Apresentação

Apresentação

Camila Nunes Dias
Universidade Federal do ABC, Brasil
Sérgio Adorno
Universidade de São Paulo, Brasil

Apresentação

Revista Brasileira de Sociologia, vol. 7, núm. 17, pp. 5-10, 2019

Sociedade Brasileira de Sociologia

O “crime organizado” não é um fenômeno social e político recente. Esteve presente, por exemplo, na história da sociedade norte-americana nas primeiras décadas do século XX, assim como na Europa mediterrânea, em especial, em Marseille e Nápoles dos anos 40 aos anos 60 do século passado. Embora, nesse mesmo período, conexões internacionais igualmente não fossem estranhas, suas rotas e cadeias produtivas eram restritas.

A partir do século XXI, na esteira dos processos de globalização dos mercados e de flexibilização das fronteiras nacionais, há transformações importantes no fenômeno que deslocamentos na escala e nos valores em circulação, na produção de redes conectadas e no emprego de meios tecnológicos (informática, telecomunicações, transportes terrestres, aéreos e marítimos). Essas transformações tornaram essas modalidades “empresariais” mais complexas, diversificando as tradicionais organizações piramidais constituídas à base de fidelidade pessoal, articulando de forma mais intensa os mercados ilegais com legais, estabelecendo novos acordos com poderes locais e nacionais, criando oportunidades de empregabilidade, sobretudo para aqueles destituídos do acesso ao mercado de trabalho formal, reconfigurando relações de vizinhança nos bairros onde essas modalidades de organização dispõem de influência e poder social.

Em termos sociológicos, podemos destacar ao menos três eixos de abordagens relacionados ao fenômeno do crime organizado:

a – trata-se de um fenômeno cujas operações articulam macro e microestruturas sociais, percorrendo desde os espaços privados das famílias às relações internacionais entre sociedades e países;

b – em igual medida, permite examinar como operam modalidades de operações, ações e relações sociais que se dão em espaços infrapolíticos e infraeconômicos, porém com poderosas interferências no cotidiano de organizações sociais formais, como sejam famílias, empresas, organizações governamentais. Opera, portanto, no espaço intermediário entre agentes, agências e sistemas sociais;

c – dadas as suas características atuais, o estudo do crime organizado possibilita discutir suas relações com os sistemas políticos democráticos. Há uma hipótese, corrente entre pesquisadores, de que as operações ilegais do crime organizado comprometem a persistência e sobrevivência de democracias, principalmente aquelas recém-constituídas. Há, contudo, entendimento contrário, em que algumas operações estão, de tal modo, imbricadas e enraizadas nesses sistemas que constituem parte de sua funcionalidade.

Para além das inúmeras possibilidades de desdobramentos que cada um dos três eixos pode ensejar em termos de pesquisas empíricas e teóricas, importante campo de debate a respeito do crime organizado reside em seu próprio conceito. Alguns dos textos que integram este Dossiê abordam sua natureza, seu alcance e aplicabilidade, seus limites. Trata-se, como verá, de um conceito sujeito a reparos. Forjado na cultura política anglo-saxã para dar conta das operações criminais realizadas em bandos, especialmente desde fins do século XIX nas emergentes metrópoles americanas, como Chicago, teve por modelo as máfias italianas, cujos membros migraram para a América. O uso corrente foi estimulado pela convergência de três forças: normativas, visando criar uma tipologia penal aplicável a essas operações criminais, capaz de orientar tanto as atividades policiais quanto as judiciais; correntes públicas de opinião, expressas na mídia impressa, voltadas para diferenciar crimes cometidos em bandos daquelas atividades criminais exercidas por delinquentes solitários; iniciativas acadêmicas, visando delimitar um campo próprio de observação empírica para alimentar investigações no domínio das ciências sociais.

As críticas ao conceito logo se fizeram presentes no debate público e acadêmico. Presentemente, ao lado de suas limitações normativas e do emprego corrente no senso comum como se fosse um conceito evidente per si, novos questionamentos têm sido postos. É frequente pesquisadores recusarem o modelo das máfias italianas tradicionais para explicar as novas organizações criminais, muitas das quais mais próximas de modelos empresariais com seus planos de negócios ilegais. Na chamada era da globalização, esses negócios não se limitam ao tráfico de drogas ilícitas; todavia, alcançam uma infinidade de atividades, encadeiam fluxos de operações de mercado transnacional, mobilizam enormes recursos materiais, humanos e tecnológicos, corrompem civis e autoridades, capturam estados nacionais, produzem conflitos muitos dos quais com desfechos fatais. As organizações de maior impacto na opinião pública internacional – os cartéis colombianos e mexicanos, a Yakusa japonesa, as Tríades chinesas, as Máfias russas e aquelas presentes na Europa central – parecem muito distantes do modelo da Cosa Nostra. Operam à base de estruturas em redes, mantêm divisão de trabalho entre si, entre aquelas que controlam os negócios ilícitos e aquelas que oferecem serviços subsidiários como venda de proteção ou salvaguarda de territórios, fazem o suprimento de armas e de tecnologias empregadas no fluxo dos negócios. Por isso, o conceito, tal como originalmente concebido, parece estreito demais.

No Brasil, o debate público sobre o crime organizado tem girado em torno, principalmente, das modalidades associadas ao comércio de drogas ilícitas, ao contrabando de mercadorias diversas, especialmente, armas de fogo, e à extorsão que, em geral, está associada à monopolização da oferta de determinados serviços e mercadorias em alguns territórios. Desde os anos 70, o Brasil se constitui como território importante para o comércio global de drogas ilícitas, em especial, a cocaína. A extensa fronteira que estabelece com os países produtores da folha de coca e as complexas malhas rodoviária, aeroviária e hidroviária brasileiras são fatores que contribuem para a conformação privilegiada do Brasil na economia mundial das drogas.

A par de importante território de passagem dos produtos de origem andina em direção à Europa e à África, o Brasil se constituiu como um dos mais importantes mercadores consumidores de cocaína, alcançando a terceira posição mundial, atrás apenas dos Estados Unidos e do continente europeu. Além disso, a extensa fronteira com o Paraguai, o maior produtor de maconha da América do Sul, faz com que as dinâmicas criminais relacionadas ao comércio de maconha – atrelada, na maioria das vezes, ao comércio da cocaína – também produzam impactos sociais e políticos significativos. Nas últimas três décadas, o Brasil alcançou também a posição entre os países que mais encarceram no mundo. Contraditoriamente ou não, os grupos criminais de origem prisional têm se tornado protagonistas das dinâmicas ilegais subordinadas ao comércio de drogas ilícitas e, em razão disso, adquirem centralidade no debate nacional sobre crime organizado, notadamente, quando se considera, entre seus efeitos, o recurso à violência.

O Dossiê reúne resultados de investigações concluídas ou em andamento no campo da socioantropologia, por assim dizer, sob diferentes enfoques teórico-metodológicos e segundo uma diversidade de problemas, questões e temas. Um primeiro grupo de artigos explora questões conceituais e metodológicas. Duas das contribuições discutem, conforme perspectivas distintas e com resultados não necessariamente convergentes, justamente os limites do conceito de crime organizado. Para tanto, concentram seus argumentos no exame de atores envolvidos, tipos de organização, modelos de negócios, fluxo de operações ilícitas. Propõem encaminhamentos distintos, um advoga a substituição do conceito de crime organizado pelo de organizações criminais (OC); outro recupera o conceito, porém sustenta definição aderente aos fluxos de mercado transnacional. O debate está em aberto. Nesse mesmo grupo, questão relevante diz respeito aos nexos entre violência, droga e crime organizado, não raro, tomados como evidentes e não sujeitos à discussão e ao debate. Uma das contribuições para o Dossiê é justamente problematizar relações de causalidade entre esses fenômenos com base em revisão crítica de investigações que abordam tais nexos. Ao fazê-lo, retoma discussões atuais sobre crime organizado transnacional e o maior peso das armas nas taxas de homicídio. Perfilando o mesmo debate, compõe ainda esse grupo sugestivo, o estudo sobre o controle da violência numa região do vale “cocaleiro” peruano.

Um segundo grupo de contribuições aborda o tema das facções, dentro e fora dos presídios – modalidade de organização do crime violento que adquire centralidade no Brasil. Até recentemente, tudo parecia crer que o crime organizado estava enraizado nos Estados do Rio de Janeiro e de São Paulo, cujas principais organizações – o Comando Vermelho (CV) e o Primeiro Comando da Capital (PCC) – buscavam exercer hegemonia. Desde meados desta década, conflitos nas prisões do Norte e Nordeste do país, não raro convergentes para rebeliões e resultantes em muitas mortes, praticadas tanto por facções inimigas quanto por intervenções policiais, mostram que o cenário do crime organizado se encontra em radical mutação. Disputas pelo controle de territórios e de negócios ilícitos, estimuladas pela expansão do CV e PCC para o resto do país, estão na ordem do dia. Propõem problemas novos para as políticas públicas de segurança dados seus desdobramentos nacionais e inclusive internacionais.

Neste Dossiê, três contribuições retratam a medida e complexidade desse cenário atual. Abordam facções nos Estados do Amazonas, Ceará, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul. A este conjunto, agrega-se artigo sobre dinâmicas criminais nas duas últimas décadas. Examinando três Comissões Parlamentares de Inquérito, o artigo identifica uma sorte de deslocamento no debate público e político: dos mercados ilegais para a emergência e expansão de grupos criminosos nas prisões.

Um terceiro conjunto de contribuições explora o fenômeno das milícias e da presença de grupos armados em determinados bairros de algumas cidades brasileiras, especialmente, o Rio de Janeiro. Embora essas organizações não sejam atuais, elas ganharam recentemente enorme repercussão midiática, à medida que seus negócios ilegais, instalados nos bairros onde habitam preferencialmente famílias de trabalhadores de baixa renda e suas relações com políticos profissionais, foram se tornando mais e mais evidentes. Explorando negócios como venda de proteção e oferta ilegal de serviços, têm ganhado destaque na mídia, em virtude, por um lado, de suas ligações ilegais com o mercado imobiliário e, por outro, de sua acessibilidade e liberalidade com que seus membros frequentam e usufruem de gabinetes parlamentares. Não se trata, por certo, de um fenômeno exclusivamente desta sociedade, todavia, nesta, vêm adquirindo suas singularidades destacadas nos artigos que tratam dessas questões e colocam enormes desafios à preservação - ou à consolidação - de um Estado Democrático de Direito.

Como sugerido anteriormente, este Dossiê caracteriza-se pela diversidade e multiplicidade de enfoques temáticos, conceituais e metodológicos. As contribuições estão baseadas em investigações etnográficas, em estudos de redes, em análise documental. Os resultados permitem comparações entre os grupos observados e os fenômenos sociais analisados. Embora as contribuições brasileiras para a compreensão do crime organizado prevaleçam na composição deste Dossiê, o exercício de comparação entre os “casos” examinados e o diálogo com a literatura internacional preenche, em certa medida, as expectativas desta proposta em termos de uma abordagem do “crime organizado em perspectiva comparativa”. Estamos convictos de que o conjunto traduz e bem representa o tom do debate sociológico, em sentido amplo, a respeito do crime organizado e de suas implicações sociais e políticas.

Nota dos Organizadores deste Dossiê e dos Editores:

Na fase final de publicação, os organizadores deste dossiê Crime Organizado e os editores da Revista Brasileira de Sociologia foram surpreendidos com o falecimento da antropóloga e socióloga Alba Zaluar. Com a publicação do seu texto, prestamos nossa homenagem à sua memória e à sua inegável contribuição para as ciências sociais no Brasil e no exterior, em especial para o campo de estudos da sociologia e antropologia urbanas.

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