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Da ação coletiva ao crime: repertórios de movimentos sociais e facções prisionais*
From collective action to crime: repertoires of social movements and prison factions
Da ação coletiva ao crime: repertórios de movimentos sociais e facções prisionais*
Revista Brasileira de Sociologia, vol. 7, núm. 17, pp. 184-200, 2019
Sociedade Brasileira de Sociologia
Recepção: 23 Fevereiro 2019
Aprovação: 20 Maio 2019
Resumo: O trabalho discute a organização prisional em facções a partir de paralelos com ações coletivas, com teorias dos movimentos sociais para lançar luz às práticas das facções prisionais. Dessa forma, baseado em um trabalho de inspiração etnográfica em prisões masculinas e femininas no Rio de Janeiro, Manaus e Fortaleza, abordaremos convergências e diferenças entre o modus operandi das facções prisionais do país, Primeiro Comando da Capital (PCC), Comando Vermelho (CV), Facção do Norte (FDN) e Guardiões do Estado (GDE) e movimentos sociais. Desde 2006, aumentaram significativamente as rebeliões, queima de veículos e transferência de presos, como instrumentos de barganha, aqui entendidas como repertórios. A pesquisa aponta para um funcionamento das facções que, por ser empiricamente orientado, traz elementos inovadores para pensar os limites e as possibilidades das teorias da ação coletiva.
Palavras-chave: Facções prisionais, Ações coletivas, Movimentos sociais.
Abstract: This article aims to discuss the current prison organization in prison gangs within their parallels with contentious politics. Therefore, inspired by an ethnographical informed work in both men and women’s penitentiaries in Rio de Janeiro, Manaus and Fortaleza, we shall discuss some convergences and differences among the modus operandi of prison gangues in the country, Primeiro Comando da Capital (PCC), Comando Vermelho (CV), Facção do Norte (FDN) and Guardiões do Estado (GDE) with social movements. Social movements and contentious politics theories will be utilized, in order to illuminate contemporary practices used by prison gangs. Since 2006, there has been a significant increase on rebellions, car burning and prisoner’s transference in Brazil, as forms of bargaining, here understood as repertories. The results of this research point to gang functioning that, for its empirical orientation, bring innovative elements to think limits and possibilities of collective actions theories.
Keywords: Prison gangs, Collective actions, Social movements.
Introdução
A história do texto se confunde com a gênese das facções criminosas no Brasil. No Rio de Janeiro, na década de 1980, documenta-se que o Comando Vermelho (CV) surgiu no presídio da Ilha Grande, afastado da cidade, a partir da proximidade entre presos comuns e políticos durante a Ditadura Militar (1964-1985). Entre os resultados dessa mistura, assaltantes e homicidas comuns conviveram proximamente com presos por delitos de opinião, participando de coletivos, entre outras coisas. Tal agremiação fez com que eles buscassem melhorias em suas condições de vida, assim como sua politização ajustou suas ações coletivas para alcançar seus objetivos. Em 1979, os presos políticos foram libertados pela Lei da Anistia, mas os prisioneiros comuns utilizaram sua experiência para fundar o CV (AMORIM, 1993).
A mistura entre categorias nativas e analíticas no texto tem sua gênese no contato entre integrantes do lucrativo mercado do crime no Brasil com movimentos sociais de esquerda, decorrendo no surgimento das facções criminosas, doravante referidas como facções prisionais, pela ênfase conferida em sua presença e atuação nos presídios brasileiros. Utilizamos o conceito de facção prisional e não de gangue prisional (prison gang), fazendo jus à ideia de um continuum entre a atuação nas ruas e no sistema prisional desses grupos (AZEVEDO e CIPRIANI, 2015; BIONDI e MARQUES, 2010). Da mesma forma, referenciar as gangues seria enfatizar o período anterior da organização criminal brasileira, de maior pulverização do tráfico a varejo de drogas, sem atentar para as transformações recentes das formas de fazer o crime, suas alianças, resistências e rivalidades (PAIVA, 2019).
O texto busca analisar as facções prisionais à luz de conceitos provenientes dos movimentos sociais, refletindo sobre suas práticas recentes, no Brasil. Esses estudos possuiriam uma maior fundamentação empírica do que os trabalhos realizados até o momento sobre o crime organizado funcionando dentro do sistema carcerário. Dado o caráter empírico da discussão, embasada em um trabalho de campo realizado entre os meses de março e setembro de 2017, em penitenciárias no Rio de Janeiro, Fortaleza e Manaus, buscaremos substancializar conceitos advindos dessa literatura específica.
A discussão sobre o sistema prisional é emblemática no Brasil, em virtude do aumento significativo de sua população carcerária nos últimos anos, com 622 mil presos, para 250.318 vagas[1], sendo que, desse total, cerca de 40% dos internos aguardam a condenação. O aumento de 575% da população carcerária, entre os anos de 1990 e 2014 (CROZERA, 2017), alçou o país ao terceiro lugar no ranking de encarceramento mundial, atrás dos EUA e da China.
A prisão é o espaço onde o Estado mantém sob controle os aspectos mais íntimas da vida dos sujeitos (FOUCAULT, 1977). O fazer viver . deixar morrer foucaultianos podem ser substancializados nos dados de mortos dentro dos presídios, que – excluindo os dados de São Paulo e Rio de Janeiro -, no primeiro semestre de 2014, chegaram a 565 mortes[2], sendo que, aproximadamente, metade dessas foi classificada como violentas intencionais.
Lançamos mão de uma metodologia qualitativa, com uma pesquisa de campo etnográfica e trinta entrevistas semiestruturadas com atores do sistema penitenciário, que incluíram parlamentares, agentes prisionais, detentos, diretores de presídios e pesquisadores. Ademais, foram nove unidades prisionais visitadas nas cidades de Fortaleza, Rio de Janeiro e Manaus. Tal recorte geográfico se justifica na importância relativa desses contextos na rota do narcotráfico nacional e internacional, tal qual na proeminência das facções prisionais[3] abordadas nesse texto.
Dessa forma, a estrutura do texto conta com três partes. Na primeira, revisitaremos o conceito de repertório como um operador analítico para o entendimento das facções prisionais, explorando as possibilidades da analogia entre crime e ação coletiva. O texto prossegue com um breve histórico sobre tais grupos criminosos, principalmente a partir de seus expoentes principais: Comando Vermelho (CV), Primeiro Comando da Capital (PCC) e Facção do Norte (FDN). Finalizamos essa reflexão com uma análise sobre os repertórios de ação utilizados pelo mercado prisional, enfocando a organização, negociação, rebelião, a queima orquestrada de ônibus e um uso estratégico da violência.
O repertório como um viés explicativo para as facções prisionais
Alonso (2009) aponta como as teorias sobre os movimentos sociais se constituíram no Ocidente na década de 1960, quando esse termo foi cunhado para designar mudanças pacíficas e indiferentes ao Estado. A noção está associada à emergência de coletividades nacionais e modernas, no século XIX e à delineação de confrontos políticos coletivos e assimétricos (TILLY, 1978).
Na década de 1960, Touraine alertara para a importância de considerar os movimentos sociais como parte de uma sociologia geral, relacionados aos movimentos societários mais amplos, pressupondo o entendimento de suas relações com a economia, política e cultura. É preciso associar as formas e os contextos de atuação dos movimentos vis-à-vis os seus momentos históricos específicos.
No bojo da teorização dos movimentos sociais, surge o conceito central de repertório de ação (TILLY, 2000), que diria respeito às cenas e papéis que são atuados, inteligíveis em seus mundos sociais, mas transformados em modos de ação pública dominante, comunicados a uma audiência mais ampla como traços dessa força. A analogia com um leque é importante, pois considera formas de fazer política em um dado período histórico, apesar de modificado com o passar dos anos. Nesse texto, consideraremos tal noção para pensar seu potencial heurístico em demonstrar como práticas rotinizadas das facções assemelham-se às rotinas de movimentos sociais.
Para Tilly, os repertórios incluem padrões espaço-temporais determinados, nos quais as pessoas dispõem de um número específico de meios para serem ouvidas, logo, os utilizam com maior regularidade. Para o autor, a pobreza, o desemprego e outros problemas não seriam condições suficientes para a deflagração de protestos, sofisma corrente nos estudos sobre mobilizações coletivas até aquele momento, posto que seria necessário considerar a matriz de relações políticas nas quais os movimentos se inserem, assim como suas lutas prévias e respostas estatais a esses.
Ademais, Tilly (1985) confere centralidade às cidades para o entendimento dos movimentos sociais, enquanto elementos facilitadores ou impeditivos das mobilizações. No presente texto, o tipo ideal tilleano que postula a existência de um continuum lógico entre violência – mobilização – repressão é útil para entender como a ação de reprimir pode desencadear ações ainda mais violentas. Assim, o autor já assinalava que tanto a repressão quanto a violência por parte dos aparatos coercitivos estatais definem, em grande medida, o modus operandi de seus líderes e opositores.É nesse sentido que buscaremos entender a origem das facções prisionais atuantes no país, quando lutam contra as opressões no sistema carcerário.
As rebeliões e queimas orquestradas de ônibus são consideradas a partir da inovação das mobilizações por parte de atores que já partem de uma tradição de protestos à disposição, tomando emprestadas formas reproduzíveis e transportáveis, além de testadas por outros movimentos. Não é necessário afastar-se das teorias dos movimentos sociais para enxergar essas ações como parte do repertório de contestação em nossa época, em que as crises do sistema prisional podem ser pensadas como um ciclo de protestos. Esses, para Tarrow (1995), são demonstrações públicas crescentes, com maior frequência e intensidade que, usualmente, envolvem atores sociais e novas formas de organização.
Existem, portanto, algumas convergências nos termos utilizados por ativistas e pelas facções prisionais que extrapolam a retórica, como o movimento e o empoderamento das facções, e que demonstram, entre outras coisas, a necessidade de organização para toda a ação – coletiva – dentro do sistema prisional. A noção de coletivo aparece igualmente para Butler, Slade e Dias (2018), os quais afirmam que as prisões são essencialmente baseadas em células, implicando em condições profundamente coletivas.
Analiticamente, a ideia de coletivo de Olson (2009) busca dar conta de características grupais, em que as vantagens coletivas são organizacionais, ao passo que as não coletivas comuns podem ser alcançadas através da ação individual. Assim, somente com propósitos comuns ou benefícios coletivos em jogo, a organização ou a ação social grupal se faz indispensável. Já as categorias nativas incluem o crime enquanto um movimento e PCC como um partido, e, logo, as facções são lidas a partir da movimentação coletiva própria de suas ações. O partido, como afirma Dias (2011b), seria a forma de autoidentificação dos primeiros integrantes do PCC, imbuídos da prerrogativa de aglutinação das massas.
A coletividade é um operador analítico interessante, a partir do que Lessing (2017) chama de efeitos coletivos do encarceramento, entre os quais sublinhamos o fortalecimento das organizações criminosas com base prisional sob a tutela estatal, sobretudo nas unidades superlotadas[4]. Essa situação aumenta o poder das facções sobre aspectos cotidianos da vida na prisão, cujos efeitos são sentidos na possibilidade de projetar poder dessas para seus grupos, nas ruas[5] (LESSING, 2017, SALLA, 2006). Além disso, em termos de mobilização, a violência policial tinha um efeito agremiador maior entre os detentos, do qual o massacre de Carandiru, em 1992, é emblemático, perdendo espaço, atualmente, para a disputa entre as facções no país.
Deixadas com seus próprios recursos, as facções prisionais se propagam rápido pelo sistema prisional, projetando poder para as ruas, organizando as atividades ilegais – sobretudo o tráfico de drogas – de maneira que maximizam os lucros para as lideranças atrás das grades. Assim, as prisões se tornam sedes resilientes dos criminosos, e seus líderes continuam a comandar as operações mesmo encarcerados, chegando ao sistema marcados por uma forte identidade grupal, normas comportamentais e reputações amplamente difundidas. Lessing (2013) afirma que o CV e PCC seriam exemplos emblemáticos desse sucesso, posto que projetaram poder e expandiram suas operações para além das grades, com poucas consequências.
Para Godoi (2014), existem algumas conexões entre eventos que demonstram a presença de facções, como acontecimentos e movimentos que dão significado para o crime. Dessa forma, o crime é um movimento feito de outros movimentos nos quais vão sendo tramadas, à base de negociações inconstantes, redes instáveis de relações pessoais, atravessando territórios, definindo protagonistas e antagonistas, razões para vinganças, e, inclusive, interpelando pessoas que nunca desejaram envolver-se com ele e que tentam contorná-lo (CANDOTTI, CUNHA e SIQUEIRA, 2017).
Essas redes sofrem processos de hierarquização e agrupamento, forjando coletivos, invariavelmente frágeis e reconfigurados, às vezes em função de dinheiro, ou de considerações de uns sobre ações de outros. Além disso, as renegociações às margens do Estado são importantes, dado que é preciso atentar para uma fronteira nessas relações, situada entre a miríade de agências que fazem o Estado e os movimentos que fazem o crime.
Afinal, o Estado é feito à base de negociações que redefinem constantemente as fronteiras internas e externas entre o legal e o ilegal, o formal e o informal e o lícito e o ilícito. Para Candotti, Cunha e Siqueira (2017), pensar as facções prisionais propicia que desvelemos falsas separações entre o Estado e o crime organizado, que implicam em negociações entre os sujeitos os quais guardam entre si uma assimetria. Isso, pois, haveria uma inegável capacidade articuladora e aglutinadora das facções prisionais, como afirma Brandão (2013), ainda que confinados em instituições potencialmente dessocializantes, eles conseguem construir redes que chegam também a se fundamentar enquanto forças organizadas e pautadas no simbolismo do crime. Esse é o ponto de partida para tais relações sociais e de poder ligadas à pena e ao castigo social e juridicamente impostos.
Tratamos, afinal, de uma instituição cujo propósito afirma ser a ressocialização, mas que serve a outras (perversas) finalidades. Para Salla (2006), o potencial de des-socialização dos estabelecimentos penais é proposital, dado que o Estado encontra-se diretamente implicado no crescimento e fortalecimento das facções, ao descumprir com os requisitos básicos para o encarceramento dos indivíduos, com estabelecimentos lotados, em condições sanitárias ruins. Além disso, como são provenientes das camadas pobres da população, não possuem suportes sociais, e essa precariedade estimula uma rede de solidariedade entre os presos e os coloca na dependência dos grupos criminosos organizados, que mobilizam recursos para o atendimento das necessidades de seus integrantes, como advogados e apoio à família (por exemplo, para o transporte até a prisão, remédios, assistência médica, etc.).
As facções prisionais: uma história do crime radicalizado sob a tutela do Estado
Graças a Deus, o sistema tá na paz, guerra tá lá fora. (Luis, detento do CPPL2[6])
A definição de Skarbek (2014) sobre no que consiste uma facção prisional é importante, enfatizando a natureza seletiva do seu pertencimento, sua existência como entidade corporativa, organização em estrutura hierárquica, recrutamento de membros dentro das unidades e um envolvimento em comportamentos criminais. São muitas as atividades e características comuns, mas dentre as variações internas em meio a tais grupos, há uma diferença crucial entre como são recrutados seus membros, que nem sempre já pertenciam a alguma facção fora do presídio (BUTLER, SLADE e DIAS, 2018).
O sistema penitenciário do Amazonas, com seus 10.333[7] detentos registrados em 2016, possui uma taxa de ocupação prisional de 220%, acima da média nacional, que gira em torno de 161%[8]. Desde 2012, nesse estado, as reconfigurações da violência podem ser vistas a partir dos signos “FDN”, “FDN-CV” nas ruas, que ganham espaço como expressões de condutas orientadas para a constituição de movimentos do crime, que inclui cidades interioranas no Norte e no Nordeste. Já Siqueira (2017) menciona a presença das narrativas e signos da Família do Norte (FDN), e seus 13 mil filiados[9], em Fortaleza. Some-se a isso um aumento significativo de batismos do PCC nessa região. Para Cesar[10], da Secretaria de Administração Penitenciária do Amazonas, a FDN surgiu “do deslocamento dos presos de Manaus, em contato com o CV nos presídios federais, que gere o crime de forma mais empresarial”.
Para Siqueira (2017), a narrativa usual do surgimento e ascensão da FDN no sistema penitenciário, inclui a busca por impedir a hegemonia do PCC nas prisões amazonenses por outras facções. Em 2012, o FDN e o CV anunciavam o rompimento de sua aliança, formada em 2007, que influenciava diretamente os mercados ilícitos na região Norte-Nordeste, tendo rompido esse mesmo ano com o PCC. O ano seguinte foi de rebeliões e massacres, com funcionários reféns, mortos e reivindicações contra as condições de encarceramento, agravando as lutas de eliminação nas unidades prisionais de Manaus e a disputa por territórios para a operação do narcotráfico.
Já o sistema penitenciário de São Paulo possui 260.061 detentos, segundo dados de 2016[11]. O PCC surgiu dentro desse ambiente em 1993[12], com uma expansão, posteriormente, para as periferias da capital e do interior de São Paulo. Com o lema Paz, Justiça, Liberdade, Igualdade e União, teria se difundido pelo sistema prisional em outros estados brasileiros, controlando um amplo leque de atividades ilegais nas prisões e nas comunidades (LESSING, 2013). Conta atualmente com cerca de 22,6 mil membros e um estatuto rigoroso, regendo a conduta de seus membros, com itens que incluem a luta contra a opressão do sistema prisional e valores relacionados à lealdade.
A narrativa usual sobre sua gênese afirma que o objetivo inicial era fazer frente à violência do Estado no tratamento dos presos e na violação dos direitos deles. Contudo, o crescimento vertiginoso da população carcerária paulista em pouco mais de duas décadas e sua dispersão para o interior do Estado favoreceram sua consolidação e ramificação (DIASa, 2011). Assim, em vinte anos, o PCC passou a regular diversas atividades criminais em todos os Estados do Brasil, especialmente o tráfico de drogas. A força do PCC reside também na ausência física de seus integrantes, dado que já se constituiria como uma ideia, mantida pela repercussão e fortalecida pelos que a manifestam (BIONDI, 2017). Tal ideia adquire uma força exterior aos seus integrantes e aos que com ele se relacionam, produzindo disposições e associações, garantindo sua permanência nas práticas mais cotidianas.
Por sua vez, o sistema penitenciário do Rio de Janeiro conta com 50.440 detentos, e uma capacidade de 28.688, possuindo cerca de 21 mil presos pertencentes ao CV[13]. O controle desse sistema propiciou a expansão dessa facção, anteriormente nomeada Falange Vermelha, na década de 1980, dominando o mercado a varejo das favelas em que operavam. O CV configura-se como o primeiro caso documentado de uma facção prisional, cuja existência no Brasil é relativamente recente (LESSING, 2013).
Conquanto seu lema na época fosse “Paz, Justiça e Liberdade”, atualmente, esse foi abandonado para uma transformação do grupo em braço armado do crime (AMORIM, 1993). Ao contrário do PCC, que conta com estrutura administrativa centralizada, o CV é bastante horizontalizado, funcionando com um colegiado, responsável por autorizar ou não ações orquestradas. Para Brandão (2013), o CV e o PCC emergiram a partir da desumanização característica das penitenciárias brasileiras. Ambos os grupos possuem uma ampla organização que, na prática, implica em um poder exercido por sua classe dirigente, que escreveu seus respectivos estatutos, tornando-os eficientes ao consolidar uma base de redes. Assim, os grupos começaram a funcionar de forma relativamente autônoma, mas interligados ao grupo dirigente. Uma vez emitida uma ordem (de dentro das prisões, onde estão as lideranças), ela será cumprida por qualquer subgrupo que esteja ao alcance temporal e geográfico de fazê-lo.
Após consolidarem o aparato organizacional do PCC e do CV, esses passaram para atividades fora do sistema carcerário, organizando o tráfico de drogas e outras atividades, a partir da oferta de benefícios coletivos. Além disso, os grupos oferecem proteção dentro das prisões (no caso de ameaças de morte ou de estupro) a todos os membros da organização (BRANDÃO, 2013).
O sistema penitenciário do Ceará conta com 21.320 detentos[14], e se outrora, na década de 1970, era considerado modelo, desde então, aumentou consideravelmente seu contingente prisional. Segundo o Relatório de Monitoramento de Presos nas Unidades Prisionais do Ceará, em dezembro de 2014, eram 10.602 vagas disponíveis, e 50% de presos provisórios, implicando em uma superlotação de mais de 200% da capacidade total.
Para o pesquisador Francisco[15], da Universidade Federal do Ceará (UFC), a Guardiões do Crime (GDE) surgiu após a pacificação[16], no Conjunto Palmeiras, uma favela em Fortaleza. O PCC teria obtido seu primeiro momento nos anos 2000, de roubos a bancos; logo depois, em 2006 e 2007, sequestros; em 2012, homicídios e, em 2013, roubos a bancos no interior. Ele comenta que, apesar de a expansão da população carcerária estar muito ligada ao aumento de batismos realizados pelo PCC, esse enfrentou uma resistência inicial forte do CV.
Francisco prossegue: “O tráfico a varejo de drogas é organizado na prisão e os ataques são crescentemente direcionados contra o Estado. A frase mais escutada é de os vagabundos não estão mais se matando entre si”. O governo estadual protelou em admitir a presença do PCC, tendo reconhecido à força sua presença no Estado em 2016, embora conste no estatuto do GDE, que o grupo está no Ceará há mais de 5 anos. Julia[17], defensora pública, afirma que a política das autoridades cearenses negava a existência das facções, em um movimento semelhante ao governo estadual de São Paulo. Para ela, “há um movimento de empoderamento das facções no Ceará, elas se unem”.
Em maio de 2016, agravou-se a crise penitenciária no Ceará, com a organização das facções prisionais e a intensificação de suas disputas por espaço no mercado das drogas, cuja inflexão ocorreu em rebeliões simultâneas em Fortaleza e no interior do Estado, resultando na morte de 18 internos. Os repertórios de ação utilizados pelas facções prisionais
Primeiramente, sublinhamos a organização prisional ditada pelas facções, essencial para o funcionamento regular do sistema prisional. Para Cesar, diretor de uma unidade prisional, os presos “são muito organizados, [...] a gente até brinca que, se a rua tá muito bagunçada, o sistema não tá funcionando”. Já Francisco[18], diretor do CPPL IV, sintetiza: “Asfacções são meios de organização.” Para o agente penitenciário Marcelo[19], a mudança trazida pelas ações coletivas fala de uma “sensação de que estão mais ordeiros, não tem mais tanta bagunça, antes batiam nas grades por qualquer bobagem, batiam à noite; hoje em dia, não batem mais”.
A negociação entre presos, notadamente suas lideranças, e o sistema penitenciário pode ser encarada como um repertório à disposição. Desde a década de 1970, Amorim (1993) menciona as conversas, no presídio da Ilha Grande, entre autoridades e detentos, para discutir as reivindicações, de maneira mais ou menos organizada. A defensora pública Julia localiza, em 2004, uma inflexão: “Antes, diretores desciam e negociavam com os presos, agora, já não mais, […] a coisa mudou, eles mandam representantes e não vão, as lideranças que vão não cumprem tratados”. Do outro lado, João, agente penitenciário, afirma que “líder não aparece, quem aparece é líder da rua, o representante”.
A negociação entre os internos, líderes dos comandos e autoridades, é recorrente, negociando as transferências de membros importantes e assim controlando uma parte das prisões do país (LESSING, 2013). Em tese, essas movimentações são proibidas, mas Rodrigo[20], da Secretaria de Estado de Administração Penitenciária (SEAP), no Rio de Janeiro, afirma que “a lei estadual proíbe, em tese, a divisão dos presídios por facções, mas ela acontece na prática”.
De forma mais disruptiva, a rebelião aparece como um importante repertório. Essa, para Adams (1994), consiste em um contínuo de práticas inerente ao encarceramento, envolvendo dissenso e/ou protesto por parte de presos que tomam os recursos dos presídios e expressam demandas por mudanças, e igualmente, segundo o autor, é emblemática da hostilidade dos presos em relação ao “poder estabelecido”. Ademais, Salla (2006) comenta que as rebeliões são desdobramentos de fugas frustradas, recursos de negociação da qual lançam mão os presos que buscam fugir e não conseguem, procurando evitar penalidades, provocando um caos momentâneo, que permita ampliar as chances de fuga.
Ainda assim, nos últimos anos, no Brasil, vêm aumentando as rebeliões que não apresentam queixas e propostas, mas servem para reorganizar o poder entre os grupos criminosos sobre a massa carcerária. Elas têm sido provocadas por disputas entre as facções, servindo como acerto de contas, assassinato de lideranças rivais, vingança dos assassinatos de companheiros em outras prisões e repactuação das relações entre os grupos criminosos e, por vezes, entre eles e o staff (SALLA, 2006).
A rebelião aparece como um repertório importante utilizado pelas facções, uma forma de barganha, segundo Julia, a qual afirma que essas seriam a única forma de o Estado atentar para o problema faccional. Para Crozera (2017), somente massacres burlam com a indiferença geral ao sistema prisional, trazendo à tona seus problemas. Não à-toa, esses começaram a acontecer com maior frequência a partir de assassinato de membros do PCC, após o rompimento de sua trégua com o CV, que durou mais de vinte anos, em 2006[21].
A partir de 2006, notadamente em São Paulo, as rebeliões tornaram-se mais frequentes, coordenadas, com exigências e objetivando desacreditar o
Estado enquanto capaz de manter a ordem e a segurança (CARVALHO FILHO, 2002). O diretor da CPPL II, Rubem[22], complementa:
Na rebelião de maio de 2016, morreram quatro aqui, mas era acerto de contas. A secretária perguntava pra gente, quantos mortos tinham e a gente respondia três ou quatro, porque eles não queriam entender que era uma fogueira humana, não dava pra saber quem é quem na fogueira.
Para Salla (2006), as mortes que as rebeliões vêm deixando, nos últimos dez anos, não são ocasionadas pela ação policial de contenção, mas por outros presos, dadas às disputas presentes. Assim, essas funcionam igualmente para demonstrar a incapacidade do Estado em controlar a dinâmica prisional, em fazer valer princípios fundamentais de respeito à integridade física dos detentos.
O uso instrumental da violência, que consideramos outro repertório das facções, portanto, pode ser exemplificado nas rebeliões de 2001, em São Paulo, com a escolha de uma data certa, no dia de visitas de familiares e amigos de presos, de forma a conter uma reação violenta das autoridades. Para Salla (2006), nesse episódio, que terminou com vinte mortes, a presença de milhares de familiares no interior das prisões tornava a situação mais complexa. O autor afirma que as rebeliões servem como protestos contra a superlotação, a alimentação inadequada, os maus-tratos, entre outras coisas.
Esse uso é estratégico, dado que, quanto maiores os recursos das facções, é mais provável que tenham ações violentas e provoquem a desordem (LESSING, 2013). Para Dias (2012b), a violência não precisa mais ser tão evidente conquanto ela funcione a partir do gerenciamento da massa carcerária e posta em prática mediante os múltiplos controles efetivados no cotidiano da prisão, e não mais através da força para afirmar o poder. A pax armada pactuada, com bases que não parecem ser de interesse coletivo, consiste na manutenção do gerenciamento e no controle da massa carcerária impondo sua disciplina. O Estado, por sua vez, tem como prerrogativa manter sua soberania na aplicação da punição aos presos. O anúncio deixado em um ônibus, pelo GDE, em 2016, pode auxiliar-nos nessa discussão:
Reivindicamos o direito dos presos – respeito com os presos e com as visitas. Atenção, pois estamos com falta de água e de energia. Cuidado com as comidas, pois muitas vezes são derramadas no lixo. Pedimos que não retirem os presos da cela pra bater. Pedimos que cumpram nossas exigências, pois senão vamos começar a tirar a vida dos Agentes (DE MELO NASCIMENTO, 2017, p. 152)
Francisco relata que, na semana seguinte a esses atentados, o CV lançou uma nota com a afirmação de que o GDE seria o responsável pelas queimas de ônibus. Tais queimas orquestradas funcionam como um termômetro. Já para o parlamentar Fabio[23], esse episódio de “18 ônibus queimados, ao que tudo indica, é relativo à movimentação dos presos para outros presídios”.
No Rio de Janeiro, segundo o jornal O Dia, somente no ano de 2017, foram 51 ônibus incendiados ligados à ação das facções, com dados da Federação das Empresas de Transporte de Passageiros do Rio de Janeiro (FETRANSPOR). Essas queimas estariam vinculadas às rebeliões, segundo Rodrigo, da SEASP, o qual afirma que, “durante o governo da Benedita (primeira grande rebelião foi nesse ano), tiveram queimas de ônibus”, e prossegue “queima de ônibus, no Rio de Janeiro, parte frequentemente de represálias da polícia, o CV já tem um cara pra fazer isso”.
Em contrapartida, mesmo um aumento na repressão estatal aparece como parte de um cálculo estratégico das facções, conforme o exemplo de Lessing (2016), em que essas não podem ser neutralizadas diretamente pelo uso da força repressiva, pois a maioria de suas lideranças já encontra-se presa. Contrariamente, a dura resposta do Estado, como o policiamento ostensivo, grupos antifacções e aumento das penas funcionam de maneira a aumentar a habilidade faccional de coordenar suas atividades nas ruas.
Considerações finais
O planejamento perverso do sistema carcerário, que une em condições insalubres uma maioria de homens e mulheres jovens, pobres e negras e mestiças, em grandes quantidades, tem no aumento dos números dos membros das facções um de seus efeitos mais evidentes no início do século XXI. O texto aborda a produção de falsos antagonismos entre ação coletiva e crime, sobretudo, a partir da análise das facções prisionais, com conceitos advindos das teorias dos movimentos sociais. Dessa maneira, tanto detentos quanto ativistas nas ruas, em suas lutas contra o Estado, assumem uma posição reivindicativa, contra opressões e por melhores condições de vida. Esses demonstram, na prática, conluios perversos entre o poder econômico, político e atores armados, que, invariavelmente, implicam na criminalização dos setores mais débeis da população.
O surgimento das demandas políticas das facções prisionais impõe “uma ordem interna sobre a massa de presos” (SALLA, 2006, p.277), referenciadas pelas organizações criminais com relações nas prisões e fora delas. Para Siqueira (2017), as políticas de encarceramento impactam na emergência e rebelião das facções, que, em sua agenda própria de monopólio da violência, mobilizam as unidades prisionais.
Finalmente, devem ser resguardadas as proporções de uma analogia entre presos como ativistas e facções prisionais como movimentos sociais. Importa guardar as proporções das categorias nativas das lutas contra as opressões de cada grupo, principalmente as relativas à violência gerada pelos mercados do crime. Dessa maneira, não buscamos positivar as ações perpetradas por tais grupos, que incluem mortes e desaparecimentos, ou perpetuar uma visão que negligencie o papel coercitivo e violento desses grupos nas prisões.
Referências
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Notas