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Recepción: 03 Febrero 2020
Aprobación: 08 Junio 2020
DOI: https://doi.org/10.20336/rbs.617
Resumo: Neste artigo, abordaremos os percursos migratórios de bolivianos e bolivianas no interior dos territórios da costura em São Paulo e Buenos Aires. A partir de uma caracterização dessa migração como território circulatório, argumentamos ser necessária a compreensão das formas como os migrantes articulam, em sua experiência social, os vários fatos de mobilidade que compõem seus percursos migratórios na costura. Para tanto, propomos a metodologia das narrativas de vida como narrativas de práticas. Finalizamos o artigo com a apresentação de dois percursos típicos: i) aqueles que se integram de fato em uma das sociedades de destino, apresentando pouca probabilidade de retorno, mesmo quando seguem engajados nos territórios da costura e, ii) aqueles que retornam para a Bolívia após uma primeira experiência, com alta probabilidade de reinserção nos territórios da costura.
Palavras-chave: Narrativas de vida, Projeto migratório, Território circulatório.
Abstract: In this article, we will approach the migratory routes of Bolivians within the sewing territories in São Paulo and Buenos Aires. Based on a characterization of this migration as a circulatory territory, we argue that it is necessary to understand the ways in which migrants articulate, in their social experience, the various mobility facts that make up their migratory routes in sewing territories. Therefore, we propose the methodology of life narratives as narratives of practice. To conclude, we present two typical routes: i) those who actually integrate into one of the destination cities, presenting little probability of return, even when they remain engaged in the sewing territories and; ii) those who return to Bolivia after a first experience, with a high probability of reintegration in the sewing territories.
Keywords: Life narratives, Migratory project, Circulatory territory.
Introdução
Ao longo de boa parte do século XX, o debate sobre as migrações internacionais teve como principal referência o “paradigma da assimilação”, proposto, inicialmente, pelos pesquisadores da Escola de Chicago de sociologia urbana, em suas análises acerca das migrações em massa do final do século XIX, da Europa para o continente americano. Para os propositores do paradigma da assimilação, tratava-se de compreender os processos de adaptação que permitiriam a integração desses novos migrantes, étnica e culturalmente diferenciados, à sociedade americana[1].
No período em que esses autores escreviam – entre o final do século XIX e início do século XX –, as migrações em massa para o continente americano não eram consideradas um problema, mas eram incentivadas por governos nacionais e elites locais (Wimmer e Glick-Schiller, 2002, p. 312). Nessas circunstâncias, o paradigma da assimilação podia expressar uma realidade objetiva (integração possível nos mercados de trabalho locais que necessitavam da força de trabalho migrante com a possibilidade concreta de mobilidade social) e subjetiva (o projeto de “fazer a América”)[2].
Contemporaneamente, os denominados “novos fluxos migratórios”, intensificados a partir de meados dos anos 1970, deparam-se com contextos econômicos e políticos muito mais refratários à sua integração, transformando, muitas vezes, os projetos migratórios de assimilação às sociedades de destino em uma quimera objetivamente improvável. Paralelamente, a diversificação dos locais de origem das migrações internacionais, o desenvolvimento das novas tecnologias de informação e comunicação (TICs), a popularização dos meios de transporte, o crescimento das migrações ilegais, entre outras tendências, têm transformado enormemente as dinâmicas migratórias (CASTLES et al., 2014; ARANGO, 2000).
Nesse sentido, destacam-se, como novidade no debate sobre os novos fluxos migratórios, dois tipos de dinâmicas de integração dos novos migrantes às sociedades de destino: i) as transnacionais, que se referem à manutenção de conexões, vínculos, relações e/ou atividades nas sociedade de origem, paralelas à inserção nas sociedades de destino (Glick-Schiller et al., 1992) e; ii) as circulatórias, que se referem à constituição de arranjos socioespaciais, entre origens e destinos, em torno de atividades econômicas empreendidas pelos próprios migrantes (AUTANT-DORIER, 2009; CORTES e FARET, 2009; MOROKAVASIC-MULLER, 1999; TARRIUS, 1993, 2001).
As migrações bolivianas vinculadas ao trabalho na costura, nas cidades de São Paulo e Buenos Aires, reiteradas ao longo de quase quatro décadas, desde pelo menos meados dos anos 1980, podem ser descritas como uma modalidade das dinâmicas circulatórias, conformadoras de novas territorialidades que se sobrepõem aos territórios estabelecidos pelos governos nacionais da Bolívia, do Brasil e da Argentina (FREITAS, 2011)[3]. Os territórios circulatórios da costura inauguram um novo tipo de fluxo migratório que franqueia a qualquer boliviano, que se encontre em qualquer um dos seus pontos de acesso, sua inserção no trabalho na costura tanto em São Paulo quanto em Buenos Aires[4].
Diferentemente do que se imagina à primeira vista, à medida que esses territórios circulatórios vão se consolidando, passamos a encontrar, em seu interior, bolivianos e bolivianas com trajetórias socioespaciais e ocupacionais anteriores diversas e com projetos e perspectivas igualmente diversificados sobre sua inserção nessa atividade (FREITAS, 2013). Neste artigo, abordaremos os desdobramentos desses projetos após a inserção desses migrantes nos territórios da costura em São Paulo a partir da consideração de seus percursos migratórios.
De maneira geral, argumentamos que o compartilhamento das mesmas circunstâncias objetivas de mobilidade não nos permite fazer inferências acerca dos desdobramentos dos projetos migratórios a partir do momento em que os migrantes se colocam em movimento. Em outras palavras: um território circulatório que se reproduz, ao longo de décadas, graças à atualização constante dos vínculos entre seus diversos espaços não contíguos por meio da circulação de pessoas por entre esses espaços não tem como correlato necessário percursos migratórios marcados pela circulação. A circulação de pessoas e mercadorias diversas, entre lá e cá, é fundamental para a manutenção desses territórios, no entanto, essa circulação não é suficiente para definir a experiência migratória daqueles que se inserem nesses territórios.
Para avançar na compreensão da experiência migratória em um determinado contexto de mobilidade, consideramos fundamental a investigação dos percursos migratórios tal como narrados pelos próprios migrantes, tendo em vista as articulações e recomposições do projeto migratório inicial tecidas à medida que os migrantes se colocam em movimento. Para tanto, propomos a mobilização da metodologia de narrativas de vida como narrativas de práticas (Bertaux, 2013).
Na próxima seção, desenvolvemos as bases teóricas desse argumento e, na seção seguinte, apresentamos dois desdobramentos típicos dos percursos migratórios dos bolivianos e bolivianas que se inserem nos territórios da costura: i) aqueles que se integram de fato em uma das sociedades de destino, apresentando pouca probabilidade de retorno, mesmo quando seguem engajados nos territórios da costura e, ii) aqueles que retornam para a Bolívia após uma primeira experiência com alta probabilidade de reinserção nos territórios da costura.
1. As narrativas de práticas de mobilidade na análise dos percursos migratórios contemporâneos
Cada movimento de uma população no espaço é também um movimento nas escalas de estratificação social. Mover-se é consumir, simbolicamente e factualmente, o tempo e o espaço; é perceber os lugares do Outro; é manifestar sintomaticamente seus lugares: aqueles que percebemos, aqueles que desejamos, aqueles que ocupamos. Assim, não há interrupção entre movimento e sedentarismo, mas continuidade entre as grandes migrações, que atravessam vastos espaços com diferentes formas e culturas, as mobilidades residenciais que especificam o encontro entre os seus e os outros em novos territórios e as mobilidades diárias que singularizam, no tempo, os ritmos sociais e os espaços de vizinhança, de sedentariedades efêmeras ou duradouras (TARRIUS, 1989, p. 57, tradução própria).
A complexidade da experiência migratória na contemporaneidade coloca o pesquisador diante de uma série de desafios. A insuficiência de categorias como “emigração” e “imigração”, “migração interna” e “internacional”, aliada a uma ampliação da diversidade e da autonomia dos migrantes na tessitura de seus percursos têm forçado o desenvolvimento de novas perspectivas acerca dos fatos de mobilidade. No lugar da quantificação objetiva dos deslocamentos espaciais, organizados em trajetos e etapas, passa a ser cada vez mais importante a compreensão das formas como os migrantes articulam, em sua experiência social, esses vários deslocamentos que compõem seus percursos sociais.
A necessidade de compreensão da articulação subjetiva dos deslocamentos espaciais traz para o primeiro plano da análise dos fatos de mobilidade a experiência temporal dos sujeitos. Conforme propõe Tarrius (1989, 2001), em sua antropologia do movimento, ao invés de conceber o tempo como simples atributo do espaço, reduzido, portanto, à sua duração, trata-se de conceber o tempo como organizador do espaço. Abordagem que permite articular, na linha temporal, espaços, dimensões e escalas diversas – do local ao transnacional.
Tendo em vista que narrar acontecimentos é uma forma de organizar as ações em sequências temporais (RICOEUR, 2007, p. 185-189), consideramos que as narrativas subjetivas dos percursos migratórios de bolivianos e bolivianas, no interior dos territórios da costura, podem fornecer uma chave de acesso bastante profícua a essas articulações espaço temporais dos fatos de mobilidade.
A utilização de narrativas de vida na análise da experiência migratória possui uma ampla tradição nas ciências sociais, remetendo-nos aos estudos de uma das primeiras escolas de sociologia urbana do século XX, a Escola de Chicago, responsável pelo primeiro estudo do gênero, o clássico de William I. Thomas e Florian Znaniecki, The polish peasant in Europe and America (1996)[5]. Para os autores desse estudo, conforme desenvolvem em sua nota metodológica (1996, pp. 1-86), as narrativas de vida constituíam o meio de acesso privilegiado para a realização de uma ampla contextualização das situações vivenciadas e do processo de constituição da personalidade social dos indivíduos que as vivenciaram, provendo o sociólogo do material necessário para identificar, diante da infinidade de antecedentes de um evento, aqueles significativos para o desenvolvimento de determinada situação social.
Nesse sentido, os autores (1996, p. 68) propõem o conceito de “definição da situação”, a ser perscrutada na realização das narrativas. A definição da situação refere-se aos elementos mobilizados pelos sujeitos (experiências passadas, constrangimentos morais, percepção do contexto imediato etc.) nos momentos críticos em que necessitam definir um curso de ação entre vários possíveis. Nessa perspectiva, argumentamos que o conceito de “definição da situação” assemelha-se à ideia de “projeto”, pressupondo uma reflexividade passível de ser retomada discursivamente, que indica o ambiente e as percepções relevantes no momento da decisão a respeito de um curso de ação.
No entanto, na perspectiva dos pesquisadores da Escola de Chicago e de parte do debate que se desenvolveu a partir daí, embora se tratasse de um meio de acesso relevante para a compreensão do mundo social, as narrativas de vida tinham como objetivo compreender o comportamento psicológico dos sujeitos e as orientações subjetivas envolvidas nas definições da situações.
Para os objetivos deste estudo, as narrativas dos percursos migratórios devem possibilitar uma aproximação espaço-temporal dos eventos de mobilidade, independentemente das orientações psicológicas dos narradores. Nesse sentido, nos associamos à proposta de Bertaux (2013) de produção de narrativas de práticas articuladas às definições das situações nos momentos críticos, em que os sujeitos devem escolher um curso de ação específico. Para o autor (2013, p. 20), as entrevistas de narrativas de práticas devem ser orientadas para o “como” dos eventos a serem investigados e não para as opiniões, valores e crenças dos sujeitos investigados.
A partir dessa perspectiva, foram realizadas entrevistas de narrativas dos eventos de mobilidade experienciados por bolivianos e bolivianas que, em algum momento de suas vidas, se inseriram nos territórios circulatórios da costura. Nessas entrevistas, buscamos articular a descrição dos eventos de mobilidade aos projetos migratórios dos sujeitos, ou seja, à maneira como se posicionavam em relação às sociedades de origem e de acolhimento, não apenas no momento de entrada nesses territórios, mas durante os momentos decisivos ao longo de todo o seu percurso migratório. Considerando, portanto, o projeto como um processo constante de readequação de expectativas e projeções à medida que o percurso migratório é experienciado por aqueles que se põem em movimento (BOYER, 2005, p. 57).
2. Os percursos migratórios nos territórios da costura
Nesta seção, propomos uma descrição dos percursos migratórios de bolivianos e bolivianas que se colocaram em movimento no interior dos territórios circulatórios da costura. Para uma padronização mínima das descrições propostas, serão utilizadas as noções demográficas de “reversibilidade da migração” e “residência base” (DOMENACH e PICOUET, 1990, 1989). Nesse sentido, a residência base é definida pelos autores como o lugar ou o conjunto de lugares a partir do qual (ou dos quais) os deslocamentos têm uma probabilidade de retorno mais elevada, qualquer que seja a duração da estadia em outro lugar. Na medida em que a probabilidade de retorno (reversibilidade) diminui, a residência base se desloca.
Essas narrativas foram coletadas durante a realização de uma etnografia multi- situada (Marcus, 1995), na cidade de São Paulo, no Brasil, e nas cidades de La Paz, Cochabamba e no município rural de Escoma, no departamento de La Paz, na Bolívia[6].
De maneira geral, os migrantes relatam que a inserção nos territórios da costura em São Paulo ou em Buenos Aires é projetada, antes da migração, como sendo de curto prazo, .por un tiempito nomás.. Inclusive, quando detalhamos o processo de decisão de entrada nesses territórios, o lapso temporal entre o contato com uma oportunidade de trabalho na costura e a migração não costuma passar de dois dias. Nesse sentido, essa migração não é vista como um projeto migratório tradicional, em que existe todo um processo anterior de preparação para a sua realização. Aproximando-se mais de uma viagem a trabalho, decidida de última hora[7].
Ao longo do percurso migratório, essa sensação de provisoriedade se mantém em muitas narrativas. Inclusive, em situações em que o migrante se encontra há mais de uma década na cidade de destino, com casa própria e, na prática, tendo deslocado sua residência base para o Brasil. Em alguns desses percursos, a expressão “por un tiempito nomás” continuava a ser mobilizada quando os entrevistados projetavam o futuro do percurso migratório. Consideramos que essa abertura para uma reversibilidade futura da integração nas sociedades de destino deve-se ao fato de que essa integração ocorre quase sempre no interior dos territórios da costura – seja por meio do estabelecimento de uma oficina de costura própria, seja por meio do estabelecimento de outra atividade direta ou indiretamente associada aos territórios da costura (aluguel de box na Feira da Madrugada, venda de comida nas feiras bolivianas ou com um restaurante próprio etc.). Dessa forma, mesmo nos casos em que o migrante nunca mais retornou à Bolívia, o contato constante com pessoas que acabaram de chegar ou que planejam o retorno parece instigar esses migrantes a permanecerem propensos ao retorno.
Paralelamente, parte dos migrantes retorna de fato à sua última residência base na Bolívia[8]. Conforme discutimos em outro artigo, no debate sobre a diáspora boliviana, os autores consideram que as migrações contemporâneas não visam à ruptura, mas à manutenção dos locais de origem, fazendo parte das estratégias locais de sobrevivência e mobilidade social (FREITAS, 2013)[9]. Ideia sintetizada, inclusive, no título de alguns dos principais livros emergentes nesse contexto como, por exemplo, No llores, prenda, pronto volveré (2006) de Leonardo De La Torre e Partir para quedar-se (2004) de Geneviève Cortés.
No caso dos territórios bolivianos da costura, nos projetos prévios à migração, parte dos bolivianos e das bolivianas entrevistados, especialmente os que já possuíam família, indicavam como elemento decisivo para a migração o objetivo de obter dinheiro para a quitação de um gasto já realizado (como, por exemplo, o pagamento de uma dívida ou das parcelas relativas à compra de uma casa, terreno ou carro) ou para a realização de um gasto futuro (como, por exemplo, a montagem de uma oficina de costura própria ou a realização da festa de casamento). No entanto, encontramos também narrativas, principalmente de jovens solteiros, em que a motivação para a inserção inicial nos territórios da costura era muito mais incerta, marcada mais pela vontade de conhecer novos lugares, pela intenção da aventura, do que propriamente por um projeto de manutenção ou investimento na Bolívia (FREITAS, 2013).
Nos desdobramentos dos projetos iniciais, os bolivianos e as bolivianas que em algum momento de seu percurso migratório retornam, o fazem por inúmeros motivos: i) de maneira temporária, durante a baixa temporada da costura, para visitar amigos, parentes e familiares com o objetivo de retornar à mesma oficina em que estavam trabalhando; ii) como forma de encontrar melhores oportunidades para a reinserção na costura em outras oficinas na mesma cidade ou na outra cidade que compõe o território boliviano da costura (São Paulo ou Buenos Aires) e; iii) de maneira aparentemente definitiva mas, na maioria das vezes, aberta a novas reinserções.
Nesses casos, na maioria das vezes, a residência base permanece na Bolívia, já que, nas cidades de destino, a moradia se confunde com o local de trabalho, sendo comum a realização de mais de uma mudança de oficina e, portanto, local de moradia, ao longo do percurso migratório.
Nos próximos itens, abordaremos esses dois desdobramentos típicos dos projetos migratórios dos bolivianos e bolivianas que se inserem nos territórios da costura:: i) aqueles que se integram de fato em uma das sociedades de destino, apresentando pouca probabilidade de retorno, mesmo quando seguem engajados nos territórios da costura e, ii) aqueles que retornam para a Bolívia após uma primeira experiência.
3. Por un tiempito nomás - os percursos de transferência da residência base para as cidades de destino
Durante o trabalho de campo realizado na cidade de São Paulo, encontramos percursos variados de bolivianos e bolivianas que deslocaram sua residência base da Bolívia para o Brasil ao longo de sua inserção nos territórios da costura.
Nesse sentido, destaca-se uma diferenciação entre aqueles que migraram entre meados dos anos 1980 e início dos anos 1990 e, aqueles que migraram a partir dos anos 2000. Os percursos da primeira geração de migrantes são marcados pela aquisição da casa própria em São Paulo e pela manutenção de atividades laborais diretamente associadas aos territórios da costura. Já os percursos da segunda geração de migrantes são mais diversificados e mais voltados para uma incorporação nos mercados de trabalhos locais, na tentativa, nem sempre bem-sucedida, de saída dos territórios da costura. As narrativas de Elizabeth e Jair são expressivas do primeiro tipo de percurso, enquanto a narrativa de Rosemary nos permite vislumbrar as especificidades do segundo tipo de percurso.
3.1 Percursos de Elizabeth e Jair[10]
Elizabeth e Jair fazem parte da primeira geração de migrantes provenientes da Bolívia que se inseriram no território da costura na cidade de São Paulo. Ambos nascidos durante a década de 1970, migraram pela primeira vez para o Brasil entre meados dos anos 1980 e início de 1990. Há mais de uma década na capital paulistana, ambos se casaram, compraram suas casas – Elizabeth na zona leste e Jair na zona norte –, montaram as suas próprias oficinas de costura e, atualmente, dedicam-se a atividades que compõem os territórios da costura bolivianos: Elizabeth possui uma oficina de costura e aluga um box na Feira da Madrugada onde revende roupas importadas da China e feitas em sua própria confecção, enquanto Jair montou um restaurante boliviano na Rua Coimbra, frequentado, principalmente, pelos costureiros e oficinistas que vivem na cidade.
Jair migrou para São Paulo, de Cochabamba, aos 19 anos, no final de 1984, após concluir o segundo grau. Diferentemente de outros bolivianos e bolivianas entrevistados, que migraram no mesmo período, Jair não cogitava trabalhar na costura. Ele vinha conhecer seu filho que nascera no começo daquele ano. Jair era filho único de uma família de classe média que possuía uma oficina mecânica. E, conquanto tenha aprendido o ofício do pai, ao auxiliá-lo em seus momentos de folga dos estudos, havia sido educado para seguir os estudos universitários.
No entanto, Jair apaixonou-se por uma garota mais pobre e ela engravidou e decidiu fugir com uma prima que conseguira um trabalho de empregada doméstica em uma casa de família em São Paulo, por medo da represália de seus pais[11]. Ao chegar a São Paulo, sua futura esposa, que trabalhava como cozinheira na Mooca, indicou que tentasse trabalho na confecção, mas Jair acabou conseguindo trabalho como ajudante em uma oficina mecânica e, depois de cinco meses, como fresador em uma tornearia do irmão do patrão de sua esposa[12]. Nessa época, em 1985, todos os bolivianos que Jair conhecia trabalhavam no ramo de confecção e lhe diziam que conseguiam ganhar muito mais do que ele como metalúrgico.
Tendo como referência a experiência de seus amigos na confecção, Jair decide pedir as contas da metalúrgica, depois de dois anos, e tentar a vida no ramo de confecções, utilizando o dinheiro extra, proveniente de seus direitos trabalhistas, para comprar suas duas primeiras máquinas de costura. Embora já possuísse máquinas, Jair se inseriu, inicialmente, como costureiro em outras oficinas para adquirir prática e aprender como montar sua própria oficina.
Nesse período inicial, Jair trabalhou em duas oficinas, na zona leste da cidade, cujos responsáveis, denominados de “oficinistas”, eram migrantes coreanos[13]. No momento em que o oficinista da segunda oficina na qual se engajara decidiu encerrar as atividades da costura para dedicar-se ao comércio de roupas no Bom Retiro, Jair iniciou a montagem de sua oficina própria. Em sua saída, o oficinista coreano lhe propôs um acordo: o coreano alugaria, a preços módicos, suas máquinas a Jair se a sua oficina passasse a costurar, prioritariamente, as roupas a serem comercializadas em sua loja. Essa parceria informal foi fundamental para o sucesso de Jair que, ao longo dos anos, ampliou enormemente a sua oficina comprando definitivamente as máquinas alugadas do coreano.
Em 1989, após a anistia que lhe permitiu legalizar a permanência de sua família, Jair abriu uma conta no banco e fez seu primeiro empréstimo para a compra da casa própria, consolidando a transferência de sua residência base para o Brasil. Entretanto, as transformações no ambiente econômico engendradas durante o governo Collor provocaram uma crise na indústria de confecção como um todo. Nesse período, muitos coreanos e bolivianos reemigraram para Buenos Aires, na Argentina, que, inversamente, havia promovido a paridade do peso com o dólar, conformando um ambiente bastante propício para os negócios na indústria de confecção. Um pouco depois, em 1993, Jair fez o mesmo, depois de oito meses sem trabalhar e com as dívidas se acumulando: migrou sozinho para Buenos Aires, deixando sua mulher e os dois filhos em sua nova residência base, em São Paulo.
Em Buenos Aires, Jair não teve nenhuma dificuldade em conseguir trabalho em uma oficina de costura de coreanos assim que chegou, pois “já tinha conhecimento”. De acordo com ele, os bolivianos que haviam trabalhado em São Paulo eram mais bem cotados do que os que haviam migrado diretamente para a Argentina. Durante o ano em que passou trabalhando nesse país, ganhava um salário bem superior às suas expectativas, o que lhe possibilitava sustentar confortavelmente sua família em São Paulo.
Jair retornou um ano depois, em 1994, e, junto com sua esposa, recomeçou tudo de novo. Durante a crise, boa parte das máquinas que possuía foram vendidas, restando apenas cinco máquinas com as quais montou novamente uma oficina de costura. Em 1998, quando já contava com dez máquinas, teve uma série de desentendimentos com seus costureiros e acabou decidindo mudar de ramo, iniciando a venda de comida boliviana, a princípio, na Praça do Pari, depois, na Praça Kantuta, até montar o restaurante que possui atualmente na Rua Coimbra. Embora esteja completamente integrado na cidade de São Paulo, com os filhos na faculdade planejando desenvolver suas carreiras profissionais no Brasil, Jair considera passar a velhice na Bolívia ao lado de seus familiares.
A entrada de Elizabeth nos territórios bolivianos da costura em São Paulo é bem mais comum do que a de Jair, e se insere em uma rede familiar protagonizada por sua irmã mais velha. Nascida na cidade de La Paz e parte de um núcleo familiar composto por pai, mãe e dois irmãos (um irmão mais novo e uma irmã mais velha), Elizabeth passou por uma primeira mudança de residência base na própria Bolívia, durante os anos 1980, em meio a um contexto marcado por uma séria crise econômica e política. Nesse momento, seus pais se separaram e, enquanto a irmã mais velha decidiu migrar para São Paulo, a convite de uma amiga, para trabalhar na costura, Elizabeth e seu irmão menor, ainda crianças, se mudaram com a mãe para a cidade de El Alto, na região metropolitana de La Paz.
Em El Alto, a sua mãe casou-se novamente e, graças a uma série de desentendimentos com seu padrasto, Elizabeth decide migrar para São Paulo, em 1995, aos 19 anos, para morar com a irmã, após terminar os estudos de nível médio na Bolívia. No momento de sua migração, sua irmã estava casada com um boliviano e possuía casa própria, no bairro Edu Chaves, na zona norte da capital, na qual havia montado uma oficina de costura.
Durante os primeiros anos em São Paulo, Elizabeth que, até aquele momento, tinha exercido apenas o trabalho de comerciante junto com sua mãe em El Alto, trabalhou como cozinheira na oficina de costura de sua irmã até aprender a costurar. Embora fosse grata à sua irmã, na medida em que se integrava na cidade e conhecia as condições de trabalho de outros bolivianos e bolivianas que trabalhavam na costura, Elizabeth começou a se sentir explorada devido ao baixo salário e ao intenso volume de trabalho. Dessa forma, seis anos após ter migrado pela primeira vez, decide voltar para a sua segunda residência base em El Alto, na Bolívia, na casa de sua mãe.
No entanto, um mês depois do retorno, em El Alto, recebe uma proposta de trabalho de um conhecido, sobrinho de um oficinista boliviano, com quem decide retornar para São Paulo. A sua reinserção nos territórios da costura deveu-se não apenas à proposta de trabalho, mas também ao fato de não se sentir à vontade na casa de sua mãe. Em sua segunda oficina, apesar de receber um salário melhor como costureira, Elizabeth se sentia intimidada em um ambiente repleto de costureiros bêbados e de brigas constantes. E, após três meses, acaba retornando para a oficina de costura de sua irmã, na qual permaneceu por mais oito anos até conhecer seu futuro esposo, um oficinista de Cochabamba. Nessa segunda temporada na casa de sua irmã, Elizabeth havia decidido se estabelecer no Brasil definitivamente.
No entanto, o casamento representou o início de uma nova etapa em sua trajetória laboral, em sua inserção na cidade e em suas relações com a Bolívia. O seu marido já possuía casa própria no Brasil com uma pequena oficina e alugava um box na Feira da Madrugada para a comercialização de sua própria produção e de outras roupas e produtos importados da China. Ao se casar, Elizabeth passou a ficar responsável pelo comércio na Feira da Madrugada, enquanto o marido cuidava da confecção e da importação de mercadorias.
No momento da entrevista, Elizabeth estava grávida de quatro meses de seu primeiro filho e, embora estivesse feliz com a nova atividade, mais condizente com suas habilidades desenvolvidas desde a infância, o casal planejava retornar à Bolívia para terem a oportunidade de educar seus filhos com valores bolivianos. O plano do casal era utilizar o dinheiro da venda da casa própria, que seu marido conquistou na cidade de São Paulo, para comprar uma casa e montar uma oficina de costura para trabalhar em Cochabamba. Esse projeto havia surgido em conversas de seu marido com os seus amigos que já haviam retornado e montado sua oficina de costura própria. Dessa forma, a partir de sua inserção nos territórios da costura em São Paulo, Elizabeth ressignificava suas relações com a Bolívia, passando a planejar um retorno para outra cidade (Cochabamba), com o objetivo de estabelecer uma nova residência base no país de origem.
3.2 Percurso de Rosemary[14]
Rosemary faz parte da segunda geração de migrantes provenientes da Bolívia, cuja inserção na costura ocorreu ao longo dos anos 2000. Em seu percurso, a costura aparece como um momento de transição para outro tipo de atividade profissional, que embora possibilite sua inserção no mercado de trabalho brasileiro, segue sendo exercida no interior dos territórios da costura.
Nascida em uma província da zona rural do departamento de Oruro, a sua primeira mudança de residência base ocorreu na própria Bolívia, em 2004, aos 19 anos, após finalizar o ensino médio. Nesse momento, Rosemary migrou da zona rural para a cidade de Cochabamba, localizada em departamento de mesmo nome. A principal motivação dessa primeira migração foram os desentendimentos com seu padrasto e a ruptura definitiva com sua mãe.
Em Cochabamba, Rosemary aprendeu o ofício de bordadeira e, após quatro anos trabalhando nessa área, soube, por meio de conhecidos que também trabalhavam na costura, de uma oportunidade de trabalho em São Paulo e decidiu migrar com duas amigas. A migração foi financiada com um dinheiro emprestado pelo oficinista, boliviano que iria empregá-las em sua oficina, no bairro da Penha, na zona leste da capital paulistana. Inicialmente, Rosemary planejava trabalhar em São Paulo por dois anos, juntar dinheiro e retornar para Cochabamba para dar entrada em uma casa própria. Embora Cochabamba não fosse seu local de origem, tratava-se de uma cidade de referência e de destino para parte importante de seu núcleo familiar e de suas redes de sociabilidade consolidadas em Oruro.
Ao longo dos dois primeiros anos em que esteve trabalhando em sua primeira oficina de costura na capital paulistana, Rosemary fez cursos de manicure e de cabeleireira em seu tempo livre, no instituto Embeleze, localizado próximo ao seu trabalho. E, assim que surgiu uma oportunidade, começou a trabalhar nesse salão em que eu a conheci, na Rua Coimbra, indo morar com outras cabeleireiras bolivianas em uma casa alugada no Brás.
Atualmente, Rosemary se sente extremamente realizada nessa nova profissão e não planeja mais voltar para Cochabamba, considerando a casa no Brás a sua nova residência base. Ao longo do tempo na capital paulistana, foi perdendo o contato com parentes e amigos na Bolívia, mantendo apenas um contato esporádico com seu irmão que pretende convencer a vir para o Brasil.
4. Partir para ficar – os retornos e os percursos circulares nos territórios da costura
Nesta seção, abordaremos alguns tipos de percursos de inserção nos territórios da costura em que a residência base dos migrantes permanece na Bolívia – seja porque a migração visava à realização de algum objetivo concreto na Bolívia, seja porque tratava-se de uma aventura cujos desdobramentos não foram marcantes o suficiente para a precipitação de mudanças nas residências base dos migrantes. Nesse sentido, enquanto o percurso de Eliseu exemplifica o primeiro caso, o percurso de Timoteo é exemplar da segunda possibilidade.
4.1 Percurso de Eliseu[15]
No percurso de Eliseu, de 34 anos, a migração para o trabalho na indústria de confecção foi o meio encontrado por ele para pagar uma dívida realizada para a construção da casa própria, em El Alto, para acomodar seu núcleo familiar, formado por sua esposa Letícia e seus quatro filhos.
Eliseu já sabia das possibilidades de trabalho nos territórios da costura em São Paulo e Buenos Aires graças às notícias exitosas recebidas de amigos e parentes que haviam migrado, e acaba decidindo tentar esse caminho a partir do convite de uma prima que migrara no final dos anos 1990 e, depois de três anos, montara sua própria oficina de costura na cidade de São Paulo.
Eliseu e Letícia se conheceram na cidade de El Alto, no final dos anos 1990, no colégio em que faziam um curso supletivo para finalizar o ensino médio e, assim que receberam o diploma, no início dos anos 2000, passaram a viver juntos. Na época, ele trabalhava como sapateiro e ela como vendedora ambulante de comida em um dos maiores mercado ao ar livre da Bolívia, o Mercado 16 de Julio, em El Alto. Os dois são migrantes rurais do altiplano andino e, enquanto Letícia havia migrado com a família na segunda metade da década de 1980 – expulsos do campo no auge da crise socioeconômica e política –, Eliseu, que possuía mais sete irmãos, migrou sozinho, aos 12 anos, em 1991, para tentar a vida na cidade, apenas com o dinheiro da passagem e sem conhecer ninguém que pudesse acolhê-lo, mantendo ainda, durante os primeiros anos de inserção na cidade, sua residência base na zona rural.
Em El Alto conseguiu, assim que chegou, um emprego em uma sapataria que produzia sapatos para bebês e, como outros jovens que haviam feito o mesmo percurso solitariamente, morava na oficina que o havia contratado. À medida que se especializava, conseguia trabalhos melhores até se fixar em uma grande empresa de sapatos na cidade de El Alto, local em que trabalhava quando conheceu sua esposa.
Entre o início dos anos 2000 e o começo de 2010, o casal teve quatro filhos e fez um empréstimo no banco para comprar a casa própria, estabelecendo a segunda residência base de Eliseu que, até então, vivia em quartos de pensão. Nessa casa, Eliseu montou a sua própria sapataria, enquanto Letícia continuava com a venda ambulante de comida no mercado 16 de Julio. As dificuldades econômicas enfrentadas pelo casal desde 2009, impedindo o pagamento de sua dívida no banco, os levaram a aceitar o convite de sua prima.
Letícia tinha esperanças de que, com a viagem do marido, conseguiriam pagar as dívidas e melhorar sua situação na Bolívia e, por isso, estava disposta a arcar sozinha com a educação e o cuidado dos quatro filhos. Entretanto, ela também tinha receios devido às histórias que ouvia de amigas que se separaram depois que o marido viajou para trabalhar na confecção, em geral, porque eles acabavam formando outra família na cidade de destino com bolivianas que conheciam nas oficinas de costura.
De todo modo, as vantagens futuras pareciam compensar os riscos para a estabilidade familiar. Pelo acordo inicial entre Eliseu e sua prima, ele pagou os gastos da viagem até a fronteira com o Brasil e, a partir de Puerto Juarez, os gastos foram pagos por ela, que descontaria esse adiantamento do salário de Eliseu nos primeiros meses de trabalho em sua oficina de costura, em São Paulo.
Na oficina de costura de sua prima, apesar de Eliseu não possuir habilidade na costura de roupas, os conhecimentos desenvolvidos para a costura dos sapatos ajudaram bastante nos momentos iniciais de inserção no novo trabalho. Em termos de habilidade, a diferença residia apenas no material a ser costurado: couro, para os sapatos, e malhas, para as roupas, pois nos dois casos trabalhava com o mesmo tipo de máquina, a reta.
A grande diferença residia na temporalidade e no ritmo do trabalho. Em São Paulo, era preciso trabalhar muito mais, com pouco tempo de descanso e de maneira acelerada para produzir, todos os dias, os mesmos modelos, enquanto na Bolívia, além das duas horas de descanso durante o almoço e do fim do expediente às seis horas da tarde, a quantidade de sapatos que deveria costurar por dia era bem menor e, a cada dia, surgiam modelos novos que o distraiam.
Embora trabalhasse muito mais a um ritmo intenso, no final do mês não recebia os 500 dólares prometidos. Dessa forma, Letícia teve que voltar a vender comida no Mercado 16 de Julio, além de cuidar sozinha dos quatro filhos.
Oito meses depois de sua migração para São Paulo, no final de 2010, a situação não havia mudado, Eliseu continuava a receber pouco, trabalhando intensamente e, portanto, embora tenha planejado, inicialmente, permanecer na cidade por dois anos, foi convencido por sua esposa a regressar. Apesar de sentir-se explorado e, por meio dos colegas costureiros, ter recebido convites para trabalhar em lugares melhores para receber valores mais altos por peça costurada, ele não se sentia autorizado a sair da oficina de sua prima para outra oficina, pois essa atitude significaria cortar vínculos familiares importantes na Bolívia.
Atualmente, a situação do casal está um pouco melhor e, ponderam, futuramente, depois que os filhos estiverem maiores, tentar, os dois juntos, uma nova inserção nos territórios bolivianos da costura. No entanto, diferentemente da experiência anterior, de maneira mais independente e, preferencialmente, em Buenos Aires, devido à maior facilidade com o idioma.
4.2 Percurso de Timóteo[16]
A narrativa de Timóteo, um jovem boliviano entrevistado em Cochabamba, nascido no início dos anos 1990, é completamente diferente da de Eliseu – tanto em relação às suas condições de vida na Bolívia, quanto em relação ao seu percurso migratório nos territórios da costura.
Timóteo é um jovem urbano de Cochabamba que faz parte de uma família transnacional[17]. A sua mãe migrara para Valência, na Espanha, em 2005, quando ele tinha 14 anos e, seu irmão, oito anos, para trabalhar como empregada doméstica e cuidadora de idosos a partir de um convite de um de seus irmãos[18]. A migração de sua mãe foi uma decisão familiar, em vista do desemprego prolongado de seu pai.
Depois que sua mãe migrou para a Espanha, seu pai tinha o projeto de migrar para os Estados Unidos, pois, por outro lado, parte da família paterna de Timóteo já estava lá. Caso conseguisse, deixaria os dois filhos aos cuidados dos familiares de sua mulher, mas o visto demorou a sair e, quando saiu, estava empregado, graças ao auxílio de um padrinho, na prefeitura de Villa Tunari, em Cochabamba, e decidiu permanecer na Bolívia.
Ao longo dos anos em que sua mãe está na Espanha, os dois irmãos têm vivido junto com o pai, que acabou por assumir as tarefas domésticas e educativas do núcleo familiar.
De todo modo, de acordo com Timóteo, a mãe é bastante presente, por meio de contatos telefônicos e via internet, nas principais decisões domésticas, não apenas financeiras, mas também sobre a educação e o futuro de seus filhos. O objetivo atual da família, com a viagem de sua mãe, além da reforma da casa e do auxílio mensal para a manutenção dos filhos, é a compra de um negócio na Bolívia para que possa retornar de maneira definitiva.
A viagem de Timóteo para São Paulo, no primeiro semestre de 2011, aos 19 anos, para o trabalho na costura foi o primeiro percurso migratório independente da vida de Timóteo e representou sua primeira atividade laboral. Ao contrário das circunstâncias mais comumente encontradas, em que a decisão de migrar e trabalhar na indústria de confecção tem um componente claramente econômico, de sobrevivência e/ou mobilidade social, a decisão de Timóteo encontra-se mais no registro da aventura: decidiu viajar porque tinha perdido o prazo de uma inscrição para começar a academia militar depois do final do ensino médio. E, para que o tempo de espera até a próxima inscrição não fosse desperdiçado, decidiu aventurar-se em São Paulo, junto com um amigo, graças à indicação de outro amigo comum, que já estava trabalhando na cidade.
Para Timóteo, não se tratava de juntar dinheiro, ou de aprender um ofício, tratava-se, simplesmente, de viajar junto com um amigo, conhecer a cidade, trabalhar pela primeira vez e esperar o próximo ano para poder prestar a Academia Militar ou começar um curso universitário. E, apesar de seu amigo ter feito a viagem por terra, a mãe de Timóteo insistiu para que seu filho viajasse de avião, enviando-lhe o dinheiro da passagem.
Timóteo e seu amigo não sabiam costurar e, na primeira oficina em que chegaram, começaram como ajudantes, mas permaneceram apenas por uma semana devido às péssimas condições de moradia. Ao longo dos oito meses que moraram em São Paulo, Timóteo e seu amigo passaram por cinco oficinas diferentes.
Após essa primeira estadia, no final do ano de 2011, Timóteo retornou a Cochabamba para passar as festas com o irmão e o pai. No ano seguinte, acabou retornando novamente a São Paulo, no entanto, com um objetivo um pouco diferente: dessa vez, tratava-se de auxiliar um tio, irmão de sua mãe, que estava retornando da Espanha à Bolívia, junto com sua esposa, devido à crise financeira que assolava a Europa, e que gostaria de investir uma parte do dinheiro poupado na Espanha em uma oficina de costura em São Paulo. Durante o tempo em que estava procurando oficina para o tio, voltou a trabalhar na última oficina em que havia trabalhado antes de sair do Brasil.
Depois de encontrar a oficina para a família do tio, enquanto a mulher e os seus irmãos e primos trabalhavam na oficina, Timóteo e o tio começaram a trabalhar como pedreiros. Além da construção, Timóteo e o tio, com o aval e dinheiro de sua mãe, decidiram investir em contrabando com mercadorias compradas em São Paulo a serem revendidas na Bolívia. Fizeram sua primeira viagem, para Cochabamba, em julho de 2012. Em agosto de 2012, retornaram para São Paulo com planos de fazer outras compras e continuar com o negócio, entretanto, menos de um mês depois, seu pai lhe chamou para que retornasse imediatamente a Cochabamba, pois tinha conseguido uma entrevista para o filho concorrer a uma bolsa para a carreira de engenharia petrolífera, na Venezuela.
Considerações finais
A migração boliviana para a costura, associada ao trabalho análogo à escravidão, tem sido abordada, de maneira geral, a partir de suas determinantes socioeconômicas e das características gerais desse fluxo migratório (Freitas, 2011). Circunstâncias que produzem, involuntariamente, imagens homogeneizadoras desses migrantes e de sua experiência social.
Neste artigo, argumentamos que, diante das tendências contemporâneas das novas migrações internacionais, que ampliam enormemente as possibilidades e variações dos fatos de mobilidade, as abordagens estritamente objetivas dos fluxos migratórios (em termos de determinantes e estrutura dos fluxos) mostram-se pouco profícuas para a compreensão dos percursos migratórios dos que se põem em movimento. Nesse sentido, propomos como alternativa uma abordagem baseada nas narrativas subjetivas dos migrantes sobre as suas práticas de mobilidade.
A partir da aplicação dessa metodologia na análise da migração boliviana vinculada ao trabalho na costura foi possível produzir uma aproximação mais complexa e diversificada dessa experiência social. Tanto da perspectiva das origens e projetos iniciais dos que se põem em movimento, quanto da perspectiva dos percursos migratórios possíveis no interior dos territórios da costura.
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Notas