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Modernidade e reificação na sociologia alemã: as alternativas às narrativas clássicas que emergem no final do século XX nas obras de Norbert Elias, Jürgen Habermas e Niklas Luhmann

Modernity and reification in German Sociology: alternatives to classical narratives that come up in the end of the 20th century in the Norbert Elias’, Junger Habermas’, and Nicklas Luhmman’s writtings

Igor Suzano Machado
Universidade Federal do Espírito Santo, Brasil

Modernidade e reificação na sociologia alemã: as alternativas às narrativas clássicas que emergem no final do século XX nas obras de Norbert Elias, Jürgen Habermas e Niklas Luhmann

Revista Brasileira de Sociologia, vol. 7, núm. 16, pp. 135-156, 2019

Sociedade Brasileira de Sociologia

Recepção: 25 Março 2019

Aprovação: 27 Maio 2019

Resumo: O artigo parte da análise que Vandenberghe faz da trajetória do problema da reificação na sociologia alemã para refletir como tal problema configura a leitura dos clássicos da sociologia alemã sobre a modernidade e como essa leitura da modernidade encontra alternativas nos principais teóricos da sociologia alemã no final do séc. XX. Nessas alternativas, que encontro nas obras de Elias, Habermas e Luhmann, o problema da reificação ainda ocupa lugar central na descrição da modernidade feita por Habermas, mas não na descrição da modernidade feita pelos demais. Com base nisso, reflito, ao final do artigo, sobre a eterna questão sociológica a respeito da tensão entre descrição e crítica social e sobre como a dimensão da crítica, no exemplo alemão, permanece dependente de uma perspectiva que permita diferenciar processos históricos emancipatórios de processos históricos de desumanização.

Palavras-chave: Sociologia alemã, Reificação, Teoria sociológica.

Abstract: The article departs from Vandenberg’s analysis of the problem of “reification” in German sociology to reflect about how this problem configures the reading of modernity by the classics of German sociology and how this reading of modernity finds alternatives in main German sociologists at the end of 20th century. In these alternatives, which I find in the works of Elias, Habermas, and Luhmann, the problem of reification is still central in Habermas’s description of modernity, but not in the description of modernity made by the others. At the end of the article, I reflect on the eternal sociological question about the tension between description and social criticism and highlight how the dimension of criticism, in the German example, remains dependent on a perspective that allows differentiating emancipatory historical processes from historical processes of dehumanization.

Keywords: German sociology, Reification, Sociological Theory.

1. Introdução: a sociologia alemã em torno do problema da reificação

A sociologia surge como reflexão sobre a modernidade e é tratada por alguns até mesmo como uma ciência da modernidade. Assim, aqueles considerados os “clássicos” e fundadores da disciplina, cada um ao seu modo e com diferentes enfoques, debruçam-se sobre transformações da sociedade moderna e suas consequências para a vida humana. Nesse sentido, chamaram atenção de Émile Durkheim, na França, as transformações da sociedade moderna especialmente em uma sociedade industrial, cuja nova divisão social do trabalho tinha como consequência novas instabilidades que, no entanto, não aniquilavam os laços de solidariedade social, apesar de exigirem a transformação de tais laços de acordo com as novas bases sociais nas quais eles deveriam se fundamentar; isto é, apesar de exigirem a passagem de uma solidariedade “mecânica” entre iguais para uma solidariedade “orgânica” entre diferentes, baseada em sua interdependência (DURKHEIM, 2008).

Por outro lado, na Alemanha, as transformações sociais da modernidade tiveram como intérpretes privilegiados e fundadores da Sociologia – ainda que nem todos de forma intencional – Karl Marx, Max Weber e Georg Simmel, para focar apenas nos nomes mais canônicos. Para Marx, era central à sua reflexão a forma como a sociedade moderna se transformava devido a um novo modo de produção e circulação de bens materiais, transformados em mercadorias: o Capitalismo, instituidor de novas classes sociais que condicionavam novos tipos de conflito em um novo tipo de sociedade. Já, para Weber, a divisão industrial do trabalho, destacada por Durkheim, e a produção econômica capitalista, posta em relevo por Marx, respondiam a um processo mais amplo, característico da modernidade, de racionalização e desencantamento do mundo, que teria ainda, como consequência, a dominação política burocratizada e a ascensão do conhecimento científico. Por fim, chamaram a atenção de Simmel, como alguns traços definidores da sociedade moderna, a economia monetarizada e a vida urbana nas grandes cidades, que teriam como consequência importantes efeitos na psicologia e nas formas de associação entre as pessoas.

Tendo em vista esse quadro, Frédéric Vandenberghe traz à tona um tema em torno do qual girara a fundação da sociologia na Alemanha e cujos desdobramentos influenciaram a história da disciplina no país como um todo. Trata-se do tema, mais explicitamente formulado nesses termos posteriormente por Georg Lukács, da “reificação” (VANDENBERGHE, 2012). Aqui é interessante também notar como tal tema influencia o desenvolvimento da sociologia alemã, ao mesmo tempo em que a diferencia, na origem, de sua congênere francesa. Afinal, o problema trazido à sociedade pela modernidade, de acordo com a leitura de Durkheim, era um problema de ordem moral, em que os indivíduos não estariam suficientemente entrelaçados solidariamente por instituições capazes de gerar coesão. Daí decorre que o problema da sociedade moderna, para Durkheim, não teria a ver com a reificação, mas com a anomia, isto é, a ausência de normas capazes de fazer os indivíduos sentirem que são mais do que nômadas independentes, sendo pertencentes a uma totalidade sui generis que os ultrapassa: a sociedade (VANDENBERGHE, 2012, p. 56).

A problemática da reificação na sociologia alemã toma um percurso bastante diferente e quase oposto ao focar como a sociedade, mesmo sendo um constructo humano, volta-se contra seus criadores de forma repressiva e dominadora, isto é, reificante – ou “coisificante” – e redutora de sua dimensão propriamente humana. Conforme Vandenberghe (2012, p. 82):

Globalmente, a reificação social[1] está ligada ao funcionamento relativamente autônomo, alienado e alienante, dos sistemas da cultura e da sociedade moderna e à sua transformação dos meios em fins em si. Evidentemente, no curso do seu desenvolvimento, estes mundos se complicaram fatalmente e foram formal e funcionalmente racionalizados a tal ponto que eles se transformaram em verdadeiros cosmos, funcionando independentemente da vontade e das intenções dos indivíduos, cruzando os seus planos e seus desenhos, ameaçando a sua autonomia e mesmo – no limite – a sua existência.

Tomando a noção de autonomia como herança do iluminismo e, consequentemente, um valor central da modernidade, percebe-se que outras heranças dessa mesma modernidade se chocam com a própria noção de autonomia, enquanto capacidade individual e coletiva de autodeterminação. Essas outras heranças são aspectos distintos da realidade social racionalizada que castram essa dimensão de autonomia, por meio de seu funcionamento sistêmico independente da ação humana, como são os casos da economia e do Estado altamente racionalizados da era moderna. Este é o ponto ressaltado pelas ideias de alienação e fetichismo da mercadoria em Marx, pela famosa metáfora da “jaula de ferro” (ou “crosta de ferro”, a depender da tradução) utilizada por Weber, no que se referia às consequências da racionalização e burocratização da vida, assim como pela tese da tragédia da cultura em Simmel, em que a cultura subjetiva se transforma em cultura objetiva, deixando de ser canal de expressão livre do sujeito para se converter em impeditivo de sua expressividade.

Gerações posteriores da sociologia alemã continuaram a se debruçar sobre o tema, tendo sua formulação clássica lugar na obra de Lukács, em que, sob a forte influência da obra de Marx, a reificação é ligada à generalização da forma da mercadoria na sociedade capitalista e sua superação condicionada à “tomada de consciência” e à ascensão política do proletariado (LUKÁCS, 2003). No entanto, se na formulação clássica de Lukács a superação da reificação ainda é tematizada pela via da revolução proletária, um quadro mais sombrio é pintado no diagnóstico sobre a reificação feito pelos principais expoentes da primeira geração da chamada Escola de Frankfurt, sobretudo na “dialética do esclarecimento”, tal como caracterizada por Max Horkheimer e Theodor Adorno (HORKHEIMER; ADORNO, 1985). Como sabido, neste clássico da sociologia alemã, a razão, que outrora aparecia como pilar da emancipação humana em direção à autonomia de acordo com o projeto de modernidade iluminista, foi exibida por Horkheimer e Adorno como fonte de dominação do homem pelo homem, transformando as técnicas de governo que permitiam regimes totalitários como o da Alemanha nazista, ou fazendo da arte, outrora dotada de força emancipatória, o produto de uma indústria cultural que apenas reforçava a submissão das classes subalternas ao regime capitalista na democracia norte-americana. Estava pintado o quadro da reificação na burocracia estatal e na produção cultural, atingindo seus limites máximos, sem maiores expectativas de superação.

Contudo, gostaria de chamar atenção para a obra de outros três autores da sociologia alemã, especialmente influentes no último terço do século XX e que permitiriam “contar a história” das transformações da modernidade sob outros pontos de vista. Refiro-me a Norbert Elias, considerado por alguns como o principal herdeiro intelectual, na própria Alemanha, de Simmel; Jürgen Habermas, principal expoente do que podemos chamar de 2ª geração da Escola de Frankfurt e cuja obra em muito visa reabilitar o projeto moderno de emancipação pela razão, num diálogo crítico com seus antecessores Horkheimer e Adorno; e Niklas Luhmann – que oferece uma entrada alternativa na sociologia alemã, tendo em vista sua forte dívida com a sociologia americana na obra de Talcott Parsons.

Assim, o presente trabalho irá se desdobrar numa sequência de breves explanações dos autores citados, na mesma ordem indicada no parágrafo anterior. Trata-se de exposição de função mais didática do que científica, pois, apesar de não ser meramente descritiva das teorias apresentadas, tampouco apresenta leitura problematizadora e inovadora dos autores que apresenta – autores que, por sua vez, são também bastante canônicos. Após essa exposição didática das principais ideias dos autores referidos, reflito ao final do artigo sobre a eterna questão sociológica a respeito da tensão entre uma sociologia de função meramente descritiva e explicativa e uma sociologia que pretende, também, adentrar em uma dimensão de crítica social. Neste ponto, ressalto que essa dimensão de crítica social, ao menos na tradição sociológica alemã, permanece dependente de uma perspectiva que permita diferenciar processos históricos emancipatórios de processos históricos de desumanização, para a qual o debate sobre a reificação permanece útil.

2. Modernidade, civilização e individualização em Norbert Elias

Começando por Norbert Elias, temos que seu pensamento também é erigido sobre transformações históricas da sociedade moderna. Porém, não se trata aqui de recontar as “aventuras da reificação”, na expressão de Vandenberghe, mas, principalmente, de examinar o que ele chamou de processo civilizador. No entanto, cumpre destacar, desde já, que a ideia de civilização de Elias não é, segundo o próprio, um ideal normativo e necessariamente positivo. Assim, a história da modernidade contada por Elias não só não está focada na superação do processo de reificação, como também não se traduz em nenhuma outra escatologia direcionada à suprema realização humana. Dessa forma, o processo característico da modernidade continua, na obra de Elias, inerentemente ambíguo: a sociedade civilizada não é melhor – nem pior – do que a sociedade não civilizada. Trata-se, na visão de Elias, apenas de uma descrição, com base empírica, do que de fato aconteceu no mundo ocidental, tendo como consequência o surgimento de um tipo humano de comportamento bastante distinto do de seus ancestrais; comportamento este caracterizado pela repressão de instintos e afetos, pela vergonha quanto à exposição de certas necessidades fisiológicas, pelo pensamento racionalizado, pelo planejamento de longo prazo, dentre outras características do tipo humano considerado civilizado (ELIAS, 1993).

Elias destaca que este processo não é um processo nem racional, nem irracional. Não se trata de uma atitude deliberadamente voltada para a civilização planejada por determinadas pessoas. Trata-se de uma consequência de determinadas figurações sociais, em que a interação de certos grupos humanos produziu efeitos inesperados capazes de modificar a psicologia dos envolvidos no processo. Neste ponto, ficam claras algumas características da sociologia de Elias. Primeiramente, há a ideia de sociogênese, bastante tributária da ideia de sociologia enquanto método, aventada por Simmel (SIMMEL, 2006). Isto é, a ideia de explicar fatos históricos não com base em um desígnio exterior às ações humanas – como Deus, a natureza, ou mesmo a economia, para lembrar a contraposição de tal método ao materialismo histórico dialético de Marx –, nem com base na ação do gênio humano individual – por exemplo, explicando a história pelos feitos de um grande general ou líder político –; mas sim explicar os fatos históricos pelas formas de interação entre os seres humanos, geradoras das figurações sociais tão importantes para Elias, cuja sociologia é conhecida como uma sociologia figuracional. Tendo isso em vista, Elias chamará atenção para a importância de fatos genuinamente modernos, a exemplo do monopólio da violência física legítima pelo Estado e da economia monetária, também agora centralizada no Estado, como fatores importantes para a passagem de uma nobreza guerreira para uma nobreza cortesã, fundamental, como veremos adiante, para o desenvolvimento desse processo civilizador (ELIAS, 1993).

A ideia de processo é tão central na obra de Elias quanto a de figuração. Por isso, a sociologia de Elias é conhecida como, além de uma sociologia figuracional, também uma sociologia processual, ou procedural. Falei até agora do chamado processo civilizador, mas é igualmente importante a análise feita por Elias de outro processo correlato característico da modernidade: o processo de individualização (ou de individuação), que, correndo em paralelo ao processo civilizador, faz com que o que ele chama de “balança nós-eu”, enquanto pendia mais para o polo do “nós” nas sociedades tradicionais, passe a pesar mais para o polo do “eu” nas sociedades modernas (ELIAS, 1994). As ideias de processo e de balança nós-eu são interessantes para pensarmos outras duas características fundamentais da sociologia de Elias que se tornam bastante claras na crítica feita à sociologia de Parsons, a qual, para ele, seria uma sociologia “estática” e que trata de forma, a seu ver, equivocada indivíduo e sociedade como realidades exteriores uma à outra (ELIAS, 2011).

Elias censura Parsons pelo fato de o sociólogo americano considerar a mudança social como algo localizável em períodos de crise. Em sentido contrário, a ideia de processo de Elias põe em destaque a transformação como característica inerente e constante das sociedades humanas. Cabe ao sociólogo perceber o sentido que tal processo toma, quando analisamos espaços temporais mais amplos. É analisando a história europeia em longa duração que Elias percebe, não obstante momentos de retrocesso fugazes, processos nítidos de civilização e individualização. Da mesma forma, a relação entre indivíduo e sociedade adquire novos contornos, pois esses dois polos não são considerados exteriores um ao outro. Assim, indivíduo e sociedade não se “interpenetram”, como gostaria Parsons, mas são dois lados de uma mesma moeda. Isso não permite a completa separação entre sociologia e psicologia e justifica que se trate a centralidade do indivíduo na sociedade moderna não como uma libertação do indivíduo das amarras da sociedade tradicional, mas apenas como tendência para um dos lados de uma balança sempre presente: a balança que Elias chamara de balança nós-eu. Nessa balança, a identidade coletiva e a identidade particular dos sujeitos enredados em diferentes tramas sociais se equilibram, ora mais pendentes para a identidade coletiva, como nas sociedades tribais, ora mais pendentes para identidade individual, como nas sociedades ocidentais modernas, sem, contudo, jamais aniquilar um dos dois polos.

Sendo assim, as transformações nas figurações sociais modernas acompanham as transformações psicológicas dos sujeitos da modernidade. Isso explica por que uma nobreza que, antes do monopólio da violência pelo Estado, era composta de guerreiros sempre alertas para responder à ameaça de outras pessoas torna-se uma nobreza que, obrigada a se relacionar de outra maneira com as demais pessoas, reprime seus instintos e afetos e desenvolve formas de relacionamento interpessoal pautadas pelo planejamento, racionalização, regras de etiqueta etc., dando origem ao comportamento dito civilizado. Tal comportamento passa a ser imitado por classes inferiores e ainda mais refinados e estilizados pelas classes superiores, em busca de distinção. Com isso, sem planejamento racional, mas tampouco sobre bases aleatórias ou irracionais, tal processo se desenrola via interações sociais, transformando, simultaneamente, história, sociedade e psicologia.

Elias destaca que esse processo civilizador, repressor dos instintos, da espontaneidade e dos afetos, não é um processo indolor e tampouco experimentado igualmente por todos. Não à toa, desenvolvem-se conjuntamente a essa civilização válvulas de escape aos imperativos civilizatórios, como os romances cavalheirescos e os esportes. Logo, a história da modernidade ocidental contada por Elias não é exatamente uma história, por assim dizer, de final feliz. De qualquer maneira, não chega a representar o mesmo tipo de tragédia que aparece na narrativa weberiana e é terminologicamente explicitada na ideia de ‘tragédia da cultura’ de Simmel (SOUZA, 2005, pp. 9-10). Afinal, nesses autores, é possível retomar o sentido grego de tragédia não apenas como uma narrativa marcada por uma fatalidade, mas a narrativa de uma história cujo herói, sem conhecimento disso, é responsável pelo próprio calvário, de qual o exemplo de Édipo é bastante ilustrativo.

Na obra de Elias, em sentido diferente, a percepção de uma sociedade exterior ao indivíduo, que, de alguma forma, o constrange, não é mais que isso: uma percepção, ocasionada por um tipo específico de figuração social, e não um tipo de ataque à autonomia individual, que se presume valiosa em si mesma. Não se trata, portanto, de um problema de reificação, mas de diferentes posições de equilíbrio da balança nós-eu que refletem o fato de que “os problemas que surgem para o indivíduo nessas sociedades peculiares são de natureza peculiar” (ELIAS, 1994, p. 120). Nas palavras do próprio Elias (1994, p. 121):

De um modo ou de outro, a tentativa de atingir esse equilíbrio [entre identidade coletiva e identidade individual] traz consigo tensões características. Mas, como quer que as consideremos, elas não são tensões entre necessidades não-sociais e naturais do “indivíduo” e as exigências artificiais de uma “sociedade” fora dele, e sim tensões e dificuldades de cada pessoa, ligadas às normas peculiares de comportamento de sua sociedade. Essas normas compõem um padrão que, de uma forma ou de outra, determina o padrão de seu controle comportamental individual. Numa palavra, trata-se de discrepâncias intrinsecamente sociais que se expressam na ideia de uma tensão e um abismo eternos entre o “mundo interno” do indivíduo e o “mundo externo” da sociedade.

Sendo assim, Elias não deixa de oferecer uma leitura alternativa, dentro da sociologia alemã, das transformações da modernidade. Contudo, como em Weber e Simmel, permanece um diagnóstico da modernidade que não evoca uma saída para suas ambiguidades. Seria talvez demais dizer sobre a obra de Elias, tal como Vandenberghe diz sobre as obras de Weber e Simmel, que se trata de um diagnóstico sem a proposição de um tratamento (VANDENBERGHE, 2012, p. 333), já que, no caso de Elias, o que está em jogo não são exatamente patologias. Todavia, a promessa emancipatória da modernidade continua substituída por um ou vários processos inerentemente ambíguos no que tange à concretização da liberdade enquanto autonomia.

3. Habermas e a reabilitação da emancipação pela racionalidade na modernidade

Num sentido bastante diferente, a narrativa da modernidade em Habermas é não só alternativa às narrativas weberiana e simmeliana, como também as enfrenta frontalmente, já que almeja explicitamente retomar o projeto iluminista de emancipação pela razão, superando as aporias da teorização de alguns frankfurtianos que o antecederam. Conforme já salientado, o quadro da modernidade pintado por Horkheimer e Adorno se apresentava bastante sombrio: mais do que o capitalismo, tal como identificado por Marx e Lukács, a própria razão teria se convertido na fonte de dominação do homem sobre o homem, de forma que, outrora valorizada como energia libertadora pelo próprio Marx, a razão teria se tornado fonte de repressão e massificação, a qual fundamenta técnicas modernas de governo e produção de mercadorias e bens culturais.

Habermas irá retomar a distinção entre trabalho e interação em Hegel para pôr em destaque que a compreensão da razão que levara ao diagnóstico da primeira geração da Escola de Frankfurt era uma visão unilateral da racionalidade que a restringia à sua vertente instrumental, característica da práxis no trabalho que tem como fundamento a modificação da natureza (GIDDENS, 2011). Mas, na interação, destaca Habermas, está em jogo também outro tipo de racionalidade, voltada não para o domínio e transformação do objeto, mas para o consenso com outro sujeito. Se Marx não dera a devida atenção a essa diferença, Weber, por sua vez, deu origem a uma tradição sociológica que a eclipsara totalmente, ao reduzir a racionalidade à escolha dos melhores meios para se atingir determinado fim, que, no entanto, não seria ele mesmo determinado de forma racional.

Com isso, o diagnóstico de reificação emerge em um contexto sociológico em que a única razão reconhecida enquanto tal é a razão instrumental. Para Habermas, remontando a Kant, seria necessário reabilitar a chamada razão prática, que seria capaz de nos fornecer insumos para a decisão não apenas quanto aos melhores meios para atingir um fim impossível de ser racionalmente delimitado, mas também para decisões quanto a valores. Dessa forma, a razão poderia voltar a ser um parâmetro de definição de melhores valores e, consequentemente, instrumento de emancipação humana, retomando o projeto iluminista e a narrativa da modernidade não como tragédia, ou fracasso, mas como projeto ainda inconcluso, que, no entanto, não poderíamos nos dar ao luxo de abandonar.

Como é sabido, a razão prática, em Kant, permitia o alcance da correção normativa por meio da razão. É assim que o filósofo iluminista chega ao seu famoso imperativo categórico, responsável por dar contornos bastante nítidos ao que seria a ação humana normativamente correta, de acordo com a razão. Habermas censura a ideia de razão prática em Kant, no entanto, por se tratar de uma razão transcendental e pautada na introspecção e subjetivismo. Por meio da noção de interação, Habermas busca dar à razão prática um caráter situado – não transcendental – e intersubjetivo – não introspectivo. E chega a isso por meio do chamado agir comunicativo. Afinal, pela comunicação intersubjetiva, mediada por símbolos linguísticos compartilhados, é possível aos sujeitos, capazes de se entenderem, postular pretensões de validade criticáveis em busca de um consenso.

Explicando melhor, quando em contato com objetos da natureza as pessoas podem intervir utilizando-os e transformando-os por meio da razão instrumental e ação estratégica. Uma pessoa pode proceder da mesma forma com relação a outra pessoa, agindo estrategicamente e tomando a outra pessoa como instrumento ou obstáculo para a realização de seus fins individuais. A ideia de razão instrumental dá conta de explicar essa ação estratégica e o trabalho enquanto atividade humana transformadora da natureza. Contudo, com relação a outro ser humano, é possível a uma pessoa agir com orientação diferente, não com vista a instrumentalizar a outra pessoa, mas com vista a chegar a um consenso com relação à verdade. As duas formas de ação, inclusive, são mutuamente excludentes: ou tomo a outra pessoa como objeto de uma ação estratégica, ou a considero como um interlocutor que, ao invés de submeter à minha vontade, quero com ele partilhar a resolução de um problema prático (HABERMAS, 2010).

Esta ação voltada ao consenso por meio da comunicação é o famoso “agir comunicativo”, tão importante para Habermas por ser, justamente, o agir capaz de reabilitar a razão prática. Isto porque há, na visão de Habermas, uma racionalidade intrínseca ao processo de comunicação com vistas ao consenso. O motivo é que, no agir comunicativo, a ‘pessoa A’ irá proceder a um ato ilocutório que, idealmente, tem pretensão de validade ou com relação ao mundo subjetivo – o que diz, portanto, é sincero –, ou com relação ao mundo objetivo – o que diz, portanto, é verdadeiro –, ou com relação ao mundo intersubjetivo – o que diz, portanto, é correto. A ‘pessoa B’, com quem ‘A’ conversa, pode questionar o que lhe é dito, afirmando que A não está sendo sincero, não está dizendo a verdade, ou sustenta normas incorretas. A réplica de A, a tréplica de B e assim sucessivamente fariam, então, com que, para haver consenso, sobressaísse o melhor argumento. E isso seria igualmente verdadeiro tanto para questões sobre o mundo objetivo, por exemplo, com A e B chegando a um consenso acerca de quantas cadeiras existem numa sala, quanto para questões sobre o mundo intersubjetivo das normas sociais compartilhadas, com A e B chegando a um consenso, por exemplo, acerca da correção normativa, ou não, do aborto, da pena de morte, da descriminalização do uso de certas drogas etc.

Com isso, voltam a se abrir ao escrutínio da razão as normas e valores da sociedade, que não mais se reduziriam ao politeísmo de valores weberiano, em que a escolha dos deuses de cada um não pode ter fundamento racional. Assim, volta a figurar no horizonte futuro a ideia de emancipação humana, pautada por um agir comunicativo capaz de instituir o reino da liberdade enquanto autonomia, isto é, enquanto possibilidade de se seguir normas que nós mesmos estabelecemos. Ultrapassa-se assim o ceticismo de Weber e de Adorno e Horkheimer com relação aos desdobramentos da modernidade e, para além de totalitarismos, jaulas de ferro e indústrias culturais, aparecem outras conquistas mais benfazejas da modernidade, como o Estado Democrático de Direito. Como consequência, para Habermas, a democracia deixa de ser um mero mecanismo de competição de elites, como em Weber, para ser racionalmente valiosa, por ser a forma de governo que melhor possibilita a deliberação, o que, pelo agir comunicativo, dá racionalidade às escolhas políticas (HABERMAS, 1998). Da mesma forma, a legitimidade racional-legal não mais se sustenta por si só, pois faltaria explicar o que justifica que os subordinados sigam uma lei que pode ser modificada a qualquer tempo. Nesse caso, de acordo com Habermas, a legitimidade não é garantida pela racionalidade da mera obediência à lei, mas sim à razão comunicativa que subjaz ao processo de produção das leis num governo democrático (HABERMAS, 1992).

Com isso, temos em Habermas não apenas uma visão alternativa das transformações da modernidade como um contraponto, dos mais poderosos – o que não significa, no entanto, que seja livre de críticas –, à narrativa da modernidade atrelada a uma reificação que proíbe à humanidade o acesso à emancipação pela razão prometida pelo iluminismo. Contudo, deve-se ter em mente que a reificação não está ausente da narrativa de Habermas. Ela apenas tem agora uma alternativa de escape e bastante diferente da alternativa da Revolução Socialista proposta outrora pelos marxistas, já que, para Habermas, a ação humana que nos levaria à emancipação não teria a ver com a ação estratégica de transformação e dominação da natureza característica do trabalho, mas com a ação comunicativa, característica da interação. Da mesma forma, não figura no horizonte emancipatório de Habermas, ao contrário de no de Marx, a completa superação da economia e do Estado modernos. Isto porque há uma concessão de Habermas à importância de sistemas sociais relativamente autônomos mediados por meios não linguísticos e que cumpririam um importante papel de redução da complexidade, sendo responsáveis por não permitir a sobrecarga da ação comunicativa.

Esses sistemas são o sistema econômico – mediado pelo dinheiro – e o sistema político – mediado pelo poder administrativo –, em que a razão instrumental é transformada em razão funcionalista, imunizada da ação comunicativa e pode ter, sobre a última, efeitos deletérios. Isto porque, para Habermas, a ação comunicativa se desenrolaria numa dimensão social diferente do mundo sistêmico: o chamado mundo da vida, ou mundo vivido. A tão temida reificação, portanto, aparece na obra de Habermas como a colonização do mundo da vida pelo mundo dos sistemas, substituindo a livre comunicação voltada para o consenso, característica desse mundo do agir comunicativo, por influxos instrumentalizantes advindos dos meios comunicativos não linguísticos do dinheiro e do poder administrativo, característicos dos sistemas econômico e político (HABERMAS, 2010).

A boa nova habermasiana é a possibilidade de inversão desse fluxo: contra a reificação dos sistemas se impondo ao mundo da vida e obstruindo seus canais comunicativos, surge, da análise habermasiana da modernidade, a possibilidade do percurso contrário, quando consensos normativos do mundo da vida podem regular, sem, no entanto, aniquilar, os sistemas econômico e político por meio do Direito, este estranho híbrido, que, nos dizeres de Habermas, entre a facticidade e a validade, torna sistemicamente efetivas normas validadas por consensos morais racionais, ao menos nos Estados democráticos de Direito (HABERMAS, 1998).

4. Luhmann e a especialização funcional da sociedade moderna

Uma das contribuições mais originais à teoria sociológica, feita na segunda metade do século XX na Alemanha, é a de Niklas Luhmann. Contudo, bastante crítico da perspectiva sociológica de compatriotas como os expoentes da Escola de Frankfurt, de Adorno a Habermas, e fortemente influenciado pela sociologia de Talcott Parsons, podemos considerar que, de certa forma, Luhmann seria como um continuador da sociologia teórica americana em solo europeu. Mais do que o tradicional incômodo dos teóricos alemães com as dimensões reificadoras da vida em sociedade, preocupava a Luhmann o dilema hobbesiano da dupla contingência – dilema este que herdara de Parsons. Para ele, a sociedade moderna lidou com o problema da impossibilidade latente da comunicação por meio de sistemas especializados, responsáveis pela comunicação específica da função a que se destinavam, como o sistema econômico, o sistema político, o sistema jurídico etc.

Assim, a modernidade se caracterizaria pela passagem de sociedades, outrora, segmentárias (sociedades tribais) e, posteriormente, estratificadas (divididas em estratos sociais, como no feudalismo) para sociedades diferenciadas funcionalmente. Isto é, mais do que dividida entre tribos, ou entre aqueles que ocupam estratos sociais superiores e inferiores, a sociedade moderna seria dividida em diferentes sistemas sociais, responsáveis por diferentes funções, que geram tipos específicos de comunicação. Para dar um exemplo, pode-se imaginar como, numa sociedade tradicional, era difícil distinguir onde começavam e onde terminavam as dimensões da vida social relacionadas à religião, à política e ao direito. Na sociedade moderna, tais dimensões da vida social já são plenamente diferenciadas em seus respectivos sistemas, que, de maneira independente, ainda que não solipsista, geram comunicações a respeito do sagrado, do poder, da ilicitude etc.

Para dar conta dessa transformação, Luhmann lança mão de uma “superteoria” que vai além da sociologia, abrangendo outras áreas do conhecimento, as quais também fornecerão, como veremos, aportes importantes à reflexão luhmanniana: a teoria dos sistemas. O aporte da visão sistêmica se prestaria à análise científica de diversos fenômenos, como máquinas, organismos vivos, sistemas psíquicos e, aquele que mais nos importa aqui e no qual Luhmann dá sua contribuição original, sistemas sociais. Acompanhando a evolução geral da teoria dos sistemas, Luhmann traz para a análise dos sistemas sociais a noção de sistemas como diferença sistema-meio, ou sistema-ambiente, e a noção de sistemas autopoiéticos, isto é, que se fazem a si mesmos, uma noção que importa da biologia, na obra dos biólogos chilenos Francisco Varela e Humberto Maturana (LUHMANN, 2009).

Ao compreender os sistemas como diferença sistema-meio, Luhmann avança para além de concepções mais antigas que buscavam caracterizar os sistemas por alguma unidade interna às suas partes. No caso dos sistemas como diferença, o fundamental passa a ser a delimitação que o próprio sistema faz daquilo que lhe pertence, tornando todo resto, consequentemente, meio ou ambiente. Assim sendo, o sistema representa sempre uma redução de complexidade, selecionando da infinitude de informações disponíveis no meio aquilo que lhe interessa. Por exemplo, assim como o nosso corpo, enquanto sistema, limita, pelos cinco sentidos, as informações que pode captar quanto a sons, cores etc., um sistema social, como o sistema econômico, filtra as informações que lhe dizem respeito, que têm a ver com a manutenção e transferência de propriedade, ignorando as dimensões religiosas, estéticas, jurídicas etc., que serão de interesse de outros sistemas.

Como consequência, os sistemas autopoiéticos, em geral, e os sistemas sociais, em específico, são sistemas radicalmente fechados: não há transferência de estruturas entre o sistema e o ambiente. Isso não quer dizer que os sistemas são indiferentes ao ambiente. Muito pelo contrário: seria seu fechamento operativo que garantiria sua abertura cognitiva. Isto é, justamente por proceder por operações de construção e reconstrução internas a si mesmos, os sistemas são capazes de diferenciar, dentre os infinitos “ruídos” do ambiente, aqueles que lhe interessam e geram informação. Tendo como parâmetro um sistema biológico, é fácil perceber como não é viável simplesmente inserir qualquer coisa, por qualquer lugar, em um organismo fazendo com que tal coisa se torne alimento. Só algumas coisas, selecionadas por certos padrões de acesso e que geram operações internas do próprio organismo – salivar, iniciar movimentos peristálticos intestinais, concentrar a irrigação sanguínea no sistema digestivo etc. –, passam a ser alimento para aquele mesmo organismo. O funcionamento dos sistemas sociais seria análogo: só alguns ruídos, selecionados em determinados padrões de acoplamento estrutural, são capazes de gerar informação dentro do sistema, por meio de operações internas do próprio sistema. Por exemplo, por meio de um contrato, o sistema jurídico observa a transação econômica, não com o objetivo de gerar informação acerca da transferência de propriedade, que preocupa o sistema econômico, mas com o objetivo de gerar comunicação a respeito da licitude ou ilicitude do ato.

A essa altura, já é possível perceber que, se tudo que está fora do sistema, por decisão do próprio sistema, é seu ambiente, esse ambiente inclui também outros sistemas. Dessa forma, fazem parte do ambiente observado pelos sistemas sociais, outros sistemas sociais, assim como sistemas biológicos e sistemas psíquicos. Isso faz com que, contrariando o senso comum de que a sociedade seria formada por pessoas, na teoria de Luhmann as pessoas, seja enquanto organismos biológicos, seja enquanto sistemas de consciência, estejam fora dos sistemas sociais. Indivíduo e sociedade não são nem dois lados de uma mesma moeda, como em Elias, nem capazes de interpenetração, como em Parsons – ainda que Luhmann aceite a ideia de interpenetração tomada de forma bastante específica (LUHMANN, 2009, pp. 266-270). Indivíduo e sociedade, ou melhor, sistemas sociais e sistemas de consciência são, portanto, entidades radicalmente separadas, o que faz com que a perspectiva de estruturas sociais objetificando sujeitos, num processo de reificação, não faça sentido na teoria luhmanniana, em que, segundo o autor, toda socialização é sempre uma autossocialização (2009, pp. 148-149). Isto é, se o sistema psíquico é um sistema autopoiético, ele também reage aos ruídos do meio – seja de sistemas sociais, seja de sistemas biológicos, seja de outros sistemas psíquicos – por meio de operações internas a si mesmo, construindo-se a si mesmo, em vez de importando estruturas de fora que poderiam lhe moldar.

Pode parecer estranha, à primeira vista, esta perspectiva de que os indivíduos estão fora da sociedade, não fazendo parte dos sistemas sociais. Mas a operação básica e diferenciadora dos sistemas psíquicos, isto é, o pensamento, de fato, não é transferível, seja para outras mentes, seja para instituições sociais: trata-se de uma operação absolutamente interna a cada consciência. É claro que não faz sentido pensar sistemas sociais sem a existência de pessoas. Mas não é só porque você precisa de uma frigideira para fazer um ovo frito que você deve entender que a frigideira faz parte da receita do ovo frito. Aquilo que um sistema psíquico pensa é indiferente aos sistemas sociais até o ponto em que, pelo acoplamento estrutural da linguagem, o pensamento tenta se fazer ruído a ser interpretado pelo sistema social, o qual gerará sua operação própria que não é o pensamento, mas a comunicação. Com isso, surgem níveis de “emergência” capazes de gerar sistemas que podem olhar de fora fenômenos que lhes são necessários, mas não internamente constitutivos. Um sistema psíquico sempre precisará de um sistema biológico como base, mas é capaz de produzir pensamento sobre este sistema biológico, analisando-o como seu ambiente. Da mesma forma, um sistema social sempre precisará de um conjunto de sistemas psíquicos como base, mas é capaz de produzir comunicação sobre estes sistemas psíquicos, analisando-os como parte de seu ambiente.

A descrição das transformações da modernidade em Luhmann, portanto, não traz, assim como em Elias, um inventário de patologias, como foi característico da tradição sociológica alemã em seus clássicos e em sua tradição frankfurtiana da “teoria crítica”. Luhmann tenta superar uma sociologia do sujeito, característica da tradição alemã, transformando a comunicação não na ação de indivíduos, mas na operação de sistemas autopoiéticos. Dessa forma, fica complicado inserir em sua sociologia o problema da reificação, dados os níveis cognitivos distintos em que operam sociedade e indivíduos, ou comunicação e consciência. Daí decorre que a formulação clássica da reificação na sociologia alemã seja associada, por Luhmann, a um momento específico de sua formulação da teoria da evolução da sociedade, em que esta seria estratificada e não, como a sociedade moderna, funcionalmente diferenciada. Com base nisso, conforme salienta Vandenberghe (2012, p. 45), “Luhmann se despede alegremente do pensamento da ‘velha Europa’ – e, portanto, forçosamente, também da noção humanista de alienação”. Nas palavras do próprio Luhmann (2016, p. 94):

O vocabulário da cosmologia ou da subjetividade foi provido de valor orientador, com um resto de defeitos que tinham, então, de culpar o mundo ou a sociedade. (...) Com o esquema coisificado, a dimensão material dominava aquilo que poderia ser descrito como “realidade”, do que ainda são testemunhos os embaraços do sujeito, que procura separar-se de tal esquema para, então, sempre voltar a se censurar por “reificação”. Esse modelo de pensamento harmonizava-se com as estruturas estratificadas do mundo antigo e com a sociedade burguesa que dissolvia esse mundo. Não se pode hoje continuar adequadamente com ele.

O que aparece como mais próximo de uma possibilidade de análise crítica em sua teoria diz respeito à possibilidade de um “supercódigo” comum a todos os sistemas sociais, que seria o código “inclusão/exclusão”, fazendo com que se possa analisar, internamente a cada sistema, a forma como seus códigos binários específicos (lícito/ilícito, no caso do sistema jurídico; situação/oposição, no caso do sistema político; e assim sucessivamente) são acompanhados pela inclusão ou exclusão de determinados grupos sociais (LUHMANN, 2013). No entanto, essa dimensão da obra de Luhmann não foi suficientemente desenvolvida pelo autor e penso mesmo que não se encaixe muito bem no restante do arcabouço teórico que construiu, de forma que sua narrativa sociológica sobre a modernidade é melhor compreendida como uma descrição moralmente cética de uma trajetória de fragmentação baseada na especialização funcional, o que não deixa de oferecer uma alternativa bastante interessante à tratativa da modernidade por seus conterrâneos, tanto clássicos quanto contemporâneos.

5. Conclusão: descrição, crítica e ontologia na sociologia alemã do final do século XX

A sociologia traz desde sua origem uma tensão entre suas responsabilidades de descrição e de explicação e sua função de crítica social. Mesmo não tendo a intenção de fundar a sociologia como uma nova disciplina, Marx deu origem a toda uma tradição sociológica em que a explicação dos fenômenos sociais deveria estar intrinsecamente atrelada à crítica e à transformação da sociedade. Por sua vez, Weber, que ironicamente nos deu tantas lições incontornáveis sobre macrofenômenos, como o Estado, a economia capitalista e as religiões protestantes, ao mesmo tempo em que se colocava como campeão do individualismo metodológico, também nos brindou com a ironia de, ao mesmo tempo em que nos legava uma das mais ácidas e argutas críticas da modernidade, frisar o quanto a sociologia deveria ser uma atividade científica axiologicamente neutra, cujas descrições e explicações não deveriam se misturar com as preferências do sociólogo quanto ao que seria uma sociedade melhor. Diferentes tradições sociológicas, portanto, mesmo nos limites da trajetória da disciplina na Alemanha, podem indicar diferentes caminhos quanto à relação, de independência ou complementariedade, entre conhecimento sociológico e crítica social.

A questão permanece atual, e, claro, era atual no final do século XX, quando a sociologia alemã era fortemente influenciada pelos autores analisados nesse artigo. Desses autores, uma relação inextrincável entre sociologia e crítica social é presente apenas na obra Habermas, o que não desmerece a obra dos demais autores, já que a relação entre explicação e crítica na sociologia não me parece ser de simples agregação. Pelo contrário, parece inevitável que o potencial crítico de uma teoria acabe por, necessariamente, trazer prejuízo à sua capacidade analítica, já que as exigências de idealizações e argumentos contrafáticos necessariamente tornam uma reflexão mais distanciada da realidade. Por exemplo, é difícil negar que o desenvolvimento psicológico ambíguo dos indivíduos submetidos ao processo civilizador, na obra de Elias, e a eterna contingência comunicacional, na obra de Luhmann, sejam mais realistas, e, consequentemente, analiticamente mais ricos do que o desenvolvimento moral e as situações de fala idealizados nas reflexões sobre psicologia e comunicação na obra de Habermas. Tentativas de aliar autores mais céticos a teorias críticas, inclusive, correm o risco de, em vez de agregar algo a um autor, tornando-o maior, fazer com que o autor saia diminuído de tal fusão. Entendo que seja o caso, por exemplo, quando se insinua uma prevalência do sistema econômico sobre outros sistemas na obra de Luhmann, trocando sua instigante visão da sociedade moderna funcionalmente descentralizada (e mesmo sua fina ironia contra seus adversários da vertente crítica) por um materialismo vulgar que não faz jus nem à grandiosidade Luhmann, nem à dos teóricos marxistas.

Independentemente da importância ou não da crítica social para o ofício sociológico, o que a análise dos autores feita neste artigo parece trazer à tona é a importância de alguma ontologia ou antropologia filosófica de base, para que a sociologia possa ter também essa dimensão crítica. É necessária alguma reflexão sobre o que é o ser humano em sua essência ou esplendor, para que se possam compreender certos processos históricos como favoráveis ou contrários ao florescimento de alguma dimensão humana fundamental. Como diria Vandenberghe, sobre a centralidade metateórica da antropologia filosófica: “a questão da natureza humana é insuportavelmente problemática, mas também inevitável. Toda teoria social necessariamente pressupõe uma imagem do Homem” (VANDENBERGHE, 2012, p. 27).

Curiosamente, a crítica à ontologia, característica da obra de Luhmann, por exemplo, já aparece em O Capital de Marx e é aceita pela teoria crítica da escola de Frankfurt, deslocando-se de uma noção transcendental para uma noção historicamente situada do que é o homem. Não obstante, parece-me bastante complicado manter o potencial emancipatório da obra marxista sem uma antropologia filosófica, em que o ser humano aparece como ser expressivo em seu trabalho e que, por isso, torna-se menos humano quando alienado desse mesmo trabalho.

Já a teoria crítica tentaria reconstruir padrões normativos de fragmentos da própria história. “Escovando a história a contrapelo”, como diria Walter Benjamin (2012, p. 245). Mesmo assim, não consigo compreender como essa escova não seria alguma ontologia. Sem essa ontologia, como diferenciar aquisições históricas que embrutecem os seres humanos de aquisições históricas que o tornam melhor? Sem uma projeção para fora da própria história, como diferenciar, normativamente, a aquisição histórica, por exemplo, dos Estados totalitários do nazi-fascismo de cartas de direitos humanos e governos democráticos constitucionais? De qualquer maneira, mesmo que se aceite uma composição de ser humano mais histórica do que metafísica, como na obra tardia de Marx e na dos frankfurtianos de Benjamin a Habermas, ao menos essa ontologia fraca se faz necessária a uma sociologia crítica, capaz de comunicar teoria social e teoria política.

Se retomarmos o contraexemplo da sociologia francesa do início do artigo, podemos pensar como, diante de uma antropologia filosófica iminentemente gregária, o dilema da anomia e fragmentação social pode demandar respostas críticas que se consolidam em perspectivas políticas republicanas, capazes de reforçar os laços de solidariedade social perdidos. A dedicação de Robert Castel à “questão social” pode ser um bom exemplo nesse sentido (CASTEL, 1998). Já no âmbito da sociologia alemã focada aqui, ainda que não seja este o ponto dos autores, é possível pensar em alternativas políticas liberais como salvaguarda ao individualismo heroico de Weber e Simmel diante do problema da reificação. Já perante uma ontologia que foca o expressivismo subjetivo, mas apenas em condições intersubjetivas, como me parece ser o caso de Marx e de Habermas, a sociologia aparece aliada à crítica política revolucionária comunista, ou, no caso habermasiano, à política da “revolução permanente” possibilitada pelo Estado democrático de Direito (HABERMAS, 1998, Apêndice 1), em um modelo de democracia deliberativa pensado pelo autor, justamente, em contraposição aos modelos republicano e liberal (HABERMAS, 2004).

Nesse sentido, a noção de reificação permanece útil ao tratar a relação entre indivíduo e sociedade – outro tema reincidente na sociologia – como uma relação entre uma subjetividade expressiva que pode ser ameaçada ou valorizada pelas estruturas sociais objetivas que a circundam. Isso permite que a reificação seja tratada como ponto de partida para a crítica sociológica que tem como referência um horizonte de emancipação pela via política revolucionária ou liberal-democrática. A junção ou separação radical entre indivíduo e sociedade, tal como aparecem, respectivamente, nas obras de Elias e Luhmann, não obstante toda sua riqueza analítica, parecem bloquear tais alternativas, dando azo a tratar as mazelas da sociedade moderna, talvez, mais como casos de terapia do que de ação política[2], ou nos fazendo aceitar que a análise da sociedade moderna é o objeto da sociologia, mas a crítica dessa mesma sociedade não necessariamente.

Referências

BENJAMIN, Walter. (2012), Sobre o conceito de história. In: BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas – volume 1. 8 ed. São Paulo: Brasiliense. pp. 7-20

CASTEL, Robert. (1998), Asmetamorfoses da questão social: uma crônica do salário. 1 ed. Petrópolis: Editora Vozes.

DURKHEIM, Émile. (2008), Da divisão do trabalho social. 3 ed. São Paulo: Martins Fontes.

ELIAS, Norbert. (1993), O processo civilizador – Vol. 2. 1 ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.

ELIAS, Norbert. (1994), A sociedade dos indivíduos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor

ELIAS, Norbert. (2011), O processo civilizador – Vol. 1. 2 ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.

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HABERMAS, Jürgen. (1992), Direito e Moral. 1 ed. Lisboa: Instituto Piaget.

HABERMAS, Jürgen. (1998), Between facts and norms: contributions to a discourse theory of Law and democracy. 1 ed. Cambridge: MIT University Press.

HABERMAS, Jürgen. (2004), Três modelos normativos de democracia. In: HABERMAS, Jürgen. A inclusão do outro. 2 ed. São Paulo: Edições Loyola. pp. 277-292.

HABERMAS, Jürgen. (2010), Obras escolhidas Vol. 1: Fundamentação linguística da sociologia. 1 ed. Lisboa: Edições 70.

HORKHEIMER, Max, & ADORNO, Theodor W. (1985), Dialética do esclarecimento: fragmentos filosóficos. 1 ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.

LUHMANN, Niklas. (2009), Introdução à teoria dos sistemas. 3 ed. Petrópolis: Editora Vozes.

LUHMANN, Niklas. (2013), Inclusão e exclusão. In: DUTRA, Roberto, & BACHUR, João Paulo (org.). Dossiê Niklas Luhmann. Belo Horizonte: Editora UFMG. pp. 15-50.

LUHMANN, Niklas. (2016), Sistemas sociais: esboço de uma teoria geral. Petrópolis: Editora Vozes.

LUKÁCS, Georg. (2003), História e consciência de classe: estudos sobre a dialética marxista. São Paulo: Martins Fontes.

SIMMEL, Georg. (2006), Questões fundamentais da sociologia. 1 ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.

SOUZA, Jessé. (2005), Introdução. In: SOUZA, Jessé, & ÖELZE, Berthold (org.). Simmel e a modernidade. 2 ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília. pp. 9-20.

VANDENBERGHE, Frédéric. (2012), Umahistória filosófica da sociologia alemã: alienação e reificação – Vol. 1: Marx, Simmel, Weber e Lukács. 1 ed. São Paulo: Annablume.

Notas

[1] Quando me referir à reificação ao longo do artigo, essa referência dirá respeito à reificação social. Não irei me dedicar aqui ao problema, também característico da sociologia, da “coisificação metodológica” (VANDENBERGHE, 2012), que se traduz na ‘falácia da falsa concretude”, em que formulações conceituais são confundidas com os objetos realmente existentes no mundo, aos quais tais formulações conceituais fazem referência.
[2] Num sentido semelhante, Vandenberghe (2012, p. 396) chega a afirmar que “uma teoria crítica não pode superar o dualismo da ação e da estrutura”.
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