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Fluxo de operações do crime organizado: questões conceituais e metodológicas
Flow of Organized Crime Operations: Conceptual and Methodological Issues
Fluxo de operações do crime organizado: questões conceituais e metodológicas
Revista Brasileira de Sociologia, vol. 7, núm. 17, pp. 33-54, 2019
Sociedade Brasileira de Sociologia
Recepção: 06 Novembro 2019
Aprovação: 20 Novembro 2019
Resumo: O artigo trata de questões conceituais e metodológicas relacionadas à abordagem sociológica do crime organizado. Seus principais argumentos baseiam-se em pesquisa cujo objeto trata de reconstruir o fluxo de operações que mobiliza o tráfico internacional de drogas ilícitas na América Latina, desde o início da cadeia produtiva nos países andinos até o mercado consumidor brasileiro e internacional. Suas fontes de informação compreendem fundamentalmente documentos e relatórios de organizações governamentais e não governamentais, além de dados sobre apreensões de drogas. O artigo pretende chamar a atenção para problemas relacionados à aplicação de conceitos e ao emprego de fontes documentais que podem restringir o alcance de resultados.
Palavras-chave: América Latina e Brasil, Tráfico de drogas, Crime organizado.
Abstract: The article deals with conceptual and methodological issues related to the sociological approach to organized crime. Its main arguments are based on research that aims to reconstruct the flow of operations that mobilizes international illicit drug trafficking in Latin America, from the beginning of the production chain in the Andean countries to the Brazilian and international consumer markets. Its sources of information consist primarily of documents and reports from governmental and non-governmental organizations, as well as data on drug seizures. The article aims to draw attention to problems related to the application of concepts and the use of documentary sources that may restrict the reach of results.
Keywords: Latin America and Brazil, drug trafficking, organized crime.
Introdução
Embora não seja um fenômeno recente, a globalização do crime, especialmente em torno do tráfico ilegal de drogas, se expandiu aceleradamente desde as últimas décadas do século passado. Grande número de sociedades nacionais foi alcançado por distintas modalidades dessas organizações criminosas transnacionais, na esteira das profundas mudanças operadas nos mercados mundiais, que incidem sobretudo na flexibilização das fronteiras nacionais. A emergência dessas organizações tem produzido consequências não apenas econômicas nos mercados legais de venda de mercadorias e oferta de serviços, mas sobretudo sociais e políticas.
O tráfico transnacional de drogas, especialmente concentrado em torno da cocaína, é parte importante da economia do crime organizado na América Latina. Ele se move como uma espécie de “modo de produção” próprio, com suas singularidades. Todas as operações e ações que o colocam em marcha têm por suporte divisão do trabalho entre países produtores, países encarregados da circulação e do tráfico e países com forte mercado consumidor. Países latino-americanos, tais como Peru, Bolívia e Colômbia, permanecem como os maiores produtores e fornecedores de cocaína para o mundo.
Com frequência, o surgimento de braços locais dessas organizações vem acompanhado e desencadeia processos de desorganização em comunidades locais tradicionais, de deslocamento e migrações forçadas de populações, de formação de gangues rivais em disputa pelo controle de territórios e pela posse de mercadorias ilícitas cujos desfechos se revelam no aumento das mortes voluntárias, nas perseguições de uns contra outros, nas arbitrariedades, nas ameaças e violências de toda a sorte contra todos os que sejam considerados obstáculos ao fluxo dos negócios ilícitos.
A par dessas consequências, o envolvimento de autoridades policiais, de funcionários públicos, de políticos profissionais nos negócios escusos corrói as bases do Estado de Direito. Esse cenário é tanto mais grave naquelas sociedades nas quais o Estado é capturado pelas organizações criminosas transnacionais e locais, em que forças armadas são cooptadas alimentando o recrutamento de exércitos privados fortemente abastecidos por armas de fogo e nas quais os negócios ilegais financiam grupos terroristas internacionais e locais.
Na América Latina, singularidades sociais e políticas, gestadas ao longo do século passado e início deste, propiciaram condições favoráveis para o surgimento de diferentes modalidades de organizações criminais, explorando os mais diferentes negócios ilegais. Porém, ganharam visibilidade e impacto na opinião pública internacional aquelas mais diretamente voltadas para a produção, circulação, distribuição e consumo de drogas ilegais, como a canabis e a cocaína, como sejam os cartéis colombianos e mexicanos, as gangues na América Central ou as facções do crime organizado no Brasil. Entre elas, há singularidades: sua maior ou menor complexidade, alcance territorial, poder e volume de negócios ilegais, envolvimento com o Estado, enraizamento nas prisões e nos bairros que concentram populações de baixa renda sobretudo nas regiões metropolitanas.
Singularidades também podem ser observadas no modo como se relacionam com polícias e policiais, com as burocracias públicas, com empresários e políticos profissionais, com moradores de bairros onde o tráfico ilegal esteja instalado. Não obstante, há também aspectos comuns. O principal é a ameaça ou emprego da violência, inclusive simbólica, que alimenta ódio, disputas fatais, tortura, sequestros, desaparecimento, incineração de corpos e amplo apelo às armas de fogo, a par da violência policial.
No Brasil, tais organizações criminais, sob a forma de gangues rivais em disputa pelo controle de territórios para a venda de drogas ilícitas, marcaram presença na cena pública no início dos anos 70 do século passado. Despertaram não apenas o interesse da opinião pública nacional e internacional, por meio da mídia impressa e eletrônica, mas também o interesse acadêmico de que a copiosa e longa etnografia da antropóloga Alba Zaluar (1998; 2004) é pioneira. Desde esse primeiro interesse acadêmico, muitos estudos têm sido realizados em praticamente todos os estados da Federação.
O que parecia equivocadamente confinado ao Estado do Rio de Janeiro vem se revelando um fenômeno nacional que desafia as autoridades responsáveis pelo controle da ordem pública, os planejadores de políticas públicas, a sociedade civil organizada. Muito se avançou no conhecimento da dinâmica interna e do “modelo de gestão” dos negócios ilícitos dessas organizações criminais, em especial, do Primeiro Comando da Capital – PCC – e do Comando Vermelho – CV. Em particular, dois eixos de investigação têm sido privilegiados: a prisão e os bairros, mediante estudos de tipo etnográfico, cujo alcance e efetiva contribuição para o conhecimento sociológico ainda estão por ser feitos.
Menos tem se falado a respeito do fluxo de operações econômicas e políticas que encadeia a produção, a circulação, a distribuição e o consumo de drogas ilícitas, na América Latina em direção ao varejo local, de forma a consolidar um ciclo completo de investigação: do financiamento das operações à regulação da vida cotidiana nos bairros onde moram predominantemente famílias constituídas de trabalhadores de baixa renda. Sob essa perspectiva, este artigo propõe uma reflexão sobre questões conceituais e metodológicas, tendo por base pesquisa em fase conclusiva[1], cujos resultados parciais foram divulgados através de duas publicações (ADORNO, 2018; ADORNO e DIAS, 2019). Pesquisa documental tem por fontes bibliografia especializada, dados estatísticos, clipagem de imprensa, fontes de agências governamentais e não governamentais, organizações empresariais, internacionais e nacionais. Dada a complexidade dos temas, a extensão territorial abrangida e a diversidade de atividades e operações ilegais, os casos examinados focalizam a produção e distribuição internacional de cocaína no México, Colômbia e Brasil, além de referências ao Peru, Bolívia, Equador, Venezuela, Argentina e países da América Central. Grosso modo, acompanha um período largo, desde os anos 1980 – quando se expandem os cartéis colombianos e as principais organizações criminais – até o final da década em curso.
O artigo está organizado em partes. As duas primeiras tecem comentários a respeito das questões conceituais e metodológicas envolvidas na investigação. A terceira é dedicada a uma breve conclusão abordando alguns desafios decorrentes das limitações apontadas.
Questões Conceituais
O conceito de crime organizado tem sido objeto de intenso debate (HAGAN, 2006; PAOLI, 2017). Não são poucas as objeções a seu emprego. Críticas são dirigidas a seus fundamentos normativos, não raro construídos no interior do campo jurídico cujos princípios repousam no império da lei e das instituições oficiais de aplicação de lei e ordem. Estudos questionam se tal perspectiva é capaz de apreender as singularidades das organizações criminais, transnacionais, regionais e locais (FERENTZY & TURNER, 2009; SPAPENS, 2010).
Na mesma direção, críticas são endereçadas à generalidade do conceito, aplicável a organizações tão distintas e movidas por objetos diversificados, como sejam o tráfico de drogas; falsificação de produtos de toda natureza (alimentícios, de higiene pessoal, combustíveis, medicamentos, vestuário, eletrônicos, etc.); tráfico de pessoas e de órgãos humanos; contrabando de armas e munições, pedras preciosas, peles, cargas diversas; venda de proteção pessoal e extorsão; roubos a Bancos e a empresas de segurança privada; lavagem de dinheiro envolvendo participação de Bancos, agentes imobiliários, doleiros e casas de câmbio; prostituição e jogos de azar ilegais (ADORNO e DIAS, 2019). Daí os esforços para construção de tipologias (LAMPE, 2006).
Críticas são igualmente endereçadas às origens históricas. O conceito teria sido criado para dar conta das organizações que dominaram o cenário do crime e da violência nos Estados Unidos do final do século XIX até meados dos anos 40 do século passado. À semelhança das máfias originárias do sul da Itália, trata-se de organizações com hierarquias piramidais, fortemente controladas do centro, que exercem poder quase absoluto sobre seus integrantes às custas de fidelidade pessoal inquestionável e sempre colocada à prova pelos mais poderosos (ENZENSBERGER, 1967; GURR, 1979).
O debate a respeito das máfias como modelo de crime organizado ocupou muito a atenção dos estudiosos americanos, do qual se destaca a obra de Donald Cressey ([1967], 1969, 1997) que focalizou a organização denominada Cosa Nostra. Logo se seguiram estudos críticos desse modelo (ALBINI, 1997; KENNEY & FINCKENAUER, 1995). Tais estudos apontaram os compromissos de Cressey com uma força-tarefa de combate ao crime organizado[2] assim como o peso do depoimento de um ex-mafioso arrependido (Joseph Valachi) orientando análises. Além do mais, sugeriram que o estudo de Cressey alimentou suspeita segundo a qual essas organizações mafiosas representavam conspiração estrangeira para solapar os valores da cultura política norte-americana. Ainda assim, a discussão e o modelo das máfias como inspiração para a análise das organizações criminosas persistiram (REUTER, 1995).
No entanto, diante das profundas mudanças operadas na economia do crime desde meados do século XX, em escala global, essa associação do crime organizado com as máfias teria se tornado obsoleta. Seu potencial explicativo teria se esgotado diante do surgimento de novas organizações criminais, como ´Ndrangheta, na Itália; Yakuza, no Japão; as Triads chinesas e os cartéis colombianos e mexicanos, entre outras. Essas novas organizações criminais têm se “modernizado”, operando à base de redes, com comandos descentralizados, com divisão social de trabalho para execução de operações as mais diversas (como ocorre por exemplo no roubo a Banco, cf. Aquino, 2010), com especialização de tarefas e com apelo aos meios tecnológicos mais avançados (telefonia, informática e meios de transporte sofisticados como jatos e helicópteros). Mobilizam enormes volumes de capitais. Algumas fazem apelo moderado à violência fatal, apoiando-se em mecanismos, igualmente violentos, como emprego de cárceres privados e cerceamento de direitos (ALBANESE & VERMA, 2003; SCHABACH, 2013).
Não menos irrelevante é a associação entre crime organizado e tráfico de drogas. De acordo com Paoli (2017), tanto agências internacionais quanto estudos acadêmicos tendem a considerar que o tráfico de drogas constitui uma das principais atividades do crime organizado, este por sua vez entendido mais como um conjunto de grupos do que como uma conexão de distintas atividades ilegais. Assim, essa associação depende do modo como esses dois conceitos são formulados. Caso se compreenda crime organizado tão somente em termos de organizações ilegais hierárquicas voltadas para o comércio em grande escala, definição utilizada inicialmente, então essa associação se revela inconsistente.
A expansão dos mercados ilegais de drogas desde a década de 1960, nos países ocidentais, tem sofrido transformações aceleradas em seus modelos de negócios por força de pressões decorrentes da globalização, da disseminação da cultura digital e da incorporação dos artefatos produzidos pelo progresso tecnológico. A contrário, se o conceito de crime organizado for definido como conjunto de atividades ilegais realizadas com fins lucrativos, independentemente dos atores envolvidos, então a associação se torna plausível. Neste caso, o tráfico de drogas, abrangendo todas as operações da produção ao mercado consumidor, é uma das modalidades por excelência do crime organizado (PAOLI, 2017, pp. 12-13).
Reconhecendo limitações, e tendo em vista a natureza dos problemas abordados que incluem atividades ilegais de larga-escala e com escopo globalizado, a investigação mencionada (ADORNO, 2015-19) optou por trabalhar com o seguinte conceito: “organizações criminais largas, estáveis, estruturadas que operam em vários países, engajadas em uma pluralidade de atividades lucrativas e usualmente exercendo certa sorte de controle sobre a vida econômica, política e social em suas áreas de origem. [...] Elas se consolidaram e sobreviveram em contextos em que as estruturas governamentais são frágeis ou seus representantes estão dispostos a fazer pactos com os chefes das organizações criminosas” (PAOLI, 2014, p.3). Portanto, os eixos principais desse conceito repousam em: a) organizações que demandam engajamento sistemático de seus membros em atividades ilegais – o que se traduz em estruturas institucionalizadas baseadas em divisão social do trabalho, hierarquias e diferentes níveis de poder; b) realização de graves atividades criminais, especialmente para provisão de mercadorias e serviços ilegais com o propósito de ganhos monetários; c) ameaça ou emprego de meios violentos assim como práticas regulares de corrupção, sobretudo de autoridades, visando garantir o funcionamento de toda a cadeia produtiva, desde a produção, circulação, distribuição até o mercado consumidor. É neste universo conceitual que são situadas organizações como os cartéis colombianos e mexicanos, os Bacrim (Colômbia) e as facções criminais no Brasil, em especial, PCC e PV.
Ainda assim, é sempre oportuno lembrar que o conceito de crime organizado, qualquer que seja sua formulação, deve dar conta de um universo composto por organizações muitos diferentes entre si sob diferentes aspectos. A começar pelos volumes monetários mobilizados em suas operações.
O PCC, organização criminosa criada em 1993, controla grande parte das prisões do Estado de S. Paulo. Presentemente, tem se expandido para outras regiões do país – está presente em 22 Estados da Federação –, sobretudo no Norte e Nordeste, estimulando guerra entre facões cujos afiliados se encontram dentro ou fora das prisões (DIAS e MANSO, 2018). Entre 2014-2017, o número de filiados ao PCC multiplicou-se por cinco, passando de 3.000 mil integrantes para quase 14.000. No Estado de São Paulo, estima-se que a organização congregue 7,6 mil em 2017, dos quais cerca de 6.000 apenas no interior das prisões. A despeito da rápida expansão do crime organizado em torno do comércio ilegal de drogas, sua magnitude é pequena se comparada com os cartéis mexicanos. No Brasil, o PCC se tornou um dos maiores fornecedores de cocaína, mobilizando anualmente U$25 milhões, enquanto os cartéis mexicanos movimentam U$64 bilhões.[3]
A propósito, há muito que o tráfico internacional de cocaína vem se tornando uma das operações ilegais mais lucrativas, fortemente controlada por poderosos cartéis. Com base em análise sobre processos recentes de fragmentação e recomposição de alianças no crime organizado no México, Atuesta e Pérez-Dávila (2018) descrevem as principais estruturas de diferentes grupos, entre os quais, estão a Federação Guadalajara, o Cartel Juarez, o Cartel Sinaloa, a Organização Beltran Leyva, o Cartel Gulf, Os Zetas, A Família Michoacana, Os Cavaleiros Templários, O Catel Jalisco Nueva Generación. Alguns exercem liderança no tráfico; outros constituem grupos armados cujos objetivos são proteger organizações, negócios ou exercer controle do território; outros compreendem indivíduos contratados como matadores ou para proteção de cartel. Há também bandos locais, não necessariamente criados por cartéis, contratados para liderar lutas locais; bandos criados como suporte para as atividades dos cartéis, resultantes dos processos de fragmentação e de ocupação de vácuos de poder; e grupos resultantes de alianças e acordos entre bandos independentes para atacar inimigo comum, evitar violência em um território determinado ou perseguir, mesmo temporariamente, interesses comuns. Nem todos têm por objeto o tráfico internacional de drogas. Sua magnitude e organização também variam entre si. (Ver também BEITELL, 2018; MENDOZA, 2016).
Como se vê, organizações como PCC e CV revelam estruturas e alcances muitos distintos. A despeito do acelerado crescimento e expansão territorial e inclusive diversificação de negócios, a comparação com os cartéis mexicanos requer cautelas. Por isso também, o emprego de um conceito para dar conta dessas diferentes organizações deve preencher dois requisitos: ser suficientemente geral para abrigar o que é comum entre elas; e ao mesmo tempo, ser suficientemente preciso para alcançar tantas e tão significativas singularidades.
Questões metodológicas
Certamente, o foco metodológico adotado na investigação sociológica realizada é um entre tantos outros. As investigações sobre crime organizado têm privilegiado estudos de caso e observação de tipo etnográfico. Muito do que se sabe sobre o cotidiano dessas organizações provém do recurso a tais metodologias, o que inclui o perfil de seus integrantes em suas múltiplas funções, suas relações com o mundo da legalidade, mais propriamente com autoridades civis e políticas. De igual modo, tais estudos contribuíram para o conhecimento das modalidades correntes de ação criminal, da presença dessas organizações seja nas prisões, seja nos bairros, dos conflitos entre grupos. A importância dos estudos etnográficos é inegável, pois eles têm contribuindo para o debate público e oferecido informações para a preparação inclusive de relatórios de organizações governamentais e não governamentais. No entanto, revelam igualmente limitações sobretudo quanto à possibilidade de generalização de resultados, mesmo se considerado que parte dessas etnografias resulta de trabalho de campo acumulado em anos de observação empírica.
Conquanto parte da bibliografia examinada e consultada tenha por base trabalho de campo, observação direta junto a diferentes atores que participam dos fluxos observados e etnografia junto a comunidades e organizações criminais, a base empírica desta investigação (ADORNO, 2015-2019) compreende fontes documentais diversas. Essa base revelou-se apropriada para perfilar o ciclo completo das operações ilegais com a produção e distribuição da cocaína. A despeito de suas limitações, esse foco metodológico tem o mérito de oferecer visão ao mesmo tempo globalizada, regionalizada e local dos problemas decorrentes do funcionamento dessas organizações criminais em larga escala.
O encadeamento do fluxo de operações ilegais observado insere-se no campo da sociologia econômica do crime organizado. Os pioneiros neste campo de estudos são Peter Reuter e Hagan (1989), Reuter (2003, 2014), e Ruggiero (1995). No Brasil, ainda há poucos estudos, dos quais se destaca o de Lopes Jr. (2009). Em linhas gerais, os estudos buscam perfilar o fluxo das operações bem como examinar as relações entre transações econômicas e organizações do crime organizado. No geral, esses estudos valem-se de conceitos construídos tanto no campo da macro quanto da microeconomia, como sejam: mercados; atores econômicos, confiança e contrato; formas de produção; matéria-prima; áreas de cultivo; formação de preços; regulação entre oferta e procura; concorrência entre diferentes “empresas”; qualidade do produto; remuneração aos produtores diretos e demais trabalhadores no circuito da prestação de serviços; meios de transporte; custo, investimento, rentabilidade e lucro; economia formal e economia informal, economia legal e ilegal.
A importância desse arcabouço conceitual é inquestionável até porque fontes oficiais já reconhecem essas atividades ilegais como parte da produção mundial da riqueza. A despeito dos méritos, o enfoque puramente econômico do mercado de drogas oferece ao menos dois problemas. Primeiramente, sob perspectiva sociológica, há que se indagar se esses conceitos, forjados para a compreensão do funcionamento dos mercados “legais”, são adequados para a compreensão dessa sorte de “economia subterrânea”[4] movimentada pelas organizações criminais transnacionais. Sabemos, por exemplo, que o custo final da droga envolve despesas enormes com a cobertura de riscos, tais como formação de milícias privadas, corrupção, aquisição de armamentos, transportes (marítimo, aéreo, terrestre), lavagem de dinheiro. Como tudo isso entra no cálculo do preço, já que parte desses custos é totalmente ilegal?
Um secundo problema diz respeito à longa e consolidada tradição de metodologias desenvolvidas, seja por acadêmicos e centros de investigação científica, seja por instituições oficiais, nacionais e internacionais, para o monitoramento de todas as operações econômicas legais, em escalas global, nacional, regional e local. Quanto a esta sorte de economia subterrânea, não há a mesma tradição. O acompanhamento do fluxo mediante dados precisos e objetivos talvez não conte com a mesma confiabilidade desfrutada pelas atividades próprias das economias legais. O encadeamento possível dos dados não traduz necessariamente a cadeia real produtiva da droga e sua distribuição em mercados internacionais.[5] Ademais, como percorrer com objetividade as intersecções entre atividades legais e ilegais? Estudos recentes, por exemplo, mostram que a circulação de drogas pelos cartéis mexicanos requer pagamento de seguro para compensar perdas decorrentes, por exemplo, de apreensões. Pode-se suspeitar que seja pago através de transações bancárias, a despeito das enormes regulamentações (BEARE e SCHNEIDER, 2007).
Em decorrência, neste cenário socioeconômico, é desafio capturar as interfaces entre mercado e sociedade. Os impactos do mercado ilegal, embora conhecidos e tratados pela literatura, ainda carecem de análises mais consistentes. Por exemplo, como explicar que, em determinadas regiões e em momentos determinados, o tráfico internacional pode conviver com baixas taxas de violência, enquanto, em outras regiões e em outros momentos, elevadas taxas de violência façam parte dos negócios? Os estudos recentes sobre o desenvolvimento dos cartéis mexicanos e da transição dos cartéis colombianos para as novas Bacrim (bandos criminais) apontam ora na direção de elevados conflitos com desfechos fatais e emprego de meios violentos (sequestros e deslocamentos forçados de populações), ora na direção de uma espécie de paz negociada entre organizações criminais concorrentes e destas com agentes policiais (ATUESTA e PÉREZ-DÁVILA, 2018; RICO, 2013). Não menos importantes são os impactos provocados nos sentimentos de medo e insegurança das populações, em face da emergência do crime organizado.
Por justamente reconhecer tais limitações metodológicas, o conceito de crime organizado adotado nesta investigação (ADORNO, 2015-2019) requer o emprego de conceito complementar: o de economia do crime que diz respeito inicialmente ao mercado. O mercado é aqui entendido em sentido sociológico. Ele compreende o mundo das relações sociais entre produtores e consumidores, que se realizam em territórios determinados, mediadas pelo fluxo de mercadorias, dinheiro, serviços, e que se organizam segundo hierarquias e desigualdades de poder. Por sua vez, o mercado sobre o qual se organiza a economia do crime é o território social no qual se vendem mercadorias e serviços ilícitos, em geral, comprados ou consumidos por consumidores que participam da chamada sociedade legítima ou legal (KOKOREFF et all, 2007, p. 12; ADORNO e DIAS, 2019). Presentemente, dada a natureza e complexidade que esta economia vem assumindo no contexto da globalização, ela tem sido caracterizada como “economia subterrânea”, supostamente oculta, porém entrelaçada com transações econômicas legais. Por essa razão, a análise exclusivamente macroeconômica do mercado ilegal de drogas é insuficiente, exceto se agregada a esta sorte de sociologia econômica perspectiva adicional e complementar capaz de incorporar a natureza dos conflitos, inclusive violentos, que percorrem toda a cadeia produtiva em torno de disputas as mais diversas, controle de território, controle de rotas, controle de meios de transporte, controle de volumes, monopólio de operações.
Outro aspecto a ser considerado é o estudo das rotas do tráfico de cocaína. Há rotas terrestres, marítimas (e subaquáticas mediante uso de submarinos) e aéreas. Não são necessariamente coincidentes até porque cada um desses meios pressupõe tráfego por áreas de maior ou menor extensão, de maior ou menor vigilância. Exemplos constituem as rotas terrestres entre as fronteiras da região amazônica onde os caminhos perpassam áreas de população rarefeita assim como de exíguos postos de vigilância policial local ou de fronteiras; áreas marítimas navegando por rios de difícil acesso, o que requer conhecimento proporcionado pelos saberes locais; rotas aéreas entre aeroportos para aeronaves de pequena escala, raramente identificáveis através dos radares (quando existentes). O estudo das rotas foi pensado como uma das fontes privilegiadas da pesquisa documental. Esperava-se que sua focalização possibilitasse o conhecimento dos efeitos locais do tráfico internacional, tais como evolução das taxas de crime e violência (sobretudo homicídios nas regiões de fronteira com intenso fluxo migratório); o nascimento, rejuvenescimento ou decadência de cidades; o comprometimento das autoridades locais; as formas de organização social que vão sendo construídas durante largos períodos de fixação do tráfico de drogas por tais rotas.
Diferentes fontes identificam como principais rotas: a) aquelas que partem dos países andinos, especialmente da Colômbia em direção à América Central e ao México; b) aquelas que partem da Venezuela em direção ao Caribe e aos Estados Unidos; c) aquelas que partem da América Central e do Caribe para os Estados Unidos; d) aquelas que partem do México para os Estados Unidos; e) aquelas que partem dos países andinos, passam pelo Paraguai e chegam ao Brasil; f) aquelas que, do Brasil, se dirigem para países africanos (Nigéria, Ghana, Costa do Marfim) e, em seguida, para Portugal e Espanha; g) aquelas que, da América Central e Caribe, têm por destino final países europeus.[6] Para ser completo, esse estudo depende de seus desdobramentos geopolíticos, entre os quais as regiões e cidades alcançados por tais rotas.
Todavia, o estudo das rotas também oferece problemas metodológicos. As rotas de maior intensidade e de maior fluxo são justamente aquelas de conhecimento oficial por parte das autoridades, policiais e forças armadas, encarregadas sobretudo do controle das fronteiras nacionais. Certamente, rotas de menor extensão e pouco acessíveis aos olhares da vigilância passam desapercebidas. As tendências das grandes rotas permaneceram praticamente as mesmas por largo período. Todavia, os caminhos e os meios de transporte têm sido reinventados, pois frequentes intervenções policiais promovem bloqueios e apreensão de carregamento de drogas. Dessa forma, apenas a pesquisa de campo pode suprir obstáculos desta ordem, conquanto não possa dar conta da longa extensão territorial que elas ocupam.[7]
Outro núcleo de problemas metodológicos compreende a natureza das fontes documentais disponíveis e acessíveis. No que concerne à bibliografia, durante a pesquisa, foram sendo armazenadas inúmeras referências sobre teorias, questões metodológicas de investigação, temas e problemáticas que gravitam em torno do chamado crime organizado. Trata-se de garimpagem informal, a partir de alertas bibliográficos periódicos ou referências recolhidas com base em apêndices bibliográficos da literatura especializada consultada. Ao mesmo tempo, foi realizado levantamento junto a bancos de dados bibliográficos indexados na base web Science (SSCI – Social Science Citation Index) por meio do programa EndNote-8. Como indexadores gerais, foram selecionadas palavras-chave associadas ao léxico crime organizado, como sejam: economia da droga, violência urbana, mercados ilegais, controle de território, fronteiras, rotas, guerra das drogas, tráfico, contrabando, sistema de justiça criminal. Do universo de referências identificadas, foram privilegiadas aquelas com acesso aberto ao conteúdo dos textos.
Breves comentários sobre esse balanço. Em primeiro lugar, esse universo alcança não apenas as atividades relacionadas ao tráfico ilegal de drogas. Crime organizado é hoje um fenômeno global com sólidas conexões com a sociedade, a política e o Estado. Atividades ilícitas contidas nesse acervo bibliográfico compreendem não apenas narcotráfico, mas também comércio e venda ilegais de armas, contrabando de mercadorias variadas, pirataria, tráfico de corpos (órgãos, mulheres, crianças), prostituição, trabalho forçado, escravidão por dívidas, lavagem de dinheiro, corrupção na maior parte das vezes organizada, economias de guerra, conflitos étnicos, migrações, terrorismo e extremismos associados a ideologias separatistas, religiosas e políticas. Portanto, o foco exclusivo nas organizações transacionais do tráfico de drogas, mais ainda apenas no âmbito do tráfico de cocaína na América Latina, estreitou sobremodo o número de referências.
Esse acervo compreende artigos publicados em periódicos internacionais, a maior parte em língua inglesa, no período de 1970 a 1918, o que acaba limitando o número de contribuições latino-americanas e brasileiras as quais foram identificadas em outras bases bibliográficas, como o SciELO. A maioria de referências bibliográficas cobre estudos realizados sobre os Estados Unidos e o Canadá. É flagrante também o maior interesse pelos casos analisados na China, Japão, e outros países do Sudoeste asiático. Permanece também o interesse pelas novas organizações italianas que se distanciam do modelo das máfias tradicionais como também casos recentes ocorridos no Leste Europeu.
Na América Latina, o maior volume de trabalhos concentra-se em torno do México, onde o crime organizado e suas conexões com a política parecem ter largo histórico e por onde fluem os maiores volumes de carregamento de cocaína em direção aos Estados Unidos. Seguem-se estudos sobre Colômbia, Equador, América Central e Brasil. No que concerne propriamente ao crime organizado no Brasil e na América Latina, os artigos se centram na análise de organizações, atores, estratégias adotadas, financiamento de operações, circulação de mercadorias ilícitas, lavagem de dinheiro, guerra das drogas, controle de territórios, terrorismo, intervenções de forças armadas e grupos paramilitares, homicídios, risco e vulnerabilidade de populações de baixa renda, habitantes de bairros onde predominam precárias condições de infraestrutura urbana e qualidade de vida, perseguições (ativistas de direitos humanos, jornalistas, advogados, defensores públicos), desaparecimentos, migrações forçadas e o impacto do crime organizado no sistema de justiça criminal. Surpreendentemente, esse levantamento pouco fala de rotas do tráfico, um dos propósitos da investigação. Em seu lugar, o tema de referência diz respeito à movimentação de atividades ilegais, em torno do tráfico de drogas, através das fronteiras. Fronteiras vêm se convertendo em tema relevante para a investigação empírica (Carrión e Espin, 2011; Carrión e Llugsha, 2013; MISSE e outros, 2016). Essa bibliografia é completada com indicações de acrescidas de livros, coletâneas e artigos identificados em outras bases bibliográficas como o SciELO.
Foram consultadas outras fontes de informação. Para tanto, a investigação contou com a generosa colaboração da pesquisadora Camila Nunes Dias[8], com quem este autor tem compartilhado interesses comuns e elaborado textos em coautoria. Essas fontes consistiram em: notícias veiculadas na imprensa periódica; relatórios de Comissões Parlamentares de Inquérito (CPI do Narcotráfico, CPI do Tráfico de Armas); Relatórios de órgãos federais (Polícia Federal, Polícia Rodoviária, Polícia de Fronteira, Receita Federal, Ministério da Justiça, Ministério da Segurança Pública), Senado e Câmara dos Deputados, Secretarias Estaduais de Segurança. Elas contêm, entre outras, informações sobre apreensões de drogas, pistas de pouso, refinarias interditadas, fluxos monetários associados a atividades ilegais e rotas internas do tráfico (canabis e cocaína). Apesar de suas limitações, entre as quais seriação temporal, alcance geográfico, cobertura e extensão do universo de ocorrências criminais, são fontes que não podem ser desprezadas, até porque revelam características das políticas públicas de repressão e contenção do tráfico de drogas e do crime organizado. No entanto, como sabemos, tais informações refletem o ponto de vista policial e organizacional dessas agências, profundamente marcado pelas operações de repressão ao tráfico internacional e local. Não raro, esse ponto de vista valoriza o êxito das operações de vigilância e sobretudo o volume de drogas apreendidas,[9] todavia avança menos quando o interesse do investigador se volta para o conhecimento do cotidiano dessas organizações criminais.
No que concerne à clipagem de notícias da imprensa, a partir de um banco de dados organizado pela pesquisadora Camila Nunes, estão disponíveis informações sobre fronteiras – movimentação de atividades ilícitas, apreensão de mercadorias ilegais, apreensão de armas e munições, prisão de suspeitos, fiscalização e autuações diversas (pessoas, veículos, documentos), cargas apreendidas e recuperadas, crimes ambientais (animais silvestres, madeiras, transporte inadequado de produtos tóxicos, uso de agrotóxicos proibidos). Incluem também informações detalhadas a respeito de inúmeras ações desencadeadas por órgãos governamentais federais, como Ministério da Justiça, do Exército e da Aeronáutica, nas áreas de fronteira do Brasil sobretudo com o Paraguai. Garimpagem na internet permite também avaliar interesse de grandes agências noticiosas e dos mais prestigiados jornais e cadeias de TV (BBC, Washington Post, New York Times, entre outros).
Aqui também são reconhecidas as limitações dessa fonte, quanto à cobertura dos acontecimentos e quanto aos interesses dos órgãos noticiosos em relação às questões pertinentes ao tráfico de drogas nas fronteiras. O maior problema é a descontinuidade das informações. Matérias de interesse não comparecem com frequência nas pautas noticiosas. Em especial, há pouca reportagem resultante de jornalismo investigativo que possa corrigir informações de primeira mão que, posteriormente, se revelaram inconsistentes. É também preciso considerar que a própria linguagem jornalística deixa entrever interesses midiáticos na colocação de matérias sob determinado foco ou ângulo, obscurecendo com frequência questões fundamentais. Não raro, o caráter espetacular de uma apreensão deixa em segundo plano informações sobre operações, atores envolvidos, cadeias de eventos, conflitos envolvendo autoridades.
Além dessas fontes, foram armazenados dados compulsados nos já mencionados World Drug Report, publicação anual do UNODC – United Nations on Drugs and Crime. Esses relatórios (WDR), editados anualmente desde 1997, vêm se firmando como fonte indispensável para o conhecimento dos mercados de diferentes drogas ilícitas, para conhecimento das tendências do mercado consumidor e para avaliação do impacto das políticas públicas na redução dos problemas decorrentes das atividades ilegais. Particularmente, os volumes dedicados ao mercado focalizam prioritariamente três classes de drogas: cocaína, opiáceos (ópio, morfina e heroína) e canabis. Ocupa-se tanto do plantio quanto da produção. Igualmente, confere ênfase às tendências de apreensão de drogas nas rotas de tráfico de maior intensidade, às tendências de destinação para todos os países e às tendências quanto ao mercado consumidor.
Os relatórios trabalham com unidades como hectares para dimensionar a evolução do plantio; com o conceito de toneladas de cocaína apreendidas em operações policiais para avaliar o volume do comércio e de seu valor; e com o número de usuários em diferentes categorias (usuários eventuais, usuários habituais, usuários com problemas de saúde mental) com o propósito de estimar o tamanho do mercado consumidor e as tendências periódicas de retração ou expansão de consumidores. Dado que esses relatórios vêm sendo publicados regularmente, eles permitem um conhecimento de série histórica de média duração (1997-2019). Resultado de inquérito realizado junto aos governos nacionais podem eventualmente apresentar distorções. Ao mesmo tempo, sua leitura atenta sugere algumas mudanças de natureza metodológica adotadas para melhorar a qualidade do dado trabalhado e divulgado.
Outras fontes importantes compreendem: Institute for Security & Development Policy, The International Association for the Study of Organized Crime, United Nations Interregional Crime and Justice Research Institute; Programas especiais do Wilson Center, do World Economic Forum, do Elcano Real Institute (Espanha); Centre for Financial Crime and Security Studies, World Bank, FBI (Transnational Crime Threats and Programs), U.S. Departament of Justice (Financial Crime Report), Nathason Centre on Transnational Human Rights Crime and Security (Toronto, Canadá). No Brasil, informações disponíveis encontram-se em: CNI (Conferência Nacional de Indústria – Programa de Governança para a área de Segurança Pública –, Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) e o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), além dos projetos que estão sendo desenvolvidos em todo o país, vinculados às universidades sobretudo públicas, com apoio de agências de fomento, como o CNPq.
Esse núcleo documental reflete sobretudo o interesse dessas agências a respeito do impacto das organizações criminais transnacionais e nacionais sobre a economia global. Em geral, parte dessas agências está interessada em comparar o quanto essa economia subterrânea pesa no conjunto da economia mundial e globalizada; o quanto reduz ou limita o desempenho e lucro das empresas legais e o quanto desestimula investimentos na economia dado o cenário de insegurança pública que perdura por décadas. Embora revelem menor interesse, igualmente apontam para problemas relacionados aos custos sociais, diretos e indiretos, que o crime organizado, em suas diferentes modalidades, produz, em termos de vidas humanas, desemprego, pobreza e persistência de desigualdades sociais, generalização da corrupção, assim como seus efeitos sobre a estabilidade das democracias liberais representativas.
Conclusões
O propósito deste artigo não foi apresentar resultados da investigação, porém apontar problemas com os quais se defronta o pesquisador cujo objeto reside na observação e análise de fluxos da produção, circulação, tráfico, distribuição e consumo de drogas ilícitas. A par dos problemas conceituais apontados, relativamente ao conceito mesmo de crime organizado e sua aplicabilidade, o artigo buscou identificar problemas relacionados ao modo como diferentes fontes de informação são produzidas, organizadas e divulgadas. Nenhuma fonte está isenta de limitações e dos interesses daqueles – atores e instituições – que os produzem, tampouco o trabalho de campo baseado em observação de contextos, cenários e situações e no depoimento de sujeitos observados, neste caso, os diferentes participantes anteriormente mencionados: agricultores, contrabandistas, revendedores de toda a espécie no varejo e no atacado e, ao final, consumidores. O emprego de fontes enseja cuidados e focos determinados para que não se tome representações sobre fatos e acontecimentos como se fossem a verdade por si.
O conhecimento das limitações e sua adequada integração ao trabalho de observação e análise configuram exigências preliminares para tarefas e procedimentos metodológicos indispensáveis à análise, como sejam o cotejo de informações extraídas de fontes diversas bem como a comparabilidade entre atores, organizações, contextos históricos, especificidades políticas e singularidades culturais. Certamente, o estudo do crime organizado em distintos países pode levar a conclusões convergentes no que concerne, por exemplo, a seus efeitos em termos da violência subjacente, da corrupção de autoridades civis e políticas, da desorganização das bases comunitárias e societárias da vida coletiva, da decadência ou do renascimento de cidades, do comprometimento do Estado de Direito e da vida democrática, aspectos centrais para a compreensão de nossa contemporaneidade.
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Notas