Secciones
Referencias
Resumen
Servicios
Descargas
HTML
ePub
PDF
Buscar
Fuente


Rede de proteção e violência: a atuação dos grupos armados e a gestão compartilhada da favela no Rio de Janeiro
Network of protection and violence: the actions of armed groups and the shared management of the favela in Rio de Janeiro
Revista Brasileira de Sociologia, vol. 7, núm. 17, pp. 222-251, 2019
Sociedade Brasileira de Sociologia

Artigos


Recepção: 18 Março 2019

Aprovação: 28 Outubro 2019

DOI: https://doi.org/10.20336/rbs.477

Resumo: O artigo tem por objetivo analisar a rede de proteção e violência pelos grupos armados nas favelas e espaços populares, com base em relatos e vivências de crianças e adolescentes pobres e moradores desses territórios. Entende-se por grupos armados, o institucional, ou seja, a polícia e os vendedores varejistas de drogas. Com base nas práticas, compreendemos que ambos os grupos partilham o controle dos territórios de maneira violenta e, ao mesmo tempo, garantem a proteção aos moradores, seus pares e rivais, em uma dinâmica de cooperação e conflito, compartilhando a gestão do espaço e das relações sociais.

Palavras-chave: Grupos Armados, Violência, Proteção.

Abstract: The article aims to analyze the network of protection and violence by armed groups in favelas and popular spaces, based on the reports and experiences of poor children and adolescents living in these territories. Armed groups are defined as the institutional, that is, the police and drug retailers. It is based on their practices that we understand that both groups share the control of the territories in a violent manner and, at the same time, guarantee the protection of the residents, their peers and rivals, in a dynamic of cooperation and conflict, sharing the management of space and of social relations.

Keywords: Armed Groups, Violence, Protection.

Introdução

A gestão da violência e da proteção em territórios periféricos não é monopolizada apenas por um grupo. Grupos armados interagem para gerir as atividades econômicas, políticas e sociais, cada um à sua forma, construindo uma complexa rede de poder e controle do espaço e das relações sociais, através da cooperação, mas mediante o conflito e violência.

Este artigo é resultado da dissertação de Mestrado, cujo objetivo foi retratar os múltiplos relatos e vivências de crianças e adolescentes pobres, moradores de favelas ou espaços populares sobre a Política de Segurança Pública no Rio de Janeiro. Evidencia a construção que os jovens fazem, quando provocados a refletir sobre a segurança e, ainda, pensa sobre suas representações e a relação com a administração institucional, ou não, dos conflitos.

Nesse sentido, este trabalho tem por objetivo compreender a rede de proteção e violência gerida pelos grupos armados nas favelas e espaços populares, de forma ampla, com base nos relatos e vivências de crianças e adolescentes pobres e moradoras desses territórios no Rio de Janeiro. Entende-se por grupos armados, o institucional-estatal, ou seja, a polícia e os vendedores varejistas de drogas. Mesmo diante das contradições assumidas pelos jovens durante a pesquisa, em relação à proximidade entre as práticas desses grupos, optou-se por utilizar as categorias “polícia” e “bandido”, garantindo a essência de seus relatos.

Saliento a minha opção neste trabalho em denominar dessa forma o público responsável pelo tráfico de drogas e armas, por inúmeras questões. Alguns autores denominam esse grupo como “o grupo criminoso”, porém esse adjetivo pode alcançar diversos outros grupos, para além dos que se estabelecem nas favelas, como veremos no desenvolvimento do trabalho. Há também os que classificam este grupo como: poder paralelo, crime organizado, traficantes e bandidos, todavia todas essas categorias podem limitar o poder de alcance que este público executa no âmbito dos processos de interação social.

Isso não quer dizer que essas expressões não serão utilizadas ao longo do texto, pelo contrário, essa pesquisa se dá com uma multiplicidade de pessoas, que “apelidam” esses grupos da forma que lhe achar conveniente, e será respeitado. Entretanto, é necessário que eu aponte a minha escolha sobre a expressão: grupo armado do comércio varejista de drogas. Optei apenas em traduzir objetivamente a ação que o grupo estabelece originalmente em determinados territórios, onde o comércio de drogas foi implementado, a partir de um pequeno grupo, através do uso da força que se efetua com o formato de utilização do armamento bélico.

Em retorno, é importante considerar que a segurança e a proteção coletiva não são administradas apenas por órgãos estatais do Governo. Elas devem ser encaradas a partir das dimensões de igualdade, diferença e legitimidade das práticas desenvolvidas pela polícia e pelos bandidos, para a manutenção da ordem social. Os relatos dos entrevistados trazem elementos da atuação desses grupos armados que se aproximam e têm algum grau de semelhança, seja do ponto de vista da violência, como as formas de administrar os conflitos no território, o combate ao crime e a produção das mortes, por exemplo, seja em relação à proteção, desde a segurança das pessoas que vivenciam esses territórios até as garantias dos direitos sociais mais básicos, como alimentação, habitação e saúde.

É importante ressaltar as particularidades desta pesquisa, cujo interlocutores são crianças e adolescentes, entre 8 e 16 anos de idade, que integravam um projeto social em uma cidade da região metropolitana do Rio de Janeiro. Em sua maioria, estudantes da rede pública de ensino, beneficiários dos programas de transferência de renda do Governo e moradores de favelas e espaços populares. Os relatos foram colhidos no cotidiano das atividades diárias que estavam submetidos no projeto ou ainda nos espaços escolares e domiciliares e, também, mediante diálogos construídos em atendimentos individuais ou coletivos favorecidos pela minha função no projeto, enquanto assistente social.

Em tese, as práticas estatais fariam a dominação de caráter racional, como explicitado por Weber (1999) e teriam o “monopólio da força física legítima”. No entanto, observamos, a partir da atuação, que o Estado não tem o monopólio integral da força física e muito menos a aplica apenas em situações legítimas (ADORNO & DIAS, 2014). Muitas mortes e práticas poderiam ser percebidas como ilegais, mas, na verdade, não o são, por falta de investimentos em investigação e em insumos ao confronto.

Por isso, ao discutir a forma de administração dos conflitos no território favelado, pela polícia e pelo bandido, identificamos questões transversais à atuação dos dois grupos, como: a tortura, a crueldade, a atrocidade e o assassinato, por exemplo. A coação e a proteção que os dois grupos executam nos espaços favelados têm relação direta com a construção do Direito e dos direitos na sociedade, causando um paradoxo entre o estranhamento e a validade das normas e práticas de poder na favela, de ambos os grupos.

Nesse sentido, de certa maneira, existe um apoio por parte dos interlocutores da pesquisa ao contexto de violência e criminalidade, que ambos os grupos cometem, na medida em que os alvos não sejam eles próprios. Não que eles façam uma adesão ao crime, ao contrário, eles aderem a proteção que cada grupo, em virtude de força, inclusive violenta, pode ter a seu favor. Enfim, com base nas suas práticas, compreendemos que ambos os grupos compartilham o controle dos territórios de maneira violenta e, ao mesmo tempo, garantem a proteção aos moradores, seus pares e rivais, numa dinâmica de cooperação e conflito, compartilhando a gestão do espaço e das relações sociais.

Favela: condições de existência

A concepção de favela está permanentemente em disputa e carrega a segregação, desde seus mais variados conceitos até a dinâmica da realidade concreta. O imaginário social trabalha a favela a partir de um determinismo social, associado à violência, miséria e às ausências, de direitos, de poder público, de estrutura, de cultura e de cidadania. Definida, muitas das vezes, pelas ausências estatais e pelo caos violento, esses territórios são homogeneizados, precarizados e criminalizados a maior parte do tempo, como um não lugar, lugar vazio pobre e violento.

Contudo, Lícia Valladares (2000) constrói um importante trabalho de resgate da história política e social da favela no início do século XX. Segundo a autora, existe uma dupla explicação para o surgimento desse novo espaço geográfico, o primeiro relativo à semelhança com as construções dos casebres e barracões dos cortiços e, por outro lado, diz respeito ao processo de ocupações ilegais inerentes à atividade da Prefeitura de destruição dos cortiços. Enfim, os esforços políticos, sociais e científicos se voltaram para essa área após a campanha contra os cortiços, no sentido de que aquele lugar era o produto mais recente de territorialização da pobreza. É entre ruas, becos e vielas que os moradores se estreitam e confidenciam a dinâmica real do seu processo de sociabilidade.

A favela ficou também registrada oficialmente como a área de habitações irregularmente construídas, sem arruamentos, sem plano urbano, sem esgoto, sem agua, sem luz. Dessa precariedade urbana, resultado da pobreza de seus habitantes e do descaso do poder público, surgiram as imagens que fizeram da favela o lugar de carência, da falta, do vazio a ser preenchido pelos sentimentos humanitários, do perigo a ser erradicado pelas estratégias politicas que fizeram do favelado um bode expiatório dos problemas da cidade, o ‘outro’, distinto do morador civilizado da primeira metrópole que o Brasil teve. (ZALUAR, 2001, p.8)

Nesse trecho, a socióloga Alba Zaluar evidencia claramente a vinculação da favela com a pobreza e os sentimentos de solidariedade e caridade que envolvem o senso comum sobre os temas. A associação entre pobreza, favela e criminalidade tem ensejado num movimento estigmatizador das pessoas que possuem diversas variáveis. Temos, com isso, a criminalização da pobreza como um instrumento que tem sido ampliado em seus desdobramentos. Criminalizar o pobre incide em selecionar um público determinado para compor o sistema carcerário e as mortes violentas. Michel Misse (1993) evidencia que, através da percepção social e da mídia, certos tipos de criminalidade têm sido selecionados como componente da violência urbana a ser combatida.

Enfrentar o que há de errado na associação pobreza-crime no imaginário social, para além de sua virtude intrínseca, parece que entrelaçou indevidamente problemas de representação, com suas categorias práticas, e problemas de explicação, recalcando para um obscuro plano implícito questões decorrentes de uma associação complexa cuja simplificação, nos discursos sociais, facilita sua falsificação pelo discurso sociológico, particularmente quando este prefere um recorte de denúncia (com todas as possíveis implicações etnocêntricas) fundada em “valores universais”, cuja significação cultural para a nossa época é irreprochável, mas que não esconde sua superficialidade. (MISSE, 1993, p. 13. GRIFOS DO AUTOR)

Marcos Alvito de Souza (2011) lançou a obra “As cores de Acari: uma favela carioca”. No livro, o autor expressa, a partir de uma etnografia realizada em três favelas e um conjunto habitacional de Acari, a dinâmica de poder que ocorre nesses espaços, tanto com as incursões policiais, a posição do tráfico na favela, quanto com a presença de políticos, lideranças comunitárias e manifestações religiosas, promovendo a discussão sobre a disputa de poderes no território favelado em meio a sua complexidade. Machado da Silva (1994; 2004; 2007) e Marcia Pereira Leite (2004; 2007) ressaltam em diversos trabalhos os múltiplos olhares do poder nas favelas cariocas a partir dos relatos que os moradores de favelas têm sobre a violência em relação à presença de grupos criminosos e forças policiais. Já Michel Misse (1997; 2007; 2011) tem importantes contribuições, em que expressa as ligações perigosas produzidas nas relações dos mercados informais, ilegais e ilícitos coadunando com as práticas policiais. Isso mobiliza as redes de proteção envolvidas nessas relações, salientando a disputa por controle dos territórios das favelas.

A favela é carregada de estigma, que, segundo Goffman (2004), é uma construção social estabelecida para categorizar a identidade das pessoas, a partir do processo de interação ocorrido entre os diferentes, com base nos atributos e estereótipos considerados normais, e também de estereótipos, sobretudo em relação à violência e criminalidade, protagonizado pelos grupos armados. Este trabalho trata de uma região territorial específica no Brasil, o Rio de Janeiro, e é sobre ela que vamos nos ater a partir de agora.

Pensar o Rio de Janeiro é pensar uma situação complexa de fragmentação social, reforçada por antigos estereótipos e oposições, como por exemplo, entre favela e asfalto. De acordo com o senso comum, carregado de preconceitos, de que se coloca ‘do lado de cá’, no asfalto, a violência sempre começa do ‘lado de lá’, na favela. Apesar do enorme número de pessoas que moram em favelas, e a despeito de as favelas serem parte integrante da paisagem e da identidade da cidade do Rio de Janeiro, o termo ‘favelado’ ainda é um termo que mora no morro tal, ou na comunidade tal. (VERISSIMO, 2009, p. 211)

O Rio de Janeiro possui uma trajetória peculiar de construção territorial, de dinâmica da vida social e de gestão da Política de Segurança Pública. Geograficamente, a cidade do Rio de Janeiro e a região metropolitana possuem diversas áreas com morros e que historicamente foram ocupados pela população pobre desde o século XIX. A partir de uma política higienista de Governo, no início do século XX, essa população e as favelas (VALLADARES, 2005) foram sendo deslocadas para as vias de acesso à cidade, sem que a ocupação desordenada deixasse de ocupar as áreas centrais e outras consideradas mais nobres. Esses locais foram chamados de favelas. Entretanto, a política de controle não se encerrou no contexto urbano e habitacional. A construção social da favela foi uma forma de contribuir para outras estratégias que seriam executadas posteriormente.

Dessa forma, a favela apresenta-se, hoje, como um espaço de segregação territorial, econômica e racial. Afinal, desde a sua elaboração, esses locais foram pensados para os pobres oriundos do processo de escravidão do século passado, como descreve a Licia Valladares (1991; 2000; 2005) no que tange à dificuldade de não associação entre favela, pobreza e negatividade.

No entanto, nem por isso conseguiram desvencilhar-se de uma imagem negativa, cheia de clichês, que por muito tempo marcou a maneira de as elites nacionais conceberem a pobreza e os pobres: pobreza igual a vadiagem, vício, sujeira, preguiça, carregando ainda a marca da escravidão; pobre igual a negro e a malandro. (VALLADARES, 2000, p.18)

Remontado o espaço de pobreza na cidade, atualmente, esses territórios são controlados por alguns grupos detentores da força e do controle social: a polícia com as práticas institucionalizadas, o grupo armado do comércio varejista de drogas e a milícia na conjuntura do Rio de Janeiro. Essas organizações acabam por dificultar as associações entre os moradores e desmobilizar a coletividade política dos espaços em que estão instaurados, uma vez que o domínio da força impera nas relações de controle social local.

O comércio varejista de drogas tem na favela sua ação mais criminalizável, embora o consumo de drogas esteja presente em todos os espaços da cidade. Mesmo não havendo a dimensão acadêmica do tráfico de drogas internacional e do tráfico de drogas em outras classes, se tem o conhecimento de sua existência. Contudo, a atenção aqui está voltada para os conflitos que ficam centralizados nos pontos de venda de drogas a varejo, e é sobre os moradores da favela que incide, obrigatoriamente, a modificação da rotina em relação a isso.

Afinal, a lucratividade da atividade rentável do tráfico possibilita o amplo alcance dos traficantes a novas armas, seja por exportação ou por negociação com outros criminosos. Misse (2002) chama a atenção para a existência de dois mercados informais ilegais: um que faz a transação de mercadorias econômicas ilícitas e o outro que transaciona as chamadas mercadorias políticas. Essa relação é baseada no poder e na violência. Conforme o autor relata, é próprio dessas relações o emprego da violência, na demanda por proteção. Uma vez expandido o tráfico de drogas, consequentemente, se tem a ampliação por proteção.

É com base nessa relação entre violência e proteção que vamos apontar a forma de gestão da favela através dos grupos armados que transitam nesse território, impondo seu poder seja pela coerção e força violenta, seja pelo oferecimento da segurança e proteção social.

(In)Segurança: redes de poder, controle e violência

A segurança pública apresenta-se como uma demanda da sociedade por proteção, garantia . tranquilidade e ao desenvolvimento das relações com a ausência de risco, seja em defesa do seu patrimônio ou contra crimes violentos. Nesse sentido, a segurança pública institucional estatal também se revela como um direito adquirido por todos na Constituição Federal do Brasil de 1988, com o preceito de preservação da ordem pública.

Em torno desse conceito, o entendimento é difuso. Alguns autores (LIMA e COSTA, 2011; LIMA e SINHORETO, 2015; LIMA, BUENO e MINGARDI, 2016) têm dedicado suas pesquisas a pensar o termo e sua operacionalidade do Brasil. Os autores reconhecem os diversos conceitos empreendidos para se pensar a segurança pública, mas evidenciam uma reflexão importante sobre o termo.

Os autores relatam, também, que pensar a segurança pública no atual panorama brasileiro requer uma análise a partir da democracia e das práticas institucionalizadas. A Constituição Federal brasileira de 1988 significou uma mudança discursiva fundamental em relação aos mecanismos legítimos de controle social e do crime no país. As mudanças advindas do período de inserção democrática no país não gerou mudanças substanciais, inclusive porque as modificações foram incompletas no que diz respeito às suas estruturas. As alterações na gestão policial e nas legislações revelam sua insuficiência frente ao aumento da violência urbana conforme as estatísticas.

Com a Constituição Federal “cidadã”, a segurança pública ganha um artigo que não a define, mas elenca as instituições públicas responsáveis pelo provimento da segurança, ou seja, designa e limita as instituições policiais, em seus diferentes ramos, a garantir a ordem pública. Assim, a execução se faz por meio das práticas de instituições que dela derivam, a saber: a Polícia Federal, a Polícia Rodoviária Federal, a Polícia Ferroviária Federal, as Polícias Civis e as Polícias Militares e os Corpos de Bombeiros Militares. Esses órgãos e instituições são os responsáveis pela execução da política, no âmbito nacional e estadual. Contudo, estudos relatam que há pouca integração entre as ações dessas instituições. Por isso, muitos planos, programas e projetos mencionam a necessidade de maior integração e articulação. Ressalto que eles não atuam conforme uma política e objetivos comuns. Em muitas ocasiões, são definidas metas e prioridades corporativas que concorrem entre si. Lima, Bueno e Mingardi (2016) narram que o modelo de organização policial no Brasil evidencia muitas tensões, mostrando sua ineficiência a partir dos paradoxos postos na indução de cooperação entre as instituições.

Entre as tensões das instituições policiais, temos o dito “combate à criminalidade”, que, em verdade, tem se transfigurado na ampliação dos instrumentos de controle das relações sociais, sobretudo as que se utilizam de mercados ilegais. Contudo, essa construção está intrinsecamente vinculada à forma de governar determinados territórios.

Segundo Misse (2002), cada sociedade enfrenta as tensões dos mercados ilegais, informais e ilícitos a sua maneira. A designação criminal de determinada mercadoria depende do significado que ela tem na moralidade da sociedade, logo, a criminalização é relativizada. Temos, assim, por exemplo, a transformações de:

[...] Policiais em traficantes de armas e drogas apreendidas. Completando o processo através do qual a sobreposição inicial dá lugar a uma estruturação de redes cuja organização, como no caso das organizações criminais de tipo mafioso, dependerá de que se alcance a oligopolização do mercado e o controle político dos principais operadores dessas redes e de seus territórios. (MISSE, 2002, p. 18)

É evidente que, com o acesso a esses materiais bélicos, por causa da disputa de território entre traficantes, tornaram-se ainda mais violentas as operações policiais de repressão e combate ao tráfico de armas e drogas, o que colabora para o aumento da corrida armamentista dos traficantes para também se defenderem das incursões policiais.

Por outro lado, o grupo que controla a venda de drogas não é o único grupo armado a habitar esse território. De forma mais esporádica, a polícia também habita a favela como um grupo armado que se configura em um controle social. Os policiais não estão presentes no cotidiano da favela. Segundo os interlocutores, eles atuam nesses territórios de três formas: durante as operações, em idas pontuais ao território com uma ou duas viaturas, no máximo, e em situações de recolhimento do arrego, que é o valor pago pelos traficantes aos policiais de forma a impedir operações ou tomar conhecimento antecipado. Já as abordagens nas favelas são frutos das operações ou dessa presença pontual, e os adolescentes são também alvos de revistas. Eles também relatam revistas em espaços externos a favelas, principalmente, em áreas de lazer da cidade, como praias e campos. O fato é que a presença dos policiais, seja na favela, seja nos outros espaços da cidade, causa uma sensação de insegurança, devido ao medo da repressão e possíveis atuações de punição, pois essa é a imagem mais imediata que as crianças e os adolescentes tecem desses atores.

É comum separar esses dois grupos armados, e colocá-los em posição permanente de enfrentamento e disputa, mas não é isso que, de fato, lhes caracteriza. Feltran (2012) dispôs-se a pensar as tensões, ambiguidades e aproximações que esses dois grupos gestam na cidade de São Paulo. Segundo ele, governo e crime possuem uma íntima relação, a ponto de ser um dispositivo comum da gestão das vidas e da produção da ordem social, uma vez que o crime também se apresenta como uma instância de poder.

Governo e crime são, portanto, esferas que conferem os sentidos – existenciais, políticos, morais – da vida e da morte de diferentes sujeitos e grupos. Tanto a alteridade que distingue e opõe radicalmente governo e crime nos discursos de um e outro, quanto à contiguidade funcional entre eles na gestão da ordem, podem igualmente ser captadas em situações etnográficas. A relação entre ambos, portanto, só pode ser entendida como partilha – algo que divide absolutamente as partes e, ao mesmo tempo, as institui num todo comum (FELTRAN, 2012, p. 235)

A relação profunda em que esses dois grupos constroem no plano governamental dos territórios ganha a centralidade deste trabalho, ao ponto que crianças e adolescentes não só se submetem a essa lógica, mas também compreendem e externam essa afinidade. E, ao explorar as perspectivas, crianças e adolescentes constroem acerca da Política de Segurança Pública, a qual compreendemos que são as ações da polícia, tanto militar quanto civil, que ganham a centralidade em suas exposições quando indagados diretamente sobre essa temática. Isso significa dizer que, para os interlocutores, o protagonista da Política de Segurança Pública é o policial.

Entretanto, a segurança, não estou falando agora sobre a Política de Segurança Pública, não é uma categoria executada apenas pelo poder estatal. Toda vez que penso em segurança, aliada a ela, está a questão do poder que controla determinados indivíduos em determinado tempo e espaço. Nesse sentido, existem diferentes modalidades de controle. Uma delas é o que é executado pelo grupo armado que vende drogas a varejo na favela. Este é o segundo grupo destacado no diálogo com as crianças e adolescentes, e ele aparece como os responsáveis pelo enfrentamento aos policiais, ou seja, como disse no início, a relação entre policiais e bandidos ganha a centralidade na temática sobre a Política de Segurança Pública. Comumente, o grupo armado da favela tem um arsenal de materiais bélicos para proteger as mercadorias que são vendidas ilicitamente, bem como proteger o território que dominam da incursão de outros traficantes ou de policiais. A tensão entre polícia e bandido permite uma série de aproximações e afastamentos que resultam e uma aliança.

E é sobre a tensão presente nos enfrentamentos entre polícia e bandido, bandido e bandido, morador e polícia, ou ainda, morador e bandido que construí um trabalho capaz de fazer distinções e aproximações entre esses grupos e o exercício da gestão de controle compartilhado executado por eles na cidade, sob o aspecto peculiar do olhar das crianças e dos adolescentes.

Durante uma sessão do grupo com os adolescentes, fiz algumas perguntas sobre polícia e bandido. Seguem, abaixo, os trechos de alguns diálogos que foram travados com eles:

Eu: Porque bandido vira bandido?

Respostas de vários adolescentes: Porque quer! Porque não tem emprego. Porque é trouxa! Porque que ter mulher e dinheiro! Por falta de opção! Achando que a vida será mais fácil. Para ostentar!

Eu: E porque polícia vira polícia?

R: Pra matar! Pra ter fama! Pra ter status!

Eu: Como bandido vira bandido?

R: É só falar com um bandido da boca.

Eu: Mas bandido é só o que está na boca?

R: Não, tem ladrão também.

Eu: Só traficante e ladrão são bandidos?

R: Não, os políticos também, são tudo bandido. (risada coletiva)

Eu: O que um bandido faz?

R: Trafica, mata, rouba, vende, bate, deixa careca, busca quentinha, dá “kenada”[1], coloca ovo quente na boca dos outros, coloca os outros para sentar no formigueiro, joga as crianças que faz merda na lixeira.

Eu: O que um policial faz?

R: A mesma coisa! É mermo, igualzinho! (risada coletiva, consenso geral). O policial para subir o morro tem que cheirar, sobe com o nariz branquinho, para ficar com o sangue quente.

Qualquer semelhança não é mera coincidência. Há uma linha muito tênue entre as atuações da polícia e do bandido. Para as crianças e os adolescentes, as ações desses personagens se misturam. Por vezes, o que separa um do outro talvez seja um uniforme. As duas categorias têm atitudes semelhantes por um ideal comum. Para eles, o policial deve combater um crime, mas também pode se tornar um criminoso.

O que é capaz de aproximar tanto essas duas figuras? Penso que a manifestação do poder, da virilidade e da independência destinada à figura masculina, e muito evidenciada e exaltada em práticas criminais e de violência, esse pode ser o motivo de tamanha semelhança, em consonância com a defesa do território, impetrada tanto por policiais quanto por bandidos. É o que Alba Zaluar (1994) vai denominar de “ethos guerreiro”. A autoridade dos grupos se expressa na capacidade de controlar os espaços em que eles se colocam disponíveis para tal ação, e, portanto, são insubordináveis até que a ação seja realizada garantindo a honra de cada um. Ambos os grupos armados são formados majoritariamente por homens, é claro que há presença de policiais e traficantes mulheres, mas em baixa quantidade e não foram mencionadas pelos interlocutores durante a visita. As roupas, sejam fardas ou vestimentas com determinadas marcas, e a utilização de material bélico oneram aos seus portadores um certo encantamento por parte de seus observadores, que, em conjunto com força e a autonomia que requerem a todo o tempo, acabam por valorizar a imagem do homem e lhes garantem certo prestígio e reconhecimento social, facilmente identificado e problematizado pelos interlocutores.

Contudo, a construção do “ethos guerreiro” é também antagônica, ela pode ser baseada em uma postura violenta mas pode coexistir a uma postura de proteção e paz. Sua configuração está vinculada à disposição de romper qualquer barreira em defesa de seus interesses. Por conseguinte, é possível perceber tais características em ambos os grupos, a partir da fala das crianças e dos adolescentes, como parte do cotidiano e anseios culturais dessa sociedade. Também é possível identificar que essas práticas entendidas por “ethos guerreiro” presentes na masculinidade desses grupos são valorizadas pelos interlocutores da pesquisa, os quais aspiram, em certa medida, obter algum grau de poder, autonomia, virilidade e força, como as pessoas pertencentes a esses grupos, percebidos principalmente em suas representações, quando encenam um embate, protagonizam um conflito e narram situações experienciadas em seus territórios de origens, ressaltando que suas expressões corporais e diálogos simulados nessas situações são majoritariamente, representando o grupo armado da favela, não necessariamente pela defesa de sua ação, mas por presença ostensiva em seus cotidianos.

A impressão que tenho, a partir da interlocução direta com as crianças e os adolescentes e com o acompanhamento diário institucional, principalmente com base nas representações durante as visitas domiciliares, é que não há um estranhamento da presença dos comerciantes varejistas de drogas na favela, enquanto que, quando há a presença da polícia, o olhar e a postura deste público se alteram. Certa vez, descendo uma favela com um adolescente de 12 anos, após passarmos por diversas situações neste dia, inclusive por um grande grupo de trabalhadores do tráfico com suas armas e mercadorias, no trajeto, o adolescente correu à frente e se escondeu, aparecendo, em seguida, encenando uma abordagem policial em direção à favela. Em sua imaginação, tinha uma arma nas mãos apontada para o “morador”, que nessa encenação era eu. Ele falava, enquanto policial, para eu ficar quieta e abrir passagem para ele, me encostando na parede. Rimos da atuação e continuamos a descer. Não houve comentário sobre a presença e circulação do outro grupo armado, que, no mesmo dia, além de quase impedir minha presença no território, antes de me encontrar, e mesmo tendo o traficante apontado uma arma para mim, por não me conhecer e nem conhecer a pessoa que eu procurava, o adolescente, após tomar ciência dessa situação, não teceu nenhum comentário maior, além de rir imediatamente e dizer que «tá tranquilo”. Não obstante, várias foram as situações que presenciei com crianças e adolescentes cantando funk e dançando de forma a representar os bandidos durante o baile funk nas favelas, com suas armas nas mãos.

O “ethos guerreiro” é parte dos adultos pertencentes aos grupos armados, e habita na sociabilidade infanto-juvenil, a ponto de ser representado em situações corriqueiras. É possível identificar que a presença e atuação do tráfico no cotidiano do território é tão naturalizado a ponto de não render comentários, mas eles facilmente são representados em momentos de lazer no território, enquanto que a inserção da polícia é representada em tom ameaçador, ao passar por um trajeto também utilizado por esses agentes para acessar a favela.

Voltando para as aproximações entre os grupos revelados no diálogo dos adolescentes, destaco que a segurança também se apresenta como uma demanda do trabalho de ambos os grupos armados, do ponto de vista do tráfico, segurança para os consumidores da mercadoria e segurança para que a mercadoria não se perca, gerando prejuízos a esses vendedores, neste caso, os classificados como bandido. Mas, de fato, o que vem a ser um bandido? Michel Misse apresenta a construção da categoria a partir da representação social, onde este “sujeito criminal é produzido pela interpelação da polícia, da moralidade pública e das leis penais” (2010, p.17). Esse sujeito incriminado tem a morte desejada por ter suas práticas relacionadas a sentimentos morais da classe média que direciona a opinião pública.

Assim, o autor trabalha com algumas categorias que organizam o processo de incriminação do Brasil. Segundo Misse (2010), a representação social do crime tem sido ampliada, é o que chamamos de criminalização, onde se tem a inscrição de um fato em lei. Isso dá origem à criminação, que é a tradução deste evento numa categoria penal. Enquanto que a incriminação é sobre a pessoa, ou seja, quando se atribui o fato a alguém, classificando-o como culpado. A incriminação pode-se antecipar à criminação, antes que haja crime. Isto é, há um criminoso potencial desse crime a ser incriminado.

O conceito de “sujeição criminal” é proposto com a finalidade de determinar três dimensões incorporadas na representação social do “bandido” e de seus tipos sociais. A primeira dimensão é a que seleciona um agente a partir de sua trajetória criminável, diferenciando-o dos demais agentes sociais, através de expectativas de que haverá, em algum momento, demanda de sua incriminação. A segunda dimensão é a que espera que esse agente tenha uma “experiência social” específica, obtida em suas relações com outros bandidos e/ou com a experiência penitenciária. A terceira dimensão diz respeito à sua subjetividade e a uma dupla expectativa a respeito de sua autoidentidade: a crença de que o agente não poderá justificar sensatamente seu curso de ação ou, ao contrário, a crença em uma justificação que se espera que esse agente dê (ou que possa ser dada legitimamente a ele) para explicar por que segue reiteradamente nesse curso de ação criminável. (MISSE, 2010, p. 24)

Na ação criminável, a acusação cumpre sua função reguladora. E o sujeito criminável torna-se parte de um fato que ainda nem aconteceu, internalizando o crime no sujeito. “O significado de ‘bandido’ ganhou autonomia individualizante e passa a ser aplicada ao agente cuja sujeição criminal já está em curso ou que se considera consolidada.” (MISSE, 2010, p.28). Essa realidade é autoaplicável na favela. E a proporção violenta contra os sujeitos suspeitos de criminação acaba se tornando vítimas do legado violento da força. Porém, os notadamente “bandidos” exercem uma lógica de proteção a essa população.

Assim sendo, o grupo armado da favela, de certa forma, também é responsável pela segurança dos moradores da área em que estão situados. Construído também numa perspectiva de direito coletivo, a segurança na favela não está codificada, mas as ações contrárias ao pensamento do grupo que controla o território são perceptíveis para os seus moradores. Não é clara e objetiva, mas sua construção é histórica e acaba culturalmente sendo evidenciada.

Ainda assim, existem dois movimentos que prejudicam o entendimento quanto ao “ordenamento” da favela e a potencialização do sentimento de incerteza dos moradores. O primeiro diz respeito à rotatividade dos indivíduos que compõem o grupo armado da favela. Não se sabe a quem deve obedecer. Fora que, dependendo da situação, de tomada de poder do território, todo um grupo pode ter sido retirado do local, seja por conquista do local, seja por extermínio dos participantes. Essa mudança brusca da cultura violenta local pode contribuir para o que se apresenta como a segunda forma de incerteza da normatividade favelada, que é o processo de juvenilização dos grupos armados. Jovens mudam rapidamente de opinião, o que prejudica o entendimento dos moradores sobre a objetividade das regras.

A ‘ordem’ nas favelas compõe-se de um exercício de dominação em que os integrantes do tráfico dão a última palavra, se não a primeira, sobre o que é permitido nas atitudes e relações contemporâneas. Não há padrão definido e compreensível para os moradores. (FRIDMAN, 2008, p. 88)

Cerca de um mês após a morte do chefe do tráfico local, crianças e adolescentes manifestaram o medo que tinham para sair de casa, sendo este o motivo de muitos deles chegarem atrasados ao projeto. O chefe foi ferido na operação policial que resultou na morte de quatro jovens. Uma semana depois no hospital, ele veio a óbito. Segundo os jovens, quem assumiu o controle pelos pontos de venda de drogas eram traficantes de favelas da cidade do Rio de Janeiro da mesma facção. O que trazia insegurança para eles naquele momento era o fortalecimento de material bélico e o fato de eles não conhecerem os moradores do local e pararem sempre as pessoas no caminho para perguntar para onde vão.

A: Tia, nunca vi tanta arma nova, daquelas bem grande.

C: E eles nem sabe quem é cria de lá, param geral.

Durante esse processo, eu, enquanto assistente social, estive nessa favela para fazer algumas visitas domiciliares a crianças e adolescentes do projeto social. E mesmo uniformizada, considerando que a maioria das pessoas que fazem parte do tráfico na versão antiga fizeram parte da instituição e, portanto, respeitam todos os funcionários e o público atendido, fui “interrogada” por um jovem que fazia parte na atual gestão do tráfico. Era um menino branco, com algumas tatuagens, sem camisa e aparentemente apenas com um cigarro na mão. Minutos depois, identifiquei que ele tinha uma pistola na qual escondia atrás do corpo, enquanto conversávamos. Ele perguntou para onde eu ia e o que faria. Identifiquei-me, mas ele não conhecia o projeto. Até que passou um morador, aparentando 50 anos, que se dirigiu ao jovem falando que deixasse eu fazer o meu trabalho. Assim, eu pude seguir.

Situação diversa ocorreu em outra favela. Também durante uma visita domiciliar, fui a um território que em visita anterior tinha percebido o alto índice de crianças, menores de 10 anos, portando armas com grande poder de destruição. Nessa nova visita, a percepção foi diferente. Eram pouquíssimos jovens nos pontos de venda de drogas na favela, mais velhos, com cerca de 20 anos de idade e com pistolas e rádios transmissores. Perguntei aos adolescentes que me acompanhavam na visita o que tinha ocorrido para aquela mudança. Eles justificaram com a prisão do chefe do tráfico responsável por um complexo, com cerca de 20 favelas nas áreas próximas. Segundo os adolescentes, mesmo com sua prisão, ele não deixou de controlar as atividades, porém muitos integrantes foram “demitidos” e os pontos de venda ficaram em favelas que tinham mais saídas para possíveis fugas.

Seja com a morte ou prisão dos líderes, a dinâmica na favela é alterada. Inicialmente, os moradores têm dificuldade em identificar as modificações, mas, com o tempo, as práticas ficam mais claras.

A ausência de padrão das ações se amplifica quando o pensamento se direciona para a sanção que pode acarretar o descumprimento das regras na favela. Isso se configura em um mistério. As execuções das punições estão atreladas aos valores morais da pessoa que centraliza o poder naquele momento e no determinado local.

Nesse sentido, para mobilizar a ação de conviver diretamente com a violência e suas expressões, é importante pensar a partir de Machado da Silva (2004; 2008), o conceito de “sociabilidade violenta”. Na sua visão, a sociabilidade violenta é construída a partir do processo de regulação da vida autônoma por grupos que controlam as relações a partir da força. Esses grupos estão em duas ordens diferentes, mas que coexistem.

Os moradores comuns das favelas são duplamente dominados: na ordem social dominante, compõem os estratos inferiores da estrutura social; e na sociabilidade violenta, são obrigados a se submeter aos traficantes. (MACHADO DA SILVA, 2008, p. 22)

Os moradores da favela precisam lidar com dois regimes normativos. Na medida em que a força é o instrumento que possui a maior efetividade nesses territórios, é através de sua organização e execução que ficam submetidos os moradores e suas relações sociais. É nesse contexto que precisamos discutir o uso da força, da autoridade, do poder e da violência desses grupos armados na favela. Hannah Arendt (2004) defende que o poder é uma possibilidade relacional, construído pelo consenso do coletivo sustentado pela comunicação, e, portanto, é transitório. Sua essência está na capacidade de domínio de um grupo sobre o outro e o seu esgotamento se dá pela monopolização. Já a violência é um instrumento, um meio para se alcançar uma finalidade. Poder e violência não são sinônimos, pelo contrário, são opostos. “Certamente, uma das mais óbvias distinções entre o poder e a violência é que o poder tem a necessidade de números, enquanto que a violência pode, até um certo ponto, passar sem eles por basear-se em instrumentos”. (ARENDT, 2004, p. 26). O fato é que, quanto maior o uso da violência, menor é o poder e quanto maior o poder, menor será o uso da violência.

O que acontece, na verdade, é que não há o uso puro das duas categorias, pelo contrário, elas se misturam, há a interação contínua entre poder e violência. Contudo, a violência pode destruir o poder e poder pode conservar a violência.

O poder e a violência, embora sejam fenômenos distintos, geralmente apresentam-se juntos. Onde quer que se combinem, o poder é, conforme verificamos, o fator fundamental e predominante. A situação, entretanto, mostra-se totalmente diferente se os encararmos em seu estado puro – como, por exemplo, na invasão estrangeira e na ocupação. Vimos que a atual equação da violência com o poder baseia-se no fato de o governo ser ou não percebido como o domínio do homem sobre o homem através da violência. (ARENDT, 2004, p. 33)

Para alcançar o poder, não é necessária a justificativa e, sim, a legitimidade. É um grande acordo de quem governa para quem, e a autoridade, a força e a violência são os meios de um homem governar o outro e o poder é a essência desse governo. A violência só se torna presente se o poder é ameaçado.

No contexto deste trabalho, podemos apreender que ambos os grupos utilizam a violência como forma de garantir alguma obediência a suas normas que são diferentes. Isso significa dizer que há uma fragilidade no poder dos grupos, que, na verdade, não se utiliza de um poder legítimo, pois não é sustentado por um contrato social, ou consenso da maioria e nem é mediado pela comunicação. O grupo armado da favela está em defesa das mercadorias de seu trabalho, e para tal, defende consequentemente o território ao qual está vinculado, logo, defende seus próprios interesses. Enquanto a polícia na favela entra para coibir a ação desse grupo, pautado nas legislações nacionais, e é expressão direta do Estado, enquanto detentor no monopólio legítimo da força destinado a defender os interesses coletivos e direitos individuais. Porém, a forma como entra e age no território favelado não é fruto de um diálogo e tampouco de contrato entre os moradores deste lugar.

Em uma competição de violência contra violência a superioridade do governo tem sido sempre absoluta; porém esta superioridade só perdura enquanto continuar intacta a estrutura de poder do governo – isto é, enquanto forem obedecidas as ordens, e o exército ou a força policial estiverem dispostos a usar as suas armas. (ARENDT, 2004, p. 30)

Então, a atuação da polícia, mesmo na figura de autoridade fruto de um poder legítimo social, tem uma atuação na favela, uma espécie de poder tirânico, que é impotente e extremamente violento, frente às demandas colocadas, justamente por não obedecer o contrato social.

Se, de acordo com o pensamento político, identificarmos a tirania como um tipo de governo que não responde por seus próprios atos, o domínio de Ninguém é claramente o mais tirânico de todos, uma vez que não existe alguém a quem se possa solicitar que preste conta por aquilo que está sendo feito. (ARENDT, 2004, p. 24)

A atuação da polícia na favela se relaciona com essa espécie de “domínio de ninguém”. Não há autoridade maior nesse contexto, tão intrínseco e intimidador como esses territórios. Crianças e adolescentes não têm a quem recorrer nessa relação de força e violência entre os bandidos e a polícia. E segundo Arendt (2004), o “cano de uma arma desponta o domínio mais eficaz, que resulta na mais perfeita e imediata obediência”. (Ibidem, p. 33).

Essa obediência não é fruto do poder legítimo, mas da força.

A relação das crianças e dos adolescentes moradores da favela com as autoridades policiais é de medo e rancor, pois a presença desse grupo gera o cerceamento do direito de ir e vir, cria o conflito com o grupo armado que detém o território e consequentemente instaura o caos que pode originar mortes e prisões. Esses sentimentos negativos em relação à atuação policial não significam que o inverso seja proporcionalmente verdadeiro. A atuação dos traficantes, em muitos momentos, também são alvo desses sentimentos.

Isso é resultado da força implementada pela violência, que lhes é imposta.

Certa vez, uma adolescente de 13 anos chegou à instituição com o cabelo muito curto, digamos que na máquina dois. Pois bem, duas crianças de 8 e 9 anos falaram: “ela brigou no morro, tia... e ‘se brigar no morro vai ficar careca[2]’”. Essa última frase é parte da letra de uma múscia. A adolescente não retornou às atividades na instituição e, em contato com a genitora, relatou que cortou o cabelo da filha, pois esta saiu sem avisar, desobedecendo sua ordem. O ato de raspar o cabelo de mulheres é uma prática comum às pessoas que compõem o tráfico de drogas. Geralmente, quando as meninas se envolvem com outros meninos ou com meninos de facção diferente, incorrendo em uma dinâmica de traição ou, ainda, quando brigam na favela, seja por homem ou qualquer outra situação que o tráfico não admita. É uma sanção utilizada pelo tráfico, e também por outros atores como forma de repressão e punição, possibilitando a marca no corpo do “transgressor” para que sirva de exemplo.

Isso remete a uma prática corrente no final da Segunda Guerra Mundial. Kristine Stiles (2011) é uma importante historiadora da arte na França, que relatou a prática de raspar a cabeça das mulheres que antes se deitaram com os inimigos e exibi-las em praça pública.

A comunidade se reuniu em cidades e vilarejos franceses para raspar a cabeça dela com tosquiadoras e depois inscrever o sinal da suástica com fuligem em sua cabeça raspada. O povo a condenou por ser “colaboradora horizontal” por ter feito sexo com soldados alemães durante a Segunda Guerra Mundial. Denegrida e denunciada como prostituta, ela chegou até a ser despida algumas vezes antes de ser obrigada a desfilar pela cidade, um troféu dos territórios emblemáticos, difamações e controles de guerra. Ela permaneceu solitária em meio ao grupo de molestadores e perseguidores, exilada na multidão de compatriotas e mulheres em um momento histórico particularmente sórdido. (STILES, 2011, p.120)

O ato de raspar as cabeças carrega diversos significados que, naquele e em nosso contexto, são relativos à humilhação e à imposição de poder, além de imprimir na mulher uma hegemonia de dominação masculina. Essa é uma das formas de punir a partir da ótica do grupo armado da favela.

Outra questão peculiar às dinâmicas das favelas diz respeito à rivalidade entre facções e sua representação entre as crianças e adolescentes. Eles também reproduzem isso no seu cotidiano. Havia no projeto dois irmãos de 10 e 13 anos que residem em uma favela cujo grupo que comanda a atuação do tráfico é diferente do grupo que domina na localidade em que o projeto social está situado, além de ser minoria nos outros espaços da cidade. Pois bem, em maio de 2015, o adolescente foi conduzido ao Serviço Social em virtude de um desentendimento com outro colega de 15 anos de idade, durante um jogo de futebol. Este, por sua vez, explanou: “se ficar de ‘caôzinho’, te pego lá fora, porque terceiro não tem vez, aqui não”. Após essa situação, esses dois irmãos se envolveram em mais outros três conflitos com agressão física e verbal, todas ocorridas durante a recreação.

A rivalidade entre as facções ultrapassa os espaços da favela. A divisão dos grupos criminosos em facção é relativa ao poder de controle pelos territórios e à venda das drogas. Embora os adolescentes não estivessem inseridos em atividades dos grupos criminosos em si, a sensação de pertencimento a determinado território controlado por determinada organização os fazem reconhecer o poder que o grupo tem sobre eles.

Outra situação peculiar ocorreu com um adolescente de 14 anos diagnosticado com retardo mental, tendo sido inserido na instituição, através da política de inclusão social. Em determinado momento, ele se apaixonou por uma menina de 13 anos. E ela, por sua vez, nada queria com ele. Ele resolveu se declarar a ela. Ela tentou se afastar, até o momento que ele disse assim: “ Se você não namorar comigo, eu vou mandar os meninos lá do morro te matar, pra você ficar comigo.”

Embora haja certa incorência à intimidação no raciocínio dele, chamo a atenção para a dominação exercida pelos “meninos do morro”. São eles que pensam e executam a ação que lhes são favoráveis e se tornam referências no local onde estão vinculados. Essas ações são exercicidas por causa do carisma de seus líderes e a legitimidade que adquirem da população, mesmo que suas ações sejam ilegítimas legalmente. Alguns “bandidos” alcançam certos “prestígios” por serem percebidos como benfeitores da população, ao garantirem certa “justiça social”. Por isso, há obediência e reconhecimento da população.

A onipresença do tráfico de drogas no seio das classes costituídas pelos trabaahadores urbanos de baiza renda, na maior parte concentradas nos chamados bairros que compõe m a periferia das regiões metropolitanas, constitui importante obstáculo ao monopólio estatal da violência ao susbtituir a auotirdade moral das instituições sociais regulares pelas regras ditadas pelos criminosos que controlam territórios no interior desses bairros, em cuja origem se dá a constituição de “quisitos” urbanos nos quais as leis do Estado perdem validade e deixam de ser aplicadas. Nessas aréas vigora uma espécie de estadod e exceção imposto por grupos criminosos que, além de exercerem o controle sobre as atividades ilícitas, se constituem como importantes instâncias de regulação e mediação de conflitos dos mais variados matizes, instituindo normas, monitorando seu cumprimento, definindo e aplicando punições. (ADORNO & DIAS, 2014, p. 191)

Por outro lado, essa dominação é imposta através da força, ora percebido como legítima, ora ilegítima, uma vez que é uma imposição de um poder autoritário. É o que ocorre quando os moradores da favela percebem que houveram excessos no implemento da força, o que os nativos chamam de “covardia”. No entanto, a forma de resistência nesses contextos é muito limitada, devido ao poder do grupo e, consequentemente, do sentimento de medo dos moradores.

Precisamos refletir sobre o tráfico de drogas como uma representação social criminalizada na realidade brasileira. As práticas traçadas pelo grupo responsável pelo comércio varejista de drogas na favela no agir cotidiano são vistas como um regulador das condutas locais. A peculiaridade do tráfico no Rio de Janeiro está no gerenciamento do mercado que resguarda grupos distintos, em que uma facção criminosa domina a maior parte dos territórios e dos negócios, mas as facções estão em constantes disputas de territórios. Segundo Misse (2011), o surgimento de outra organização criminal, ainda nos anos de 1980, deu início à disputa violenta por territórios, incorrendo em aquisição de novas armas com o intuito de garantir a expansão e manutenção dos pontos de venda de drogas.

Com o tempo, dissidências surgiram e criaram-se novas facções a partir de meados dos anos 1990 (Comando Vermelho Jovem (CVJ), Amigos dos Amigos (ADA) e Terceiro Comando Puro (TCP), elevando a disputa com o Comando Vermelho (CV) a níveis de violência inéditos na cidade). (MISSE, 2011, p. 19)

As pessoas que compõem a conjuntura do tráfico varejista de drogas, ainda que violentos, costumam desenvolver nos territórios que dominam práticas políticas, garantido com direitos e benefícios, principalmente numa perspectiva filantrópica. Um exemplo disso é o oferecimento de alimentos, medicações e gás de cozinha a moradores que não conseguem obter esses materiais e conseguir a subsistência da família.

Durante uma visita domiciliar, a responsável financeira pela família foi indagada sobre a forma de obtenção do imóvel em que residia. Se era alugada, comprada ou cedida e por quem. Ela disse ser cedida pelo tráfico, após sua casa ter sido condenada pela Defesa Civil por causa do risco de desastre em episódios de chuva. Os responsáveis pelo tráfico mudaram para um imóvel menor na mesma favela e permitiram que ela ficasse na casa sem contribuir financeiramente com nada, cobrando apenas sua fidelidade, no que tange às informações que policiais solicitariam sobre a mudança do ponto, uma vez que, naquele imóvel, era realizada a indolação das drogas.

Contudo, isso não significa dizer que o tráfico substitui o Estado na favela. Isso aponta para a autonomia que eles impõem para a construção de regramentos que são elaborados, executados e julgados pelo mesmo grupo. O poder do tráfico não tem a divisão do Estado. Ele é monárquico e centra todas as atribuições de legislativo, executivo e judiciário em uma única pessoa. Durante um roubo realizado na favela por um adolescente do projeto, o chefe do tráfico recebeu a denúncia pela vítima, julgou o caso e operacionalizou a sentença com base nas suas regras. O adolescente roubou um aparelho de som da casa de um vizinho, foi denunciado ao tráfico, que, por sua vez, trouxe o menino e “martelou” suas duas mãos com a finalidade de fazê-lo compreender que, na favela, sobre o domínio daquele chefe, não poderia haver roubo de materiais dos moradores naquele território.

... Embora os moradores busquem, antecipar o que seriam as “regras” que devem seguir para evitar a violência, o que efetivamente vigora é o arbítrio dos traficantes que dominam naquele momento. A chamada “lei do tráfico”, nos termos como tem sido pensada e interpretada não tem existência real. (MACHADO DA SILVA, 2008, p.22)

No grupo realizado com oito meninos, apenas um deles tem aversão a bandido, justificando sua posição por ter furtado uma bala na padaria, o que gerou a intervenção do tráfico local. O dono da padaria denunciou sua ação a um dos bandidos e este, por sua vez, agrediu o menino com muita força. Porém, numa outra pergunta, a resposta foi unânime. Perguntei se eles se sentiam seguros com a polícia ou com os bandidos. Todos optaram pelos bandidos, justificando que eles não faziam mal a ninguém que não merecesse, diferente da polícia, a qual já entra para matar.

A submissão dos moradores de favelas á chamada ‘lei do tráfico’ vem sendo percebida como uma escolha entre esta e a ‘lei do país’, como uma opção por um estilo de vida que rejeitaria as normas e os valores intrínsecos à ordem social. (LEITE, 2004, p. 117)

A consequência da gestão do Governo pelo tráfico está justamente na direção de submissão que os sujeitos desempenhem as supostas leis que o gerem. Os “bandidos” não jogam pelas regras estatais. Essa observação me remete à abstração do Estado em que tratam Das e Pole (2008). Segundo as autoras, a relação entre o Estado e a população governada resulta de um imaginário que interpreta a soberania, sendo, então, o agente autorizado para manter certas populações à margem, por meio de suas práticas de gestão. Nesse sentido, as concepções de soberania podem movimentar as margens para dentro ou fora do Estado. Atrelado às reflexões de Asad, as autoras evidenciam os espaços de exceção construídos às margens do Estado. Logo, as favelas que podem ser identificadas como esses espaços que estão “à margem” tendem a implementar as “normas” de formas distintas, uma exceção às construções de dentro do Estado. Sendo assim, amplia-se as bases organizacionais do tráfico, resistindo as ações dos agentes estatais do crime.

Aluga-se segurança: a gestão dos grupos armados na favela

Estar seguro ou se sentir seguro é um estado pessoal ou coletivo baseado no local, tempo e no grupo que externa o poder. Mas de que segurança estamos falando? As narrativas construídas ao longo deste trabalho corroboraram para um pensamento que une a segurança e o binômio polícia-bandido a um contexto objetivo: as drogas. Na favela, as formas de segurança derivam dessa mercadoria. Pelo lado institucional, os órgãos da política de segurança pública chegam à favela para coibir a venda do produto. Por outro lado, a segurança do tráfico chega na favela para proteger o produto. Na dualidade entre abolir e abrigar um produto no mesmo território, se encontram os moradores.

Além de todas as dificuldades que os moradores da favela enfrentam, eles também precisam lidar com a dúbia estratégia de controle social. A estrutura de uma guerra se divide basicamente em dois grupos. Na favela, também. Polícia e bandido. Os moradores ficam como espectadores da cena e na expectativa de se tornarem vítimas. Para os demais, a favela se apresenta como um espaço de construção do medo. Os inimigos da vez. Numa guerra com dois lados, ambos lutam por sua legitimidade e poder. É nesse sentido que muitos apontamentos das crianças e adolescentes se inscrevem.

A tensão entre polícia e bandido permite uma sérire de aproximações e afastamentos que resultam numa vinculação direta para manuntenção da “ordem”. A condição de maior diferença entre policiais e “bandidos” está na estrutura de seu trabalho. As pessoas que se tornam policiais percorrem um caminho burocrático de efetivação do pleito e da legitimidade que algumas de suas ações alcançam pelo vínculo institucional. Porém, essa burocracia também os aproxima. Por exemplo, a iminência da morte para ambos os grupos é uma realidade construída a partir da criminalização do tráfico de drogas pelo ordenamento jurídico oficial.

Por isso que pensar Direito e segurança significa questionar sobre que Direito e que segurança estamos falando. A gestão das drogas pelo Direito é contemplada por um rol de leis oficiais as quais estigmatizam a imagem da pessoa que se associa às substâncias e aos orgãos designados para combater este “mal”. Embora as drogas sejam os produtos de enfrentamento concreto constante entre polícia e bandido, é nesse mesmo cenário que suas atuações se aproximam.

Ambos os grupos são armados e, em alguma medida, criminosos. Pensemos no dinheiro para associar a criminalidade dos grupos. O grupo armado do morro consegue dinheiro a partir da venda de substâncias ilegais. O grupo armado institucional também pode conseguir o dinheiro das mesmas substâncias sem vendê-las. Isso se dá através dos arregos, por exemplo. Isso é quando determinados policiais oferecem proteção e determinados tipos de autorizações, em troca de pagamento pecuniário por parte dos responsáveis pelo comércio varejista de drogas. São múltiplas as proteções e “autorizações” oferecidas, que vão desde informações sobre possíveis operações no local e até interrupções dela por causa do pagamento, como também a permissão para ocorrerem os bailes funks na favela sem a intervenção violenta da polícia. Nesse contexto, os grupos se assemelham.

Outro ponto está no poder delegado aos policiais e aos traficantes, principalmente devido à violência que eles podem emitir, suas ações ficam bastante parecidas. A tortura e a atrocidade são categorias exercidas pelos dois grupos, sob a mesma prerrogativa, que seria a desobediência normativa. As regras podem ser iguais ou diferentes, bem como sua aplicabilidade e sua sanção. Nas falas das crianças e dos adolescentes, isso fica bem evidente, quando elas falam que os atores dos dois grupos batem em outras pessoas. A truculência dos atos coincidem. A diferença está nas pessoas que são destinadas a essa violência. Para o grupo do morro, os indivíduos da favela sujeitos a essa ação são os que vão contra a ordem que eles estipulam ou os grupos armados que confrontam seu poder de gerir o território em que estão situados. Já para o grupo institucional, atribuem a execução da violência a qualquer pessoa da favela, mais evidente para pessoas em “atitudes suspeitas”, mas se eu tomar por base a pesquisa que Ramos e Musumeci (2004) realizaram, afirmando que, na favela, todos são suspeitos na visão dos policiais, de fato, a violência é aplicavel a todos.

Mas a centralidade da aproximação está no poder. Os dois grupos são poderosos e controlam não só os territórios segregados, mas também a relação das pessoas entre elas mesmas e entre as instituições. Nas reproduções das crianças e dos adolescentes pesquisados, percebi um movimento relacional com a segurança. Ora eles pedem segurança aos traficantes, ora aos policiais. Essas são as ambiguidades nas falas dos jovens sobre a relação que eles detêm com policiais e bandidos. Não que eles não tenham ciência do que estão pedindo e muito menos saibam se essa ação oferece risco ou não. Solicitar ação a grupos diferentes ilustra a linha tênue entre uma atuação e outra. Também corrobora para uma prostração na medida que ocorrem os fatos. Requerer segurança para a polícia ou aos traficantes é saber que o requerente ficará vulnerável a um desses grupos em determinadas ocasiões. A segurança chega, mas as consequências também, independentemente do grupo solicitado.

Por isso, aluga-se segurança. Não há um período certo para pedir segurança ao grupo do morro ou ao grupo da instituição. A agilidade e a necessidade fazem o momento. Se, no mesmo território, os moradores podem conviver com ordenamentos criados por categorias diferentes, normas plurais, as ações dos grupos também podem seguir pelo mesmo caminho, da coexistência, a partir do que é conveniente aos moradores. Ora eles podem alugar a segurança policial, ora a efetividade da segurança do grupo do morro. Utilizar a metafora do aluguel consiste justamente em atribuir sentido à aquisição do gozo de determinada coisa por um determinado tempo a partir de uma contraprestação. Logo, não se tem segurança, aluga-se.

E a gerência pela locação da segurança está no governo. Ele permite que ambos os grupos convivam no mesmo espaço, e mesmo que as diferenças não se anulem, mas se reproduzam. São os enfrentamentos das duas formas de controle violento que permitem a administração do território de forma funcional um ao outro.

Para além da funcionalidade entre os grupos, existe também a função econômica que a administração do tráfico na favela onera aos cofres públicos. Toda vez que um crime não chega ao sistema de justiça brasileiro, por atuação do grupo armado da favela, o trabalho estatal de ponderação das normas é limitado. Sem prisões e longos processos judiciais, o governo economiza, é o que Gabriel Feltran chama de “terceirização da segurança pública”.

Observa-se que deste conflito entre políticas do crime e políticas estatais produz-se uma espécie de “terceirização” da segurança pública, na qual o governo segue sendo o ator central da tomada de decisões e o crime aquele que ordena territórios e grupos específicos nas periferias da cidade. (Grifos do autor, FELTRAN, 2012, p. 249)

Dois elementos financeiros na gestão da segurança: aluguel e terceirização. Formula-se uma pseudoprecariedade do serviço quando, na verdade, temos o programa mais legítimo de segurança pública dos últimos tempos, alicerçado ao Direito. São esses elementos que legitimam e ampliam a violência e a sensação de medo e regularizam a guerra.

Considerações finais

Os grupos armados que detêm a gerência dos territórios periféricos não disputam atividades ilegais ou ações relativas à legalidade. Eles se enfrentam pela possibilidade de poder. Há, portanto, uma gestão compartilhada da favela e de seus moradores, seja na perspectiva econômica, uma vez que ambos têm acesso pecuniário pelas atividades que exploram, seja a venda varejista de drogas, sejam as mercadorias políticas evidenciadas na extorsão policial, o arrego, também na perspectiva política, ao construírem os conflitos armados e potencializarem o poder pelo uso indiscriminado da força; também por serem responsáveis pela normatização das relações sociais na favela, a polícia através da militarização da vida social e os bandidos pelas regras impostas e não expressas tacitamente e distintas do aparato legal do Estado. E na perspectiva cultural e social, uma vez que o grupo armado responsável pela venda no varejo de drogas acaba por implementar ações que seriam de responsabilidade do Poder Público através das políticas sociais, como disponibilização de medicamentos e alimentação, melhorias nas residências, espaços de lazer (campos de futebol e praças) na favela e momentos culturais (bailes funk e rodas culturais).

É evidente que essa interação não acontece de forma linear, pois é permeada de conflitos internos e externos que também produzem violência. Nesse cenário, as atitudes violentas de ambos os grupos armados também se assemelham, agem com crueldade e atrocidade produzindo medo, dor, tortura e mortes.

Diante disso, os moradores precisam se proteger, contudo não podem limitar-se à segurança apenas do grupo armado institucional, e é nesse momento que eles precisam analisar a situação e escolher o grupo com o qual eles vão demandar proteção, ora aos bandidos, ora à polícia.

Fato é que a cooperação e o conflito fazem parte dessa relação de compartilhamento da gestão dos territórios e do cotidiano das pessoas que residem nesses espaços. Contudo, há uma rede, uma aliança que transita entre a proteção e violência, em virtude da conquista do poder que garante a perpetuação do controle em áreas periféricas, com vistas à reprodução econômica, política e social da ordem instaurada.

Referências

ADORNO, Sergio; DIAS, Camila. (2014), Monopólio Estatal da Violência. In: Renato Sérgio de Lima; José Luiz Ratton; Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo. (Org.). Crime, Polícia e Justiça no Brasil. 1ed.São Paulo: Contexto.

ALVITO, Marcos. (2011), As cores do Acari: uma favela carioca. Rio de Janeiro. Editora FGV.

ARENDT, Hannah. (2004), Sobre a violência. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.

FELTRAN, Gabriel de Santis. (2012), Governo que produz crime, crime que produz governo. Rev. bras. segur. pública | São Paulo v. 6, n. 2, 232-255.

FERNANDES, Ionara dos Santos. (2017), Será que ele veio me pedir desculpas? O olhar de crianças e adolescentes pobres sobre a política de segurança pública do Rio de Janeiro. Dissertação de Mestrado, Universidade Federal Fluminense, Niterói.

FRIDMAN, Luis Carlos. (2008), “Morte e vida favelada” In: Luiz Antônio Machado da Silva (org.), Vidas sob o cerco: violência e rotina nas favelas do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: FAPERJ.

LEITE, Marcia Pereira. (2008), Violência, risco e sociabilidade nas margens da cidade: Percepções e formas de ação de moradores de favelas cariocas”. Em: MACHADO DA SILVA, Luiz Antonio (org). Vida sob cerco: violência e rotina nas favelas do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, FAPERJ.

LIMA, Renato, SINHORETO, Jaqueline, & BUENO, Samira. (2015), A gestão da vida e da segurança pública no Brasil. Revista Sociedade e Estado. vol.30 no.1 Brasília Jan./Apr.

MACHADO DA SILVA, Luiz Antonio. (2004) Sociabilidade violenta: por uma interpretação da criminalidade contemporânea no Brasil urbano. Revista Sociedade e Estado, Brasília, v. 19, n. 1, p. 53-84.

MACHADO DA SILVA, Luiz Antonio. (2010), Violência urbana, segurança pública e favelas - o caso do Rio de Janeiro atual. CADERNO CRH, Salvador, v. 23, n. 59, p. 283-300.

MACHADO DA SILVA, Luiz Antonio, & LEITE, Marcia Pereira. (2007), Violência, crime e polícia: o que os favelados dizem quando falam desses temas. Sociedade e Estado, v.22, p.545-591, Brasília.

MISSE, Michel. (2011), Crime organizado e crime comum no Rio de Janeiro: diferenças e afinidades. Rev. Sociol. Polít., Curitiba, v. 19, n. 40, p. 13-25.

MISSE, Michel. (2010), Crime, sujeito e sujeição criminal: aspectos de uma contribuição analítica sobre a categoria “bandido”. Lua Nova, São Paulo, 79: 15-38.

MISSE, Michel. (2002), Rio como bazar: a conversão da ilegalidade em mercadoria política. Insight Inteligência. Rio de Janeiro, v.3, n.5.

MISSE, Michel. (2008), Sobre a acumulação social da violência no Rio de Janeiro. Civitas, Porto Alegre, v. 8, n. 3, p. 371-385, set.-dez.

RAMOS, Silvia, & MUSUMECI, Leonarda. (2005), Elemento suspeito: Abordagem policial e discriminação na cidade do Rio de Janeiro. São Paulo, Civilização Brasileira.

STILES, Kristine. (2011), Cabeças raspadas e corpos marcados. Samuel Aranda, Pieta Yemenita.

VALLADARES, Lícia. (2000), A GÊNESE DA FAVELA CARIOCA. A produção anterior às ciências sociais. RBCS Vol. 15.

VALLADARES, Lícia. (2005), A invenção da favela: do mito de origem a favela.com. Rio de Janeiro: FGV, 2005.

VARGAS, Joana Domingues. (2012), Em busca da “verdade real”: tortura e confissão no Brasil ontem e hoje. Sociologia & Antropologia, vol.02 (03), p. 237-265, Rio de Janeiro, PPGSA.

VERÍSSIMO, Marcos. (2009), O Medo de Errar e o ethos da Polícia Militar do Rio de Janeiro. In: PIRES, Lenin; EILBAUM, Lucía. (Org.). Políticas Públicas de Segurança e Práticas Policiais no Brasil. Niterói: EDUFF.

WEBER, Max. (1999), Economia e sociedade. Brasília: Editora da UNB.

ZALUAR, Alba. (1994) A máquina e a revolta: As organizações populares e o significado da pobreza. São Paulo, Brasiliense.

ZALUAR, Alba, LEAL, Maria Cristina. (2001), Violência extra e intramuros. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 16, n. 45, p. 145-164.

ZALUAR, Alba. (2004), Integração perversa: pobreza e tráfico de drogas. Rio de Janeiro: FVG.

Notas

[1] É o ato de bater com uma sandália da marca Kenner.
[2] Música: “Vai ficar careca” – Mc Cocão.


Buscar:
Ir a la Página
IR
Visualizador XML-JATS4R. Desarrollado por