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Os embolamentos do tráfico de drogas em Porto Alegre pela ótica do interacionismo radical

Angs of drug traffic in Porto Alegre from a radically-interctionist point of view

Betina Warmling Barros
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil

Os embolamentos do tráfico de drogas em Porto Alegre pela ótica do interacionismo radical

Revista Brasileira de Sociologia, vol. 7, núm. 16, pp. 235-264, 2019

Sociedade Brasileira de Sociologia

Recepção: 25 Março 2019

Aprovação: 13 Maio 2019

Resumo: O trabalho busca compreender as possibilidades de utilizar a abordagem teórica do “interacionismo radical” para o estudo da temática dos chamados coletivos criminais do tráfico de drogas do Brasil. Assim, retoma-se a constituição do interacionismo simbólico, traçam-se as principais distinções da sua versão radical e articula-se a produção sociológica sobre os coletivos criminais do tráfico de drogas no Brasil contemporâneo. Após, utiliza-se de produção empírica sobre a temática do tráfico de drogas realizada com adolescentes internados, para propor a possibilidade de utilização do interacionismo radical na abordagem do tema, o que pode se constituir: a) pelos processos de dominação dos agentes mais velhos que fazem parte do tráfico; b) pela observação das operações veladas de dominação; c) pela centralidade que o status social adquire na constituição do fenômeno da violência.

Palavras-chave: Interacionismo simbólico, Tráfico de drogas, Coletivos criminais.

Abstract: The present work seeks to understand the possibilities of using the theoretical approach known as “radical interactionism” for the study of the called “criminal groups” of drug trafficking in Brazil. After resume the principal issues about the constitution of symbolic interactionism, the main distinctions of its radical version are established and related to the sociological production of drug trafficking criminal collectives in contemporary Brazil. Secondly, the empirical production with adolescents confined at a house arrest about the drug trafficking is used to propose the possibility of using radical interactionism in the approach to the topic, which may be constituted by: a) the processes of domination between the older agents to the younger members of the drug trafficking; b) by observing the veiled operations of domination that occur in this context; c) the centrality that social status acquires in the constitution of the violence phenomenon.

Keywords: Symbolic interactionism, Drug trafficking, Criminal collectives.

Introdução

Certamente os ditos pais do interacionismo simbólico, George Herbert Mead e Herbert Blumer, não imaginariam que tal teoria sociológica poderia ser utilizada como perspectiva de análise do fenômeno dos coletivos criminais do tráfico de drogas no Brasil contemporâneo. Em verdade, dificilmente os teóricos possuem absoluto controle de como suas teorias serão operacionalizadas no futuro. Entretanto, diversos sociólogos utilizaram a base teórica da corrente para desenvolver suas próprias perspectivas na temática da sociologia da violência, como é o caso da Teoria da Rotulação de Goffman, por exemplo (1963). Mas seria possível realizar uma abordagem interacionista para a temática dos coletivos criminais na realidade brasileira? Ou ainda: como a perspectiva mais recente do interacionismo, autodenominada radical, serviria como lente teórica para análise desse objeto?

Com o objetivo de dar conta de tais questionamentos, no primeiro item, parte-se da retomada dos autores clássicos do interacionismo simbólico, identificando os pressupostos basilares da teoria, e dos autores próprios do campo da sociologia da violência que utilizaram tal aporte na construção de suas próprias teorias. Em seguida, apresenta-se a concepção do interacionismo radical formulada por Athens (2013), suas semelhanças e distinções em relação à perspectiva clássica, questionando como a sociologia da violência, em específico na temática dos coletivos criminais, poderia se beneficiar de tal lente teórica. Segue-se com a conceitualização do que se entende como coletivos criminais no Brasil e alguns dos problemas sociológicos envolvidos e, por fim, utiliza-se dos dados empíricos produzidos, para propor o uso das inversões realizadas pela teoria de Athens na análise do funcionamento interno dos “embolamentos”, ou coletivos criminais, dos quais fazem parte os sujeitos que participaram da pesquisa.

Nesse sentido, os resultados do presente trabalho foram produzidos no encontro entre a perspectiva teórica do interacionismo radical e o conhecimento construído nos debates entre a pesquisadora e dez adolescentes internados em uma Unidade de Atendimento, parte da Fundação de Atendimento Socioeducativo do Rio Grande do Sul (FASE-RS). A abordagem metodológica utilizada foi aquela do grupo focal e os questionamentos realizados na mediação do grupo visavam a estabelecer possíveis comparações e diferenciações entre o chamado “polo de trabalho legal”, constituído pelas experiências de trabalho lícito, e o “polo de trabalho ilegal”, representado pelo tráfico de drogas, de modo a tornar acessível a abordagem da temática do tráfico de drogas e da constituição dos grupos criminais vinculados a tal mercado.

1 O interacionismo simbólico clássico

Não foi por acaso que se iniciou o presente trabalho identificando os “pais” do interacionismo simbólico. Entende-se que a importância de Mead e Blumer para a afirmação da teoria é tamanha que parece necessário retomar algumas construções dos autores, identificando assim os contornos gerais de tal corrente teórica. Mead, psicólogo que desenvolveu sua vida acadêmica no campo da filosofia em intersecção com a sociologia e a psicologia social, entendia que a sociedade era essencial na construção do self, pois os pensamentos têm significado sempre na relação com o “outro generalizado”. A psicologia social, por sua vez, deveria possuir ares “realistas”, na medida em que, para Mead, as experiências do interior do ser humano deveriam ser buscadas a partir dos significados conferidos aos atos (CORREA, 2017, p. 178).

Para o autor, o foco de análise deveria se dar no modo como o indivíduo provoca as reações com seu parceiro de interação. A resposta sobre os significados estaria, portanto, na relação entre as fases internas e externas, ou seja, a mente como produto da relação entre organismo e situação (CARVALHO; BORGES; RÊGO, 2010, p. 149). Acrescenta-se que George Mead identificou o ato social como sendo o comportamento passível de observação da relação de ambas as fases, a qual seria mediada pelos chamados símbolos. Esses símbolos seriam “significantes” quando, por trás deles, houvesse um significado posto na interação, produzindo uma reação adequada do indivíduo receptor de tal símbolo. Nesse sentido é compreensível por que, para Mead assim como para boa parte dos interacionistas, a linguagem é uma importante unidade de análise do significado (CARVALHO; BORGES; RÊGO, 2010, p. 150).

Mead identificou também uma vinculação entre a gênese do eu e a descoberta da sociedade. A criança descobre quem é ao aprender o que é a sociedade, o que ocorre essencialmente na interação com outros seres humanos. Esses outros são diferenciados por Mead entre “outro significativo”, composto por quem é mais próximo da criança, e “outro generalizado”, representado por um maior nível de abstração da resposta social (BERGUER, 2001, p. 113). Nesse sentido, a identidade não seria pré-existente, mas atribuída ao ser a partir de atos de reconhecimento social.

Sustentando-se nas concepções de Mead, Blumer consolidou os pressupostos interacionistas, sobretudo na publicação “Symbolic Interactionism: Perspective and Method”, na qual afirmou a importância do significado como elemento de compreensão do comportamento humano. Tal comportamento seria um produto social, ou seja, construído a partir das atividades dos indivíduos, sobretudo das suas interações (CARVALHO; BORGES; RÊGO, 2010, p. 153). Os três grandes pressupostos do interacionismo simbólico seriam, então: a) orientação dos atos do ser humano em função do que as coisas significam para ele; b) significado dessas coisas como uma consequência da interação social de cada um com seu próximo; c) significados são modificados através da interpretação das pessoas quando essas se defrontam com as coisas (BLUMER, 1986, p. 2).

O autor se destaca por salientar a importância da observação da experiência humana concreta, atentando-se para as situações sociais nas quais agem os seres humanos. Assim, seus métodos de observação acabam privilegiando os estudos naturalistas e as histórias de vida, opondo-se, por um lado, aos métodos quantitativos e, por outro, criticando os conceitos abstratos como cultura e estrutura, por exemplo (CORREA, 2017, pp. 182-183). Se Blumer parte do conceito de self de Mead para afirmar que é possível identificar o significado do símbolo através da interpretação do indivíduo, o autor discorda da visão mais realista do precursor do interacionismo, na medida em que esse entende o símbolo significante como algo constituído em momento anterior à interação (CORREA, 2017, p. 184). A interpretação realizada pelo ser é mais relevante na concepção de Blumer e a vida social é, portanto, entendida como um processo dinâmico de criação e recriação de significados, os quais não estão simplesmente dados pela realidade.

O interacionismo simbólico produzido até esse momento defendia a ação como aquilo que se origina de um impulso interno e como sendo a unidade básica da produção da estrutura social. Como se percebe, tal concepção leva necessariamente a uma pesquisa social pautada sobretudo pelo ponto de vista do ator. Assim, em relação à dicotomia referida entre as fases interna e externa da ação, certamente a segunda acaba sendo deixada um pouco de lado, enquanto a experiência interior é valorizada, a qual poderia ser acessada na medida em que se compreende a experiência das pessoas (CORREA, 2017, p. 186).

Nesse sentido, está dado o caráter empírico de tal perspectiva, o que se confirma quando Blumer coloca o interacionismo simbólico não como uma doutrina filosófica, mas como uma perspectiva parte de uma ciência social empírica (1986, p. 21). A realidade, para o autor, só se verifica no mundo empírico, ou seja, na experiência diária, nas camadas superiores daquilo que os seres humanos veem em suas vidas e reconhecem nas vidas dos outros (1986, p. 35). Não parece difícil perceber, portanto, que está se falando de uma perspectiva que coloca, talvez pela primeira vez na história do pensamento social, o indivíduo como intérprete da sua própria experiência (CARVALHO; BORGES; RÊGO, 2010, p. 154).

Com o desenvolvimento da teoria social, outros autores se utilizam das premissas interacionistas em suas próprias investigações, desenvolvendo tanto material empírico quanto novos contornos teóricos e adaptando os preceitos basilares da teoria a áreas específicas da sociologia. Goffmann, por exemplo, faz parte do conjunto de sociólogos que utilizaram o interacionismo para compreender como os atores enfrentam as situações não-favoráveis, criando assim uma chamada microssociologia que estaria mais preocupada com a identidade social e com a imagem que o sujeito faz de si mesmo do que necessariamente com a cooperação entre os indivíduos (CORREA, 2017, p. 198).

O aluno de Mead, ao utilizar métodos mais próximos da antropologia cultural, destaca-se por avançar em uma teoria que já não se pauta apenas pelas práticas verbais, como também valoriza aquelas não-verbais, deslocando o estudo para a “cena”, na medida em que situa os atores sociais no espaço onde se desenrolam as ações dos indivíduos. Goffman, conhecido principalmente pelas suas três grandes obras: “Manicômios, prisões e conventos” (1974)”, “A representação do eu na vida cotidiana” (1975), e “Estigma” (1975), voltou sua pesquisa, principalmente em seu primeiro livro, ao estudo específico de uma temática muito cara à sociologia da violência: as prisões. Classificada pelo autor como uma “instituição total”, isto é, local em que todos os indivíduos são atendidos de forma semelhante, separados da sociedade por um período de tempo considerável e com suas vidas controladas por uma administração formal (KUNZE, 2009, p. 278), a prisão é posta em evidência como local de observação da interação social.

Talvez um dos principais cientistas sociais brasileiros a importar a teoria interecionista nas perspectivas de Goffmann e Becker, Gilberto Velho narra como o crescente interesse na análise da vida cotidiana, a partir dos anos de 1960 nos Estados Unidos e na década seguinte no Brasil, contribuiu para um maior interesse pelos estudos classificados como “micro” (VELHO, 2002, p. 8). É da autoria do antropólogo brasileiro a introdução ao livro Desvio e divergência: uma crítica da patologia social (1985 [1974]), na qual estão contidos diversos trabalhos centrados nas obras dos dois autores interacionistas. A produção inclusive serviu de ponte entre Velho e Becker, possibilitando a vinda do sociólogo da Escola de Chicago ao Brasil em 1976 como professor visitante do Museu Nacional (UFRJ). À época, além dos trabalhos sobre desvios – evidentemente valorizados pela ciência social brasileira em razão do fenômeno da violência urbana que as grandes metrópoles começavam a presenciar nesse período –, também seus textos sobre arte, ocupações e trabalho de campo despertaram a atenção do campo (VELHO, 2002,p. 10).

Outro ponto que também foi relevante para os interacionistas simbólicos diz respeito à temática da seleção de papeis. Na relação com o crime, Matsueda e Heimer afirmam as vantagens de tal perspectiva teórica na explicação por que algumas transições no curso da vida podem afetar a probabilidade de desenvolvimento de comportamentos ilegais (1997, p. 163). Os autores acreditam que uma perspectiva interacionista simbólica pode melhorar a teoria que estuda o crime através do curso da vida, sobretudo em três aspectos. No primeiro deles, seria em relação a um abrandamento das concepções das teorias do controle, enfatizando a construção de uma teoria dos significados dos papeis sociais, a partir da relação do curso da vida com as subculturas desviantes. Em segundo, seria através da demonstração de como as dinâmicas das situações imediatas estão conectadas com os papeis sociais, significados e comportamentos. Em terceiro, seria propondo um relacionamento entre a interação e o curso da vida.

Ao que se vê, portanto, a noção de papeis sociais foi uma importante chave de compreensão na perspectiva interacionista, embora tal noção tenha sido criticada, por exemplo, pela etnometodologia, na medida em que a ideia de papel seria impositiva e não derivada de interações possíveis de serem observadas (CORREA, 2017, p. 190). Não só a noção de papel social foi alvo de críticas por aqueles que passaram a questionar o interacionismo simbólico.

2 Interacionismo revisitado: a perspectiva radical de Athens

Principalmente a partir da década de 60 e 70 nos Estados Unidos, o interacionismo simbólico foi bastante criticado pelos sociólogos que começavam a se deparar com questões como o crescimento da pobreza, o acirramento das disputas raciais, os debates referentes à descolonização das antigas colônias europeias e os movimentos igualitários em geral, as quais pareciam demandar perspectivas que valorizassem em maior medida a importância dos condicionantes estruturais (CORREA, 2017, p. 190). O problema da dominação estava novamente em pauta, mas era justamente a principal lacuna do interacionismo simbólico. Blumer, por exemplo, entendia que conceitos amplos como classe social ou divisões de poder pouco auxiliavam na tarefa sociológica, razão pela qual tais temáticas foram, de certa forma, desvalorizadas em sua teoria (CORREA, 2017,p. 191).

Outra possibilidade de operacionalização da corrente mais ampla interacionista seria a partir da perspectiva do interacionismo radical, cujos principais expoentes são Athens (2013) e Park (1952). Para Athens, o interacionismo radical congrega em uma única expressão a radicalidade do marxismo europeu com a versão americana do “pragmatismo”. Partindo do ponto em comum de ambas as teorias – a opção por fazer sociologia a partir das interações humanas – e das opções metodológicas de seus autores expoentes – Park e Mead valorizavam a observação naturalística –, a principal diferença para Athens está na ênfase dada às questões do poder e da dominação nos grupos humanos (2013, p. 6). Nesse sentido, Athens faz a ressalva de que Blumer, em comparação com Mead, concedia uma maior importância à temática da dominação e do poder, mas somente nos casos em que os conflitos realmente estouravam ou quando as interações se davam entre grupos cujas relações passadas entre si foram repletas de conflitos, como no caso das relações raciais (2013, p. 9).

De qualquer forma, as concepções de Mead e de Blumer entendiam que o exercício do poder se dá apenas por aqueles atores sociais que precisam competir pelo controle de um determinado ato social, diferente dos atos ditos “rotinizados” ou de cooperação, casos em que o poder e dominação, segundo essa concepção, não ocorrem. De forma oposta, a teoria de Park, na visão de Athens, localiza o poder na integralidade dos atos sociais: também na cooperação social, o participante está sob dominação, mas nesse caso ele aceita a ordem, enquanto no conflito ele a rejeita ou a desafia (ATHENS, 2013, p. 9).

Nessa esteira, Athens entende que o sociólogo que ignora o poder e a dominação é considerado ingênuo metodologicamente, na medida em que tratar dessas operações de poder não seria apenas uma opção a cargo do investigador, conforme vinha pregando até então os adeptos do interacionismo simbólico (ATHENS, 2013, p. 10). Para o autor, portanto, estudos empíricos representativos da teoria interacionista, como aquele de Howard Becker sobre os usuários de maconha (1963), ao não levarem em conta as relações de subordinação entre os participantes das interações sociais, acabaram deixando de lado um importante aspecto da relação entre principiantes e veteranos no uso da droga: a chave para a compreensão do processo de aprendizado que levara um certo agente a se tornar um usuário de maconha por prazer seria a conformidade genuína entre os subordinados e os ordenadores das instruções (ATHENS, 2013, p. 13).

Ademais, Athens entra em desacordo com os filiados do que ele chama de fenomenologia linguística (como o próprio Blumer), na medida em que não seria necessário que o agente admitisse verbalmente estar em uma situação de dominação do grupo. Nesse sentido, o interacionismo radical concede uma maior proeminência às dinâmicas de dominação e poder na observação das interações, sobretudo quando se tratam de “operações veladas” (ATHENS, 2013, p. 16).

Em sua teoria, Athens também pretende a revisão daquele que, conforme se viu, é o principal conceito disparador da obra de George Mead: a noção de ato social. O autor, então, retoma a subdivisão do conceito (atos sociais cooperativos e conflitivos) e a importante definição de “símbolos significantes”, isto é, a comunicação verbal e gestual consciente que surge a partir da transformação de simples “gestos” em sinais compreendidos pelos atores da interação. Assim, para Mead, é o uso de símbolos significantes que tornaria possível para os seres ajustarem conscientemente a seleção e a performance de seus papeis em relação aos outros participantes, o que seria necessário não apenas para a reflexividade, mas sobretudo para o alcance da sociabilidade (ATHENS, 2013, p. 32).

Na visão de Athens, contudo, o grande equívoco do dito pai do interacionismo seria a centralidade conferida à noção de sociabilidade, quando tal ênfase deveria ser posta na ideia de dominação, definida como situação em que o ser oscila conscientemente na construção de um ato social em acordo com suas próprias referências (ATHENS, 2013, p. 36). Para o autor, a emergência da divisão social do trabalho faz com que os papeis superiores se diferenciem dos subordinados, criando uma necessidade de dominação na construção do ato social. Assim, a real causa dos conflitos seria muito mais a ausência de um acordo sobre a ordem de dominação do que a falta de sociabilidade, conforme entendia Mead (ATHENS, 2013, p. 38).

Em suma, o autor desenvolve sua argumentação no sentido de afirmar as quatro principais mudanças necessárias à adequação da noção de ato social. A primeira delas seria uma necessária adição da ideia de status social ao conceito, sobretudo a partir das contribuições de Park sobre o tema. O sociólogo teria chamado atenção para o fato de que a busca por manter, defender e melhorar o status social do indivíduo é um dos mais urgentes e persistentes motivos que lhe faz impor seus propósitos sobre os demais (ATHENS, 2013, p. 45). Sobre a distinção entre os papeis de subordinado e subordinante, Athens também acrescenta que seria importante compreender que aquele que exerce o papel superior também precisa demonstrar atitudes nesse sentido, enquanto os demais precisam exibir atitudes submissas. Só assim, é possível que cada um antecipe a ação do parceiro da interação.

Já em relação ao conceito de símbolos significantes, o interacionismo radical compreende que a interpretação do significado prescinde de uma ratificação por parte do receptor do símbolo e não apenas do uso de regras semânticas previamente estabelecidas. Por fim, Athens sugere que, a partir da distinção entre os objetos sociais congruentes e incongruentes e entre planos compatíveis e incompatíveis, seria possível realizar uma distinção entre atos coletivos cooperativos e conflitantes, e não apenas cooperativos, como Mead afirmava (2013, p. 46). Realizadas tais alterações, poderia se falar em ato coletivo fundamentado no princípio da dominação ao invés no da sociabilidade, o qual seria a base fundante do interacionismo radical.

3 Os coletivos criminais: é possível uma nova abordagem?

A consolidação do tráfico de drogas no Brasil a partir da década de 90 se deu de tal forma que a compreensão das principais questões sociais relacionadas à violência urbana no país passa por melhor destrinchar os atores e processos sociais que constituem esse todo maior do mercado ilícito de drogas. Há quem acredite, inclusive, que o período marca uma mudança do conflito social próprio da “era neoliberal”, normalmente pautado pelo desmanche de garantias ao trabalhador e pelo consequente crescimento dos mercados informais em todo o mundo, para um conflito situado na centralidade e expansão das temáticas da “violência urbana”, das “drogas” e da “marginalidade” (FELTRAN, 2014, p. 499).

A expansão sem precedentes na história brasileira da sociabilidade do “mundo do crime” (FELTRAN, 2008a, p. 45) impulsionou a produção de investigações sociológicas centradas na compreensão do funcionamento dos mercados informais, ilegais e ilícitos[1]. Certos estudos optaram por explorar uma teoria etnográfica do crime, sobretudo em relação às localidades do Rio de Janeiro e São Paulo, ainda no final da década de 90 (AQUINO; HIRATA; 2018, p. 113). Como exemplo, existem os estudos pioneiros de Misse (1999) e Zaluar (1994), além dos trabalhos mais recentes de Grillo (2013), Biondi (2014) e Hirata (2010). Saindo do eixo Rio-São Paulo, destacam-se ainda as pesquisas sobre o tráfico de drogas de Belo Horizonte (ZILLI, 2015) e Recife (DAUDELIN; RATTON, 2017).

Em relação à realidade carioca, o trabalho de Misse visa abordar o tráfico de drogas como sendo um “mercado informal criminal” e, a partir deste ponto de partida, explicitar as principais dimensões da acumulação social da violência no Rio de Janeiro (1999, p. 288). A novidade da pesquisa está na hipótese de que a violência da cidade se explica pela interlocução de dois fatores: redes de venda à varejo de mercadorias ilícitas, em que a cocaína se tornou a principal mercadoria a partir da década de 80, sobrepostas à grande oferta de “mercadorias políticas”[2]. Seria nesta sobreposição de mercados, portanto, que residiria a compreensão do problema da violência do Rio de Janeiro (MISSE, 1999, p. 289).

O autor utiliza a palavra movimento para identificar o mercado local de drogas nas favelas, constituído por um grupo social presente em um determinado território (MISSE, 1999, p. 308). Misse retoma que, com a consolidação da venda de cocaína em grande escala, teria surgido o Comando Vermelho no final da década de 80. Após esse primeiro momento, seguiram-se uma fragmentação do controle e uma segmentação dos territórios entre diversos grupos do movimento (MISSE, 1999, p. 315). A experiência etnográfica da pesquisa realizada pelo sociólogo o leva a afirmar a existência de redes “cooperativas” e não “organizações de tipo mafioso”, na medida em que não haveria uma verticalidade organizada acima do “dono” e interligada a ele, mas redes interligadas a partir de donos e gerentes, horizontalmente, e cuja relação com os produtores seria intermediada por atacadistas de porte médio e pequeno (alguns sendo ex-policiais).

De forma muito próxima, mas sobre a realidade do PCC, a pesquisa de Biondi mostra a existência de diversos movimentos no interior do grupo, ou seja, uma diversidade de organizações que afasta a ideia de unidade monolítica (2014, p. 294). Para a autora, parece não haver “caminhos definidos rumo a uma missão ou objetivo comum por meio dos quais as coisas concorram, todas juntas” (BIONDI, 2014, p. 295). Assim, na medida em que não há uma unidade estruturada e organizada, as ditas “ondas de violência” seriam o resultado dos jogos de força de quem constitui o movimento e dos esforços dos seus agentes em imprimir rumos que lhe sejam mais favoráveis.

Ao realizar a comparação entre as realidades de Rio de Janeiro e São Paulo, Hirata e Grillo afastam a noção de organizações “mafiosas”, caracterizada por possuir uma estrutura piramidal e centralizadora, optando por utilizar a expressão “coletivos criminais” (2017, p. 79). Nesse sentido, retomam as formas de constituição dos movimentos das cidades para concluir que ambos os comandos se constituem como redes horizontais de proteção mútua, em que pese as rupturas internas e as alianças com outros grupos sejam menos recorrentes, mas com maior impacto na dinâmica, no caso do Rio de Janeiro; e mais recorrentes e com menor impacto, no caso de São Paulo (HIRATA; GRILLO, 2017, p. 84).

Ainda é preciso dedicar uma atenção especial aos estudos que foram realizados em regiões mais localizadas no país, fora, portanto, do eixo Rio-São Paulo. Os estudos sobre os coletivos criminais regionais são importantes porque possibilitam verificar em que medida existem padrões e distinções na forma como a violência letal do tráfico de drogas é operada pelos coletivos em cada localidade. Zilli (2015), por exemplo, trabalha com a simbologia dos homicídios ocorridos em conflitos de gangues na região do entorno de Belo Horizonte. Na sua concepção, a violência está mais vinculada ao “mundo do crime”, cuja normativa interna associa a sobrevivência do jovem à execução da violência, do que à lógica utilitária do negócio da droga (ZILLI, 2015, p. 482).

Ao pensar as formas com que o tráfico de drogas e a violência letal se relacionam, Daudelin e Ratton ressalvam que o nível de propagação da violência sistêmica própria de um mercado ilegal despossuído de controle externo depende dos mecanismos particulares de cada mercado (2017, p. 118). Assim, os autores concluem que a brutalidade do mercado do crack no Recife, devido, por exemplo, ao consumo compulsivo e ao uso excessivo de crédito consignado, contrasta de forma substancial com a quase ausência de violência nos mercados da classe média (p. 127).

Ainda que estudos mais localizados sobre o tráfico de drogas tenham feito emergir as interações interpessoais entre os sujeitos, além das regras e negociações realizadas entre os grupos em disputa no mercado – de modo que os princípios interacionistas já estivessem, em alguma medida, em ação (VELHO, 2002, p. 13) –, a teoria interacionista, dita de tal forma, foi pouco operacionalizada nas abordagens sobre as dinâmicas do tráfico de drogas no Brasil. Gilberto Velho foi, em alguma medida, uma exceção a essa regra (1974; 2002).

Em que pese o antropólogo não tenha se voltado especificamente ao “desvio” do traficante, inclusive porque sua produção é anterior à consolidação do mercado ilícito de drogas da forma como ele opera atualmente no Brasil, Velho realiza uma análise a respeito do “desviante” como indivíduo que faz uma “leitura” divergente da cultura em que está inserido (1974, p. 27). Na sua visão, é no nível microssocial, nos atos dos “marginais” e “inadaptados”, que se estabelece o encontro entre as tradições psicológicas e socioculturais. As bases interacionistas de suas conclusões se evidenciam, portanto, quando retoma Becker para afastar qualquer visão monolítica e acabada da estrutura social em nome de uma perspectiva que se volte aos aspectos socioculturais das situações mais “microscópicas” (1974, p. 25).

Coelho, outro importante autor da Sociologia da Violência e um dos fundadores desse campo, na visão de alguns (MARQUES, 2018), também articulou o interacionismo simbólico para levantar uma questão que passou a ser essencial aos estudos sobre violência e criminalidade a partir de então: de que adianta questionar por que criminosos fazem o que fazem sem discutir as razões que levam à criminalização de um comportamento quando esse é realizado por um certo grupo de pessoas? A proposta de Coelho, portanto, é de que o foco do campo de estudos sobre a violência seja deslocado para os processos de reação social e legal às ações executadas por certos indivíduos, deixando de lado as tentativas de explicação das causas desses atos – ou a tese da associação entre criminalidade e pobreza (1978, p. 157).

O argumento de Coelho de que os estudos sobre a criminalidade deveriam partir do pressuposto epistemológico de que “leis são criadas ou elaboradas de tal forma que a probabilidade teórica de serem violadas por certos tipos sociais coincidam com as probabilidades imputadas a certos roteiros típicos” (Ibidem,p. 158) ganhou força com a promulgação da Lei 11.343/2006. Apesar da despenalização do usuário de droga, as brechas deixadas pela legislação e a forma como a política criminal foi efetivada após a sua promulgação produziram um cenário de encarceramento em massa de pequenos traficantes caracterizados, em sua grande maioria, como homens jovens negros (AZEVEDO; CIFALI, 2017).

Nesse contexto, passou a ser muito difícil investigar sociologicamente a temática do tráfico de drogas sem relembrar o importante papel dos processos de incriminação na constituição de quem é socialmente percebido como traficante – tanto para as representações sociais a respeito da violência urbana, quanto para o próprio sujeito “assujeitado criminalmente” (MISSE, 2010). Assim, embora esses processos não sejam o foco do presente estudo, é importante frisar a sua relevância para a caracterização do espaço em que se realizou o campo da pesquisa: instituição onde se encontram segregados adolescentes criminalizados em razão da atuação de um sistema penal juvenil necessariamente seletivo.

Ainda, não se pode esquecer que grande parte dos trabalhos que evidenciaram a atuação do sistema repressivo na conformação do fenômeno do tráfico de drogas o fez a partir das produções de Becker, autor também vinculado ao interacionismo. Em Outsiders, sua obra mais proeminente (2008[1963]), o sociólogo recupera a teoria da rotulação para lhe designar de outra forma: teoria interacionista do desvio (2008, p. 182). Para essa concepção, seria essencial enfatizar a independência entre os atos e os juízos que se fazem deles, de modo que, em ambos os casos, são as atividades reais e as contingências da ação que devem ser observadas e não “a invocação de nenhuma força misteriosa” que busque explicar as questões do desvio (BECKER, 2008, p. 206).

A partir de outra perspectiva e mais recentemente, o interacionismo simbólico também foi uma importante base teórica para a pesquisa de Oliveira, que, na tentativa de estabelecer aspectos dos processos de sociabilidade que podem influenciar a adesão de jovens às redes do tráfico, se volta à análise das redes de interações desses sujeitos por meio da compreensão da construção de suas identidades (OLIVEIRA, 2008, p. 278). A partir desse aporte teórico, o autor afirma que a construção das identidades dos jovens se dá através de uma imagem positiva das “facções”, cujas referências simbólicas de poder destoam das imagens estigmatizadas de pobreza do local onde vivem (2008, p. 279).

Oliveira (2008) utiliza-se das concepções clássicas do interacionismo simbólico para afirmar que “o agente social luta sempre para manter seu prestígio e honra frente aos demais” e que, nessa disputa, estão presentes “emoções lúdicas” que influenciam as formas de enfrentar os riscos e desafios (p. 282). Nesse sentido, se o trabalho de Oliveira (2008) parece atender ao objetivo do interacionismo simbólico quando entende que a resposta para a compreensão da adesão ao tráfico de drogas estaria nas redes de interações dos jovens que constituem o movimento, o autor insiste em centralizar as investigações na noção de sociabilidade, preterindo a noção de dominação.

Na ótica do interacionismo radical, conforme se viu, se essa última noção fosse mais valorizada, talvez fosse mais fácil compreender como o ser oscila conscientemente na construção de um ato, isto é, como não se trata de uma decisão absolutamente tomada em um sentido. O que se propõe a seguir é justamente a utilização das interações entre os adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa de internação como fonte de análise de três questões que parecem relevantes à compreensão dos coletivos criminais sob o olhar interacionista proposto por Athens, quais sejam: a) distinções internas nos grupos de sujeitos analisados, como, por exemplo, diferenças geracionais; b) processos de disputas e dominação decorrentes dessas diferenças; e c) busca pelo status social individual no interior do grupo (ou de um grupo em relação aos demais) como fator importante na compreensão da imposição do ser (indivíduo ou grupo) sob os demais.

4 A experiência empírica

Conforme exposto no início do presente artigo, os dados empíricos em que se baseiam as análises a seguir foram produzidos em setembro de 2017, em razão de uma pesquisa que buscava compreender as dinâmicas de trabalho lícito e ilícito de adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa de internação. À época, a investigação pretendia avaliar as semelhanças e as diferenças das experiências vividas pelos jovens no âmbito do trabalho lícito e da profissionalização em comparação com as vivências do tráfico de drogas. Nas discussões mais voltadas ao funcionamento do tráfico de drogas, emergiram muitas questões referentes aos modos de funcionamento interno dos coletivos criminais de que os jovens faziam parte (ou os “embolamentos”, como eles denominam). Assim, entendeu-se propício utilizar tais dados como fonte de análise da discussão que se pretende no presente artigo, mesmo que eles tenham sido produzidos visando outro tipo de objeto de pesquisa.

Os dados empíricos foram produzidos no interior do Centro de Atendimento Socioeducativo Regional de Porto Alegre I (CASE POA I), que vem a ser uma das Unidades de Atendimento que compõem a Fundação de Atendimento Socioeducativo do Rio Grande do Sul (FASE-RS). Os adolescentes que compuseram a pesquisa também faziam parte de curso profissionalizante de “Edição de Imagem e Vídeo”, executado pelo Projeto Pescar[3] no interior da Unidade de Atendimento. Com tais adolescentes, realizaram-se dois grupos focais com as temáticas “trabalho” e “tráfico de drogas”, cada um tendo sido composto por dois grupos de 05 jovens e com duração em média de uma hora por grupo.

Os grupos focais foram gravados com o auxílio de gravador de voz e após integralmente transcritos para o computador. Para a presente pesquisa, apenas os grupos que giraram em torno do tema do tráfico de drogas foram analisados, uma vez que foram neles em que se produziram as discussões mais relevantes sobre os coletivos criminais, tema do presente artigo. Os diálogos transpostos no presente artigo respeitam os vocábulos utilizados pelos adolescentes, mantendo eventuais erros gramaticais. Os nomes dos adolescentes foram retirados dos diálogos e as indicações são feitas por letras escolhidas aleatoriamente para cada adolescente, sendo que a letra P diz respeito às falas da pesquisadora. A análise realizada gira em torno do que se conhece como análise de conteúdo, na medida em que se buscou sistematizar e descrever o conteúdo das interações produzidas pelos adolescentes nos grupos focais (BARDIN, 2010).

Para melhor proceder na análise do material, utilizou-se o programa informacional CAQDAS (Computer Aided Qualitative Data Analisys Software) NVivo 12. Tal programa permite a codificação das transcrições dos grupos a partir de categorias (ou “nós”, como denominado pelo programa). Este processo “implica a criação de códigos, ou categorias, nas quais são armazenados índices de referência (indexadores) às porções do material empírico utilizado na análise” (TEIXEIRA, 2009, pp. 28-29). No caso da presente pesquisa, os nós foram definidos a posteriori, isto é, após a definição do tema do presente artigo e da leitura do material empírico. Foram três as categorias escolhidas: a) relação com mais velhos; b) situação de dominação dentro dos grupos; c) status social. Nesta última categoria, procedeu-se a uma segunda subdivisão entre status social c.1) do grupo; e c.2) individual.

4.1 Diferença geracional entre os integrantes dos coletivos: aconselhamento e aprendizado

Um importante ponto de debate que surgiu entre os informantes da pesquisa diz respeito ao ingresso na atividade de venda de drogas ilícitas e o papel que os “mais velhos” possuem nessa empreitada. Se, por um lado, . consenso que existe um processo de ascensão no interior dos coletivos, em que é preciso aprender pouco a pouco as ações necessárias no exercício da atividade, por outro, essa aproximação é facilitada quando existe uma relação prévia com os indivíduos mais velhos, o que pode se dar apenas pela “contiguidade espacial” experimentada pelos moradores em relação aos grupos armados do tráfico de drogas (SILVA, 2008, p. 13).

C: Na vila ali eu cheguei sereno porque eu sou cria dali, o patrão ali...

P: Já te conhecia?

C: Claro, pegou no colo bem dizer.

A adesão dos adolescentes aos grupos está, portanto, intimamente vinculada às relações estabelecidas entre aqueles identificados como “patrões” e os demais moradores do território, dentre os quais as crianças e adolescentes, sobretudo aqueles do sexo masculino. Na visão do interacionismo radical de Athens, mesmo veladas, as relações de dominação existentes no interior de grupos sociais precisam ser destacadas na análise sociológica. Em sintonia com essa compreensão, um dos primeiros e principais sociólogos da violência no país, Luiz Antônio Machado da Silva, compreende que o problema da violência urbana brasileira (ou da “sociabilidade violenta”, como denomina o autor) seria um “problema de vida cotidiana”, cujo cerne principal se constitui na força exercida e, por consequência, na dominação de uns sob outros (ARAÚJO, 2019, p. 11).

Nesse sentido, ao descreverem como ocorrem os processos de aprendizagem dos adolescentes em relação às atividades do tráfico de drogas, muitos deles fizeram referência ao papel primordial de um outro sujeito, mais experiente e normalmente mais velho, tanto no desenvolvimento dessas ações, quanto na ascensão do adolescente na hierarquia interna dos coletivos. Interessante observar como as relações de poder são identificadas pelos adolescentes também nas “interações cooperativas” e não apenas nas “interações sociais conflitivas”, conforme Park havia chamado a atenção nas primeiras versões do interacionismo radical (ATHENS, 2013, p. 9). Para o autor, nos processos de interação cooperativas, mesmo havendo uma aceitação por parte dos sujeitos das regras impostas, não há que se falar em ausência de dominação, o que parece ser justamente o caso das relações internas dos coletivos criminais, quando, por exemplo, o participante da pesquisa relata um diálogo em que o sujeito mais experiente se torna um guia, indicando o que é preciso fazer para “se dar bem” ou “se dar mal”.

Y: Eles vão falando pro cara “tem que ser assim, tem que fazer isso”

M: “Vai desse jeito que tu..”

Y: “Vai te dá bem”.

M: Fica do meu lado,

Y: Ou faz assim porque se tu for pelo outro lado tu vai te dar mal..

Outro ponto de interesse a essa discussão diz respeito às demandas dos mais novos em conquistar a confiança dos detentores do poder no grupo, o que se materializa pela ideia de que é preciso que alguém “aposte” no jovem e, em razão disso, lhe conceda os instrumentos materiais necessários para que ele alcance o crescimento desejado. Na narrativa do adolescente em que ele expõe a existência tanto daqueles que “apostam” nele quanto dos que “desacreditam”, demonstra-se que o processo de aconselhamento por parte de um sujeito mais integrado ao coletivo criminal não se trata de um fenômeno evidente, mas construído através da interação social específica daquela realidade e na qual “ser cria dali” não é suficiente, mas pode ser bastante importante para angariar posições de poder internas.

F: Sempre vai ter alguém no crime que vai apostar em ti né

C: É verdade… sempre tem um

F: Ele vai (inaudível), “ah meu guri, meu gurizão” P: Aí tu aprendeu com ele?

F: Claro, ele vai te ensinar…

C: Passa a faixa... Que nem na vila ali, o cara aposta em mim, vários ali desacreditam, mas vários acreditam... Aos poucos os cara foram vendo. Na primeira vez que eu me embolei já fiquei ali na volta dos guri, daí já comecei a andar com o patrão direto porque ele já me conhecia desde piá né… Quando vê os guris tinham tomado umas boca lá… Quando vê o patrão já me levou pra dar umas banda. “Não vamos, lá”… Quando vê já me largou um oitão, furioso, preto.

4.2 Do conselho à cobrança: processos de dominação no interior dos coletivos

Mesmo que de forma sutil, as interações produzidas nos grupos focais realizados parecem evidenciar uma distinção entre as relações de aconselhamento e aprendizado com os integrantes mais velhos ou mais experientes na atividade do tráfico de drogas e as situações em que são narrados episódios de dominação mais evidentes entre esses sujeitos. Conforme já exposto, Park acreditava que a dominação estaria presente em ambos os casos, isto é, tanto nas interações cooperativas como nas conflitivas. O interacionismo radical se diferencia do seu antecessor justamente por evidenciar os processos de dominação no primeiro caso, sejam tais ações narradas verbalmente pelo sujeito ou não (ATHENS, 2013, p. 16).

No caso da pesquisa empírica em análise, em diversos momentos, os jovens buscaram enfatizar a importância da sua autodeterminação no momento da adesão ao tráfico de drogas, afirmando que a decisão de participar do coletivo advém de um desejo pessoal, seja qual for a motivação para esse desejo. Entretanto, mesmo que os jovens compreendam que sua participação no “embolamento” tenha ocorrido a partir de uma escolha pessoal, talvez seja interessante atentar para os processos velados de dominação entre os próprios jovens constituintes dos coletivos criminais. O próprio Athens identificou esse problema na pesquisa de Becker sobre o processo de aprendizado que levara um certo agente a se tornar um usuário de maconha (ATHENS, 2013, p. 13).

Nos diálogos que seguem, identificaram-se alguns casos em que as relações de dominação no interior do “embolamento” são expostas pelos adolescentes sem que eles próprios as compreendam dessa forma, ao menos não de forma completamente explícita. Nesse sentido, a narrativa sobre o sujeito que inicia a atividade e sobre os rituais pelos quais precisa passar até que mostre que “tá pela boca” é explicitada sem muito espanto. Alguns exemplos das “provações” que os novos integrantes precisam passar vão de se incriminar pela posse de arma, mesmo quando essa não lhe pertencia, passando por se manter na atividade pouco prestigiosa de “campana” e terminando por estar desarmado em situação de perigo e, apesar disso, se manter “firme” com os demais.

Em certo momento, um participante da pesquisa afirma que uma das qualidades para que um indivíduo se mantenha nas atividades do tráfico é “saber apanhar e ficar quieto”, o que parece constituir um exemplo bastante evidente de dominação velada, assim como a constatação de que é possível que circunstâncias obriguem o patrão a deixar de pagar os demais participantes da atividade. Em casos como esse, deixar o grupo seria considerado traição e comprovaria que o sujeito era um “interesseiro”, pois estaria vinculado ao grupo “só por causa do dinheiro”. Para os adolescentes, situações como essa podem inclusive ser produzidas pelo próprio patrão como forma de testar a lealdade de seus subalternos.

Por fim, mais duas narrativas chamam atenção: uma em que o participante indica que indivíduos recém-integrados ao grupo precisam ter paciência, evitando chegar “muito acelerado”. Nessas situações, os superiores “cortam teu embalo”, isto é, agem de modo a suspender maiores expectativas de protagonismo no interior do grupo. No segundo diálogo, o que se explicita é a ação esperada de um bom trabalhador do tráfico de drogas, ou seja, a obediência aos mandos do “homem”, estando os transgressores sujeitos às consequências de seus atos.

S: Tem que botar respeito na vila, quando tu tá ali no teu horário tem que cuidar da vila

Y: O que o homem falar tem um braço direito dele, o que ele fala pro outro ali, o que ele disse tá dito. Se tu não fizer tu sabe né…

Se as relações de dominação veladas existem, como acima relatado, é também verdade que, em certos momentos dos grupos focais, os adolescentes expuseram as relações de poder no interior dos coletivos de maneira incontestável, como, por exemplo, quando narraram as punições sofridas nos casos de erros cometidos. Sobre essas sanções existentes nos próprios “embolamentos” de que fazem parte, eles oscilaram entre afirmar a existência de um código interno que determina as consequências pelos descuidos e declarar que, no final das contas, tudo depende do “humor do patrão” no dia.

Y: Ah tem uns que já tomam tiro, tem uns que tomam paulada, pedrão na cabeça P: Depende de quê?

Y: Depende de..

S: Tem uns que só tomam um xingão e vão pra casa.

M: Depende do que tu fez.

T: Se o cara que vai cobrar tá feliz ou...

B: Depende do humor do patrão (risadas)

Y: É tem uns que falam “ah só vou dar um peguinha hoje” B: É depende do humor do patrão.

C: Às vezes eles dão a segunda chance… É que tudo depende do teu patrão também entendeu né, como no tráfico como no serviço, como no trabalho…tudo depende da pessoa, depende do humor da pessoa ali, depende de como a pessoa é.

Sobre as punições exercidas no interior dos coletivos criminais, observou-se, com surpresa, a reflexão realizada pelos próprios adolescentes a respeito da pequena margem de erro existente quando equívocos são cometidos em atividades que podem vir a prejudicar o seu próprio “embolamento”. Assim, o estado de alerta conhecido em atividades de risco como a venda de drogas ilícitas não se deve apenas à iminência de ataques dos grupos contrários (os “contras”) ou à deflagração de operação policial. É também o equívoco na realização de tarefas para o seu próprio grupo de pertencimento uma das principais razões pelas quais os adolescentes estão em constante risco de vida.

Y: Se no crime tu tá fortalecendo isso aqui, tu treinou nisso aqui, os cara pegam… Teu próprio embolamento. Tu fez um montão, matou, fez um bolo por eles daí tu fez isso aqui, os cara… S: Depois que o cara não serve mais… P: Não consideram?

M: Aí já era…

Finalmente, foi possível identificar um nível mais acentuado de dominação por aqueles que possuem posição de comando nos coletivos quando os adolescentes indicam a quase impossibilidade de saída desses grupos. Baseados em justificativas morais, como a necessidade de manter “a palavra de homem” diante dos demais, ou na incompreensão a respeito dos motivos que fazem alguém que “sabe demais” e que está ganhando muito dinheiro querer se desvincular do seu “embolamento”, os diálogos levam sempre a uma única conclusão: ser desvinculado do grupo é um processo quase insustentável na realidade narrada por eles. Os adolescentes chegam a afirmar que isso só seria possível a partir de uma mudança de território do sujeito e de sua família, principalmente se ele possui “contras”, na medida em que, nesse caso, seria preciso convencer, tanto o grupo de que se faz parte como os grupos contrários, de que o jovem de fato saiu do tráfico.

S: Se o cara não tem contra, aí é muito mais fácil pro cara sair

Y: Mas tem uns que sabem de mais, que o homem fica até espiado

S: Por que tu vai querer te apartar? Tem que avisar os cara né

M: Logo agora que tu tá grande, tá ganhando bastante dinheiro

Y: É tu já sabe de umas mão que eu fiz que ninguém sabe

S: É daí vão investir no cara “será que tu não vai lá pros outros cara”. Tu acaba sabendo demais, tu acaba te comprometendo só por saber.

Y: Aí tem que se mudar mesmo, pegar e.. já avisa a coroinha do cara, “amanhã 6h vai chega o caminhão de mudança, já bota as coisa” S: É complicado o tráfico.

4.3 Status social: a identidade do indivíduo que “ostenta”, mas defende a “boca” dos grupos contrários

O sociólogo referência do interacionismo radical chamou atenção, conforme se viu, para o fato de que a busca por manter, defender e melhorar o status social do indivíduo é um dos mais urgentes e persistentes motivos que lhe faz impor seus propósitos sobre os demais. Assim, para além das modificações nos componentes operadores do ato social determinados por Mead, seria também necessário acrescentar o status social como um desses componentes básicos (ATHENS, 2013, p. 44). Ao contrário do seu antecessor, Park percebeu que o status social forneceria os meios principais pelos quais a “estrutura social” ou, mais precisamente, a “ordem social” afeta diretamente a organização de nossas ações sociais cotidianas (ATHENS, 2013, p. 45). Com base nessa constatação, Athens propõe algumas modificações à ideia de ato social de modo a construir a categoria de “ato coletivo”, a qual se diferenciaria da primeira sobretudo por ser constituída por seis, e não cinco, componentes: (1) papéis, (2) atitudes, (3) símbolos significantes, (4) suposição de atitude, (5) objetos sociais e seus correspondentes planos de ação e (6) status social (ATHENS, 2013, p. 47).

No caso da presente pesquisa empírica, essa centralidade do status social é evidenciada tanto na adesão do sujeito ao coletivo criminal, quando o objeto de análise são as ações proferidas pelo sujeito individualmente, quanto no exercício de dominação dos coletivos sobre outros, quando a unidade de análise passa a ser as ações realizadas por um grupo em relação a outro. No primeiro caso, os adolescentes foram bastante explícitos em narrar a influência da construção de uma imagem positiva de si para a decisão de aderir ao tráfico de drogas, exaltando a importância de bens materiais e simbólicos nesse processo, como objetos de marca além da relação afetiva com as mulheres do seu entorno.

I: Às vezes o cara entra porque vê os cara ali andando com tênis de marca, camiseta de marca…quer andar igual eles. M: O cara começa andar mais na rua, com as gurias. S: Cada vez mais o cara vai se envolvendo mais…

Y: O cara nem vê e já tá evoluindo.

M: Normalmente o cara quer dar uma banda com as gurias, quer ganhar um dinheiro, quer ter dinheiro na mão toda hora, gastar em besteira

S: Ter roupa cara, andar de carro e moto e coisa…

M: Vê os cara andar de moto “ah tenho que andar de motinho também”, vê andando de carro “não vô lá e vô busca um carro pra mim”

Ao que parece, portanto, os ganhos financeiros oriundos do tráfico de drogas produziram a autoestima na medida em que se materializaram através da construção de uma boa aparência física e da produção de um cuidado de si, sobretudo pela repulsa ao uso de drogas de forma exagerada. Assim, a figura do adolescente no tráfico “sereno”, que se veste com roupas de qualidade e está atento ao uso excessivo de drogas, parece representar uma identidade positiva em um horizonte possível de ser alcançado e que, embora não seja o sujeito ideal na sociedade capitalista (afinal, a ideia de que “no crime tu já não tá muito te valorizando” ainda é muito presente), representa ganhos de valorização de si em comparação com outras identidades presentes na realidade dos adolescentes, como no caso do usuário de cocaína.

P: E por que tu tinha dito autoestima e valorização pessoal?

Y: O cara tem que tá bem arrumado na vila, sereno.

S: Senão não vale de nada o cara tá no crime.

Y: É. Só tocando o dinheiro fora, tem uns que só querem pra cheirar e dar banda. Pegar cem de pó aí já acaba no nariz de noite (risadas). Foi-se… Quando vê no outro dia tá quebrado.

Contudo, é importante perceber que o status individual adquirido com os bens materiais oriundos da participação na venda de drogas não basta por si só. Os adolescentes apontam com clareza a existência de um status social coletivo, o qual requer que os sujeitos se doem ao seus grupos de pertencimento de modo a “honrar a camisa”.

P: E quais são as atividades que vocês pensam que a pessoa tem que fazer, quando uma pessoa que participa do tráfico, o que que ela tem que fazer pra dizer que participa.

C: Botar a cara no bagulho.

P: Tá mas que tipo de coisa que ela vai ter que fazer?

C: Ah vai ter que honrar a camisa dela… vai ter que mostrar que tu quer aquele embolamento ali.

Nesse sentido, se, em um primeiro momento, ações como “ir pra baile”, “ostentar”, bem como frequentar shoppings e adquirir roupas, carros, motos e armas parecem ser suficientes para a construção desse status diante dos demais, o momento da “guerra” rompe com essa narrativa e impõe um outro nível de vinculação aos grupos, materializado na construção de um inimigo em comum, o “contra”, e na defesa da “boca” diante de tais ameaças. É incompleta, portanto, a compreensão de que o vínculo dos jovens com o tráfico de drogas é unicamente financeiro[4]. Há um status social construído por procesoss imbricados de construção de uma identidade individual de aparência e de uma identidade social de pertencimento e defesa dos interesses dos seus pares.

C: O dinheiro que vem fácil vai fácil.

F: O cara quer ostentar, quer dar banda nos baile.

C: É tem vários momento, momento que tu pode curtir ali…Que nem ali na vila onde eu moro, sempre que nós não tinha guerra, nós ia pra baile, fazer um bolo, ostentar, dar várias bandas, shopping, bagulhada. Tinha várias roupas, era só dinheiro, e dinheiro, dinheiro. Força de dinheiro rolando, força de carro, roupa de marca, moto, arma. Depois daí só... daí começa (inaudível) com os cara… P: Daí o que que acontece?

C: Daí tu já vai ali na bocada de um traficante, já dá uns tiro lá. Daí o outro sobe lá, mata um na outra boca. Daí desce eu lá, matou o outro e daí formou a guerra.

Considerações finais

Conforme exposto, o presente trabalho pretendeu retomar as concepções primeiras do interacionismo simbólico, reconstruindo sua inserção na teoria sociológica a partir sobretudo dos estudos de Mead e Blumer e das pesquisas que utilizaram esse aporte teórico nos estudos da violência, como no caso de Matsueda e Heimer (1997). A partir disso, buscou-se conceitualizar as principais divergências que o interacionismo radical afirma em relação à versão simbólica, principalmente pelos estudos recentes de Athens (2013). Com esse pano de fundo teórico, sugeriu-se o uso dessa perspectiva nas análises sociológicas sobre o fenômeno dos coletivos criminais do tráfico de drogas no país. Para proceder em tal argumento, as revisões teóricas foram articuladas ao material empírico produzido a partir da realização de grupos focais com adolescentes internados para cumprimento de medida socioeducativa na FASE-RS, na cidade de Porto Alegre.

A importância que o status social adquire para os jovens “embolados” com os coletivos criminais foi uma das questões relevantes que surgiram dessa articulação. A construção desse local de valorização pessoal aparece inicialmente a partir dos bens que se tornam disponíveis por meio da participação no tráfico: são novas pessoas e novos objetos que passam a fazer parte da vida do sujeito (FELTRAN, 2008b, p. 103). Assim como identificado por Feltran (2008b), foi possível constatar um fluxo de adesão dos jovens ao tráfico que se inicia no desejo pela aquisição de bens materiais e simbólicos, mas que se movimenta em direção ao que poderia ser chamado de “status social coletivo”. Nesse segundo momento, a identificação pela contraposição – eu sou o que o outro não é – opera através do fortalecimento do vínculo com o seu próprio “embolamento” e pela imprescindibilidade de “honrar a camisa” quando a guerra é deflagrada. É apenas nesse segundo momento que a vinculação ao coletivo se cristaliza de tal forma – tanto subjetivamente quanto socialmente – que já não parece haver trânsitos possíveis para outros mundos (FELTRAN, 2008b, p. 118).

Diante da análise realizada, também foi possível tecer algumas proposições a respeito de uma nova possibilidade teórico-metodológica para as investigações sociais a respeito de coletivos criminais do tráfico de drogas no Brasil. Assim, observou-se haver um benefício a esse campo de pesquisa quando os processos internos de tais grupos são mais bem observados, sobretudo as interações que produzem a dominação de alguns sujeitos sob outros, sejam a partir de ações veladas ou explícitas. As narrativas dos adolescentes sobre os coletivos criminais demonstraram haver inúmeras inconstâncias e disputas a respeito do que significa, em termos reais e simbólicos, estar no “embolamento”. Não se trata apenas de um espaço de sociabilidade entre jovens, como algumas pesquisas da área próximas ao interacionismo simbólico vêm dirigindo suas conclusões (cf. OLIVEIRA, 2008), mas um espaço de dominação por excelência, em que há o predomínio dos desejos de uns sob outros.

Nesse sentido, as evidências do presente artigo levam ao entendimento dos coletivos criminais como conjuntos heterogêneos, constituídos nas disputas internas pelo poder, em que a normativa interna do que é permitido e do que é proibido se transforma na medida dos desejos e objetivos do “patrão”, sem que necessariamente haja uma propagação prévia das novas regras aos demais membros do grupo. É um cenário em que é muito comum errar sem saber que está errando. Nessa linha interpretativa, opta-se por aderir à ideia que Biondi já havia proposto quando indicou ser também o PCC menos um todo e mais um fluxo de vários movimentos “com diversas formas, calibres, velocidades e rumos” (2014, p. 294).

Se mesmo as dinâmicas do PCC – coletivo criminal mais bem consolidado no cenário nacional – podem ser compreendidas sem recorrer a uma ideia monolítica do grupo, também é possível pensar dessa forma em relação aos “embolamentos” gaúchos. A própria categoria nativa utilizada pelos sujeitos do tráfico de drogas indica que as práticas ali existentes ocorrem em um emaranhado não muito bem definido de relações, disputas e negociações. A institucionalização interna dos coletivos em Porto Alegre é, portanto, menor do que aquela do grupo paulista, assim como é menor a disputa violenta pelos territórios da cidade: em São Paulo, os homicídios vêm diminuindo, enquanto na capital gaúcha os conflitos letais no cenário urbano têm produzido um importante aumento desses índices (AZEVEDO; CIPRIANI, 2015, p. 171). Para Cipriani, os padrões observados para a violência letal em Porto Alegre e São Paulo se manifestaram de forma contrária, se comparados os períodos da década de 90 e o período atual (2019, p. 19). Assim, a observação de que o PCC possui mecanismos para que o aval do grupo seja respeitado no caso das decisões a respeito do uso da violência letal – o fazer o certo (FELTRAN, 2018) – não encontra qualquer semelhança com o que ocorre atualmente na capital gaúcha.

Desse ponto de vista, a realidade dos “embolamentos” do Rio Grande do Sul se aproxima mais do que ocorre na capital carioca, sobretudo em relação à multiplicidade de coletivos que favorece as disputas territoriais (CIPRIANI, 2019, p. 19). Apesar dessa semelhança, as particularidades entre os dois cenários são inúmeras, a começar pelas características territoriais das duas cidades: enquanto o “morro” é uma formação geográfica que impõe limites aos espaços de atuação dos coletivos criminais, as “vilas” em Porto Alegre possuem fronteiras muito mais voláteis, com avenidas e ruas servindo a essa demarcação simbólica da qual os coletivos fazem uso para impor seu poder nesses espaços. A comparação entre as dinâmicas do tráfico em cada uma dessas cidades, contudo, mereceria uma produção empírica específica que, até onde se sabe, ainda não foi realizada.

Conforme buscou-se argumentar no presente artigo, algumas dimensões já consolidadas do interacionismo radical parecem auxiliar na tarefa sociológica de desmistificar as configurações internas desses grupos, sobretudo quando se atenta para os processos de dominação, para as diferenças geracionais e para a busca pelo status social que pauta as ações individuais e coletivas. Para que se confirme essa hipótese, ainda são necessárias outras produções empíricas, em realidades distintas e através de diferentes técnicas metodológicas.

Nesse sentido, se por um lado o campo de estudos das facções ou coletivos criminais do tráfico de drogas no Brasil parece ganhar pouco com a importação dos modelos de organização criminosa, mafiosos e cartelizados (HIRATA, GRILLO, 2017, p. 78), por outro ainda existe muito a ser explorado quando se dirige a esse fenômeno social com o olhar sociológico interacionista. Ao aceitar essa proposta, é preciso que se compreendam as relações entre os sujeitos do tráfico a partir dos processos de força e dominação que as constituem e que não necessariamente possuem um fluxo único e direcionado, mas fazem parte de rotinas de vida de milhares de indivíduos no país.

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Notas

[1] Em recente análise descritiva da produção sociológica brasileira no campo da violência e da criminalidade, identificou-se uma baixa produção referente especificamente à questão do tráfico de drogas. Dos 546 artigos sobre o tema geral da violência publicados em revistas A1 e A2 de Sociologia no país, apenas 13 (2,4%) se referiam especificamente ao assunto do mercado ilícito de drogas (RIBEIRO; TEIXEIRA, 2018, p. 24).
[2] Para o autor, as chamadas “mercadorias políticas” seriam “o conjunto de diferentes bens ou serviços compostos por recursos ‘políticos’ (…); que podem ser constituídos como objeto privado de apropriação para troca (livre ou compulsória, legal ou ilegal, criminal ou não) por outras mercadorias, utilidades ou dinheiro” (MISSE, 1999, p. 288). A corrupção seria um dos principais exemplos desta categoria.
[3] O Projeto Pescar, existente no país desde 1976, age com objetivo de promover a profissionalização de jovens em situação de vulnerabilidade socioeconômica, bem como o seu desenvolvimento pessoal e de sua cidadania. O conteúdo programático desenvolvido é composto por 60% de horas voltadas a temas gerais de formação humana e cidadania e 40% dedicadas especificamente à qualificação profissional.
[4] Para Lyra (2013), existiria uma divisão dos teóricos da violência entre os que vinculam a adesão dos jovens brasileiros ao tráfico de drogas a um desejo de “ter”, sendo Zaluar (1994) a principal representante dessa corrente; e aqueles autores que focam suas análises nos processos pela busca do reconhecimento por parte destes adolescentes (ou pela busca do “ser”), como seria o caso de Soares, por exemplo (2000).
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