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Migrações internacionais de jovens rurais: limites da reprodução social de agricultores familiares e construções da autonomia pessoal*
International migration of rural youth: limits of family farmers social reproduction and constructions of personal autonomy
Migrações internacionais de jovens rurais: limites da reprodução social de agricultores familiares e construções da autonomia pessoal*
Revista Brasileira de Sociologia, vol. 8, núm. 19, pp. 201-225, 2020
Sociedade Brasileira de Sociologia
Recepción: 27 Enero 2020
Aprobación: 14 Mayo 2020
Resumo: Neste artigo, tem-se como objetivo analisar o fenômeno das migrações internacionais de jovens rurais, a partir da inter-relação de fatores objetivos e subjetivos que limitam as tradicionais estratégias de reprodução social na agricultura e os processos de construção da autonomia social e consequente ingresso na vida adulta. A pesquisa foi realizada no município de Itapuranga, estado de Goiás, com base em dados qualitativos, obtidos por meio de entrevistas semiestruturadas. As migrações internacionais estão relacionadas tanto com a desestruturação da produção agrícola e dos meios de vida dos agricultores familiares, quanto com as mudanças nas percepções de vida e do trabalho rural, que limitam os processos de sucessão hereditária e a construção da autonomia dos jovens rurais. Ancoradas em longa tradição, as migrações internacionais de jovens rurais passaram a representar estratégias de ascensão social, emancipação pessoal e transição para a vida adulta.
Palavras-chave: Juventude rural, Agricultura familiar, Reprodução social.
Abstract: In this article, we aim to analyze the phenomenon of international migrations experienced by rural young people, based on the interrelationship between objective and subjective factors that limit the traditional strategies of social reproduction in agriculture and the construction processes of social autonomy and entry into adult life. The research was carried out in Itapuranga, state of Goiás, Brazil, based on qualitative data, obtained through semi-structured interviews. International migrations are related to the disruption of agricultural production and the livelihoods of family farmers and to changes in perceptions of rural life and work, which limit the processes of hereditary succession and the construction of the autonomy of rural youth. Anchored in a long tradition, the international migrations of rural youth have begun to represent strategies of social ascension, personal emancipation and transition to adult life.
Keywords: Rural youth, Family farming, Social reproduction.
Introdução
O inventário de migração internacional de 2019, divulgado pela Divisão de População do Departamento de Economia e Assuntos Sociais (DESA), da Organização das Nações Unidas (ONU), estimou a existência de 272 milhões de migrantes internacionais, distribuídos nos diferentes quadrantes do mundo. Historicamente, o Brasil foi o lugar de destino de milhares de migrantes oriundos de diversas nacionalidades. Porém, nas últimas décadas do século XX, o crescimento do número de brasileiros que partiram para o exterior tornou-se um novo fenômeno social. É difícil apurar o quantitativo populacional de brasileiros estabelecidos no exterior, considerando que parte significativa dos imigrantes não possui documentação reconhecida como válida e, em tal condição, um conhecimento preciso deste contingente resiste aos levantamentos censitários.
O Ministério das Relações Exteriores (MRE) apurou, em 2016, um total de 3.083.225 brasileiros vivendo no exterior. Em 2010, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), na tentativa de mensurar o fenômeno emigratório, contabilizou 491.645 brasileiros vivendo no exterior: uma cifra muito inferior às estimativas divulgadas pelo MRE. Apesar desse problema, o levantamento realizado pelo IBGE forneceu indicativos dos estados de origem dos emigrantes, apurando que os maiores percentuais partiram de São Paulo (21,6%), Minas Gerais (16,8%), Paraná (9,3%) e Goiás (7,2%). Estes dados também informam que 290.029 (59,03%) dos emigrantes tinham entre 15 e 29 anos de idade, sendo 135.458 (46,7%) homens e 154.571 (53,3%) mulheres. Isso significa que a população juvenil brasileira, com tendência ainda maior entre as jovens mulheres, apresentava maior predisposição à emigração, fenômeno que pode ser interpretado como busca de oportunidades de trabalho no exterior para a construção da autonomia pessoal e financeira.
Todavia, os dados do censo não informam se a origem dos emigrantes brasileiros era urbana ou rural. Além disso, pesquisas anteriores evidenciaram uma tendência de invisibilização da população rural envolvida nesses processos migratórios internacionais. Exemplo disso é a pesquisa desenvolvida por Sales (1999), referente à realidade de brasileiros que partiram para os Estados Unidos deixando o município de Governador Valadares, estado de Minas Gerais. Embora o estudo tenha visualizado a predominância de jovens brasileiros nesse processo migratório, não foi reconhecida a existência de rurícolas entre eles. Mesmo os entrevistados destacando a existência de jovens rurais migrantes internacionais – intitulados de “roceiros” –, o referido estudo desacreditou essa narrativa, entendendo-os como um mito.
As migrações internas, também denominadas migrações nacionais, experimentadas pelas gerações juvenis rurais, constituíram-se em objeto de estudo para diversos pesquisadores sociais rurais, como: Abramovay et al. (1998), Carneiro (1999), Stropasolas (2006), Brumer (2007), Wanderley (2007), Spanevello (2008), Weisheimer (2009), Castro (2009a, 2009b) e Menezes (1992, 2012). Na primeira década do século XXI, alguns pesquisadores com agregações disciplinares diversas – dentre os quais destacamos Renk e Cabral (2002), Pereira (2007, 2012), Chaveiro e Rodrigues (2013), Drebes (2015, 2019) e Oliveira (2015), Marin (2017) e Marin et al. (2019) – investiram no estudo de um novo fenômeno social: a migração internacional de jovens rurais, filhos de agricultores familiares. Nos estudos das migrações internacionais, esses pesquisadores optaram pelas abordagens qualitativas, possivelmente em decorrência da dificuldade tanto de obtenção de dados censitários confiáveis quanto de produzir dados quantitativos. Embora seja reconhecida a dificuldade de quantificar os jovens rurais migrantes internacionais, eles existem: não se pode mais invisibilizá-los.
Frente ao exposto, este artigo tem como objetivo trazer uma análise do fenômeno das migrações internacionais, vividas por jovens rurais do município de Itapuranga, estado Goiás, a partir da inter-relação de fatores objetivos e subjetivos que limitam as tradicionais estratégias de reprodução social na agricultura familiar e os processos de construção da autonomia social e ingresso na vida adulta.
Desde a década de 1990, Itapuranga ficou marcada pelo fenômeno da emigração, especialmente das gerações juvenis, que partiam para outros países em busca de trabalho e melhores condições de vida. Por tais razões, Itapuranga tornou-se local privilegiado para estudos de migrações internacionais, em cujos movimentos incorporam-se agricultores familiares e, mais acentuadamente, jovens rurais. Itapuranga situa-se a 160 km de Goiânia, capital de Goiás. Em 2000, sua população total era de 26.740 habitantes, sendo que 19.905 (74,44%) viviam no meio urbano e 6.835 (25,56%), no meio rural (IBGE, 2000). Já em 2010, a população total era de 26.125 habitantes, dos quais 21.235 (81,28%) residiam na área urbana e 4.890 (18,72%), na área rural do município (IBGE, 2010). Segundo o censo agropecuário de 2017, do total de 1.704 propriedades rurais, 1.265 (74,2%) eram tipificadas como unidades produtivas de agricultores familiares (IBGE, 2017).
A pesquisa está fundamentada em um estudo de caso, realizado no município goiano de Itapuranga. A realização de projeto de extensão universitária, desenvolvido ao longo de sete anos, possibilitou o estreitamento de relações pessoais com famílias de agricultores, que, em múltiplas oportunidades, demonstraram muito conhecimento e até mesmo certo prazer em relatar suas próprias experiências migratórias, assim como de familiares ou vizinhos.[1] Dada a importância da temática migratória internacional entre os jovens rurais, filhos de agricultores familiares daquele município, decidiu-se realizar um estudo mais aprofundado desse novo fenômeno social.
Para tanto, entrevistas registradas em gravador e observações anotadas em diário de campo tornaram-se os recursos metodológicos para a produção de dados de ordem qualitativa. A entrevista semiestruturada tornou-se técnica fundamental para a produção de dados dessa pesquisa. Inicialmente, as entrevistas foram dirigidas para familiares de migrantes internacionais e para algumas pessoas que, pelos conhecimentos e experiências de vida, proporcionaram informações relevantes sobre tais processos migratórios. Na sequência, entrevistas foram orientadas para migrantes retornados, atualmente adultos, mas que, durante a juventude, vivenciaram experiências migratórias internacionais. A escolha de migrantes internacionais retornados decorreu da maior facilidade de contatá-los e entrevistá-los em Itapuranga, mas, sobretudo, da recusa da concessão de entrevistas pelos filhos de agricultores familiares que ainda permaneciam no exterior, mesmo contando com a mediação de familiares residentes em Itapuranga e com as facilidades proporcionadas pelas novas tecnologias de informação e comunicação. Não obstante sucessivas tentativas, os migrantes contatados no exterior desculpavam-se com os argumentos de falta de tempo e compromissos de trabalho. Em face desta condicionante, metodologicamente buscamos estimular narrativas de migrantes internacionais retornados a Itapuranga. A partir da memória de migrantes internacionais “que voltaram para trás”, tratamos de reconstituir suas experiências migratórias, evidenciando, no alcance deste artigo, aqueles fatores de ordem objetiva e subjetiva que os motivaram para mobilidades além-mar no período da juventude.
O artigo está organizado em três seções. Na primeira seção, procura-se estabelecer uma aproximação das noções de juventude rural e migrações internacionais. Nas duas seções subsequentes, são analisados aspectos objetivos que limitam a reprodução familiar de agricultores de Itapuranga e as representações sociais que tornam moralmente aceitáveis as experiências migratórias internacionais vividas por jovens rurais.
1. Juventude rural e migrações internacionais: interconexões temáticas
A emigração de jovens rurais guarda estreita relação com a questão da reprodução social da agricultura familiar. Na última década do século XX, conforme estudos de Neves (2007), agentes sociais – filiados a diversas organizações internacionais e nacionais, estatais ou não estatais, e a movimentos sociais rurais – e pesquisadores multidisciplinares investiram no reconhecimento social de uma nova categoria socioprofissional, designada “agricultura familiar”, consagrando importantes conquistas na institucionalização de aparato jurídico e de políticas de crédito rural, extensão rural, mercados institucionais, dentre outras. Em torno de debates de problemas da agricultura familiar e da necessidade de institucionalizar leis e políticas públicas, foram elaboradas importantes questões acerca do futuro da agricultura familiar e de sua correlata sucessão hereditária. Foi assim que diferenciados mediadores sociais buscaram dar “visibilidade social” à juventude rural e situá-la como categoria social com necessidades, reivindicações e potencialidades nos processos de desenvolvimento territorial.
Logo, as lutas sociais em defesa da produção de condições favoráveis à inclusão da juventude rural nos processos de desenvolvimento territorial foram concebidas no escopo das estratégias para garantir reprodução da agricultura familiar e, por consequência, dos valores supostamente a ela associados: produção de gêneros alimentícios, segurança alimentar, geração de emprego, preservação ambiental e desenvolvimento territorial. Os parâmetros para as lutas e reivindicações formulados para os jovens rurais estavam consubstanciados nas orientações legais e nas políticas públicas já conquistadas para a categoria da agricultura familiar, no entanto, caberia estendê-las às futuras gerações de agricultores.
No plano da idealização das políticas de desenvolvimento rural, conforme reflexões de Ferreira e Alves (2009), dos jovens rurais era esperada a continuidade do mundo rural, com a reprodução social do campo e, mais especificamente, da agricultura familiar. Os contínuos fluxos migratórios rumo aos centros urbanos, embalados pelos jovens rurais, foram, portanto, pontuados como sério problema social ao desenvolvimento territorial, pelas correlações dramáticas relativas ao esvaziamento das áreas rurais, bem como à masculinização e ao envelhecimento de suas populações.
Embora não fosse um fenômeno social tão novo, a migração juvenil rural também colocaria em risco, em médio ou longo prazo, a reprodução social dos agricultores familiares. Se, por um lado, a reprodução social da agricultura familiar depende da presença ou da participação dos jovens rurais, por outro lado, depende também, em larga medida, de processos políticos e sociais em escalas locais, regionais, nacionais e globais, estruturados e estruturantes, que viabilizem condições objetivas e subjetivas para a permanência de jovens rurais no campo, proporcionem políticas públicas favoráveis à produção familiar e mantenham vínculos de afeto com a terra. Também não se pode desconsiderar que a migração de jovens rurais pode viabilizar, através de remessas em espécie ou de bens de consumo, a permanência dos pais ou de irmãos na agricultura familiar.
Reconhecimentos formais da juventude rural, no escopo de aparatos jurídicos ou de políticas públicas, têm amplos significados em termos de idealização de uma juventude rural, mas que não são necessariamente garantidos na realidade dos jovens rurais, nem representam melhorias nas suas condições objetivas de vida, haja vista os diversificados entraves econômicos, políticos e sociais para objetivá-los no cotidiano. Por tais razões, no estudo das juventudes rurais, torna-se necessário o contraponto com a realidade social e as experiências vividas pelos jovens, situadas em determinados contextos históricos e espaciais. Na diversidade das juventudes rurais, em muitas situações, os jovens rurais desconhecem aqueles supostos avanços formais ou nem demonstram interesse em políticas destinadas à sucessão hereditária na agricultura, visto que muitos projetos de vida passam por vinculações institucionais ou laborais, como estratégias de conquista da autonomia, de ocupação laboral fora da agricultura familiar e de ascensão social.
Neste sentido, a juventude é entendida como uma categoria social e sociológica construída a partir de processos socioculturais complexos que envolvem arranjos econômicos, políticos, históricos e, especialmente, no caso desta pesquisa, a partir da migração internacional como um fenômeno marcado por limitações na continuidade da vida e trabalho na agricultura familiar e como “rito de passagem” para a construção da autonomia pessoal e financeira. Portanto, analiticamente, não se considera a juventude como um dado ou uma essência, nem mesmo como uma fase natural da vida, delimitada tão somente por recortes etários. Como destacou Bourdieu (2011), o conceito de juventude é destituído de significado quando descontextualizado de processos históricos e relações sociais, que se constituem nas mediações entre o indivíduo e a história, entre os agentes sociais e as sociedades. Feixa (2006), também fundamentado em abordagem construtivista, compreende a juventude como um construto histórico e sociocultural, variável no tempo e no espaço. Nesse sentido, as juventudes tornam-se marcadamente plurais pela análise das particularidades das condições objetivas e subjetivas dos contextos histórico-sociais.
Ao elaborar um estado da arte das diversidades e das similaridades dos jovens rurais na França, Coquard (2015) percebeu que o objeto de estudo denominado juventude rural consiste em duas palavras cujas definições são questões de luta nos campos científico e político, para estabelecer o que se compreende por juventude e por rural. Durante muito tempo esta categoria foi reduzida a jovens agricultores ou, ainda, a filhos de agricultores, considerados inaptos a acompanhar as mudanças experienciadas pelas sociedades modernas. Hoje, contudo, nota-se que a situação dos jovens rurais não é essencialmente diferente da dos jovens urbanos, pois estes também enfrentam o dilema recorrente entre sair ou ficar para trabalhar e viver na propriedade ou no país, em um contexto de velozes mudanças da economia rural, em termos agrícolas, comerciais e industriais. Além disso, Coquard (2014, 2015) nos auxilia a entender a categoria juventude rural como constituída pelas gerações que entram no mercado de trabalho e contraem matrimônio, vivendo em territórios onde o modo de vida é caracterizado como rural – em relação ao modo de vida urbano –, sendo o seu habitus cada vez menos valorizado nesses mercados.
Sob uma perspectiva construtivista, as juventudes rurais podem ser compreendidas a partir de especificidades dos processos de inserção da agricultura familiar e de suas estratégias e limites para garantir a reprodução social. A apreensão da complexidade de situações produtivas, laborais e socioculturais auxilia a compreender a condição juvenil não como um padrão ou um ideal de “ser jovem”, mas a partir da diversidade de maneiras de se viver e de se conceber a juventude e do reconhecimento da existência de diferenças e de desigualdades sociais entre os jovens rurais, mesmo que pertencentes à categoria de agricultores familiares. Dada a pluralidade de contextos sociais, as limitações nas formas tradicionais de reprodução familiar de agricultura tendem a interferir nos projetos profissionais e nas representações sociais das gerações juvenis, facilitando as migrações, inclusive internacionais, em busca de outras formas de inserções sociolaborais.
Essa perspectiva está fundamentada em aportes teórico-metodológicos de Abdelmalek Sayad, sociólogo franco-argelino que renovou os estudos da questão da imigração no século XX ao colocar, no centro de sua análise, a complexidade do fenômeno emigração-imigração como “um fato social total” e lançar críticas aos estudos situados em termos de custos e vantagens econômicas ou de problema social. No estudo de experiências migratórias de argelinos rumo à França, o sociólogo propôs a análise das condições sociais e das trajetórias dos agentes sociais envolvidos em processos de emigração e imigração, os quais implicam espaços e tempos estritamente interconectados entre si (SAYAD, 1998).
Sob essa perspectiva, Sayad (1998) propugna a análise das múltiplas relações existentes entre o espaço e o tempo nos países de origem e entre o espaço e o tempo nos países de destino. As interconexões desses dois espaços geográfico-sociais e tempos cronológicos possibilitam maior compreensão e interpretação do fenômeno social emigração-imigração. Com tal proposição, o autor lança críticas aos estudos que analisam a imigração e o imigrante como um problema social e que negligenciam o estudo dos múltiplos fatores desencadeadores de processos individuais e coletivos de emigração, bem como a diversidade de condições sociais existentes nos locais de origem dos emigrantes e as distintas trajetórias de vida destes.
Loyal (2018), em uma releitura dos estudos de sociologia das migrações relacionados com Bourdieu e Sayad, destaca a importância de compreender o país de origem do emigrante e a sua trajetória social global, considerando os valores culturais dos migrantes, sem cair assim em relações de dominação internacional entre países mais desenvolvidos e menos desenvolvidos. Esse tipo de análise também permite desconstruir ilusões coletivamente compartilhadas a respeito das migrações internacionais, as quais escondem suas duras realidades e sofrimentos.
Ainda no investimento de melhor aproximação ao estudo do fenômeno migratório juvenil rural, podem-se agregar contribuições de pesquisadores que estudaram as migrações nacionais. Garcia Jr. (1989), Woortmann (1990) e Menezes (2012), particularizando experiências de jovens nordestinos no sentido da região Sudeste, indicam que as migrações resultam da inviabilização do produtor autônomo, com migração definitiva do meio rural, como também podem representar alternativa para garantir a reprodução social da condição de agricultor, pelo acúmulo de recursos financeiros, conhecimentos e novas visões de mundo, que são importantes para a permanência no meio rural na condição de agricultor autonomizado.
Enfim, por esse caminho teórico-metodológico, as migrações juvenis internacionais são qualitativamente analisadas a partir do estudo de fatores objetivos e subjetivos relacionados aos limites das tradicionais estratégias de reprodução familiar de agricultores e às mudanças nos valores e percepções de vida e de trabalho no meio rural, em suas necessárias interconexões com os processos mais amplos que produzem mobilidades em massa e em escala global.
2. Emigração de jovens rurais: limites da reprodução social dos agricultores familiares
Em Itapuranga, a migração faz parte da existência individual e coletiva das famílias de agricultores. Migrações não apenas experimentadas pelas gerações passadas, tal como muitos agricultores idosos e adultos se regozijam em lembrar, mas também as atuais vivenciadas por jovens rurais, com destino a outras terras de além-mar. Desde quando foi fundado, na década de 1930, até os dias atuais, o município de Itapuranga apresenta como característica marcante os intensos fluxos migratórios. No contexto da Marcha para Oeste, em Itapuranga, chegaram numerosas famílias de agricultores oriundos de diversos estados brasileiros, com predomínio de Minas Gerais e São Paulo, movidas pelo sonho da terra para trabalhar, plantar e colher (MARIN e NEVES, 2013).
A partir da década de 1960, já em contexto de modernização da agricultura e de aprofundamento das interligações entre setores agrícolas, industriais, financeiros e comerciais, agricultores familiares, expropriados de suas terras ou inviabilizados em suas condições de reprodução social, partiram de Itapuranga com destino a regiões de fronteiras agrícolas em busca de terra ou às cidades a procura de trabalho ou estudo para os filhos. Dessa forma, sucessivas gerações de agricultores familiares vivenciaram diferenciados fluxos migratórios para fazer de Itapuranga um município de migração e de famílias de migrantes. As migrações tornaram-se alternativas preferenciais de reprodução social e de enfrentamento das situações de crise da agricultura familiar. Com tais mobilizações populacionais, Itapuranga foi projetada como uma sociedade de emigração, pois se tornou local de partida de agricultores familiares e jovens rurais que embalaram contínuos e diversificados fluxos migratórios não somente em rotas nacionais, mas também em rotas internacionais (MARIN, 2017).
Na década de 1990, jovens rurais de Itapuranga protagonizaram um novo fluxo migratório orientado para terras de além-mar, mobilizados tanto pela necessidade de superação das limitações vividas e percebidas na agricultura familiar, como pela conquista de trabalho, renda e vida digna. Os principais destinos, conforme depoimentos orais, foram nações do continente americano (especialmente Estados Unidos), do continente europeu (notadamente Portugal, Espanha, Reino Unido, Alemanha, Itália, França, Suíça e Bélgica) e, em algumas situações, do continente asiático (especificamente o Japão).
A problemática das migrações juvenis não pode estar dissociada do processo hegemônico de desenvolvimento rural em curso em Itapuranga e nos municípios adjacentes, cuja tendência marcante é a da monocultura de cana-de-açúcar. Desde meados da década de 1980, conforme estudo de Carvalho e Marin (2011), os agricultores familiares defrontaram-se com a expansão do cultivo de cana-de-açúcar, estimulada por uma agroindústria canavieira, denominada Destilaria Pite S/A, que se instalou no município. Com extinção do Programa Nacional do Álcool (Proálcool), essa agroindústria não mais recebeu incentivos governamentais e logo entrou em processo de falência, deixando os agricultores em prejuízo e sem possibilidade de comercializar a cana-de-açúcar cultivada em suas terras.
Com a edição do Plano Nacional de Agroenergia, em 2005, a atividade canavieira foi retomada em Itapuranga com a instalação da agroindústria Vale Verde Empreendimentos Ltda. Na verdade, essa agroindústria se estabeleceu em antigas benfeitorias da Destilaria Pite S/A, desencadeando uma nova onda de cultivo de cana-de-açúcar sobre as terras de agricultores familiares itapuranguenses, viabilizada por meio de contratos de arrendamento de terras para a agroindústria canavieira ou, em menor proporção, por meio de contratos de fornecimento de cana-de-açúcar à agroindústria canavieira.
Carvalho e Marin (2011), na análise das contradições sociais da expansão da cultura canavieira em Itapuranga, notaram que as dinâmicas socioprodutivas de Itapuranga passaram por transformações substantivas, pois, à medida que as terras foram cedidas para a agroindústria canavieira, os agricultores familiares reduziram ou abandonaram os cultivos diversificados ou mudaram a função social de suas propriedades rurais, tornando-as apenas locais de habitação e, em situações extremas, migraram para a cidade. Não se pode ignorar que os problemas desencadeados pela expansão do cultivo de cana-de-açúcar também repercutem sobre a tessitura de projetos migratórios internacionais dos jovens rurais, que significam a construção de outras formas de inserção social fora do trabalho agrícola. A migração torna-se caminho plausível para outras inserções laborais, especialmente para os jovens empobrecidos, com baixo grau de escolarização e sem perspectivas de trabalho digno na agricultura familiar.
Contudo, a análise de experiências migratórias internacionais de jovens rurais também passa pelo estudo de processos e relações vividas pelos agricultores familiares itapuranguenses. Em depoimentos orais, os jovens rurais costumam justificar suas migrações internacionais pela “falta de opção na roça”. Essa expressão sintetiza uma série de constrangimentos relacionados ao acesso aos meios de produção, às condições de trabalho na agricultura familiar e aos processos de desenvolvimento social mais amplos em curso em Itapuranga, como dá a entender o relato destacado: “Na roça eu não vou ter oportunidade, vou ficar trabalhando na roça a vida inteira. Porque roça a realidade é essa, o cara que não vai pra cidade, o cara arruma uma namorada, casa, arruma umas vaquinha, vai tirar leite e criar os filhos. É desse jeito” (Gabriel, 31 anos, filho de agricultores familiares, migrante internacional na juventude).
Uma das justificativas dos jovens para as migrações diz respeito à falta de terra ou à quantidade insatisfatória de terra. Itapuranga é um município marcado pelo grande número de minifúndios, convivendo ao lado de poucas propriedades com grandes extensões territoriais. Em muitas situações, as terras dos agricultores familiares são acidentadas, com baixa fertilidade e com reservas naturais, portanto, protegidas pela legislação, o que dificulta a produção agrícola e a obtenção de renda familiar satisfatória. Para os jovens rurais, estes fatores são limitantes à instalação de um futuro agricultor familiar autonomizado, pois impedem a absorção da força de trabalho juvenil na unidade de produção, enquanto que as migrações internacionais são imediatamente associadas às possibilidades de transposição social, tal como destacado no seguinte relato: “Porque o meu pai tinha a terrinha, mas era pequena, pra gente trabalhar ganhava muito pouco. As opções que eram poucas demais, né. Trabalhava, trabalhava, mas nunca... Era custoso” (Carlos, 40 anos, filho de agricultores familiares, migrante internacional na juventude).
A “falta de opção na roça” também referencia processos e relações de subordinação e expropriação dos frutos do trabalho dos agricultores familiares, existentes nos principais produtos mercantis e integrados em cadeias agroindustriais, como leite, frutas e cana-de-açúcar. Essa questão reflete lutas históricas dos agricultores pela justa remuneração de seus produtos agrícolas, tendo com parâmetro os elevados custos dos bens industriais necessários a cultivos e criações. Somam-se, ainda, as crescentes exigências técnicas, definidas por dispositivos legais, quanto aos critérios de quantidade e qualidade dos produtos agrícolas, que sempre implicam seletividade de agricultores familiares mais aptos e produtivos e exclusão daqueles menos capitalizados e qualificados. Dessa forma, a desigualdade entre os custos de produção e os valores pagos aos produtos agrícolas implica redução da remuneração do trabalho familiar e da formação de poupanças. Essa problemática é facilmente percebida pelos jovens rurais, que passam a projetar conquistas de trabalho e renda mais estáveis no exterior, como é demonstrado nesta fala: “Em questão financeira não era nada bom, mas tinha o trabalho todos os dias. Plantava e no final do ano tinha aquela expectativa de vender o mantimento e fazer um bom dinheiro. Então, a gente vivia de esperança. Será que vai dar um bom preço na época de vender?” (Ciro, 40 anos, filho de agricultores familiares, migrante internacional na juventude).
Os riscos econômicos inerentes às atividades agrícolas também podem desencadear migrações internacionais de jovens rurais. As intempéries, como as chuvas de granizo ou estiagens prolongadas, ou as doenças fitossanitárias que acometem os cultivos de frutas e hortaliças, têm gerado perdas econômicas e endividamentos de agricultores. Em algumas situações, conforme narrativas de jovens rurais, os infortúnios ocorreram em atividades agrícolas financiadas pelo sistema bancário, de modo que, tendo sido perdida ou prejudicada a produção, a dívida permaneceu, situação agravada pelo fato de que raros agricultores familiares contam com seguro agrícola, como narrou um migrante: “A gente perdeu um produção muito grande, uma lavoura que tinha acabado de plantar por causa de uma chuva de granizo, e o banco não cobria. O financiamento era muito alto e a gente ficou um pouco endividado” (Luiz, 43 anos, filho de agricultores familiares, migrante internacional na juventude).
Diversos constrangimentos socioeconômicos concorrem para desestruturar a produção agrícola e os meios de vida dos agricultores familiares de Itapuranga, repercutindo negativamente sobre os processos de autonomização pessoal dos jovens rurais e de sucessão hereditária. Todo o somatório de limites e de fracassos na produção agrícola faz com que os jovens rurais acreditem que a melhor alternativa é a migração. Para os jovens rurais, mais do que para as gerações adultas, as idealizações de projetos de migração internacional situam-se na construção de outras formas inserção econômica, fora da agricultura familiar e do país.
Pelas narrativas dos migrantes retornados, são diversas as justificativas de ordem econômicas e socioculturais que desencadeiam as experiências migratórias internacionais. Quanto ao fator terra, notamos que alguns jovens rurais integram famílias que dispõem da propriedade de terra, enquanto outros dispõem de exíguas áreas de terra ou nem mesmo têm terra. Para os preparativos e os trânsitos migratórios internacionais, alguns jovens rurais entrevistados informaram que dispunham de poupança própria, outros contaram com a ajuda de familiares ou amigos e outros ainda recorreram aos financiamentos de agiotas ou de bancos. Ainda para as travessias para os países de destino, alguns jovens rurais encontraram apoio de redes de relações sociais constituídas por familiares, vizinhos e amigos já estabelecidos no exterior, e outros recorreram aos serviços de agentes sociais que atuam na indústria de imigração ilegal, para viabilizar documentos e passagens de fronteiras, especialmente entre o México e Estados Unidos. Entre os jovens migrantes retornados, notamos que alguns detinham maior capital social, acumulado pela melhor escolarização e experiências da vida e trabalho urbanos, mas outros tiveram experiências relacionadas à vida e trabalho no âmbito da agricultura familiar. Os projetos migratórios também são concebidos pelas diferenciações de gênero: enquanto os rapazes projetam ocupações laborais na construção civil ou nos serviços de jardinagem, restaurantes, hotelaria, faxina, entrega de pizza ou de jornal, dentre outros, as moças, segundo Marin et al. (2019), buscam inserções em trabalhos domésticos, cuidados de crianças e idosos e, em algumas situações, na prostituição. Alguns entrevistados demonstravam certo orgulho em relatar suas experiências migratórias, pelo sucesso na aquisição de bens materiais, especialmente imóveis e automóveis, mas, para outros, a experiência internacional estava associada com sentimentos de tristeza e fracasso, pois não concretizaram o sonho de melhorar as próprias condições de vida nem as de sua família.
Em suma, a migração internacional é uma experiência vivida de maneira singular por cada jovem rural de Itapuranga, em decorrência da diversidade econômica e sociocultural dos jovens migrantes e de suas famílias. Contudo, cada experiência migratória está interconectada com fenômenos de escalas global e local, pois envolvem famílias de agricultores que enfrentam múltiplos entraves para garantir a reprodução social e passam a construir ou aceitar trajetórias migratórias orientadas para outras nações, como uma saída plausível e honrada para seus filhos e filhas.
3. Jovens rurais e representações sociais das migrações internacionais
Ao longo do tempo, as famílias de agricultores de Itapuranga construíram um imaginário positivo sobre as migrações nacionais ou internacionais. As experiências migratórias, vivenciadas pelas diferentes gerações, sedimentaram-se em práticas sociais, discursos e valores culturais dos agricultores familiares. Sayad (1998, p. 40), ao analisar o histórico de migrações da pequena aldeia argelina situada nas montanhas da Cabília, local de partida de migrantes para a França nas décadas de 1970 e 1980, constatou um processo de construção social de longa prática migratória, sintetizada na expressão “a emigração repousa em uma longa tradição”.
Pode-se dizer que, em Itapuranga, as experiências migratórias também passaram a balizar, de forma duradoura, as práticas e representações sociais dos agricultores familiares. A tradição migratória das famílias de agricultores interfere nas escolhas dos jovens rurais à medida que constrói um imaginário favorável a toda experiência migratória, em busca seja de estudos seja de trabalho no país ou no exterior. Migrar sempre é percebido como uma alternativa melhor do que permanecer no meio rural e no trabalho familiar. Isso foi ressaltado nos depoimentos orais coletados: “Não, na roça hoje em dia, não fica ninguém mais... Hoje em dia a área rural é custosa demais, você trabalha muito e ganha pouco, é meio custoso” (Gabriel, 31 anos, filho de agricultores familiares, migrante internacional na juventude).
Embora cada experiência migratória comporte singularidades, configura-se a seguinte tendência: os filhos crescem, migram do meio rural para o meio urbano de Itapuranga ou para algum outro centro urbano e, então, para o exterior. Assim, as migrações internacionais tendem a surgir como alternativa extrema, que evidencia novas maneiras de construir a autonomia, de garantir a própria reprodução social e de vivenciar a juventude nos contextos de globalização, como demonstrado no relato: “Eu morei no meio rural até os 17 anos. Aí, depois, eu mudei aqui pra cidade pra eu estudar e trabalhar. [...] Depois fui pra Goiânia, não dei certo, voltei e depois resolvi ir embora pro exterior porque aqui não tava fácil” (Lídia, 36 anos, filha de agricultores familiares, migrante internacional na juventude).
Os jovens rurais facilmente assimilam e reproduzem experiências migratórias. Em depoimentos orais, eles deixam claro que a migração entra na ordem natural da vida das pessoas, na permanente e necessária busca de melhores oportunidades de vida e de trabalho. Percebem que os atuais processos de modernização e globalização, ao mesmo tempo em que restringem as estratégias de reprodução familiar de agricultores, abrem outras possibilidades que não passam, necessariamente, pelo pesado, desprezado e mal remunerado trabalho na agricultura. Portanto, mostram-se predispostos a construir outros projetos pessoais de autonomização, os quais passam pela migração, mesmo nem sempre tendo clareza do que encontrarão nas cidades ou em terras de além-mar. Os jovens rurais não desejam repetir a sina dos pais: em muitas situações, os pais são os principais estimuladores ou apoiadores da migração dos filhos e das filhas, mesmo sabendo que sofrerão com as despedidas e as ausências.
As transformações em curso interferem nos processos de construção social da juventude rural, afetando suas identidades e projetos de vida futura. A construção da autonomia social, visualizada pelos jovens rurais pela conquista de melhores oportunidades de educação escolar e de remuneração do trabalho, dá sentido às novas maneiras de se viver e perceber a juventude no contexto contemporâneo de Itapuranga. No imaginário coletivo dos jovens rurais, a migração está associada com a construção de alternativas de ascensão social, embora nem sempre sejam concretizadas na realidade dos migrantes.
Ainda na elaboração de justificativas para as migrações internacionais, os jovens rurais agregam certas percepções negativas sobre o trabalho na agricultura familiar. Pelos relatos orais, os jovens mencionam a penosidade do trabalho, particularmente quando relacionado ao uso de agrotóxicos utilizados na produção de frutas. Contudo, percepções negativas do trabalho também são relacionadas a determinadas atividades pesadas, repetitivas, causadoras de desgastes físicos e problemas ergonômicos, além das exposições às intempéries climáticas. Ademais, os jovens rurais elaboram contrapontos entre o baixo ou incerto retorno econômico das atividades agrícolas e o salário mensal supostamente garantido em relações de trabalho assalariado: “Na cidade você ganha um salário melhor, ganha um salário fixo. [...] O povo todo, em toda a região que você for, o povão só quer ir pra cidade, pra estudar, essas coisas né, ou arrumar um servicinho melhor” (Gabriel, 31 anos, filho de agricultores familiares, migrante internacional na juventude).
A participação de jovens rurais em migrações internacionais também está relacionada com as profundas transformações nos processos de socialização dos jovens rurais de Itapuranga, experimentadas desde a última década do século XX. A rápida expansão da televisão e, mais recentemente, das novas tecnologias de informação e comunicação, como o telefone celular e a internet, além da popularização e facilidade de acesso aos veículos particulares, mudaram os valores dos jovens e suas percepções de tempo e espaço. Os referenciais de localidade e comunidade, marcantes em décadas anteriores, são transformados por noções de globalização e de maior mobilidade e agilidade, que facilitam acessos a outros espaços sociais e diferenciadas visões de mundo. Assim, os jovens rurais facilmente percebem que o mundo não se restringe aos conhecimentos transmitidos pelos pais ou professores ou às visões e possibilidades acenadas pela vida no meio rural.
Como notou Pereira (2007), em contextos do Vale do Jequitinhonha, os processos de globalização, as novas formas de expansão do capitalismo nas áreas rurais e a incorporação de novos valores e modos de vidas transformaram consideravelmente os padrões de consumo, comportamentos e percepções sociais das populações rurais, influenciando, sobretudo, as gerações juvenis rurais. Em Itapuranga, as gerações adultas ou idosas estranham, censuram e até temem as intensas aproximações entre os sexos, a exposição dos corpos, os relacionamentos efêmeros entre os jovens, as relações homoafetivas, o desejo de consumo de bens de uso pessoal e mesmo o consumo de drogas entre as novas gerações. Tais mudanças nos valores e comportamentos, quase sempre percebidas como problemas morais, são atribuídas ao acesso às tecnologias de informação e comunicação, à desautorização da família e à desvalorização de seus ensinamentos, bem como à convivência com jovens urbanos, seja na escola ou nos momentos de recreação e lazer.
Essas “rupturas” com as noções de local, familiar e comunitário, assim como o fortalecimento das individualidades e os desejos de consumo, são facilitadores dos fluxos migratórios internacionais de jovens rurais. Nas últimas décadas, construiu-se uma juventude rural mais desprendida dos valores e modos de vida locais e mais aberta às novas experiências, ao conhecimento de um mundo mais amplo e globalizado.
Ademais, os jovens rurais e as jovens rurais valorizam suas experiências no mercado de trabalho internacional pelas possibilidades de aumentar conhecimentos, ampliar as redes de relações pessoais, melhorar suas habilidades pessoais e acumular experiências de vida. Acreditam, portanto, que o trabalho no exterior é fundamental para torná-las pessoas mais sociáveis e conectadas com as mudanças do mundo contemporâneo.
As jovens rurais, mais do que os jovens rurais, parecem mais predispostas às migrações. Os dados do IBGE (2010) indicavam, para o município de Itapuranga, uma desproporção entre a população rural masculina e feminina, na faixa situada entre 15 e 29 anos de idade, com o cômputo de 419 rapazes (55,23%) e 338 moças (47,77%). Na ordem hierárquica familiar, o homem ocupa-se de trabalhos socialmente valorizados em virtude de sua posição de chefe de família e responsável pela reprodução do grupo familiar, enquanto que a mulher e os filhos desempenham os trabalhos domésticos e aqueles percebidos como “leves” ou “ajuda”. Tais posições hierárquicas geram insatisfações das jovens com a vida rural, que facilitam projeções de migrações internacionais como estratégia para constituírem-se como trabalhadoras individuais, com maior autonomia diante da família e da sociedade, como evidencia o relato da migrante internacional Luísa: “O meu irmão já tem o dinheiro dele. Ele vai na roça pra ajudar meu pai um pouquinho, ele tem as vacas dele lá. Então assim, ele já tem onde ele mexer. Eu não, eu não tenho nada lá! Nem uma galinha!” (Luísa, 23 anos, filha de agricultores familiares, migrante internacional).
Em suma, a narrativa socialmente construída para justificar as migrações internacionais decanta o desejado sonho de “melhorar as condições de vida”, como contraponto aos limites da realização do trabalho familiar e aos diversos constrangimentos enfrentados no espaço familiar para produzir os futuros herdeiros e agricultores. Diante dessa realidade, jovens rurais percebem as experiências migratórias como possibilidade de construírem-se como trabalhador autonomizados e de ingressarem para a vida adulta. A incorporação em trabalhos no exterior também é percebida como uma saída honrosa para os jovens rurais empobrecidos.
Desta forma, as migrações internacionais associam “melhoria das condições de vida” com construção da autonomia pessoal e financeira para a entrada para a vida adulta. Nesse sentido, as migrações internacionais constituem-se ritos de passagens dos jovens rurais para a vida adulta. Em estudo realizado em Sergipe, Woortmann (1990) já havia evidenciado que as migrações vividas por jovens rurais têm, para além de uma dimensão prática de acúmulo de recursos para a formação de uma nova unidade familiar, um sentido simbólico-ritual de passagem para a vida adulta.
Pode-se questionar: as migrações rurais foram ritos de passagens apenas para gerações passadas de camponeses, que, tangidos por problemas econômicos, sociais ou ambientais, mobilizavam-se espacialmente em busca de terras nas fronteiras agrícolas nacionais, dentro da ordem das estratégias históricas de reprodução social, ou também as migrações internacionais de jovens rurais podem ser consideradas ritos de passagens na contemporaneidade?
Segalen (2005, p. 5) demonstra que, apesar da valorização do “indivíduo sobre o coletivo”, as sociedades contemporâneas elaboram e reconfiguram práticas rituais e suas respectivas dimensões simbólicas ao considerar que “uma das principais características do rito é a sua plasticidade, a sua capacidade de ser polissêmico, de acomodar-se à mudança social”. Essa concepção permite contra-argumentar abordagens que relacionam as sociedades contemporâneas ao império do pensamento racional e à ausência de ritos. Cada sociedade em cada época elabora seus ritos. Nesse sentido, a constituição das ações, dos propósitos, das crenças dos rituais, assim como seus sistemas de significações, deve ser compreendida no contexto das relações e dos processos de cada meio social.
Em Itapuranga, as gerações juvenis contemporâneas atualizam e ressignificam as migrações enquanto ritos de passagens, com o sentido orientado para a conquista do trabalho no exterior. Abandonar o trabalho familiar, planejar a viagem, viajar de avião, ingressar no país de destino e incorporar-se ao trabalho integram um conjunto de ações sequenciais, que proporcionam um quadro espacial-temporal propício para simbolizar o ingresso dos jovens rurais na vida adulta. O conjunto de providências, em suas dimensões práticas e simbólicas, tende a enfraquecer o poder da hierarquia familiar e comunitária e produzir o indivíduo autonomizado e disposto a inserir-se em múltiplas alternativas laborais. Essa inserção se processa pelo mercado de trabalho assalariado, pouco importando se em relações precarizadas e insalubres. Assim, a experiência migratória torna-se marco de transição entre as fases da vida dos jovens, que deixam para trás a vida de dependência dos pais, para ingressarem na vida adulta como trabalhadores autonomizados, conforme relato: “Eu queria ganhar um dinheirinho pra mim vir embora e poder fazer as coisas, pra não ter que ir trabalhar de empregado” (Carlos, 40 anos, filho de agricultores familiares, migrante internacional na juventude).
A transição do jovem migrante está idealizada em torno do trabalho, da economia e da perspectiva de futuro retorno ao país, mas com o “pé de meia” formado com as remessas de dinheiro aos familiares que permaneceram no local de partida. Esse imaginário constrói as maneiras de ser jovem rural em Itapuranga, um sujeito migrante, corajoso, trabalhador e econômico. Aqueles jovens rurais que não experimentam migrações são menosprezados socialmente, não apenas pelos pares de idade, como também pelas gerações adultas. São julgados como “bobos”, que não conseguem vislumbrar melhores projetos de vida, superar a dependência dos pais nem perceber as agruras do trabalho na agricultura.
No mercado de trabalho internacional, em contexto de reestruturação produtiva, abriram-se amplas possibilidades para os imigrantes em ocupações laborais nos setores da construção civil, de serviços de restaurantes, hotelaria, comércio e domésticos e, em algumas situações, no setor agrícola, como elucidado no depoimento: “Eu trabalhei em construção de casa, trabalhei em demolição de casa, trabalhei com soprador de folha, entreguei jornal, entreguei pizza...” (Afonso, 32 anos, filho de agricultores familiares, migrante internacional na juventude).
Na elaboração de justificativas socialmente aceitáveis para as migrações internacionais, os entrevistados enfatizam a centralidade do trabalho: “eu fui para trabalhar”, “trabalhei demais”, “trabalhei até nos domingos e feriados” “fiz o trabalho duro”. No exterior, os jovens rurais procuram reforçar a identidade de “bons de serviço”, aceitando adversidades e constrangimentos do trabalho para atingir os objetivos traçados no projeto migratório. Como já destacou Sayad (2000, p. 54), o trabalho é o sentido de toda a experiência migratória, pois “um imigrante é essencialmente uma força de trabalho, e uma força de trabalho provisória, temporária, em trânsito”.
De fato, os jovens rurais apresentam-se predispostos a sujeitar-se às relações de trabalho marcadas pela informalidade, precariedade e insalubridade. Eles facilmente aceitavam as longas jornadas de trabalho, às vezes em mais de uma ocupação, em condições degradantes, penosas e horários inconvenientes, sem qualquer garantia de direitos trabalhistas e sociais. As condições sociais de jovem, imigrante, sem documentação reconhecida como válida nos países de destino, sem domínio de línguas estrangeiras e sem acúmulo de experiência trabalhista anterior destituem os jovens rurais do sentido de pertencimento social e da capacidade de negociação da sua força de trabalho, deixando-os vulneráveis e dispostos a aceitar relações de trabalho degradantes e condições de vida precárias. Os relatos dos entrevistados salientaram estas características das relações de trabalho no exterior: “Nossa, eu trabalhei demais. [...] Cheguei a ter dois empregos ao mesmo tempo. [...]Eu chegava uma hora da manhã, acordava três, voltava pra casa cinco e meia, acordava sete e meia, voltava oito e meia, dormia, acordava nove e quarenta e cinco de novo” (Afonso, 32 anos, filho de agricultores familiares, migrante internacional na juventude).
Os jovens imigrantes tendem a minimizar todas as adversidades da vida e do trabalho de imigrante pela valorização da possibilidade de formação de poupança. Os ganhos financeiros, por sua vez, são remetidos aos familiares residentes no Brasil, que se encarregam de aplicações financeiras e imobiliárias. Em longo prazo, quanto ao retorno, os jovens idealizam a realização de seus investimentos, que lhe darão autonomia financeira e pessoal. Por esses objetivos, todos os projetos migratórios internacionais tendem a coadunar os limites da reprodução social da agricultura familiar e a necessária construção de processos de emancipação social para adentrar na vida adulta.
Considerações finais
A migração juvenil, ao mesmo tempo em que integra uma importante estratégia de reprodução social, revela múltiplos limites para a criação de condições objetivas de permanência no meio rural. As recentes transformações nas dinâmicas econômicas, produtivas, ambientais e sociais destroem as condições de existência das famílias de agricultores e restringem a possibilidade de formação de poupança, empurrando-as, consequentemente, para a pobreza. As gerações juvenis rurais sofrem os efeitos perversos das recentes transformações socioprodutivas e, como providência prática e solução honrosa, incorporam-se em migrações para viabilizar outras formas de inserção social, em algum lugar do Brasil ou do exterior.
Migrar torna-se, então, alternativa preferencial perante todas as restrições nos processos de reprodução familiar, daí que cada jovem rural precisa vivenciar a própria experiência migratória, como condição inexorável para “melhorar de vida” e “encontrar trabalho” em outras terras, inclusive, estrangeiras. Ancorada em longa tradição das famílias de agricultores, a migração produz jovens desenraizados e itinerantes em contínua busca de melhores condições de vida que não vislumbram no horizonte do trabalho familiar. A “tradição migratória” se expressa em práticas sociais, discursos e valores culturais dos agricultores familiares de Itapuranga e interfere nas escolhas e nos modos de ser e de viver das atuais gerações juvenis rurais.
Por tais razões, a migração internacional tem características mais amplas do que os aspectos econômicos, na medida em que se apresenta como fenômeno cultural ancorado em práticas e representações sociais dos agricultores familiares de Itapuranga. Todas as experiências migratórias são valorizadas positivamente, pois entram na ordem moral de afirmação do trabalhador autonomizado, de sacrifício individual para melhorar as próprias condições de existência e vivenciar o rito de passagem para a vida adulta.
Por fim, as contínuas migrações juvenis implicam redução do número de jovens rurais e, por consequência, transformação do panorama do espaço rural de Itapuranga. De tal modo internalizadas e reproduzidas pelas gerações juvenis, as migrações tendem a agravar a realidade social dos espaços rurais de Itapuranga, já fortemente marcada pelo esvaziamento, pelo envelhecimento e pela masculinização populacional.
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Notas