas como referência[5]. Se a construção da ciência, nesses contextos, não se deu dissociada de um sentido de “missão” por parte de intelectuais e cientistas sociais[6], as novas ferramentas permitem redirecionar este sentido, tornando-o potencialmente mais horizontal e poroso aos processos (não-lineares) de democratização cultural em curso. Do mesmo modo, os fluxos de informação ensejam novas maneiras de se organizar e articular a produção científica em diferentes contextos nacionais e regionais, tensionando e redefinindo mutuamente as agendas relacionadas ao “pensamento social” em diferentes países. Vejamos, agora, como a BVPS se insere nesse processo.
Embora as práticas de divulgação científica já tenham largo tempo de vigência no Brasil, especialmente nos campos das ciências naturais e da vida (MASSARANI; MOREIRA; BRITO, 2002; WELTMAN, 2008), sabemos que nas ciências sociais ainda há um largo caminho a percorrer. Com exceção talvez da história, disciplinas como sociologia, antropologia e ciência política ainda pouco valorizam a democratização e circulação do conhecimento especializado por elas produzido, o que não deixa de ser, em certo sentido, paradoxal, haja vista a vocação “pública” das ciências sociais, isto é, seu potencial ímpar de interpelação dos problemas vividos cotidianamente por homens e mulheres em sociedade (PERLATTO; MAIA, 2012). No caso brasileiro, esta vocação “pública” foi particularmente forte nos anos 1950-60 – lembremos, por exemplo, da adesão dos cientistas sociais aos temas do “desenvolvimento” e da Campanha em Defesa da Escola Pública.
No entanto, o fato de que grande parte do processo de institucionalização das ciências sociais, especialmente dos cursos de pós-graduação, tenha se dado na década de 1970, isto é, em momento de fechamento político, certamente não foi sem consequências para este afastamento entre a pesquisa científica e o público mais amplo (VIANNA, 1997). Igualmente, o caráter descontínuo da presença das ciências sociais na escola básica (MEUCCI, 2011) – o que só foi revertido muito recentemente, com a obrigatoriedade da Sociologia em todo o Ensino Médio, iniciativa esta que já se encontra ameaçada pela última reforma educacional – também contribuiu para a menor importância dos livros de divulgação científica e/ou paradidática dentre os pesquisadores.
A Biblioteca Virtual do Pensamento Social foi criada com o intuito de fortalecer as instâncias de circulação do conhecimento especializado gerado nas ciências sociais e, mais especificamente, no âmbito do “pensamento social”, área de pesquisa que se dedica à análise das diferentes “interpretações do Brasil” e que recorta, dentre outros, os campos das ciências sociais, da história, da crítica literária e dos estudos das artes visuais. Esta Biblioteca – pensada menos como um simples repositório online de documentos e informações e mais como um portal de difusão e criação colaborativa de conhecimentos em “pensamento social” – é resultado das atividades de uma rede de pesquisadores que, ao longo dos últimos anos, vem consolidando e ampliando esta área de pesquisa junto à comunidade científica das ciências sociais[7]. A BVPS é uma instância que visa a intensificar, simultaneamente, a formação de redes de pesquisadores, a criação de conhecimento científico novo e a comunicação de suas agendas de pesquisa com públicos mais amplos[8].
Cumpre lembrar que as chamadas “interpretações do Brasil” não apenas constituem o objeto de investigação preferencial da área de pesquisa em “pensamento social”, mas também funcionam como recursos cognitivos cruciais para as ciências sociais aqui praticadas. Além disso, como apontaram Bastos e Botelho (2010, p. 914), estas interpretações também são usadas como recursos cognitivos, expressivos e normativos para os atores sociais, quer dizer, as ideias operam como forças sociais reflexivas e relevantes nos processos de mudança social, dado que “a sociedade não se realiza desacompanhada das interpretações de que é objeto e, mais do que isso, as interpretações proporcionam significado à vida social, pesadas inclusive suas veleidades, possibilidades e limites efetivos” (BASTOS; BOTELHO, 2010, p. 914). As interpretações da sociedade atuam de modo produtivo “na orientação das condutas dos atores sociais, na organização da vida social, nos processos de mudança e nas relações de poder que isso sempre implica” (Ibidem, p. 914). Uma ferramenta como a Biblioteca Virtual do Pensamento Social, atuando como espaço de armazenamento, intercâmbio e difusão de conhecimentos, representações e significados sobre a sociedade, participa desse caráter reflexivo em sua ligação à sociedade. Ela é capaz de propiciar novos modos de compreensão, definição e produção no interior da área de pesquisa, além de contribuir para a autorreflexão dos praticantes da área e de produzir novos canais de interação entre a produção científica e a sociedade nos seus diferentes agrupamentos e coletivos. Ela atua simultaneamente como estímulo e produto da própria reflexividade das interpretações sociais, podendo influenciar a percepção que os sujeitos sociais têm de suas práticas e sua realidade social[9].
Para nossos propósitos aqui, há duas questões teórico-metodológicas a serem consideradas: em primeiro lugar, a questão da interdisciplinaridade, entendida como o diálogo do pensamento social com referências teóricas não só das ciências sociais – a sociologia, a ciência política e a antropologia –, mas também da história intelectual, a história social e cultural, os estudos culturais, a crítica literária, as artes visuais e as ciências da informação, estimulando, em palavras de Ricardo Benzaquen de Araújo, um “diálogo, um intercâmbio intelectual mais amplo, matizado e complexo” entre as disciplinas (apud SCHWARCZ; BOTELHO, 2011, p. 147). De fato, como assinalou Carmem Felgueiras, o caráter interdisciplinar provavelmente tenha cumprido uma função importante na consolidação institucional da área nos últimos trinta anos, como força centrípeta de aglutinação de pesquisas feitas em instituições e disciplinas diferentes (FELGUEIRAS, 2014, p. 141). A segunda questão teórica a ser considerada é a metodologia comparativa, dado que, como destacou Benzaquen de Araújo, “a constituição de uma perspectiva comparada com o pensamento social de outros países, tal como o que já está ocorrendo – sobretudo – com a Argentina, abre também grandes possibilidades de uma expansão da riqueza e da complexidade intelectual das pesquisas nesta área” (apud SCHWARCZ; BOTELHO, 2011, p. 158). Esse tipo de metodologia comparada é favorecido e estimulado por uma ferramenta informacional como a Biblioteca Virtual do Pensamento Social.
A BVPS, de fato, funciona como uma espécie de memória das ciências sociais e visa a estimular a interlocução entre o pensamento social feito no Brasil, em outros países da América Latina e nos Estados Unidos, ao mesmo tempo que integra, na contemporaneidade, comunidades intelectuais espalhadas em territórios geográficos e países distintos, em diferentes objetos de estudo e partindo de modos plurais e heterodoxos, mas não contraditórios, de entender e definir a própria disciplina. A partir desse tipo de iniciativa, a BVPS tem sido um núcleo importante de articulação entre pesquisadores localizados em regiões distantes do Brasil, de outros países da América Latina – México, Uruguai e Argentina, sobretudo – e dos Estados Unidos. De fato, ela tem funcionado como ferramenta de transmissão e divulgação do pensamento social a partir de um eixo comparativo. Trata-se de uma tendência de crescente importância no pensamento social, na história intelectual e nos estudos latino-americanos, que propõe pensar a existência de um campo intelectual mais amplo do que aquele definido pelas fronteiras nacionais, a partir do exame da história das ciências sociais e humanas de forma comparada e transnacional[10]. O campo vem refletindo de diversas maneiras sobre as consequências epistemológicas de pensar a história dos intelectuais e das suas interpretações a partir de um princípio supranacional, isto é, partindo de um exercício de tradução analítica e de comparação entre pressupostos ideológicos e debates localizados em comunidades intelectuais distintas, mas com importantes pontos em comum. Desse modo, as pesquisas recentes têm tomado como ponto de partida deslocamentos, diásporas, traduções e instituições que trabalharam em âmbito continental e transnacional, o que tem o potencial de revelar o papel das pesquisas feitas nas periferias para a compreensão dos desafios e debates das disciplinas científicas (BRASIL JR., 2013; MAIA, 2017). Por outro lado, o pensamento social sobre “América Latina” – como espaço mais simbólico do que geográfico e que implica a constituição de uma mirada complexa, assim como uma série de desafios e limites[11] –, deve ser considerado na sua relação, de contaminação e tensão, com a história intelectual e com os estudos latino-americanos.
No caso da relação entre a história intelectual praticada na Argentina e o pensamento social feito no Brasil, além de sublinhar a premissa comum da exploração dos processos de simbolização social, em seu aspecto discursivo e material, deve-se ressaltar a história específica de cada uma em seu respectivo país, com seus principais eixos de debate, modos de legitimação e dilemas centrais[12]. Na relação do pensamento social com os estudos latino-americanos, devemos levar em conta que esses nascem nos Estados Unidos, junto a outros estudos de área e internacionais, no contexto das políticas norte-americanas da Guerra Fria, como revela-se na criação de múltiplos programas de estudos latino-americanos e de “línguas estrangeiras” – no caso, espanhol e português – em universidades norte-americanas e na criação da própria LASA (Latin American Studies Association) durante o período que vai da Revolução Cubana (1959) até a queda do muro de Berlim (1989) (DE LA CAMPA, 2000). Já a partir do final da década de 1980, os paradigmas nacional e disciplinar entraram em crise e tomou força o modelo dos estudos culturais no âmbito dos estudos sobre a América Latina na academia anglo-saxã, o que implicou uma intensificação da relação entre as humanidades e as ciências sociais e o questionamento do cânone literário como núcleo da tradição letrada nacional (RICHARD, 2012). No caso dos estudos culturais latino-americanos – e dada a centralidade do estudo de línguas para os area studies norte-americanos –, isso não implicou um abandono do texto, mas um estímulo ao estudo de produções alheias ao cânone da tradição letrada, como no caso dos debates em torno do gênero testemunho, da entrada da crítica feminista e dos chamados “estudos subalternos” (BEVERLEY, 2014).
Como se vê, os estudos culturais latino-americanos estiveram marcados por agendas de pesquisa diferentes às do pensamento social no Brasil, dadas por conjunturas político-sociais distintas assim como por outros regimes de politização e outras modalidades de mediação entre o conhecimento acadêmico e o social. Cada disciplina ocupa um espaço qualitativamente diferente no campo intelectual de cada país, como se vê no protagonismo da sociologia no pensamento social brasileiro, enquanto no campo de estudos latino-americanos nos Estados Unidos já não é a sociologia (marcadamente autocentrada na sociedade norte-americana) que tem protagonismo, senão as disciplinas ligadas ao estudo de línguas, como a linguística, os estudos literários e culturais e a história.
No entanto, há em comum, em termos teórico-metodológicos, o diálogo interdisciplinar, de articulação entre disciplinas diferentes. Assim, os “estudos latino-americanos” combinam uma perspectiva interdisciplinar com uma perspectiva de area studies, de comparação entre diferentes países e regiões, como vemos na definição tanto disciplinar quanto de área das seções que agrupam os membros e participantes da LASA[13]. Por outro lado, é interessante observar que “Estudos culturais” na América Latina e “estudos latino-americanos” são duas definições não equivalentes, mas também não excludentes, de modalidades teórico-metodológicas e de pesquisa sobre a América Latina nos Estados Unidos e nos espaços acadêmicos nos quais a tradição anglo-americana é mais forte. O desafio interdisciplinar de articular correntes teóricas e disciplinares com metodologias e objetos de análise heterogêneos tem uma série de implicações. Embora o valor democratizante de uma agenda que se propõe a questionar o cânone literário e a recuperar as experiências e sujeitos pouco ou nada representados pelas tradições letradas seja inegável, ela pode ter tendido a reforçar determinadas dicotomias, como a de cultura letrada e cultura popular, assim como a reificar a “alteridade” ou a “diferença” latino-americana em termos de subalternidade, empobrecendo assim as leituras possíveis sobre o papel da cultura na América Latina[14]. É por isso que a interseção entre os “estudos culturais” latino-americanos, a história intelectual e o pensamento social, em chave transnacional, pode permitir modos mais complexos de pensar a relação entre os intelectuais, a cultura e a sociedade nos diferentes países da América Latina, seja através da redefinição da própria categoria de intelectual[15], seja através do exame dos modos diversos e complexos pelos quais os intelectuais interagem e se inserem, partindo de relações hierárquicas e não hierárquicas de simbolização e poder, na vida social. Isso implica a quebra das dicotomias, muitas vezes mais polarizadoras que explicativas, entre o nacional e o cosmopolita, a cultura letrada e a cultura popular, a tradição e a modernidade na América Latina, assim como implica a possibilidade de repensar o lugar das linguagens culturais no processo de mudança social.
A seguir, apresentaremos alguns dados que, a partir das ferramentas da BVPS, permitem traçar um mapa do campo de “pensamento social”, assim como delinear o perfil temático, cognitivo e temporal da produção intelectual na área de pesquisa e analisar o modo como a América Latina aparece no universo dos pesquisadores da área.
Certamente, como todo campo de conhecimento dinâmico, a área de “pensamento social” já conta com enorme acúmulo reflexivo em termos de balanços, simpósios e acertos de conta críticos em relação a suas agendas e seus protocolos de pesquisa[16]. Com as ferramentas associadas à BVPS, este esforço reflexivo pode atingir um novo patamar, pois elas nos dão um mapa do “pensamento social” capaz de capturar a complexidade e a magnitude da área. Ainda que os formatos mais assentados de “balanços de área” continuem sendo fundamentais para a auto-observação de uma área de pesquisa, o aumento exponencial de informações gerado pelos processos de ampliação e especialização do conhecimento necessita também de um olhar “de longe”, mais distanciado, que seja capaz de detectar grandes padrões, recorrências e dispersões temáticas, temporais e disciplinares (MORETTI, 2008).
Cumpre lembrar que já houve iniciativas anteriores de cartografar as ciências sociais usando grandes agregados de dados. Sem pretender fazer uma listagem exaustiva, pode-se mencionar aqui o trabalho de Manuel Palacios Melo, Quem explica o Brasil (1999), que, utilizando de maneira criativa os métodos quantitativos da bibliometria, traçou um mapa da disciplina através das principais referências bibliográficas mobilizadas pelos “redatores” de teses. Integrando uma pesquisa mais ampla sobre as ciências sociais no Brasil, o autor também publicou, em coautoria com L. J. Werneck Vianna, M. A. Rezende de Carvalho e M. B. Burgos, o artigo “Doutores e teses em ciências sociais” (VIANNA et al, 1998), texto que traz uma série de dados sobre os métodos e os objetos mais recorrentes em 411 teses de doutorado defendidas entre 1990 e 1997 em onze instituições de pós-graduação. Neste período, segundo o levantamento dos autores, a “magnitude” da área “pensamento social” – ou melhor, “pensamento brasileiro”, de acordo com a nomenclatura utilizada – atingia níveis relevantes em relação ao conjunto dos objetos mais frequentes, perfazendo 15 teses ou 3,6% do total. Como sugerem os próprios autores do artigo, estes valores seriam maiores caso fosse incluída na mesma rubrica as teses sobre “ciência social” – em seus termos, “ciência social” e “pensamento brasileiro” “versam sobre temas afins, isto é, de como e a partir de que instrumentos se pensa o Brasil” (VIANNA et al, 1998, online) –, o que daria um total de 22 teses ou 5,3 % do total, um número sem dúvida significativo[17].
Outro trabalho que toma como objeto teses de doutorado é o artigo de André Botelho (2012), “Sobre as teses do IUPERJ: ciências sociais e construção democrática no Brasil contemporâneo”, que analisou 200 teses defendidas nesta instituição. Deste total, o campo “pensamento social” contribuiu com um total de 19 teses, sendo a área temática mais recorrente a “sociologia”, com 10 teses. Na medida em que este texto envolve um contraponto entre as teses da “sociologia” e as da “ciência política”, ele permite ver que, ainda que o “pensamento social” esteja presente de maneira significativa nas três disciplinas básicas das ciências sociais, este campo apresenta modulações e problemas distintos em cada uma delas. Mais recentemente, André Botelho e Lucas Carvalho (2017) fizeram um levantamento exaustivo de todos os artigos de sociologia publicados na revista Dados, mostrando que nos últimos 50 anos da revista o “pensamento social e político brasileiro” é uma das especializações mais frequentes na revista, ao lado de “sociologia política” e de “teoria sociológica”.
Através da plataforma Stela Experta[18], foi possível realizar uma ampla e inédita cartografia da área de pesquisa em pensamento social. Com o objetivo de identificar os pesquisadores que produzem no campo, a partir das palavras-chave que eles mesmos atribuem às suas produções, encontramos um universo significativo de 938 pesquisadores (mestrandos, mestres, doutorandos, doutores e bolsistas de produtividade). Os critérios adotados para criar esta “cesta de pesquisadores” foram a recorrência da expressão “pensamento social” (no mínimo 3 vezes em toda a produção listada no CV-Lattes do pesquisador) e a atualização dos currículos pelo menos uma vez nos 12 meses anteriores à busca.
Ao agregar estas informações, selecionando apenas os itens de produção[19] que contivessem o termo “pensamento social”, encontramos a significativa quantidade de 4968 itens, de acordo com extração feita no dia 16 de novembro de 2014. Esta produção apresenta a seguinte evolução temporal:
Vemos, no gráfico acima, que, de acordo com o universo pesquisado, a área de “pensamento social” apresenta considerável crescimento ao longo do período que vai desde meados da década de 1990 até atingir um pico em 2011. A queda dos indicadores após 2011 não deve ser automaticamente referida a uma possível diminuição do volume da produção, pois a “cesta” de 938 pesquisadores é estática e, como sabemos, há certa demora no preenchimento das informações no CV-Lattes. A curva de crescimento, acentuada entre 1995 e 2014, é consistente com os dados relativos aos GTs de Pensamento Social no Brasil na ANPOCS e na SBS, bem como com o surgimento de uma geração de pesquisadores que, desde fins da década de 1980, começou a realizar as dissertações de mestrado e as teses de doutorado em “pensamento social”.
Em relação às áreas disciplinares, os 938 pesquisadores, de acordo com o grafo gerado pelo Stela Experta, estão reunidos de acordo com as seguintes associações:
O gráfico não só chama a atenção para o caráter interdisciplinar da área de “pensamento social”, algo mencionado em todos os seus balanços, mas também para a centralidade da sociologia no interior deste universo, a qual figura como o “nó” central. Em termos de associações entre as áreas, vemos que há relações relativamente equilibradas entre a sociologia e as demais disciplinas[20]: há 234 pesquisadores relacionando a sociologia com a ciência política, 247 relacionando-a com a história (mediada pela grande área ciências humanas) e 208, com a antropologia. Esta rede demonstra que, em que pese a centralidade da sociologia – o que certamente traz implicações para a dinâmica teórica, metodológica e empírica desta área de pesquisa[21] –, o “pensamento social” é fortemente interdisciplinar e relativamente equilibrado entre as três disciplinas das ciências sociais e a história.
Em números absolutos, selecionando todas as produções destes 938 pesquisadores que contenham o termo “pensamento social”, encontramos os temas mais recorrentes nesta produção (definidos a partir da extração de informações contidas nos CV-Lattes, e não da leitura dos itens de produção)[22]. A fim de qualificar melhor as informações referidas aos “intérpretes do Brasil” mais recorrentes neste universo, pesquisamos também especificamente os nomes dos autores contemplados na coletânea Um enigma chamado Brasil (2009), organizado por André Botelho e Lilia Schwarcz durante sua coordenação do Grupo de Trabalho “Pensamento Social no Brasil” na ANPOCS. A escolha desse livro justifica-se pelo fato de que ele surge como produto das discussões da área em pensamento social no Brasil no interior do GT da ANPOCS, reunindo aproximadamente os intérpretes mais mapeados por essa área de conhecimento desde a década de 1980, quando o GT foi criado.
Do quadro acima, destacam-se algumas informações. De um lado, como é natural, a própria área de pesquisa aparece como tema principal, quando se seleciona o termo “pensamento social”; no entanto, vemos que há variações entre “Pensamento social brasileiro”, “pensamento social” e “Pensamento social no Brasil”, sendo as duas primeiras as mais frequentes no interior do universo pesquisado, a despeito de a última nomear os longevos Grupos de Trabalho da ANPOCS e da SBS. Outro dado que chama a atenção é a associação recorrente do termo “pensamento social” com, pelo menos, quatro intérpretes da sociedade brasileira: Gilberto Freyre, Florestan Fernandes, Oliveira Vianna e Sérgio Buarque de Holanda, nesta ordem de importância. A centralidade destes quatro autores se mostra consistente com as buscas feitas isoladamente com os seus nomes na produção dos 938 pesquisadores selecionados. Em certo sentido, isso mostra que o período entre 1920 e 1970 é o que mais vem concentrando a atenção dos pesquisadores, retirando um pouco do peso que costumávamos atribuir aos ensaios da década de 1930, na esteira do prefácio de Antonio Candido (1995) à quinta edição de Raízes do Brasil.
A Plataforma Stela Experta também permite refletir sobre o “estado do campo” dos estudos sobre América Latina no interior do pensamento social em seus diferentes indicadores. Com o objetivo de identificar os pesquisadores que produzem no campo, a partir das palavras-chave por eles atribuídas à sua própria produção, encontramos um universo significativo de 370 pesquisadores (incluindo mestrandos, mestres, doutorandos, doutores, pós-doutores e livredocentes)[23]. Além disso, foi possível identificar as produções sobre a América Latina no interior do campo do pensamento social, chegando a um universo de 1.458 itens (incluindo produções bibliográficas e orientações concluídas e em andamento). Com base nestes procedimentos, chegamos aos seguintes resultados:
Vemos, no gráfico acima, que a maior parte das produções sobre a América Latina pertence à área das ciências humanas (que inclui Antropologia, Ciência Política, Educação, História e Sociologia, entre outras), com 1315 produções, seguida por ciências sociais aplicadas, com 147, e linguística, letras e artes, com 82 produções; o que é resultado do fato de que nossa cesta de pesquisadores foi extraída a partir do termo “pensamento social”, o que tende a sobresselecionar pesquisadores das ciências humanas. Isso ressalta a diferença em relação aos Estados Unidos, não só porque, no caso, quase todas as ciências sociais, com exceção da história, seriam consideradas “aplicadas”, mas sobretudo porque, inclusive a despeito da mencionada crise do cânone literário, a importância do estudo de línguas, literaturas e culturas estrangeiras e da linguística tornou-se cada vez mais fundamental para os programas de estudos latino-americanos[24].
A evolução temporal da pesquisa em pensamento social sobre América Latina é equivalente e paralela à do próprio campo, com crescimento nas décadas de 1990 até atingir picos na primeira década do século XXI. Como nesse caso, aqui também a diminuição observada nos últimos anos simplesmente tem a ver com a demora no preenchimento das informações e com a restrição da “cesta” de pesquisadores. O crescimento nas últimas décadas, portanto, revela um considerável aumento do interesse nas questões latino-americanas no pensamento social.
Selecionando todas as produções dos pesquisadores em pensamento social sobre a América Latina (definidos a partir da informação contida no CV-Lattes), encontramos os temas e intérpretes mais recorrentes:
Do quadro, destacam-se algumas questões: por um lado, a predominância de temas ligados à elaboração de políticas públicas (como “Políticas sociais”, “Pobreza”, “Políticas Públicas”, “Democracia”, “Cidadania”, “Movimentos Sociais”), o que revela um regime de politização ligado à relação entre os poderes públicos e a cidadania. Por outro lado, é importante assinalar a presença de termos característicos do contexto histórico-político latino-americano da pós-ditadura (como “Neoliberalismo” e “Memória”) e de outros que chamam a atenção para o próprio processo de internacionalização das ciências sociais (como “globalização”, “brasilidade” e o próprio “América Latina”). Quanto aos intérpretes estudados, vemos a presença de autores fundadores do latino-americanismo moderno, originários de diferentes países e períodos, como o cubano José Martí, o uruguaio José Enrique Rodó e o mexicano Leopoldo Zea, mas, sobretudo, a predominância dos dois brasileiros que talvez mais influíram na constituição de um discurso sobre a América Latina no Brasil: Darcy Ribeiro e Manuel Bomfim.
Além dos dados extraídos pela Stela Experta, já contamos com uma massa considerável de itens de produção intelectual indexados na base de dados da BVPS, conforme pode ser acessada em seu site[25]. A construção desta base de dados é diferente do modo como foi extraído o universo dos 938 pesquisadores antes explorado, pois esta depende de uma alimentação demorada e da disponibilidade do texto completo online. Além disso, a identificação dos itens relativos à base BVPS mobilizou estratégias mistas, que envolveram o uso de palavras-chave afins à área de “pensamento social”[26] e a busca de determinados intérpretes que estão contemplados na página principal da BVPS, cuja lista está em permanente processo de expansão[27]. Comparando-se os itens de produção intelectual identificados pela Stela Experta e os documentos indexados na base BVPS, chegamos ao gráfico abaixo, que indica uma trajetória de crescimento da área consistente nos dois métodos de extração de informações.
Este trabalho partiu de uma ferramenta digital como a BVPS, enquanto plataforma voltada para a construção de novos balanços sobre o campo do pensamento social, para investigar as interações entre os praticantes das ciências sociais e humanas e para repensar o conhecimento por eles produzido. De fato, algumas das perguntas centrais que guiaram a construção da BVPS foram: como construir um balanço do campo do pensamento social através de um olhar distante, capaz de detectar grandes padrões, recorrências e dispersões temáticas, temporais e disciplinares? Como é que os novos fluxos de informação e as ferramentas digitais permitem mapear as ciências sociais e humanas de modos inéditos? Quais são os novos sentidos – horizontais e porosos ou hierarquizados e assimétricos – que aparecem como resultado dessa perspectiva distanciada? Uma das conclusões, nesse sentido, foi a constatação de que a BVPS, assim como o próprio campo do pensamento social, conjuga um viés científico, de preservação da autonomia do conhecimento, com um viés político, de estimulação de um diálogo transnacional que ultrapasse qualquer tentativa de subalternização dos intelectuais brasileiros e latino-americanos. A BVPS articula dimensões epistemológicas e políticas, o que coincide com o sentido do próprio campo do pensamento social.
Tanto a interdisciplinaridade quanto a perspectiva comparativa revelam-se fundamentais para entender a especificidade dos desafios próprios do pensamento social no Brasil, bem como sua relação com as disciplinas acadêmicas da história intelectual e dos estudos culturais, na América Hispânica e nos Estados Unidos, respectivamente: cada uma possui uma localização distinta no campo intelectual e acadêmico e estabelece uma relação diferente com as tradições letradas nacionais – o que se traduz na centralidade da sociologia no caso do Brasil, da história no caso da Argentina e na importância do estudo de línguas e culturas estrangeiras nos Estados Unidos. Correlativamente, cada um desses campos revela modos distintos de politização, assim como formas diferentes de lidar com a construção social da alteridade e da diferença. Ainda, a constatação da importância crescente, nos últimos 30 anos, do campo do pensamento social no Brasil e, no interior dele, do campo de estudos sobre a América Latina pode contribuir para definir estratégias que estimulem e reforcem o potencial de divulgação científica da disciplina, assim como a possibilidade de participação de públicos amplos e de várias nacionalidades, como parte do processo de internacionalização das ciências sociais.