Artigos
Arte, Juventude e Legitimação: Uma Análise Comparativa sobre Jovens Artistas da Arte Contemporânea nos Contextos Brasileiro e Uruguaio
Art, Youth and Legitimation: a comparative analysis of young artists of contemporary art in the brazilian and uruguayan contexts
Arte, Juventude e Legitimação: Uma Análise Comparativa sobre Jovens Artistas da Arte Contemporânea nos Contextos Brasileiro e Uruguaio
Revista Brasileira de Sociologia, vol. 7, núm. 16, pp. 105-134, 2019
Sociedade Brasileira de Sociologia
Recepção: 01 Fevereiro 2019
Aprovação: 05 Maio 2019
Resumo: Com o advento da arte contemporânea, nos anos de 1960 e em diante, as regras que regem as condutas no sistema da arte foram alteradas, afetando e acolhendo linguagens artísticas emergentes de caráter não objetual; mudanças estas que parecem ter estabelecido novos processos de legitimação de carreiras artísticas. Essa hipótese orientou o escopo de análise em dois projetos de pesquisa sobre jovens artistas visuais da arte contemporânea no Brasil e no Uruguai. Este artigo se propõe a reunir e comparar os dados de ambas investigações a fim de: 1) tratar da importância de jovens artistas para o funcionamento do circuito artístico da arte contemporânea; 2) indicar as similaridades e diferenças acerca da construção de carreiras artísticas no Brasil e no Uruguai; 3) apresentar quem são os/as/xs jovens artistas de ambos contextos; e 4) compreender suas estratégias em busca de legitimação.
Palavras-chave: Arte Contemporânea, Carreira, Jovens Artistas, Brasil, Uruguai.
Abstract: With the advent of contemporary art, from the 1960s onwards, the rules governing conducts in the art system were altered, affecting and welcoming emerging nonobjectual artistic languages. These changes seem to have established new processes of legitimizing artistic careers. This hypothesis guided the scope of analysis in two research projects about young visual artists of contemporary art in Brazil and Uruguay. This article proposes to gather and compare the data of both investigations with the purposes of: 1) addressing the importance of young artists to the artistic circuit of contemporary art; 2) indicating the similarities and differences regarding the construction of artistic careers in Brazil and Uruguay; 3) presenting who are the young artists of both contexts; and 4) understanding their strategies in search of legitimation.
Keywords: Contemporary Art, Career, Young Artists, Brazil, Uruguay.
Os primeiros cinquenta anos são sempre os mais duros. (Jacques Villon apud Tomkins, 2013, p. 397).
A frase atribuída ao pintor e ilustrador Jacques Villon (1875-1963), um dos irmãos de Marcel Duchamp (1987-1968) e cujo reconhecimento como artista ocorreu somente após seus 50 anos de idade, reforça dois pontos abordados neste texto. O primeiro refere-se à temporalidade do reconhecimento, que não acontece na vida de todo/a/x e qualquer artista, e, quando ocorre, não se dá do mesmo modo e nem na mesma fase da vida para todos/as/xs, podendo, inclusive, acontecer apenas após o falecimento[1]. Em segundo plano, toma-se o relato de um período na história da arte em que outras regras regiam as ações no campo artístico. Apesar de uma máxima do senso comum afirmar que “um artista só consegue reconhecimento após sua morte”, a partir de uma perspectiva sociológica da arte, argumentamos que os processos de legitimação[2] variam de acordo com as regras estabelecidas por diferentes atores sociais e instituições artísticas legitimados/as/xs e responsáveis por legitimar artistas, linguagens estéticas e demais indivíduos e instituições que busquem se estabelecer no campo artístico.
O sociólogo Alain Quemin (2013; 2016) analisa os rankings internacionais que elegem quem seriam os/as/xs principais agentes sociais da arte a cada ano. Cruzando o problema do reconhecimento artístico, abordado através desses rankings, e enfocando a nacionalidade e o território de residência dos artistas, Quemin demonstra que, em geral, mesmo no mundo globalizado contemporâneo, artistas que aparecem em tais listas de avaliação são homens, brancos, com mais de 50 anos de idade, nascidos, ou atuantes, ou representados por galerias nos Estados Unidos e/ou na Alemanha. Esses dados tratam de questões não somente relativas ao universo artístico, pois concernem ao teor das conexões globais estabelecidas presentemente e também ao perfil socialmente construído como desejável para artistas profissionais no universo artístico.
Entretanto, apesar dos dados da pesquisa de Alain Quemin (2013; 2016), a hipótese deste artigo é de que o atual conjunto de regras da arte contemporânea reserva um espaço importante à categoria jovens artistas (e seus sinônimos: artistas emergentes e artistas em início de carreira)[3]. Conforme argumentou a socióloga Nathalie Heinich (2014), após o advento da arte contemporânea[4] foi iniciado um novo paradigma artístico, o qual trouxe um novo conjunto de regulações às ações práticas e simbólicas para indivíduos e instituições que conformam o mundo da arte. Relativamente à temporalidade do reconhecimento de artistas após o surgimento da arte contemporânea, Heinich afirma que:
(…) enquanto um artista moderno, muitas vezes, precisava esperar muito tempo antes de realizar suas primeiras exposições, receber suas primeiras críticas e vender suas primeiras obras, um artista contemporâneo pode experimentar uma ascensão muito rápida na cena artística – como no famoso caso de Jean-Michel Basquiat, que teve um sucesso dramático logo depois de seu 20º aniversário (HEINICH, 2014, p. 383).
Para a socióloga, esta possibilidade de reconhecimento de um artista ainda jovem tornou-se, por outro lado, uma desvantagem para os artistas mais velhos. Todavia, ao retomarmos o trabalho de Quemin (2013; 2016), vemos explicitamente a manutenção das vantagens a artistas biologicamente e profissionalmente mais experientes, no que diz respeito aos processos de legitimação e reconhecimento. Tratando-se de jovens artistas, objeto deste artigo, é possível argumentar tanto sobre vantagens (por exemplo, uma proliferação de editais concentrados em ou voltados exclusivamente para jovens artistas) quanto sobre desvantagens (por exemplo, o prestígio internacional, efetivamente, pode ainda estar atrelado aos artistas mais velhos, sendo o caso de Basquiat uma exceção).
Fato é que o reconhecimento em termos internacionais, como demonstrado por Alain Quemin, ainda ocorre, especialmente, favorecendo um grupo de artistas mais velhos (em termos biológicos e de tempo de carreira), e, a partir dos argumentos de Nathalie Heinich (2014), é possível considerar que, com a arte contemporânea, a qual contribuiu para a emergência de novas regras para o campo artístico, jovens artistas vêm sendo legitimados em processos que são distintos de outros momentos da história da arte. Processos esses são o foco deste artigo, em que são comparados os dados obtidos a partir de dois projetos de pesquisa: uma tese de doutorado acerca do processo de legitimação de jovens artistas no Brasil e uma residência de investigação sobre esse mesmo processo no Uruguai.
As pesquisas em que se baseia este artigo partiram do entendimento de que os processos de legitimação profissional no universo da arte, após o advento da arte contemporânea, foram alterados, possibilitando que artistas ainda considerados jovens em termos etários e de tempo de carreira sejam reconhecidos como artisticamente relevantes pelo conjunto de agentes sociais e instituições artísticas, o que surge como hipótese, não apenas a partir dos argumentos de Heinich (2014), mas também do que chamamos de proliferação de editais voltados a jovens artistas. Esses editais são essenciais para o funcionamento do universo artístico em ambos contextos estudados. Dentre esses editais, alguns selecionam artistas para exibirem seus trabalhos em exposições, participarem de residências artísticas e/ ou receberem premiações. Concorrer nesse tipo de certames e lograr ser selecionado/a/x permite que um/a/x artista cumpra a prerrogativa básica de seu trabalho: exibir suas criações a um público. Além disso, facilita que os/as/xs artistas angariem os meios para visibilidade de seus trabalhos e incrementarem seus currículos, aumentando as possibilidades de sua legitimação pelo circuito artístico.
Os resultados das pesquisas sobre os contextos artísticos brasileiro e uruguaio são aqui reunidos para compreender o processo de legitimação de jovens artistas da arte contemporânea. Neste artigo, apresentamos o perfil de artistas que vêm sendo selecionados/as/xs e legitimados/as/xs pelo universo artístico nos dois contextos. São também analisadas entrevistas com artistas acerca do significado de sua profissão atualmente[5], realizadas tanto no Brasil quanto no Uruguai, assim, propondo aproximações e distanciamentos que permitirão tratar das transformações ocasionadas pela arte contemporânea e dos processos de legitimação desempenhados nos campos artísticos de ambos países.
1. Campos de pesquisa, metodologias e o perfil de Jovem Artista no Brasil e no Uruguai
Antes de apresentar a análise das entrevistas realizadas, é imprescindível, neste item, destacar os campos de pesquisa e as metodologias que foram efetivados para, então, tratar da categoria analítica jovem artista por meio do perfil de artistas selecionados/as/xs e premiados/as/xs por certames de artes visuais[6] no Brasil e no Uruguai.
1.1 Jovens Artistas no Brasil
A pesquisa de doutorado (MARCONDES, 2018a) teve como objeto os jovens artistas brasileiros, no período entre 2014 e 2017, para compreender quais as transformações efetivadas pelo advento da arte contemporânea, ocorrido quase seis décadas atrás, e como elas incidem sobre os processos de legitimação no universo da arte. Para isso, foram analisadas três exposições, três residências artísticas e um prêmio, todos voltados a jovens artistas, são eles: o Abre Alas, d’A Gentil Carioca (galeria situada no Rio de Janeiro), o Novíssimos, da Galeria IBEU/Instituto Brasil-Estados Unidos (situada no Rio de Janeiro), o Salão Anapolino de Arte, realizado pela Secretaria de Cultura da cidade de Anápolis (GO), o Programa Bolsa Pampulha, organizado pelo Museu de Arte da Pampulha, em Belo Horizonte, a Casa B - Residência Artística, do Museu Bispo do Rosário Arte Contemporânea, localizado no Rio de Janeiro, a Residência Artística Red Bull Station, situada na cidade de São Paulo, e o Prêmio PIPA, promovido pela parceria entre o Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM-Rio) e o Instituto PIPA.
Os editais, como argumentamos, têm sido fundamentais ao funcionamento do campo artístico, contudo, nem sempre são específicos no que diz respeito à categoria jovem artista, artista emergente ou artista em início de carreira. Embora seja frequente o uso dos mencionados termos, nem sempre os editais definem quem são os/as/xs jovens artistas que podem concorrer e, talvez, lograr serem selecionados/as/xs e/ou premiados/as/xs pelos certames artísticos. Entre os editais analisados, apenas um, o do Programa Bolsa Pampulha, trazia uma definição de quem seriam tais jovens artistas que poderiam concorrer e buscar um lugar na residência:
3.3. Por se tratar de um Programa dedicado à produção emergente, o artista deverá enquadrar-se em pelo menos uma das situações abaixo relacionadas:
a) ser nascido a partir de 1979 (inclusive); ou
b) ter realizado até 3 (três) exposições individuais; ou
c) ter até 5 (cinco) anos de atividade artística, contando a partir da 1ª exposição (PROGRAMA BOLSA PAMPULHA, 2017, p. 186).
Deste modo, ao constatar a pouca definição da categoria jovem artista, foi possível perceber que se trata uma categoria em disputa. Por se tratarem de editais que permitem a exibição de trabalhos, a realização de residências artísticas e também premiações, ou seja, que possibilitam a realização do trabalho artístico, concorrer a tais certames é, de fato, uma oportunidade para artistas em geral, interessando também a artistas visuais que não se enquadram no que é especificado por editais como o Bolsa Pampulha, seja em termos etários ou de experiência profissional. Desta forma, no universo pesquisado é possível encontrar artistas com mais de 50 anos de idade e/ou que têm mesmo três décadas de atuação na seara das artes visuais. Foi preciso, portanto, buscar qual era o perfil mais comum de artistas selecionados/ as/xs e premiados/as/xs em tais certames, com a finalidade de compreender quem são os/as/xs jovens artistas e que indivíduos têm sido legitimados pelo mundo da arte.
Através dos catálogos que traziam a memória de tais eventos artísticos[7], foi possível acessar as biografias dos/as/xs artistas selecionados/as/xs e, em alguns casos, premiados/as/xs. As biografias resumidas de artistas em catálogos são uma convenção do mundo da arte (BECKER, 2008) e contêm informações sobre os/as/xs artistas como, por exemplo, ano e local de nascimento. No conjunto analisado, tivemos acesso a 464 biografias resumidas de artistas que foram utilizadas para a construção dos dados. Em alguns casos, tratam-se de coletivos de arte que, em alguns materiais, tinham informações sobre seus integrantes separadamente, o que permitiu, nestes casos, a compilação dos dados de seus integrantes em separado. Há ainda artistas que participaram das mesmas exposições ou do prêmio em múltiplas edições. Esses casos, de artistas que se repetem, foram aqui contabilizados mais de uma vez, pois cada edição, de cada evento, foi tomada como única. Se um/a/x artista participou, por exemplo, tanto do PIPA quanto da Casa B - Residência artística, seus dados foram compilados duas vezes. Pois, se um/a/x artista é indicado a um prêmio e participa de uma residência artística voltada a jovens artistas no mesmo ano, isso significa que esse indivíduo se enquadra no perfil de artista emergente aclamado pelo universo artístico. Fato é que varia o quantitativo de artistas na compilação de cada dado apresentado na pesquisa (a saber: idade, local de nascimento, local em que vivem e trabalham, escolaridade e gênero), assim, em relação a idade dos/as/xs artistas, foi possível compilar os dados de 469 artistas, já em relação ao local em que viviam e trabalhavam, foram 464 (ver: MARCONDES, 2018a).
Em relação ao perfil, o levantamento de dados permitiu concluir que os jovens artistas selecionados/as/xs e premiados/as/xs pelos eventos artísticos analisados tinham idades entre 25 e 35 anos (Gráfico 1); estavam concentrados nas cidades do Rio de Janeiro e de São Paulo[8] (Gráficos 2, 3 e 4); possuíam alto grau de escolaridade, sendo, em sua maioria, pelo menos graduados (Gráfico 5); e, permitiu concluir que havia mais homens do que mulheres entre os artistas (Gráfico 6). Esse perfil é uma forma de compreender quem são os/as/xs jovens artistas da arte contemporânea brasileira que estão obtendo acesso às exposições, às residências e ao prêmio analisados, angariando, portanto, a visibilidade que permite a construção de suas carreiras. Mesmo sem uma regular especificação nos editais relativamente ao perfil dos/as/xs artistas que a eles podem concorrer, há um padrão de seleção que demonstra, então, quem vem sendo legitimado/a/x no campo da arte tomado para análise (o das artes visuais). São artistas que têm, neste sentido, mais acesso a redes de curadores/as/xs de exposições, críticos/as/xs de arte, galeristas, diretores de museus entre outros/as/xs, que podem contribuir para a legitimação de suas carreiras.
Regiões de origem dos/as/xs artistas participantes dos editais e do prêmio analisados, considerando-se somente aquelxs que viviam/trabalhavam no Brasil ou se dividiam entre o país e outro, mas indicavam as regiões brasileiras em que viviam
MARCONDES, 2019.
Cidades do sudeste brasileiro em que viviam/trabalhavam os/as/xs artistas participantes dos editais e do prêmio analisados, considerando-se somente aquelxs que viviam/trabalhavam no sudeste ou se dividiam entre o país e outro, mas indicavam as cidades brasileiras em que viviam
MARCONDES, 2019.
Apesar de ser uma categoria com definição controversa, a análise permite a compreensão de que a categoria jovem artista, no campo da arte contemporânea brasileira, está relacionada a uma fase de transição na qual há busca por reconhecimento, ademais, entrecruza a idade e o tempo de carreira dos indivíduos. Argumentamos, então, que, ao se inscreverem nos editais artísticos, jovens artistas se dispõem a estar à mercê do reconhecimento de seu trabalho pelos mais velhos e estabelecidos, reconhecidos e legitimados (BOURDIEU, 1983), que compõem os júris de seleção dos certames e que, assumindo esse papel de selecionadores, implementam as regras gerais estabelecidas pelos indivíduos e instituições em interação que formam o campo da arte contemporânea.
Assim, a partir dos eventos artísticos analisados, constatou-se o perfil de artistas selecionados/as/xs pelos certames (entre 2014 e 2017). Com objetivo de compreender sua percepção sobre seu processo de legitimação, obteve-se o contato de 112 artistas presentes nos certames. Deste total, 37 responderam ao questionário da pesquisa, cujas respostas são analisadas à frente neste artigo.
1.2 Jovens Artistas no Uruguai
O projeto de pesquisa ( Joven) Arte (Latinoamericano) en Uruguay : de 1980 a los años 2010 foi selecionado, em 2017, através da oitava chamada pública do Espacio de Arte Contemporáneo (EAC), um dos principais aparelhos culturais do Uruguai mantido pela Dirección Nacional de Cultura (DNC) do Ministerio de Educación y Cultura (MEC), para integrar seu programa de residências artísticas e de investigação[10]. O objetivo do projeto foi analisar os processos de legitimação de artistas e as características da arte contemporânea realizada no Uruguai de 1980 a 2018. Residindo e trabalhando no EAC durante seis semanas (entre julho e agosto de 2018), realizamos a pesquisa em um processo de total imersão no universo artístico uruguaio, habitando e pesquisando em um espaço de arte relevante no campo artístico do país.
Tendo em vista que seis semanas poderiam ser pouco tempo para nossa imersão na história da arte uruguaia por meio das questões colocadas por nosso projeto, em maio de 2018, fizemos um questionário a ser respondido por jovens artistas e curadores/as/xs uruguaios/as/xs residentes ou não no país; para isso, contamos com auxílio da equipe de mediação do EAC e o questionário que formulamos foi enviado através da lista de e-mails da instituição. Ao chegarmos em Montevideo, em 17 de julho de 2018, contávamos com 67 questionários respondidos[11], sendo esse material a base para o desenvolvimento do projeto. É importante ressaltar que as questões que dizem respeito ao processo de legitimação de curadores/as/xs uruguaios saiu do escopo de investigação, em virtude de não termos recebido respostas específicas de curadores/as/xs ao nosso questionário. Sendo assim, a pesquisa se voltou especificamente a artistas visuais.
Do questionário, destacamos um tópico em particular, que averiguava as principais exposições por meio de editais em que os/as/xs artistas haviam participado. As respostas recebidas nortearam o recorte deste estudo; a partir delas, selecionamos os eventos artísticos a serem analisados no período entre 1980 e 2018 e são eles: o Premio Paul Cézanne, a Muestra Nacional de Plásticos Jóvenes, o Salón y Premio Nacional de Artes Visuales e o Salón Municipal de Artes Plásticas. Estes eventos artísticos, historicamente, fazem parte do processo de legitimação de artistas no país, alguns sendo explicitamente voltados a jovens artistas e outros que, mesmo não sendo específicos para esses artistas, possuem/possuíram premiações destinadas a eles/as/xs.
Analisamos, assim, as exposições e premiações mais frequentes nas respostas ao questionário. A única exceção a esse critério foi a Muestra Nacional de Plásticos Jóvenes, exposição promovida pela empresa distribuidora da marca Coca-Cola no Uruguai, entre 1980 e 1995. Essa escolha se justifica pelo interesse em manter o acompanhamento das premiações em instância nacional durante os anos de 1980, quando Salón y Premio Nacionales de Artes Visuales tiveram suas atividades interrompidas pelo governo, realizando sua última edição em 1984 e retomando a programação no ano 2000[12]. Já os demais editais abordados, existentes até os dias atuais, passaram por mudanças de nome e periodicidade ao longo de suas histórias. O levantamento, portanto, abrangeu 38 anos – partindo do ano de 1980 e estendendo-se até o 58° Premio Nacional de Artes Visuales “Linda Kohen”, divulgado em 7 de dezembro de 2018.
No entanto, para fins desta análise, que relaciona os dados da pesquisa realizada no Brasil com a investigação desenvolvida no Uruguai, optamos por não apresentar os dados do caso uruguaio referentes a anos anteriores a década de 2010, para que se tenha um paralelo temporal com a questão no contexto brasileiro. No conjunto de dados aqui analisados, não constam, então, os dados da Muestra Nacional de Plásticos Jóvenes, que foi extinta nos anos de 1990. Ademais, é imprescindível mencionar que, no caso uruguaio, a análise efetuada se deu, no caso das exposições, somente acerca dos/as/xs ganhadores/as/xs de premiações oferecidas pelos eventos analisados, isto porque, no conjunto de catálogos analisados, não foi possível obter os dados relativos a todos/as/xs que participaram das exposições e premiações. Assim, a partir deste recorte, os dados referentes à década de 2010 contam com a análise de 41 biografias resumidas de artistas[13].
Apesar das distinções demográficas entre os países[14], da diferença de periodicidade das mostras analisadas e, por conseguinte, do conjunto total de biografias resumidas analisadas em cada caso, estes são dados que contam a história de ambos países, com seus circuitos artísticos específicos. Mesmo assim, é possível dizer que o perfil de jovens artistas selecionados/as/xs e premiados/as/xs pelos eventos artísticos analisados no Uruguai não se diferencia muito do caso brasileiro, acima apresentado; sendo o perfil de jovens artistas uruguaios/as/xs o seguinte: artistas entre 25 e 35 anos (Gráfico 7); nascidos/as/xs e mesmo residentes na capital do país, Montevideo (Gráfico 8); e, em sua maioria, homens (Gráfico 9)[15].
1.3 Algumas considerações sobre os perfis encontrados no Brasil e no Uruguai
A similaridade do perfil de artistas selecionados/as/xs nos campos artísticos brasileiro e uruguaio parece indicar tendências mais globais no que diz respeito ao universo artístico. Afinal, a despeito das diferenças entre os contextos analisados, ambos países latino-americanos fazem parte de um sistema global de relações, o qual é responsável por criar relações de dependência econômica entre os ditos países desenvolvidos e subdesenvolvidos, como definem autores como Vânia Bambirra (1974) e Ruy Mauro Marini (2000). Neste caso, ao retomar a pesquisa de Alain Quemin (2013) acima mencionada, é possível compreender que, a despeito de vivermos em um mundo globalizado, no campo da arte, como no campo econômico (pensando em termos de Teoria da Dependência), possuímos dominantes e dominados, centros e periferias, ou seja, há produção de desequilíbrios e desigualdades. No entanto, ambos os contextos com seus mundos artísticos específicos possuem regras que respondem às suas particularidades e, por meio de tais regras, parecem responder de formas similares, em termos mais gerais, ao que seja/deva ser a Arte Contemporânea e a quem sejam/devam ser os/as/xs artistas a serem legitimados/as/xs. Deste modo, em ambos os casos, como visto, os processos de seleção têm privilegiado um perfil semelhante de artistas.
A construção do perfil de artistas selecionados/as/xs e/ou premiados/as/xs nos contextos analisados permite, neste sentido, compreender as regras postas no universo artístico de ambos países. Destarte, por exemplo, tratando-se da noção de juventude, é interessante perceber que, em ambos os casos, a noção de jovem está articulada com uma compreensão de etapa da vida, como dada pelo senso comum. Assim sendo, há mesmo um padrão etário, mas ele somente não é determinante para a compreensão da categoria jovem artista, pois essa se faz junto com o tempo de carreira desses indivíduos (o que é mais detalhado a frente no texto), que estariam, portanto, cumprindo etapas para que, com o tempo e o desenvolvimento de suas carreiras, deixassem de ser compreendidos/as/xs como jovens artistas e passassem a ser entendidos somente como artistas, já na acepção plena do termo.
Igualmente, é interessante perceber a questão relativa ao gênero. Embora em ambos os casos mais artistas homens venham sendo selecionados e premiados, a diferença em relação às mulheres artistas não é tão grande em termos quantitativos. No caso brasileiro, como foi possível argumentar em outras ocasiões (MARCONDES, 2018a; 2019), o maior número de homens se dá, especialmente, por conta da premiação analisada, o Prêmio PIPA, em que há um júri de indicação de artistas que podem concorrer ao prêmio em cada uma de suas edições. Quando se tomam também separadamente os dados das residências e exposições coletivas analisadas, que funcionam através de inscrição direta dos/as/xs artistas, nota-se que contam com maior número de artistas mulheres, até mesmo superando, em algumas edições, o total de artistas homens (ver: MARCONDES, 2019). Já no caso uruguaio, como a pesquisa realizada abrangeu 38 anos, foi possível perceber que, ao longo do tempo e, em especial, na década de 2010, mais mulheres artistas vêm sendo premiadas[16]. Ou seja, argumentamos que há mesmo uma mudança em curso em ambos os campos artísticos analisados, em que mais mulheres têm tido presença em eventos artísticos legitimados, comparativamente a outros momentos da história (ocidental) da arte (ver: NOCHLIN, [1971] 1973; MAYAYO, 2003; SIMIONI, 2008; SOFIO, 2018).
Agora, explicitadas as questões relativas à coleta de dados e aos sentidos destes dados, é possível passar para a análise das entrevistas realizadas. Essas contribuem para a compreensão da percepção dos/as/xs jovens artistas acerca da profissão de artista e seus processos de legitimação em ambos os contextos analisados.
2 Análise das entrevistas
Além de compreender, por vias institucionais (por meio dos catálogos, especialmente), a memória dos certames artísticos e o perfil de jovens artistas solicitado em tempos de arte contemporânea, incluímos nas pesquisas a percepção daqueles/as/xs que aqui são foco: os/as/xs próprios/as/xs jovens artistas. Se, no caso brasileiro, a investigação foi-se aos certames para após partir às entrevistas, no caso uruguaio, tomou-se o sentido oposto, assim, as entrevistas foram o primeiro passo[17]. Em ambos os casos, os questionários continham as perguntas: “o que é ser artista hoje?” e “como ser artista hoje?”. As respostas a estas questões são aqui analisadas. Busca-se comparar as percepções sobre o afazer artístico e as estratégias de legitimação tomadas por jovens artistas dos dois países.
Vale fazer notar que o perfil dos/as/xs entrevistados/as/xs não se diferencia do exposto acima, pautado na análise dos dados presentes nos catálogos dos eventos artísticos ocorridos no Brasil e no Uruguai. No primeiro caso, do total de 37 artistas, 25 são homens e 12 são mulheres, entre 19 e 50 anos, mas concentrando-se na faixa dos 25 aos 35 anos, vivendo nas cidades do Rio de Janeiro e de São Paulo – onde também nasceu a maioria –, além de, em geral, terem a graduação como escolaridade mínima. Já no caso uruguaio, dos/as/ xs 67 entrevistados/as/xs, 38 identificavam-se como pertencentes ao gênero masculino, 21, ao feminino, dois como não binários/sem gênero e oito se definiram de outros modos, como, por exemplo, “igual a todos, identica a nadie”[18]. A maioria dos/as/xs artistas uruguaios/as/xs vivia em Montevidéu, onde também nasceu a maior parte dos/as/xs entrevistados/as/xs, possuía idades entre os 18 e os 60 anos de idade, com concentração entre os 25 e os 35 anos, e, como no caso brasileiro, possuía, em geral, o ensino superior completo.
Ao total, foram analisadas 104 entrevistas (37 referentes à pesquisa no Brasil e 67 do caso uruguaio). Nos dois casos, artistas com mais de 30 anos de carreira contribuíram com respostas, mas, de forma geral, no caso brasileiro, a maioria dos/as/xs artistas possuía entre três e cinco anos de carreira, enquanto do contexto uruguaio, maior parte tinha entre três e seis anos. A pequena diferença indica que em ambos os casos, a despeito das distinções contextuais, há uma faixa de tempo de carreira convencionalmente compreendida como recente, sendo o entrecruzamento entre a idade e o tempo de carreira determinante da categoria jovens artistas. Encontram-se, desta maneira, em processo de legitimação e profissionalização, em que estão adquirindo as habilidades e experiências valorizadas no campo da arte para que, eventualmente, possam ser efetivamente legitimados/as/xs por seus pares do mundo da arte contemporânea.
Ademais, em ambos os casos, encontram-se também respostas que reportam ao tempo de carreira não a partir do momento em que tais artistas iniciaram a exibição de seus trabalhos, mas remontando à infância como início de suas carreiras. É como se possuíssem desde sempre um dom que lhes permite serem artistas, não destacando a construção processual de suas carreiras, a qual depende de formações e da interação com outros agentes da arte e instituições que contribuem para que exibam/realizem suas criações.
Cabe também dizer que, em ambos conjuntos de respostas, os/as/xs artistas destacam não viver apenas da comercialização de seus trabalhos artísticos. No caso brasileiro, entre os/as/xs 37 entrevistados/as/xs, 29 diziam não viver da venda de seus trabalhos, já no caso uruguaio, de 67 artistas, 48 diziam não viver da comercialização de suas criações. Assim, nos dois casos, artistas indicam atuar em múltiplas atividades para prover seu sustento, questão nem sempre evidenciada ao se tratar de artistas, afinal, como argumentamos em outra ocasião (MARCONDES, 2018a; 2018b), há uma regra de conduta no universo artístico que impede que se trate de questões financeiras. Como argumenta Pierre Bourdieu (1996; 2011), o campo artístico se define inversamente às regras de conduta que pautam às ações no campo econômico. Deste modo, há uma espécie de segredo em relação ao sustento de artistas. Mas, ao se tratar de jovens artistas, não se pode ignorar que eles necessitam de investimentos financeiros para a produção de seus trabalhos tanto quanto artistas já legitimados/as/xs. Por conseguinte, como, em geral, não vivem da comercialização de tais trabalhos, atuam em outras funções. Sendo assim, em ambos os casos, os/as/xs entrevistados/as/xs destacam, especialmente, a docência como uma atividade que lhes garante o sustento e o financiamento de suas carreiras.
Após a explicitação do perfil de entrevistados/as/xs, é possível analisar as respostas às perguntas: “o que é ser artista hoje?”, e, “como ser artista hoje?”. Tal análise contribuirá para tratar das similaridades e distanciamentos entre os contextos pesquisados. A partir dos referidos questionamentos, buscamos compreender quais as percepções dos/as/xs artistas sobre os sentidos da profissão que optaram por seguir, além de perseguir a compreensão de suas estratégias em prol da sua legitimação profissional. As respostas recebidas são, portanto, aqui agrupadas em quatro chaves analíticas: transcendência, multiplicidade profissional, tradução e networking.
Nas respostas recebidas, há interlocutores/as/xs que tratam de um caráter transcendental da profissão que escolheram. Uma artista uruguaia[19] respondeu: “Pienso que ser artista tiene que ver con una forma de preguntarse por la existencia y por la vida, por la muerte y por el sentido, a través de un que hacer con ciertos lenguajes más o menos abiertos o cerrados, y que proponen una experiência”[20]. Enquanto, um artista brasileiro disse: “Uma mescla de sagrado com o sujo”. O destaque a estas respostas, tomadas de um conjunto maior, visa exemplificar a percepção de alguns entrevistados/as/xs.
Norbert Elias, em seu livro sobre Wolfgang Amadeus Mozart (1995), evidencia as categorias dom e talento, em virtude de um caráter transcendental atribuído ao trabalho artístico, pois, de acordo com o senso comum, artistas nasceriam predestinados/as/xs ao afazer artístico, sendo dotados/as/xs de qualidades especiais que lhes permitiriam atuar artisticamente. Porém, Elias demonstra o papel das relações sociais na construção de carreiras artísticas. Assim, apesar das considerações sociológicas, as respostas acima destacadas demonstram que perdura a percepção de que artistas possuem uma dádiva capaz de religar os mundos real e transcendental. Todavia, argumentamos, a partir dos ensinamentos de Norbert Elias, que artistas desenvolvem habilidades técnicas e criatividade que lhes permitem produzir seus trabalhos, que artistas estabelecem conexões sociais que lhes legitimarão ou não no campo artístico. Não invalidamos as crenças dos interlocutores/as/xs, mas indicamos que ser artista depende também de relações sociais múltiplas que contribuem para sejam ou não considerados/as/xs artistas relevantes por seus pares do mundo da arte.
Outra questão que aparece nas respostas dá corpo ao que já vínhamos fazendo notar: artistas necessitam atuar em diversas atividades com a finalidade de seguirem carreira no mundo da arte. Verifica-se uma multiplicidade profissional, ou seja, artistas, sobretudo jovens artistas, atuam em diversas frentes de trabalho para proverem financeiramente suas vidas pessoais e carreiras artísticas. Dentre as respostas para a pergunta “o que é ser artista hoje?”, no conjunto uruguaio, um artista respondeu: “me gustaría que fuera mucho más valorado, los artistas se mueren de hambre y el 80 % no pueden vivir de su arte”[21]. Esta resposta resume o sentido da precariedade em que vivem artistas, que são profissionais liberais. Sendo assim, artistas investem na produção dos trabalhos que estarão em exposições visitadas por um público que, nem sempre, se questiona sobre os gastos financeiros e emocionais despendidos para que uma obra de arte esteja na parede de um museu. Seguindo esta argumentação, outra resposta do conjunto uruguaio trata de uma necessidade de autogestão por parte de artistas:
Hoy un artista es alguien versátil, que puede posicionarse en distintas materias y conjugarlas. Los límites los pone uno y uno es el propio productor de su trabajo. Marketing, creación, venta y desarrollo van de la misma mano y hoy son todas características fundamentales en la era de la autogestión artística. Disponemos de canales propios de difusión cómo son las redes sociales y depende de nosotros navegarlas para llegar a mejores y nuevos puertos. Creo que ser artista hoy implica estar en constante movimiento.[22]
A mencionada autogestão aparece também nas respostas oferecidas por artistas brasileiros. Como mencionado, a maioria dos/as/xs brasileiros (no total de 29 dos/as/xs 37 entrevistados/as/xs) dizia sustentar suas carreiras em uma equação que reúne múltiplas frentes de atuação profissional; um deles respondeu: “hoje parte de minha renda vem da atividade artística, mas ainda dependo de trabalhos extras (freelas) como ilustração, fotografia e design gráfico para complementar a renda” (apudMARCONDES, 2018a, p. 195); e outro apresentava a mesma estratégia:
Trabalho como designer gráfico de livros como atividade paralela. Ainda assim não encontrei a equação que me permite plenamente subsistir dessas duas atividades. Os caminhos possíveis agora parecem ser: a possível aproximação com uma galeria de arte; ganhar outros prêmios e financiamentos como artista; pegar mais trabalhos como designer freelancer; carreira acadêmica; diversificar mais minhas atividades de trabalho (bicos/empregos fixos) (apud MARCONDES, 2018a, p. 195).
A ampliação das possibilidades do afazer artístico é discutida por Ricardo Basbaum em Amo os Artistas-etc. (2005), em que define que artistas, presentemente, atuam em diferentes áreas. Haveria, pois, uma multiplicidade de ações possíveis aos/às/axs artistas ligadas à construção de suas obras/ práticas de/em arte; afinal, em tempos de arte contemporânea, inúmeros materiais e meios podem ser utilizados para a criação artística. Porém, é interessante retornar a essa definição de Ricardo Basbaum e alargá-la para dizer que os jovens artistas entrevistados/as/xs são, em sua maioria, artistas-etc. não somente devido às suas práticas artísticas (que incluem uma multiplicidade de linguagens e materialidades), mas por exercerem distintas atividades profissionais com objetivo de prover seu sustento.
Cabe ainda trazer a advertência de Izabela Pucu, em Arte como Trabalho (e Vice-Versa) (2017), de que a centralidade do trabalho artístico vem desaparecendo e dando lugar a outro tipo de artista que não apenas cria uma obra, mas tem múltiplos afazeres relacionados à sua produção artística, compreendendo essa, portanto, em um sentido ampliado. Pucu, assim, chama a atenção para uma mudança estrutural no entendimento da atividade artística como trabalho, que vai além de uma simples ampliação do “leque de possibilidades de sobrevivência”. Desta forma, o trabalho de Pucu rememora as reflexões de Richard Sennett em O Artífice (2009), em que o autor propõe a vinculação entre o ato de fazer e o de pensar, articulando os trabalhos manual e mental, assim, contribuindo para a ampliação e, pode-se dizer, para a positivação da categoria trabalho.
Outro conjunto de respostas dá corpo a ideia de que artistas são tradutores, pois como pesquisadores/as/xs seriam capazes de traduzir poeticamente questões postas na vida cotidiana. Do conjunto uruguaio, duas respostas resumem o que chamamos de tradução: 1) “ser artista implica ser investigador, implica cuestionar realidades y versiones, implica trabajar desde y para el contexto”[23]; e, 2) “es ser un investigador de la situación de la sociedad y expresar lo hallado a través de medios artísticos”[24]. Artistas brasileiros/as/xs ofereceram respostas no mesmo caminho argumentativo, das quais destacamos duas: “a atividade artística, atualmente, se assemelha muito à atividade do filósofo. O artista é aquele que indaga, que questiona, que não deixa de se surpreender com o mundo. A diferença entre essas duas práticas é modo como cada qual expõe seu pensamento”; e,
O artista hoje precisa desempenhar papéis, funções, para além da produção de objetos de arte. A produção de objetos é, inclusive, prescindível. Ser artista hoje é pensar criticamente sobre questões da contemporaneidade, sejam elas relativas à história da arte ou à vida propriamente dita.
As respostas acima apontam tendências mais globais acerca do afazer artístico. Para a socióloga Nathalie Heinich (2014, p. 379), há uma necessidade discursiva inerente aos trabalhos de arte contemporânea. A partir das falas destacadas das respostas dos/as/xs artistas, é possível entender o significado que conferimos ao termo tradução. Assim como sociólogos refletem sobre questões sociais, analisam e expõem em artigos, livros, palestras e aulas, artistas refletiriam sobre questões sociais. Todavia, exporiam os resultados de forma poética. Destarte, não raro, cada vez mais se encontram trabalhos de arte em museus, galerias e centros culturais em que artistas apresentam, artisticamente, questões de cunho social e político, não mais, por exemplo, privilegiando questões referentes a forma e conteúdo de pinceladas (ver: SANT’ANNA; MARCONDES; MIRANDA, 2017, p. 834).
Por fim, o quarto modo como jovens artistas interlocutores/as/xs definiram suas práticas e suas estratégias diz respeito ao networking, termo comum contemporaneamente, no entanto, nevrálgico para a atuação de artistas. O networking, resumidamente, diz respeito aos contatos feitos com outros agentes do mundo da arte, porém são contatos efetivados com pessoas reconhecidas e legitimadas como autoridades do mundo artístico, assim tais contatos sociais, que por vezes partem de interações pessoais, podem se desdobrar em contatos profissionais. Em Arte, Crítica e Curadoria: Diálogos sobre Autoridade e Legitimidade (MARCONDES, 2014), a categoria networking é analisada em maior profundidade, sendo aproximada do conceito de círculos sociais de Georg Simmel (1977). Afinal, o conceito do sociólogo alemão diz respeito aos círculos, às redes interações sociais que formam os indivíduos, as quais também são por esses conformadas. Neste sentido, ao tratar do networking, é possível compreendê-lo como uma ação social que contribui para a formação social dos indivíduos. No caso aqui analisado, trata-se, podemos dizer, de como o círculo social pessoal de artistas, estabelecido no contato com outros agentes da arte ao irem a museus e vernissages[25] entre outras atividades relativas à fruição da arte, pode influir em seu círculo social profissional (também conformado por sua participação em cursos livres e universitários). Portanto, através do networking, artistas podem se inserir no campo da arte, angariando visibilidade e sua, eventual, legitimação profissional.
Por ser uma carreira liberal, que independe de concursos públicos, a profissão de artista contemporâneo/a/x acaba dependendo de certames, como os analisados anteriormente, e também de contatos face a face, que podem inserir jovens artistas nas redes de artistas mais experientes, curadores/as/xs, galeristas, entre outros agentes que podem colaborar para a sua legitimação através, por exemplo, de convites para exibirem seus trabalhos em exposições. Afinal, exposições ocorrem não apenas através de editais que contam com júris de seleção, mas, sobremaneira, através de convites pessoais de curadores/as/xs. Acerca deste ponto, é possível destacar a fala de um artista uruguaio e uma artista brasileira; o primeiro afirma: “al principio pensaba q el nombre lo iba a hacer participando de todo lo que hubiera, hoy siento que es llegar a las personas correctas”[26]; já, para a segunda, relativamente à pergunta sobre como ser artista nos dias de hoje, seria preciso:
Ter rotinas e métodos que levam a produções. Expor-se a múltiplas situações e ideias contrastantes. Conhecer pessoas de diversas atuações, saber ativá-las quando necessário. Manter relações duradouras com diversos profissionais. Ter a certeza de que ambos ganham material ou simbolicamente quando há colaboração. Saber se organizar, racionalizar, no mesmo grau de saber não ter culpa de ter absoluta liberdade e loucura (apudMARCONDES, 2018a, p. 210).
Interação social é um ponto central na teoria de Georg Simmel, e, através desse conceito, o autor define como se conforma a sociedade. Desse modo, através da interação social entre indivíduos, se criariam os laços que podem formar grupos e mesmo conformar sociedades. Por conseguinte, para Simmel,
Os laços de associação entre os homens são incessantemente feitos e desfeitos, para que então sejam refeitos, constituindo uma fluidez e uma pulsação que atam os indivíduos mesmo quando não atingem a forma de organizações. Que os seres humanos troquem olhares e que sejam ciumentos, que se correspondam por cartas ou que almocem juntos, que pareçam simpáticos ou antipáticos uns aos outros para além de qualquer interesse aparente, que a gratidão pelo gesto altruísta crie um laço indissolúvel, que um pergunte ao outro pelo caminho certo para se chegar a um determinado lugar, e que um se vista e se embeleze para o outro – todas essas milhares de relações, cujos exemplos citados foram escolhidos ao acaso, são praticadas de pessoa a pessoa e nos unem ininterruptamente, sejam elas momentâneas ou duradouras, conscientes ou inconscientes, inconsequentes ou consequentes. Nelas encontramos a reciprocidade entre os elementos que carregam consigo todo o vigor e a elasticidade, toda a variedade policromática e a unidade da vida social tão clara e tão misteriosa (SIMMEL, 2006, pp. 16-17).
Tomando a noção de networking, implícita nas falas acima destacadas, a partir dos conceitos de interação social e círculos sociais de Simmel, procuramos nos referir a um universo social, o artístico, que envolve inúmeros indivíduos que atuam em profissões liberais, sendo, assim, um microcosmo social em que as interações face a face são fundamentais. Participar dos mesmos círculos sociais que artistas consagrados/as/xs, críticos/as/xs, curadores/ as/xs, galeristas, entre outros, é fundamental para a construção de carreiras artísticas. Através de tais redes de relação social, um/a/x artista pode lograr ser convidado/a/x para exibir seu trabalho, vender em galerias etc. As frases destacadas acima resumem, neste sentido, as estratégias de ação de artistas para legitimarem suas carreiras. Indicam que não basta ser selecionado/a/x em certames, como os acima alistados, e produzir bons trabalhos, sendo igualmente necessário, portanto, que “as pessoas certas” tomem ciência de seu trabalho, um fato que ocorre em toda sorte de interações, não somente através do envio de um portfólio para concorrer a um espaço em uma exposição coletiva. Isto inclui também frequentar os eventos artísticos mais variados a fim de estabelecer os contatos que poderão propiciar a legitimação de suas carreiras, como os vernissages. Ademais, frequentar cursos livres e/ ou universitários, realizar o trabalho de assistência a artistas consagrados/ as/xs e participar de formação de coletivos de artistas[27] ou mesmo da divisão de ateliê com outros/as/xs artistas são compreendidas como ações fundamentais para o estabelecimento do networking (ver: MARCONDES, 2018a, pp. 211-230).
Considerações Finais
A reunião de duas pesquisas realizadas com finalidades tão distintas não ignora as divergências na coleta de dados, aqui explicitadas, nem mesmo as diferenças contextuais entre Brasil e Uruguai, não apenas em termos linguísticos, geográficos e demográficos. Leva-se em conta que, no Uruguai, durante a ditadura militar, o único curso superior de belas artes foi fechado e, assim, permaneceu por anos, o que não ocorreu no Brasil, em que, na mesma década de 1970, contou-se com a inserção de aulas de artes no currículo escolar, aumentando a busca por professores nesta área. A despeito de possíveis críticas que possam ser feitas acerca das aulas de arte nas escolas brasileiras, que possuiriam, em geral, um caráter mais prático que teórico, a universidade permaneceu aberta e formando novos profissionais para o campo artístico, o que não ocorreu no país vizinho, em que a formação de artistas se deu no período, quase exclusivamente, por meio de cursos livres em ateliês privados de artistas mais experientes.
Apesar de tais diferenças, ao analisarmos os eventos artísticos no Uruguai e no Brasil, na década de 2010, percebemos similitudes no perfil de artistas que vêm contando com aprovações nos circuitos artísticos; artistas que, assim, contam com mais acesso às redes de atores sociais e instituições responsáveis por legitimar carreiras artísticas. No mesmo sentido, a análise e a comparação das respostas recebidas nos questionários aplicados apontam outras semelhanças, tanto em relação ao afazer artístico quanto em relação às estratégias de ação de artistas para a obtenção de sua legitimação no campo da arte.
Pode-se dizer que, nos dois casos, jovens artistas importam ao campo artístico, pois em ambos países há editais de exposições, programas de residência e premiações que diária, mensal e anualmente contribuem para construção de carreiras. Não se conta apenas com premiações para artistas já consagrados/as/xs, busca-se incentivar, descobrir e apresentar novos/as/xs artistas para atuarem no mundo da arte.
As similitudes encontradas nas respostas e mesmo no perfil de artistas selecionados/as/xs em certames dos dois países mostram um funcionamento análogo das regulações das condutas no universo da arte em ambos contextos. A arte contemporânea vem, a despeito de distinções locais, estabelecendo parâmetros de atuação não apenas no que diz respeito a materiais, meios e técnicas, mas em relação ao modus operandi cotidiano de artistas em distintos contextos.
Há uma forma de regulação das condutas e tecnicalidades com tendência globalizante. Seguindo nossas hipóteses, o espaço legado às diferenças contextuais tem sido o da discursividade inerente aos trabalhos artísticos, em que artistas expõem as diferenças de seus contextos através de seus trabalhos. Todavia, os processos de legitimação de artistas parecem os mesmos no Brasil e no Uruguai. Obviamente, há diferenças, sobretudo, no que diz respeito à densidade do sistema artístico em cada país; no caso brasileiro, há maior número de instituições e, assim, de agentes sociais da arte, que podem contribuir para a legitimação de artistas, mas as estratégias e processos de legitimação, como buscamos fazer notar, se assemelham enormemente.
Referências Bibliográficas
ARCHER, Michael. (2012), Arte contemporânea: uma história concisa. 2 ed. São Paulo: Martins Fontes.
BAMBIRRA, Vânia. (1974), El capitalismo dependiente latinoamericano. 1 ed. México: Siglo XXI.
BASBAUM, Ricardo. (2005), Amo os Artistas-Etc. In: MOURA, Rodrigo (Org.). Políticas Institucionais, Práticas Curatoriais. 1 ed. Belo Horizonte: Museu de Arte da Pampulha. Online. Disponível em: https://rbtxt.files.wordpress.com/2009/09/artista_etc.pdf.
BECKER, Howard S. ([1982] 2008), Art worlds. 1 ed. Berkeley: University of California Press.
BELTING, Hans. (2006), O Fim da História da Arte. 1 ed. São Paulo: Cosac & Naify.
BOURDIEU, Pierre. (1983), Questões de Sociologia. 1 ed. Rio de Janeiro: Marco Zero Limitada.
BOURDIEU, Pierre. (1996), As Regras da Arte. 1 ed. São Paulo: Companhia das Letras.
BOURDIEU, Pierre. (2011), Razões Práticas – sobre a Teoria da Ação. 1 ed. Campinas-SP: Papirus Editora.
BUSKIRK, Martha. (2003), The Contingent Object of Contemporary Art. 1 ed. Cambridge: MIT Press.
DAHRENDORF, Ralf. (1959), Class and Class Conflict in Industrial Society. 1 ed. Standford: Stanford University Press.
DANTO, Arthur C. (2006), Após o Fim da Arte – A Arte Contemporânea e os Limites da História. 2 ed. São Paulo: Odysseus Editora.
ELIAS, Norbert. (1995), Mozart – sociologia de um gênio. 1 ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.
ERBER, Pedro R. (2015), Breaching the Frame – The Rise of Contemporary Art in Brazil and Japan. 1 ed. Berckley: University of California Press.
FOUCAULT, Michel. (1987), Vigiar e Punir: nascimento da prisão. 1 ed. Petrópolis: Vozes.
HEINICH, Nathalie. (2014), “Práticas da Arte Contemporânea: uma abordagem pragmática a um novo paradigma artístico”. Revista Sociologia & Antropologia, v. 04, n. 02, pp. 373-390.
MARCONDES, Guilherme. (2014), Arte, Crítica e Curadoria: diálogos sobre autoridade e legitimidade. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia. Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro.
MARCONDES, Guilherme. (2018a), Arte e Consagração: os jovens artistas da arte contemporânea. Tese de Doutorado. Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia: Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro.
MARCONDES, Guilherme. (2018b), Arte e Sustento: os jovens artistas e suas estratégias de sobrevivência. 1 ed. Rio de Janeiro: Horizontes ao Sul.
MARCONDES, Guilherme. (2019), Arte Contemporânea e Legitimação: o caso das jovens artistas. Campinas: Cadernos Pagu (no prelo).
MARINI, Ruy Mauro. (2000), Dialética da dependência. In. SADER, Emir (org.). Dialética da Dependência: uma antologia da obra de Ruy Mauro Marini. 1 ed. Petrópolis: Vozes; Buenos Aires: CLACSO. pp. 105-165.
MAYOYO, Patricia. (2003), Historias de mujeres, historias del arte. 1 ed. Madri: Cátedra.
MIRANDA, Ana Carolina. (2014), Discursos e Práticas: a institucionalização dos coletivos de artistas. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais. Rio de Janeiro: Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro.
NOCHLIN, Linda. (1973), Why There Have Been no Gratests Women Artists? Art and Sexual Politics. 2 ed. Nova York: Macmilan Publishing Co.
PELUFFO, Gabriel. (2014), Arte e instituciones. La construcción simbólica de lo contemporáneo: 1973-2013. Nuestro Tiempo, v. 7 – Artes Visuales. Montevidéu: Libro de los Bicentenarios.
PROGRAMA BOLSA PAMPULHA. Bolsa Pampulha 2015-2016. Belo Horizonte, 2017.
PUCHET, May. (2013), Octaedro, los otros y axioma. Relecturas del Arte Conceptual en el Uruguay durante la dictadura (1973-1985). 1 ed. Montevidéu: Editorial Yaugurú.
PUCU, Izabela. (2017), Arte como Trabalho (e Vice-Versa). Tese de Doutorado. Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais. Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro.
QUEMIN, Alain. (2013), Les Stars de l’Art Contemporain - Notoriété et Consécration Artistiques dans les Arts Visuels. 1 ed. Paris: CNRS Éditions.
QUEMIN, Alain. (2016), “A distribuição desigual do sucesso em arte contemporânea entre as nações: uma análise sociológica da lista dos ‘maiores’ artistas do mundo”. In: QUEMIN, Alain, & VILLAS BÔAS, Glaucia (org.). Arte e Vida Social: pesquisas recentes no Brasil e na França. 1 ed. Marselha: OpenEdition Press. Online. Disponível em: <https://books.openedition.org/oep/1474#text>;. DOI: 10.4000/books.oep.1474.
SANT’ANNA, Sabrina, MARCONDES, Guilherme, & MIRANDA, Ana Carolina. (2017), Arte e política: a consolidação da arte como agente na esfera pública. Revista Sociologia & Antropologia, v. 7, n. 3, pp. 825-849.
SENNETT, Richard. (2001), Autoridade. 1 ed. Rio de Janeiro: Record.
SENNETT, Richard. (2009), O Artífice. 1 ed. Rio de Janeiro: Record.
SIMIONI, Ana Paula Cavalcanti. (2008), Profissão Artista: pintoras e escultoras acadêmicas brasileiras. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo; FAPESP.
SIMMEL, Georg. (1977), Sociología: estudios sobre las formas de socialización. 1 ed. Madrid: Ediciones Castilla.
SIMMEL, Georg. (2006), Questões Fundamentais da Sociologia: indivíduo e sociedade. 1 ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora.
SOFIO, Séverine. (2018), Como ter sucesso nas artes sem ser um homem? Manual para artistas mulheres do século XIX. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, n. 71, pp. 28-50.
TOMKINS, Calvin. (2013), Duchamp: uma biografia. 1 ed. São Paulo: Cosac & Naify.
WEBER, Max. (1999), Economia e Sociedade. 1 ed. Brasília: UNB, vol. 1.
Notas