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Recepção: 27 Dezembro 2018
Aprovação: 06 Maio 2019
DOI: https://doi.org/10.20336/rbs.417
Resumo: Nesse trabalho, defendemos que o processo legislativo é composto por dois momentos: tomada de decisão e tomada de posição. A partir da sociologia política, propomos uma tipologia, baseada na teoria de Pierre Bourdieu, para observar a tomada de posição dos agentes políticos – o modo como se posicionam em seus discursos. O recorte empírico refere-se à Comissão de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável da Câmara dos Deputados Brasileira. Investimos na triangulação de dados e utilizamos: (1) áudios das audiências públicas realizadas pela Comissão no período de 2004 a 2015, (2) relatórios anuais da Comissão e (3) entrevistas com deputados. O objetivo foi verificar se as tomadas de posição seguiam uma orientação de tipo partidária, setorial ou pessoal. Os resultados apontam para um forte predomínio do tipo de tomada de posição setorial.
Palavras-chave: Campo político brasileiro, Tomada de posição, Política ambiental.
Abstract: In this paper, we argue that the legislative process consists of two moments: decision-making and position-taking. From political sociology perspective, we propose a typology, based on Pierre Bourdieu’s theory, to observe the position-taking of political agents – the way they position the ideas in their discourses. The empirical analysis refers to the Commission of Environment and Sustainable Development of the Brazilian Chamber of Deputies. We have invested in a ‘data triangulation’ and used: (1) public hearings conducted by the Commission in the period 2004 to 2015, (2) annual Commission reports and (3) interviews with Members of this Commission. The aim was to verify whether positions were followed by a partisan, sectoral or personal orientation. The results point to a strong predominance of the sectorial position-taking type.
Keywords: Brazilian political field, Position-taking, Environmental policy.
Introdução[1]
A agenda de pesquisa sobre estudos legislativos no Brasil iniciou-se, de forma mais sistemática, a partir da década de 1990. Tal agenda sofreu forte influência norte-americana e, consequentemente, aderiu ao paradigma neoinstitucionalista da escolha racional. Para os autores que protagonizaram a agenda de pesquisa em questão, os agentes políticos atuam de modo racional-instrumental, visando à maximização dos ganhos pessoais diante de regras impostas pela estrutura institucional e que constrangem sua ação. As principais pesquisas empreendidas observaram o processo decisório parlamentar e ressaltaram, em trabalhos empíricos, de modo pioneiro, a importância da vertente partidária tanto no poder de agenda dos líderes de partidos como nos poderes legislativos do Presidente da República (FIGUEIREDO; LIMONGI, 1999). Os estudos mais específicos, voltados às Comissões Legislativas da Câmara dos Deputados, seguiram o mesmo registro analítico e constataram a importância da coesão partidária e/ou da especialização dos parlamentares no processo de formação das Comissões (PEREIRA; MUELLER, 2000; SANTOS, 2002; MÜLLER, 2005).
As contribuições de tal agenda de pesquisa para o alargamento do conhecimento científico sobre a realidade política e social brasileira são inegáveis. Todavia, em função da orientação teórica e metodológica seguida por esses estudos, o processo legislativo foi sendo lido a partir de um ponto de vista voltado para a tomada de decisão dos parlamentares. A maioria dos autores não observou a origem das preferências dos agentes políticos, em que medida a racionalidade instrumental realmente orienta suas ações ou, então, que outros momentos fazem parte do processo legislativo, como os discursos e a comunicação parlamentar. Além disso, os trabalhos priorizaram modelos de análise quantitativos. Assim, a teoria tradicional sobre os estudos legislativos no Brasil inovou e apresentou contribuições importantes no que se refere à compreensão das tomadas de decisão, mas não se dedicou a observar, especificamente, outro momento do processo legislativo: a tomada de posição – baseada em discursos, debates e pronunciamentos.
As implicações decorrentes de abordagens do processo legislativo mais orientadas para a tomada de decisão não têm escapado a alguns dos analistas mais vinculados ao neoinstitucionalismo e à teoria da escolha racional (PERES; CARVALHO, 2012; NASCIMENTO, 2012; MOREIRA, 2016). Alega-se que os estudos legislativos tradicionais se restringiram demais à arena legislativa stricto sensu e às suas regras internas, que condicionam as estratégias dos atores, desconsiderando-se a influência de outras arenas – como a judiciária e a da organização partidária externa ao parlamento (PERES; CARVALHO, 2012). Afirma-se, também, que as teorias positivas sobre o legislativo foram produzidas para explicar o fenômeno nos Estados Unidos, mas seus conceitos não são plenamente universalizáveis para outros casos e contextos históricos e institucionais (NASCIMENTO, 2012). Alega-se ainda, mais recentemente, que os estudos tradicionais não levaram em conta a comunicação parlamentar, seus discursos durante as seções em plenário, inclusivamente durante os processos decisórios, o que mostraria que a atividade parlamentar não se reduz à proposição e à aprovação de leis (MOREIRA, 2016).
Não obstante, mesmo esses pesquisadores críticos dessa abordagem mais específica, embora insatisfeitos, apresentam alternativas que, de um modo geral, mantêm várias propriedades da teoria da escolha racional. Estudos como os de Inácio e Rennó (2009), Santos e Almeida (2011), Araújo e Silva (2012), Freitas (2016) atualizam o debate sobre o processo legislativo e tentam, de certa forma, superar algumas lacunas dos estudos legislativos tradicionais. Alguns desses autores sugerem caminhos alternativos, a análise de outros tipos de dados, a inclusão de outras esferas institucionais, mas nenhum deles chegou a propor uma mudança mais substantiva, a de que o avanço nos estudos legislativos demanda uma mudança na cosmologia que concebe o fenômeno político.
A posição que adotamos nesse trabalho é a de procurar construir um percurso de pesquisa complementar que permita analisar o processo legislativo de um modo mais integrado. Consideramos que tal processo não pode ser satisfatoriamente entendido com análises que se restringem aos momentos de deliberação e de voto (tomada de decisão). O processo legislativo também é formado por momentos de diálogo, de discurso e de debate (tomada de posição). O reconhecimento da existência, bem como a análise, desses dois momentos faz-se muito importante. Portanto, a fim de apresentar um enfoque complementar aos estudos legislativos tradicionais, esse trabalho dedica-se à análise das tomadas de posição a partir de uma abordagem teórica inspirada na sociologia política. Ao operacionalizar conceitos da teoria do campo político de Pierre Bourdieu, propomos um modelo teórico-metodológico, materializado numa tipologia, para observar analiticamente a tomada de posição dos parlamentares na formulação de diferentes políticas dentro do Legislativo brasileiro.
Em termos empíricos, entende-se que, no âmbito do Congresso Nacional Brasileiro, as Comissões Permanentes, como as da Câmara dos Deputados, são o principal espaço em que os parlamentares podem discursar e debater livremente a respeito de determinadas políticas, permitindo-lhes tomar posição sobre estas. Além disso, as Comissões, enquanto órgãos técnicos e especializados, representam o maior canal de interface do Legislativo com a sociedade, pois realizam audiências públicas que permitem interação com grupos societários. Por conseguinte, o recorte de pesquisa utilizado nesse trabalho toma por referência a atuação de uma Comissão Permanente da Câmara dos Deputados, a Comissão de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável (CMADS), no período de 2004 a 2015[2]. As políticas de meio ambiente envolvem questões polêmicas e conflitos entre diversos grupos sociais e econômicos, além de lidarem com a dificuldade de encontrar um equilíbrio entre desenvolvimento econômico e sustentabilidade social e ambiental. Diante disso: como é que os deputados se posicionam frente às pressões que sofrem de seus partidos, de quem os apoia financeiramente e do eleitorado, quando as políticas ambientais são debatidas nesse espaço político? Para responder a tal indagação, investimos na construção de um modelo de análise de pendor qualitativo, recorrendo a métodos e técnicas que permitem inventariar e observar as particularidades de uma tomada de posição a partir de uma abordagem tipológica.
Não se tratando de um estudo explicativo convencional – que é aquele que tem como objetivo central detectar associação entre variáveis –, a presente pesquisa envolve um trabalho de objetivação, no sentido bourdieusiano da palavra (BOURDIEU, 1993), das tomadas de posição dos parlamentares, cuja função é nortear a coleta e a análise dos dados. Num tal quadro de trabalho, a hipótese de pesquisa subjacente é a seguinte: na CMADS, os parlamentares tendem a tomar posição mais vinculada a interesses setoriais do que aos interesses partidários porque não são submetidos ao controle mais rígido de seus partidos. Sem esse controle, o ajustamento das disposições dos parlamentares à situação de funcionamento da comissão sugere que o parlamentar sinalize favoravelmente as suas opções para a sua base de apoio, mostrando estar compromissado com seus interesses.
Se a hipótese de trabalho for verificada[3], os dados apontarão para um sentido contrário do indicado pelos achados dos estudos legislativos tradicionais (FIGUEIREDO; LIMONGI, 1999; SANTOS, 2000; MÜLLER, 2005), que mostraram que os partidos são a variável central para explicar o comportamento parlamentar. Assim, teremos evidências de que o momento de tomada de posição é independente do de tomada de decisão e é igualmente relevante no processo legislativo. Inclusive, as Comissões, ainda pouco estudadas, mostrar-se-ão assim mais sujeitas às pressões de setores sociais, de grupos de lobbies, de associações de interesse, seja nas suas atividades fechadas, seja nas Audiências Públicas. Portanto, os interesses setoriais seriam a variável associada às tomadas de posição.
Assim, num primeiro momento do artigo, revisitamos a teoria do campo político e o estudo das tomadas de posição de Pierre Bourdieu. Na segunda parte, propomos um modelo de análise sociológica das tomadas de posição no legislativo brasileiro, discutindo, seguidamente e num terceiro momento, os contornos de uma abordagem tipológica das tomadas de posição. Um quarto momento, centrado, exclusivamente, na apresentação e análise dos dados, estuda a CMADS e as tomadas de posição dos deputados a propósito do código florestal brasileiro e da implementação de usinas hidrelétricas no país. Por fim, apresentamos as considerações finais que apontam para uma agenda de pesquisa renovada sobre o processo legislativo.
1 Uma incursão na abordagem sociológica do campo político de Pierre Bourdieu
A compreensão sociológica da tomada de posição de um agente político não dispensa a observação do fenômeno a partir de uma abordagem diferente daquela que é habitualmente utilizada pelos estudos legislativos, uma abordagem que se afaste das premissas do individualismo metodológico e que permita compreender o comportamento do agente a partir de questões alternativas. No enquadramento da sociologia política, consideramos que a teoria e os conceitos de Pierre Bourdieu são capazes de orientar tal propósito.
A oposição entre ação e estrutura está presente tanto na Ciência Política quanto na Sociologia. Na Ciência Política, o paradigma neoinstitucionalista buscou solucionar tal dicotomia ao propor a articulação da estrutura com a agência num único modelo teórico, como uma síntese dos dois paradigmas anteriores (o institucionalismo antigo e o comportamentalismo). Dentro do neoinstitucionalismo da escolha racional, que influenciou os estudos legislativos, essa solução analítica resultou numa abordagem que integra os agentes no quadro explicativo, mas que os perspectiva somente a partir de seus atos racionais, retratando as relações que mantêm com as instituições num registro exclusivo de maximização de seus ganhos.
Na Sociologia também existiram teorias de síntese que visavam superar uma dicotomia semelhante. Bourdieu foi um dos autores que buscou integrar na mesma abordagem aspectos da estrutura social e da ação individual. Para resolver tal oposição de perspectivas, Bourdieu desenvolveu uma teoria da prática, entendida como o produto da relação dialética entre a ação e a estrutura (BOURDIEU, 2002)[4]. A partir de um quadro teórico que englobava as noções de prática, habitus, capital e campo, Bourdieu conseguiu encontrar uma resposta para “o problema da adequação entre ação subjetiva e objetividade da sociedade, uma vez que todo ator age no interior de um campo socialmente pré-determinado” (ORTIZ, 1983, p. 19). Tais noções permitiram que Bourdieu enxergasse relacionalmente as dinâmicas reprodutivas e transformadoras da sociedade e percebesse o mundo social como constituído a partir de um processo ininterrupto de lutas entre agentes sociais, que tendem a conservar ou a transformar a sua estrutura (BOURDIEU, 2003).
Ao romper com o individualismo metodológico e, consequentemente, com as premissas da teoria da escolha racional, Bourdieu entendia a relação entre estrutura e ação a partir de um enfoque alternativo. Com recurso ao conceito de habitus, o autor procurou demonstrar que todo o seu trabalho consistia em refutar o reducionismo teórico envolvido naquelas premissas (BOURDIEU, 2017). De acordo com a sua formulação, os agentes sociais possuem um complexo sistema de disposições que influencia as suas práticas e os diferencia em termos de posicionamento no espaço social. Aprofundando esse raciocínio, Bourdieu relevava a importância da “relação de cumplicidade ontológica entre o habitus e o campo” (BOURDIEU, 2008, p. 143), colocando o estudo das relações entre as disposições dos agentes e o posicionamento destes no espaço social no centro do esforço de objetivação sociológica (BOURDIEU, 2001; BOURDIEU; WACQUANT, 1992). Nesse sentido, as ações do agente, para Bourdieu, não podem deixar de ser lidas relacionalmente a partir da posição que esse agente ocupa no campo, pelo modo como se constitui o seu habitus e tendo presente a distribuição dos diferentes tipos de capital que o agente incorpora nessas relações. O plano interpretativo torna-se, assim, mais amplo.
Ao atentar para os fenômenos que envolvem a vida política, o modelo de análise desenvolvido por Bourdieu também possibilitou que o autor teorizasse a respeito do que chamou de campo político, relevando a importância de noções afins, como capital político e tomada de posição. O campo político, para Bourdieu (1989, p. 164), é entendido “ao mesmo tempo como campo de forças e como campo de lutas que tem em vista transformar a relação de forças que confere a este campo a sua estrutura em dado momento”. Bourdieu (2011, p. 195) explica que o campo político, como um “microcosmo”, é “um pequeno mundo social relativamente autônomo no interior do grande mundo social”. As relações, ações e processos, segundo Bourdieu (2011), se revestem, no campo político, de um modo particular. É um campo que possui as suas próprias leis, diferentes das leis do restante mundo social. O autor explica que os critérios existentes dentro do campo político são próprios de sua configuração, de modo que não teriam validade num “microcosmo” vizinho:
Assim, o fato de o campo político ser autônomo e ter sua lógica própria (...) implica que existe um interesse político específico, não automaticamente redutível aos interesses dos outorgantes do mandato. Há interesses que se definem na relação com as pessoas do mesmo partido ou contra as pessoas dos outros partidos. O funcionamento do campo produz uma espécie de fechamento. Esse efeito observável é o resultado de um processo: quanto mais um espaço político se autonomiza, mais avança segundo sua lógica própria, mais tende a funcionar em conformidade com os interesses inerentes ao campo, mais cresce a separação com relação aos profanos (BOURDIEU, 2011, p. 199).
Ao propor a noção de campo político, Bourdieu pressupõe que o agente que se move neste seja dotado de formas particulares de habitus e de capital políticos. Com base nestes últimos, o agente é capaz de sustentar tomadas de posição dentro daquele “microcosmo”. As tomadas de posição, na teoria de Bourdieu, referem-se às escolhas e estratégias dos agentes sociais nos diferentes domínios da prática (BOURDIEU, 1989; 2008; 2010) e com significado acrescido no domínio da prática política:
Uma das caraterísticas mais determinantes das escolhas políticas reside, com efeito, no facto de fazerem intervir, mais do que todas as outras escolhas obscuras e profundas do habitus, a representação mais ou menos explícita e sistemática que se tem do mundo social, da posição que se ocupa nele e que se deveria ocupar, e o discurso político, quando existe enquanto tal, é geralmente apenas a expressão mais ou menos eufemizada e universalizada – e sempre não reconhecida aos próprios olhos daqueles que o sustentam – dessa representação (BOURDIEU, 2010, pp. 663-664).
Articulada com o estudo da inscrição no espaço social, a análise sociológica da tomada de posição assume, nesta perspectiva, uma ampla importância. Ela permite verificar que a relação entre espaço de posições e espaço das tomadas de posição não é mecânica, envolvendo estratégia, o que permite compreender com maior profundidade as lutas desenvolvidas pelos agentes na conservação ou na transformação das estruturas dominantes dentro de um campo (BOURDIEU, 2001).
2 Um modelo de análise para o estudo sociológico das tomadas de posição no legislativo brasileiro
A concepção de Bourdieu a respeito do fenômeno político serviu como ponto de partida para que criássemos, nesse trabalho, um modelo heurístico próprio, susceptível de permitir a observação sociológica do campo político brasileiro e, principalmente, do modo de estruturação do processo legislativo no seu interior. Nesse sentido, foi necessário adequar os conceitos e noções cunhados pelo autor, a fim de aplicá-los a uma realidade empírica específica como a brasileira, que não tinha sido prevista e/ou contemplada pela teoria original[5]. Com efeito, quando Bourdieu sustenta que o campo político é um espaço de tomada de posição, ele viabiliza um caminho diferente para pensar a realidade política brasileira, um caminho mais abrangente e que não se limita a captar decisões e escolhas. É, neste quadro e assim, que nos propomos interrogar as tomadas de posição e as tomadas de decisão no campo político brasileiro, particularmente, no processo legislativo conduzido pela Câmara dos Deputados.
O cientista político norte-americano David Mayhew deu também grande importância aos processos de “tomada de posição” (position-taking), sendo um dos primeiros autores da ciência política a teorizar a seu propósito. De acordo com Mayhew (2004), a reeleição pode ser considerada uma das principais motivações individuais do político. Dessa forma, os congressistas se envolvem constantemente em atividades relacionadas com a reeleição. Tomando por referência tal perspectiva, Mayhew apresenta uma tipologia com três atividades principais: advertising, creditclaiming e position-taking. Assim, o autor percebe que a tomada de posição é um aspecto de destaque no contexto político, mas, ao definir o seu âmbito, não se preocupou em separá-lo dos momentos de tomada de decisão, de deliberação e de voto. O autor define tomada de posição como: “the public enunciation of a judgmental statement on anything likely to be of interest to political actors. The statement may take the form of a roll call vote” (MAYHEW, 2004, p. 61). Todavia, defendemos, nesse trabalho, que os dois momentos precisam ser observados dentro de suas particularidades, pois o momento do discurso (tomada de posição) dentro de uma audiência pública, por exemplo, pode sustentar um posicionamento diferente daquele assumido pelo político nos momentos de deliberação (tomada de decisão). Portanto, Mayhew parte de uma frutífera ideia sobre a tomada de posição dos políticos e constrói uma tipologia que pode facilitar a análise do comportamento parlamentar, mas o autor não desenvolve sua teoria a ponto de explorar as diferenças entre tomada de posição e tomada de decisão. Além disso, Mayhew segue uma orientação teórico-metodológica pautada pela teoria da escolha racional, o que restringe o seu argumento.
A tomada de posição precisa ser entendida como um momento do processo legislativo que é independente, mas interconectado com a tomada de decisão. A tomada de posição é aqui entendida como um momento em que os parlamentares sinalizam um posicionamento – debatem, discutem, questionam e confrontam outros agentes políticos por meio de um discurso, um momento no qual podem jogar o jogo político com mais liberdade. Estas tomadas de posição podem ser observadas quando os parlamentares realizam seus pronunciamentos no Plenário da Câmara dos Deputados ou quando realizam discursos dentro das audiências públicas realizadas nas Comissões Permanentes que compõem a Câmara dos Deputados. A tomada de decisão, por sua vez, é a altura do processo legislativo em que os agentes políticos firmam um posicionamento por meio do voto, manifestam uma decisão em momentos como as Apreciações de Proposições de Lei, em Plenário ou dentro de Reuniões Deliberativas que acontecem nas Comissões Permanentes.
Dessa forma, não se pode observar o modo como os parlamentares votam em Plenário e concluir que o comportamento desses agentes se refere a todo processo legislativo. Tal posicionamento significa que se deixa de perceber parte da complexidade que o poder Legislativo suporta e que deve merecer atenção adicional no caso brasileiro. Ao se deter nas tomadas de decisão, despreza-se um momento importante dentro do processo legislativo, no qual o parlamentar tende a construir o seu discurso e a se comunicar com a sociedade e com os demais agentes políticos. Portanto, a identificação dos diferentes momentos de tomada de posição e de tomada de decisão faz-se importante porque uma e outra podem não coincidir.
Podem tomar-se como exemplo as votações nominais que existem no Plenário da Câmara dos Deputados. Normalmente, o líder do partido é o primeiro representante a votar, a fim de sinalizar a intenção do partido para os demais membros. Muitas vezes, o partido “fecha questão”, isto significa que existe uma pré-orientação para que toda a bancada daquele partido vote de determinado modo. Quando isso acontece, pode existir uma tensão entre a tomada de posição e a tomada de decisão de um parlamentar: ele pode ter sinalizado, em seus discursos no Plenário, um posicionamento diferente do escolhido por seu partido, mas precisará votar de acordo com a decisão indicada pelo líder partidário – o que explica o fato de alguns parlamentares não seguirem tal orientação, isto é, não assumirem uma disciplina partidária. Quando o líder do partido “libera a bancada” nas votações, quando não “fecha questão”, os deputados não enfrentam a tensão de confrontar a sua tomada de posição com a tomada de decisão. A tomada de posição se traduz, assim, em um momento no qual o deputado pode sinalizar a sua posição para o setor que ele representa, para a sua base eleitoral.
3 A proposta de uma tipologia de tomadas de posição
Na teoria de Bourdieu, o princípio da tomada de posição de um agente político está diretamente relacionado à sua posição (construída através da combinação de diferentes tipos de capital) no campo político. Conforme salientou em diferentes obras, para Bourdieu, a relação do agente e do partido com os eleitores é a razão pela qual o campo político não pode se autonomizar por completo, pois existe um papel de representatividade que dá suporte ao funcionamento do campo político (BOURDIEU, 1989; 2011). Bourdieu, portanto, acreditava na importância do estudo da relação entre a tomada de posição e a posição ocupada no campo, sendo que, no campo político, a base eleitoral e a origem social deveriam ser objeto de atenção especial. No entanto, e ainda que tenha fornecido importantes pistas teóricas para o desenvolvimento de pesquisa sociológica sobre estes processos e realizado importantes pesquisas sobre a estruturação do campo do poder e das classes dominantes em França (BOURDIEU, 1989, 2001a), o autor não elaborou estudos sociológicos específicos sobre as determinações sociais da tomada de posição de agentes políticos e parlamentares concretos em termos análogos aos sugeridos pelo seu programa teórico. Em todo o caso, têm sido frequentes as abordagens de autores inspirados pela sociologia do campo político de Bourdieu, os quais têm procurado desenvolver estudos empíricos sobre os processos de tomada de posição de diferentes categorias de agentes políticos e das suas relações com a sociedade (cf., entre os mais recentes, LAURENS, 2015). Prolongando essa linha de análise, propomos, então, um modelo de análise que tem como objetivo perceber como se configuram as tomadas de posição dos parlamentares. Partindo da importância que Bourdieu atribui à base eleitoral, aos partidos e à origem social dos agentes políticos, procuramos perceber se a tomada de posição dos parlamentares assume uma perspectiva setorial, partidária, pessoal ou indefinida.
Uma tomada de posição pode ser considerada setorial quando o parlamentar demonstra estar a discursar em prol de um grupo, um movimento, uma frente parlamentar, uma organização ou outra representação societal que pode estar associada (ou não) a uma limitação geográfica ou região ligada à base eleitoral do agente político. Por exemplo, um deputado pode apresentar uma tomada de posição setorial que represente os ribeirinhos de uma barragem específica no Estado de Minas Gerais; ou representar os proprietários rurais como uma categoria nacional; pode ainda discursar em prol dos aposentados; pode defender os interesses dos ambientalistas; das minorias; das mulheres; do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) etc.
Uma tomada de posição pode ser considerada partidária quando o parlamentar faz alusão ao seu partido, isto é, quando destaca o posicionamento do seu partido e assume os interesses partidários como sendo os seus. Uma tomada de posição partidária também pode ser identificada no momento em que os parlamentares apresentam um posicionamento que faz referência a relação “governo e oposição”. Por exemplo, um deputado pode defender a importância de se investir em fontes de energia renováveis para justificar que o seu partido tem trabalhado nesse sentido e investido na promoção destas políticas públicas. Noutra situação, um parlamentar pode apresentar sua tomada de posição ao afirmar que “nós do Partido X estamos trabalhando para que as populações pobres da Amazônia tenham maior visibilidade dentro das políticas sociais implementadas pelo governo”.
Uma tomada de posição pode ser entendida como pessoal quando se observa a presença de interesses pessoais do deputado em seu discurso. Além disso, enquadra-se como pessoal aquela tomada de posição que se baseia na trajetória política e pessoal do agente ou na expertise, na carreira profissional. Por exemplo, um deputado pode salientar o fato de ter nascido na zona rural, de ter se tornado agricultor e por isso conhecer a importância das políticas públicas que atendam estas regiões e estes trabalhadores. Outro deputado pode afirmar ter pautado toda a sua trajetória política na defesa dos diretos humanos e por isto ter amplo conhecimento sobre o assunto defendido.
Uma tomada de posição considerada indefinida raramente aparece nos discursos dos parlamentares, porque, ao se manifestar em plenário ou ao discursar dentro de uma audiência pública, os deputados entram no jogo político e demonstram o que motiva seus posicionamentos. No entanto, uma tomada de posição indefinida pode representar algumas exceções. Por exemplo, um parlamentar pode expor seu posicionamento em uma audiência pública apenas ao afirmar: “eu sou contra o investimento em energia solar, acredito que o Brasil pode priorizar outras fontes de energia que são mais baratas para o poder público”. Este tipo de afirmação, jogando, não raramente, com a ambiguidade, não nos permite perceber como se configura tal tomada de posição. Muitos deputados também aproveitam o seu espaço de fala para expor questionamentos aos seus colegas, o que nem sempre caracteriza uma tomada de posição definida a respeito do assunto discutido.
A aplicação dessa tipologia, porém, demanda que se compreenda que o político é um agente que lida com uma tensão envolvendo os três tipos principais de tomada de posição – setorial, partidária, pessoal. Em função dessa tensão, não se pode esperar que os tipos de tomada de posição apareçam totalmente isolados e nem que o agente político apresente sempre a mesma tomada de posição. Assim, os três tipos considerados também podem aparecer combinados (Figura 2).
Um parlamentar pode ressaltar os interesses de um setor específico e, ao mesmo tempo, demonstrar que esses interesses também fazem parte da agenda defendida pelo seu partido (Setorial+Partidária). Uma tomada de posição também pode realçar a defesa de determinado setor e, concomitantemente, salientar interesses pessoais daquele parlamentar (Setorial+Pessoal). De modo semelhante, um deputado pode destacar a trajetória de seu partido em relação com a ideia defendida e, ao mesmo tempo, versar a respeito da sua trajetória pessoal e política (Partidária+Pessoal). Não raro, os parlamentares também podem ignorar a tensão existente entre os três tipos e mobilizar argumentos partidários, setoriais e pessoais.
4 A tomada de posição na CMADS (2004-2015): análise dos dados
Os trabalhos desenvolvidos pelos estudos legislativos tradicionais, ao analisar as tomadas de decisão, mobilizaram modelos de análise predominantemente quantitativos. Acreditamos, entretanto, que a mudança de matriz teórica obriga a realizar desdobramentos metodológicos de ordens quantitativa e qualitativa que possam sustentar a tipologia criada. Desse modo, a coleta de dados e a análise demandaram que se investisse na triangulação de dados, com o intuito de utilizar a convergência de fontes para garantir rigor metodológico à pesquisa. Portanto, recorremos a três fontes de dados: (1) áudios das audiências públicas realizadas pela CMADS, (2) relatórios anuais da CMADS e (3) entrevistas com membros da CMADS[6]. Dada a natureza dos dados, foi importante combinar análise documental e entrevistas. A análise documental foi a principal técnica adotada, utilizada para tratar dois grupos de dados referentes a documentos oficiais: os áudios [e transcrições] das audiências públicas e os relatórios anuais da CMADS. Essa análise documental seguiu uma orientação classificatória, de acordo com a tipologia proposta. Em relação às entrevistas, um recurso complementar nessa investigação, foram aplicados questionários semiestruturados a três parlamentares que compuseram a CMADS e seu conteúdo também foi analisado com base na tipologia[7].
Durante o período analisado (2004-2015), a CMADS realizou 292 audiências públicas. A fim de compreender com mais clareza e objetividade as matérias que orientaram essas audiências e buscar uma possibilidade de recorte analítico, optamos por classificá-las e agrupá-las em 12 categorias, capazes de facilitar a percepção do que, em geral, predomina nos debates promovidos pela CMADS – esse processo foi realizado a partir da análise documental dos relatórios anuais disponibilizados pela Comissão. Cada audiência pública foi analisada a fim de se identificar qual era o assunto abordado. A Tabela 1 apresenta detalhadamente os dados a respeito desta classificação temática[8]. Entre as temáticas admitidas nessa análise, uma destaca-se fortemente perante as demais: a preservação florestal. A ocupar o segundo lugar como temática mais abordada, aparece a questão energética, seguida pelas discussões sobre a água. Se somada a quantidade absoluta total das audiências públicas realizadas nesses três grandes grupos temáticos (preservação florestal, energia e água), obtém-se quase 50% das audiências públicas realizadas durante todo o período estudado.
Em função da proeminência das três categorias durante a classificação das audiências, o primeiro passo, que pode ser entendido como um critério aplicado na construção do recorte, foi (1) analisar em profundidade todas as audiências que haviam sido classificadas dentro dessas três temáticas, isto é, foram ouvidas mais de 350 horas de áudios, referentes a um total de 143 audiências.[9] Durante a análise desses áudios foi possível avançar ainda mais com a delimitação do recorte necessário. Limitamos a análise a audiências que tratassem de (2) matérias que fossem transversais ao período analisado, (3) que tivessem dado origem a alguma norma jurídica e, ao mesmo tempo, fossem (4) assuntos que possuíssem certo eco público entre a população brasileira.
Estes critérios direcionaram a pesquisa a dois debates importantes dentro da agenda ambiental brasileira: as alterações no Código Florestal Brasileiro e os impactos decorrentes da construção de usinas hidrelétricas no país (esse caminho metodológico pode ser observado na Figura 3). Sempre que algum deputado fizesse referência à reforma do Código Florestal e/ou à construção de hidrelétricas, o trecho de sua fala era selecionado para compor um banco de dados a ser analisado com base na tipologia. Assim, foram analisados 102 trechos de discursos realizados por parlamentares em diferentes audiências públicas (uma síntese dos procedimentos de coleta e tratamento dos dados pode ser encontrada no Quadro 1). Para exemplificar a utilização da tipologia na análise, apresentamos a seguir um dos trechos que compõem o banco de dados utilizado na pesquisa.
Desde já eu quero dizer o seguinte: nós – nem eu nem o nosso Partido Verde, do qual sou Líder – não temos nenhum tipo de preconceito contra hidroelétricas; ao contrário, as hidroelétricas são importantes na matriz energética do País, elas têm um papel. O Brasil é conhecido como país ou era, até há pouco tempo, com uma matriz energética limpa. Agora, é evidente que quando se começa a fazer hidroelétricas que atingem aglomerados urbanos, que atingem terras indígenas, direitos indígenas, que atingem os serviços ambientais prestados pelos ecossistemas, aí é preciso se pensar em custo-benefício. No caso, já não se está mais discutindo isso, no caso específico; estão se discutindo os compromissos assumidos e que não foram cumpridos, ou que foram cumpridos de maneira negligente. É evidente que nós não buscamos aqui encontrar culpados nem buscar desculpas. Mas a gente quer entender que daqui pode sair um caminho para que se possa cumprir aquilo que foi acertado, de maneira que a população afetada por essa obra de interesse nacional possa não sair prejudicada. Este é o nosso objetivo (Deputado Sarney Filho, 2013).
O trecho corresponde a uma intervenção do Deputado Sarney Filho, representante do Partido Verde. Um parlamentar muito atuante na CMADS, membro titular durante todo o período aqui analisado e Presidente da Comissão no ano 2012. O trecho foi proferido em uma audiência realizada no dia 15 de outubro de 2013, decorrente do Requerimento nº 226/2013, e que abordou os impactos ambientais no país causados por obras de barragens e lagos artificiais com a finalidade de construção de usinas hidrelétricas, em especial os problemas decorrentes da elevação do lençol freático na região da Usina de Estreito. Sarney discursou em defesa da população afetada pela usina hidrelétrica, o que claramente representa uma tomada de posição setorial, no entanto, o parlamentar também salientou o posicionamento do seu partido a respeito de não sustentar nenhum tipo de preconceito em relação às usinas hidrelétricas. Portanto, o trecho acima citado foi considerado na análise como uma tomada de posição de tipo setorial+partidária.
A análise de todos os dados referentes às audiências públicas e às entrevistas realizadas com três membros da Comissão, no ano de 2015, demonstrou um forte predomínio do tipo de tomada de posição setorial, tanto isoladamente como combinada com outros argumentos. Os resultados, portanto, reforçam a teoria de Bourdieu de que o campo político é realmente um espaço de luta, de jogo de interesses e de concorrência por poder, no qual os agentes políticos apresentam tomadas de posição que estão relacionadas com a posição que ocupam no campo. Assim, pode-se afirmar que a gênese das políticas ambientais, dentro do Legislativo brasileiro, especialmente aquelas ligadas à construção de usinas hidrelétricas e às modificações no Código Florestal, associa-se muito mais a interesses setoriais do que a interesses partidários e/ou pessoais, confirmando a hipótese que orientou a pesquisa.
Parte significativa do total de trechos de discursos analisados (102) assumiu uma tomada de posição pautada sob uma única perspectiva: 51 tomadas de posição foram de tipo setorial, quatro foram classificadas no tipo pessoal, duas seguiram o tipo partidário. As demais tomadas de posição combinaram diferentes argumentos: 29 do tipo setorial+pessoal, oito setorial+partidária, uma do tipo partidária+pessoal, três do tipo setorial+partidário+pessoal. Além disso, quatro tomadas de posição foram consideras indefinidas. Nota-se, por conseguinte, o forte predomínio do tipo setorial, conforme descrito no gráfico 1.
Vale mencionar que, desde a pré-análise dos dados, houve uma reflexão a respeito de uma subcategorização do tipo “setorial”, todavia encontramos uma quantidade pouco significativa de tomadas de posição que poderiam justificar esse desmembramento. Do ponto de vista lógico, percebemos que não fazia sentido, por exemplo, transformar aquelas tomadas de posição referentes a uma limitação geográfica ou região ligando-as a um subtipo específico, mas sim ** mantê-las como um agregado no tipo setorial. Os posicionamentos (os discursos) dos parlamentares dentro da CMADS, na verdade, são, em grande parte, o que podemos chamar de transregionais, de supraregionais. Normalmente, defendem mesmo aquilo que denominamos como próprio de um setor: “os ribeirinhos”, “os sem-terra”, “os indígenas”, “os proprietários rurais”, “a construção de hidrelétricas”, “a preservação florestal”, “a conservação dos rios”, “a agricultura familiar”, independentemente do território. Mesmo em discussões pontuais, a respeito de questões ambientais de determinado território, notamos que o discurso quase sempre é nacional – mesmo que parta de questões específicas. Isso é resultado, principalmente, de um forte embate, existente nessa Comissão, entre ruralistas (pró-desenvolvimento econômico) e ambientalistas (pró-desenvolvimento sustentável), que se reúnem em frentes parlamentares suprapartidárias e supraregionais. Importa reconhecer, contudo, que o modelo tipológico proposto é flexível. No caso dessa Comissão, não cabia essa subdivisão dentro do tipo setorial. Todavia, ao replicar o modelo noutra Comissão, talvez seja possível criar subdivisões para cada tipo de tomada de posição.
A análise complementar das três entrevistas realizadas no ano de 2015 confirmou a especial predominância das tomadas de posição setoriais por parte dos parlamentares. Os três parlamentares entrevistados revelaram, em resposta a diferentes perguntas, a defesa de algum setor da sociedade. Dois deles preocuparam-se, ainda, em citar o nome do partido e as bandeiras defendidas pela legenda à qual estavam filiados. Em suma, tendo em conta o recorte de pesquisa adotado, a análise aqui empreendida demonstra que o parlamentar que atua na CMADS, diante das tensões existentes entre o partido, os setores que representa e seus interesses pessoais, tende a priorizar uma tomada de posição setorial.
Considerações finais
Inspirados na teoria de Pierre Bourdieu, buscamos neste trabalho adaptar algumas noções de sua obra e defender que o processo legislativo não pode ser compreendido como algo restrito às tomadas de decisão, sendo necessário observar, também, os momentos de tomada de posição, nos quais os agentes políticos sinalizam um posicionamento através de pronunciamentos, discursos, debates, diálogos e até confrontos verbais. As tomadas de decisão e as tomadas de posição, portanto, representam duas dimensões do processo legislativo. Entretanto, a literatura especializada nesse assunto tem percebido o processo legislativo, principalmente, a partir das tomadas de decisão. Em função da orientação teórica e metodológica que predomina nestes estudos, os pesquisadores, em sua maioria cientistas políticos, interessam-se, especialmente, em perceber como os atores, a partir de um quadro racional-instrumental, tomam decisão numa estrutura institucional de incentivos – como os deputados se comportam em votações nominais, por exemplo.
É inegável que os estudos tradicionais sobre o legislativo trouxeram diversas contribuições no que concerne ao momento de tomada de decisão, mas não atentaram devidamente para a dimensão que abriga as tomadas de posição dos políticos. O fato é que para estudar esse aspecto do comportamento parlamentar é preciso investir em uma abordagem complementar que permita observar o fenômeno através de outras premissas. Neste sentido, propomos uma tipologia que permite realizar um primeiro trabalho de objetivação a respeito da tomada de posição particular dos agentes políticos no que concerne à construção de seu argumento a partir das perspectivas setorial, partidária e pessoal.
A literatura especializada tem sustentado a importância dos partidos nas tomadas de decisão acontecidas em Plenário e a relevância da especialização dos parlamentares no sistema de Comissões Permanentes. O intuito deste trabalho foi perceber se tais processos se sustentavam, também, nas tomadas de posição. Assim, em termos empíricos, a pesquisa procurou considerar as tomadas de posição dos parlamentares num contexto específico da Câmara dos Deputados Brasileira: a Comissão de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável. Por meio de uma densa análise focada principalmente nos áudios referentes às audiências públicas realizadas pela Comissão, os resultados apurados demonstraram que não predomina uma orientação partidária ou um argumento que reivindique aspectos de trajetória ou expertise dos parlamentares. Os agentes políticos pautam suas tomadas de posição, principalmente, na perspectiva setorial, isto é, apresentam posicionamentos baseados na representação de um setor específico da sociedade. Por conseguinte, tudo indica que fará sentido ressalvar a importância de uma abordagem teórico-metodológica que, complementando os estudos disponíveis sobre o processo legislativo brasileiro, analise o processo legislativo a partir de contributos significativos da sociologia política.
A tipologia aqui proposta permite dialogar com a teoria tradicional sobre estudos legislativos. Essa conexão se manifesta numa questão de fundo que aproxima a teoria de Bourdieu ao neoinstitucionalismo, ou seja, ambos propõem, não obstante as diferenças, uma síntese para a dicotomia estrutura versus agência. Contudo, a preocupação em considerar tanto a estrutura, bem como a ação, permite operacionalizar alguns conceitos de Bourdieu, de tal modo que a orientação partidária possa ser considerada uma das perspectivas lógicas e factuais das tomadas de posição e, assim, possa ser cotejada com a explicação partidária entendida no caso das tomadas de decisão estudadas pelos especialistas em estudos legislativos que aderiram ao neoinstitucionalismo. A perspectiva setorial adotada na tipologia aqui apresentada também pode ser relacionada com a teoria utilizada pelos neoinstitucionalistas, neste caso, com a ideia distributivista. No entanto, em uma tomada de decisão, como o ato de votar uma lei, os parlamentares podem pensar em distribuir políticas para o seu reduto eleitoral ou em favorecer a busca por recursos para a sua clientela, o que não acontece tão facilmente nos momentos de tomada de posição. Quando estão a discursar, a apresentar seus pronunciamentos, não existe uma possibilidade direta de distribuir políticas clientelistas, apesar de muitos parlamentares utilizarem esse momento para reforçar o vínculo com os setores que os apoiam. O fato é que a relação que se estabelece entre a perspectiva setorial e a vertente explicativa distributivista refere-se, sobretudo, à ideia de conexão eleitoral, de uma sinalização de posicionamento para a base eleitoral. A perspectiva pessoal, por sua vez, dialoga, remotamente, com a vertente explicativa informacional, especialmente porque engloba aspectos relacionados à trajetória do parlamentar, à sua especialização e profissão, à sua expertise.
Independentemente dos possíveis pontos de contato entre a abordagem aqui proposta e os estudos legislativos tradicionais, reconhece-se a importância dos resultados sobre tomada de decisão encontrados por estes últimos, como o poder de agenda que o Executivo possui dentro do Legislativo Brasileiro e a organização do Legislativo ser centralizada em regras que distribuem direitos parlamentares por meio de princípios partidários (FIGUEIREDO; LIMONGI, 1999). Contudo, é preciso perceber que as tomadas de posição representam outro momento de ação dos agentes políticos dentro do processo legislativo, no qual a sinalização para o setor que representam caracteriza o comportamento dominante. Esta constatação empírica permite que sejam apresentados aqui importantes apontamentos teóricos.
Um primeiro ponto a ser salientado é que os resultados aqui encontrados dizem respeito à Comissão do Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável e, portanto, referem-se às tomadas de posição características do tipo de política pública ali discutido e formulado. Poderíamos pensar que o mesmo estudo, se aplicado a outras Comissões Legislativas da Câmara dos Deputados, poderia gerar diferentes resultados – e isso só saberemos, com certeza, quando a tipologia for replicada noutra Comissão. Todavia, reiteramos que mesmo comissões que possam apresentar políticas e debates de cunho mais universalista, como a Comissão de Constituição e Justiça, são formadas por parlamentares que representam determinados setores e determinadas “bandeiras” da sociedade; portanto, a tomada de posição setorial também pode ser dominante em seus discursos.
Além disso, conforme já destacado anteriormente, acreditamos que a predominância de um argumento de ordem setorial nas tomadas de posição (especialmente dentro das Comissões Legislativas) pode decorrer do fato de este ser um momento no qual os parlamentares não sofrem tantos constrangimentos dos seus partidos, isto é, ficam livres para sinalizar seus posicionamentos para seus apoiantes (base eleitoral, financiadores de campanha, padrinhos políticos), diferente dos momentos de votação (como os que acontecem principalmente no Plenário), em que os partidos podem exercer pressão sobre seus correligionários para que votem de acordo com os interesses do partido. Muitas vezes, a tomada de posição de um parlamentar pode ir ao encontro dos interesses do partido. No entanto, o contrário também pode acontecer e esta ligação entre os dois momentos do processo legislativo pode estar relacionada com o capital político do parlamentar.
Capital político, para Bourdieu, diz respeito a uma forma de capital simbólico – um crédito que é firmado a partir da crença e do reconhecimento. São duas as espécies de capital político: o capital pessoal de notoriedade e de popularidade e o capital delegado da autoridade política (BOURDIEU, 1989). Com estes conceitos, é possível ler a complexa relação que o parlamentar estabelece com o seu partido e com o modo como atua no contexto que envolve o processo legislativo brasileiro. Se um deputado possui um capital político de ordem pessoal, ele pode sinalizar uma tomada de posição e aplicá-la em sua decisão durante as votações de algum projeto de lei, independentemente da posição apresentada por seu partido, pois o parlamentar não depende diretamente do capital político do seu partido para se eleger. Entretanto, existe outro tipo de situação, na qual o parlamentar pode sustentar uma tomada de posição nos momentos em que possui liberdade para isto, mas modificá-la quando se tratar do momento de tomada de decisão, em função do controle partidário existente e da dependência que este parlamentar possui do capital político proveniente de seu partido.
Assim, o controle partidário nas tomadas de decisão dos parlamentares precisa ser observado juntamente com o capital político que envolve a relação entre o agente político e o partido, porque a trajetória e o perfil do parlamentar podem influenciar na tensão existente entre tomada de posição e tomada de decisão. Apesar de teorizar a respeito dos dois tipos de capital, Bourdieu concedeu um papel muito importante para o capital político delegado pelo partido, afirmando que o partido era uma espécie de banco de capital político. Todavia, é preciso notar que Bourdieu estava a olhar para a França, um país que possui um sistema eleitoral de lista fechada, diferente do Brasil, que possui um sistema eleitoral de lista aberta, no qual os políticos competem não só com os candidatos de outros partidos, mas também com seus próprios colegas de partido. Dessa forma, no campo político brasileiro, o capital pessoal de notoriedade encontra um espaço maior para se desenvolver. O modelo de eleição que se sustenta no Brasil pode estabelecer não só uma configuração personalista de eleição como também favorecer, eventualmente, um sistema de clientela entre o parlamentar e a sua base eleitoral.
Esta interpretação pode ajudar a compreender os resultados encontrados pelos estudos que observaram as tomadas de decisão e salientaram a existência de uma coesão partidária na Câmara dos Deputados. Estes estudos perceberam que um grande percentual de parlamentares vota de acordo com a orientação do partido; no entanto, também constataram a existência de um percentual relativamente expressivo de deputados que não assume essa disciplina partidária (FIGUEIREDO; LIMONGI, 1999). O comportamento desse grupo de deputados poderá ser explicado a partir de um exame detalhado da relação existente entre tomada de posição, capital político pessoal ou partidário e tomada de decisão.
Todas estas considerações demonstram que não basta centrar a análise do legislativo brasileiro apenas no processo decisório. O processo legislativo brasileiro é complexo, envolve momentos diversos e especificidades que precisam ser observadas por diferentes ângulos (CORRÊA, 2017; 2018).. Neste sentido, o modelo de análise apresentado neste trabalho abre uma possível agenda de pesquisa para o futuro. Observar o modo como os deputados se posicionam através de discursos, pronunciamentos, debates e diálogos, seja no Plenário ou em audiências públicas, pode revelar importantes especificidades do processo legislativo. Uma análise das tomadas de posição, em conjunto com uma análise que investigue o capital político dos parlamentares, pode ajudar a compreender, e até antever, suas tomadas de decisão. Além disso, um estudo qualitativo e baseado no método prosopográfico poderia dedicar-se a analisar o modo como o capital político é distribuído dentro do campo político brasileiro e se existe uma predominância do capital político pessoal ou do capital político delegado pelo partido. Uma opção ainda mais complexa, inspirada em estudos como os de Abélès (2001), poderia dar vida a um estudo etnográfico de diferentes audiências públicas realizadas na Câmara dos Deputados.
Em suma, a pesquisa que se materializa nesse artigo apenas credita o fato de o Brasil abrigar um campo político bastante particular, que carece de investigação sociológica e que pode ser heuristicamente compreendido a partir de uma análise que observe tanto os agentes envolvidos no processo quanto as regularidades que estruturam o campo político, assim como a relação dialética que se estabelece entres estas duas dimensões. Se seguirmos este caminho, o campo político brasileiro poderá ser objeto de um olhar alternativo e de uma agenda de pesquisa renovada.
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