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Governamentalidade autocrática: repensando as racionalidades de governo em diálogo com Florestan Fernandes
Autocratic governmentality: rethinking government rationalities in dialogue with Florestan Fernandes
Revista Brasileira de Sociologia, vol. 8, núm. 19, pp. 254-291, 2020
Sociedade Brasileira de Sociologia

Artigos


Recepción: 19 Noviembre 2019

Aprobación: 12 Febrero 2020

DOI: https://doi.org/10.20336/rbs.542

Resumo: Pretendo ler a reflexão de Florestan Fernandes sobre as resistências à mudança social e sobre a dominação autocrática nos termos do que o Foucault dos anos 1977-1979 chamou de governamentalidade. Assim, procurarei demonstrar como os padrões de ação, reação e práticas definidos como sociopatia irracional, racionalidade possível e racionalidade estratégica dos setores dominantes da sociedade brasileira, ganham, em termos analíticos, quando entendidos como manifestações de uma mentalidade de governo autocrática. Mais do que enquadrar o sociólogo paulista no interior do aparato conceitual foucauldiano, pretendo demarcar, num esforço de simetria e enriquecimento recíproco, as suas contribuições para uma analítica das racionalidades de governo para, por fim, em diálogo com leituras mais recentes do capitalismo contemporâneo, sugerir a atualidade da sociologia crítica de Florestan Fernandes no esforço de elaboração de um diagnóstico do presente.

Palavras-chave: Governamentalidade, Resistências à mudança, Dominação Autocrática, Florestan Fernandes, Michel Foucault.

Abstract: I intend to read Florestan Fernandes’ reflection on resistances to social change and on autocratic domination in terms of what Foucault of the years 1977-1979 called governmentality. Thus, I will try to demonstrate how the understanding of defined patterns of action, reaction and practices such as irrational sociopathy, possible rationality and strategic rationality of the dominant sectors of Brazilian society, gain, in analytical terms, when understood as manifestations of an autocratic governmentality. More than framing the São Paulo sociologist within the Foucauldian conceptual apparatus, I intend to demarcate, in an effort of symmetry and reciprocal enrichment, his contributions to an analysis of government rationalities and, finally, in dialogue with more recent readings of contemporary capitalism, suggest the relevance of the critical sociology of Florestan Fernandes in the effort to elaborate a diagnosis of the present.

Keywords: Governmentality, Resistances to change, Autocratic domination, Florestan Fernandes, Michel Foucault.

Introdução

Em 2010, Sergio Costa publica o conhecido e comentado artigo Teoria por Adição, onde se argumenta que “nas franjas da pesquisa empírica, a sociologia brasileira vem produzindo avanços teóricos importantes – pelo menos potencialmente” (COSTA, 2010, p. 45). Avanços que “implicam a revisão de algumas das premissas sobre as quais se assentam as teorias aceitas como válidas” no âmbito da sociologia global, mas não se orientam, contudo, “diretamente”, para uma intervenção “nos principais debates teóricos desenvolvidos no âmbito da disciplina” (COSTA, 2010, p. 26).

Num diálogo com a imagem do nacional por subtração, de Roberto Schwarz, que aponta o equívoco daqueles que presumem a possibilidade de construção de “uma cultura nacional original” opondo “nacional a estrangeiro”, presunção que recalca a “dinâmica cultural” e as “relações de poder” constituintes das “discussões sobre originalidade e a falta dela”, Costa propõe a expressão teoria por adição para designar o debate teórico na sociologia brasileira, que “alude... à expectativa de que a teoria vai sendo implicitamente revista na medida em que vão acumulando interpretações de fenômenos em curso que desafiam as regularidades descritas nas teorias sociológicas vigentes” (COSTA, 2010, pp. 25-6).

Embora o próprio Costa cite os esforços de Tavolaro (2005) e de Maia (2009) como exemplos da crítica à “leitura eurocêntrica da modernidade brasileira” (COSTA, 2010, p. 39, nota 10), parece-me que a problematização da tese da singularidade brasileira, em Tavolaro (2005), e a “agenda de pesquisa” do pensamento social brasileiro delineada por Maia (2009) têm mais implicações do que a fórmula da teoria por adição pode conceber.

Quando Brasil Jr. (2013a) investiga a aclimatação crítica da teoria da modernização na obra de Florestan Fernandes ou as ambições teóricas da sociologia do desenvolvimento em Costa Pinto (BRASIL JR., 2013b), quando Botelho (2013) salienta as críticas de Carvalho Franco aos usos dualistas dos tipos ideais weberianos no estrutural-funcionalismo, e aqueles que sofreram influência deste, quando Tavolaro (2017) realiza a exegese de uma imagem contra-hegemônica da modernidade em Gilberto Freyre, para darmos alguns exemplos recentes no campo do pensamento social brasileiro, mais do que um procedimento de revisão das para posterior adição às teorias sociológicas canônicas e eurocentradas, vê-se, sobretudo, um esforço de simetria ou de simetrização entre empreendimentos investigativos e teóricos posicionados em locais desiguais na geopolítica da produção, distribuição, circulação e consumo de conhecimento[1].

O presente artigo se localiza nos marcos desse mesmo esforço investigativo ou agenda de pesquisa. Buscarei tratar, em termos simétricos, momentos específicos das obras de Florestan Fernandes e de Michel Foucault. Deste, as ricas reflexões realizadas nos cursos que vão de 1977 a 1979 sobre a racionalidade de governo ou governamentalidade. Daquele, quando formula conceitos como resistência sociopática à mudança social, a partir de 1962, até a formulação do conceito de dominação autocrática.

À primeira vista, poderia parecer esdrúxulo ou forçoso tal cotejamento ou fricção entre autores advindos de tradições tão díspares. No entanto, um olhar mais generoso atentaria para o fato de que, nos conceitos supracitados, ambos os autores estão preocupados em captar padrões de mentalidade de governo de homens e coisas: o francês para pensar a Europa liberal pós-mercantilista e, depois, a Europa e os EUA neoliberais; o brasileiro para pensar, em diferentes momentos, a irracionalidade patológica, a racionalidade possível ou a racionalidade estratégica (de governo) em uma formação social subdesenvolvida e dependente.

Nesses termos, o problema torna-se mais claro e, simultaneamente, mais atraente. Não se trata de uma comparação aleatória entre momentos de duas obras que ignoraram completamente uma à outra, mas de cotejar formulações, num esforço de crítica e enriquecimento recíprocos, sobre mentalidades governamentais enquanto complexos prático-discursivos que, em ambos, Fernandes e Foucault: são de longa duração, podem ser lidos como regimes de verdade definidos e orientados por certa representação da população, engendram processos de subjetivação e tanto condicionam como transcendem as práticas estatais e extra-estatais de dominação.

Como se vê, adotei a terminologia de Foucault – governamentalidade, racionalidade ou mentalidade de governo – na constituição de um campo conceitual comum de problematização e comparação dos dois autores. Levarei adiante tal estratégia na estruturação do argumento ao longo do artigo.

Na primeira parte, buscarei definir os principais atributos do conceito de governamentalidade em Foucault, centrando-me na leitura dos cursos Segurança, Território, População e Nascimento da Biopolítica.

Na segunda parte, enriquecido dos elementos da seção anterior, reconstruirei as etapas da reflexão de Fernandes quando busca tornar inteligíveis as especificidades dos processos de (sub) desenvolvimento e dominação no capitalismo periférico. Reflexão que o leva do conceito de resistência sociopática à mudança ao de dominação burguesa autocrática.

Na terceira e última parte, buscarei refletir sobre os possíveis ganhos de uma leitura do modelo autocrático de dominação em termos de governamentalidade e sobre as contribuições de Fernandes para uma analítica das racionalidades de governo, chamando atenção para as tensões e afinidades metodológicas entre o esforço genealógico foucauldiano e o ecletismo da sociologia crítica do intelectual uspiano.

Por fim, questiono, aprofundando temas sugeridos nas seções anteriores e em diálogo com interpretações recentes do capitalismo contemporâneo, a exemplo de Arantes (2004), Mbembe (2014), Brown (2015) e Streeck (2011, 2017), se os atributos do que chamei de governamentalidade autocrática continuam, em nossa época, a demarcar apenas uma “singularidade” da modernidade brasileira (TAVOLARO, 2005) e do capitalismo dependente – particularmente relevante para pensar a atual conjuntura – ou se não tendem a se generalizar como padrão global de governo.

1. O que é governamentalidade?

Como se sabe, em meados dos anos 1970, Michel Foucault realiza uma significativa inflexão em suas investigações (ver SILVA, 2019a). Se, de um ponto de vista metodológico, ele já havia realizado, a partir de Vigiar e Punir (FOUCAULT, 1987a), a transição de uma arqueologia das formações discursivas (FOUCAULT, 1987b, 1999a) para uma genealogia de complexos prático-discursivos, é só a partir do curso Em Defesa da Sociedade (FOUCAULT, 1999b) e do primeiro volume da sua História da Sexualidade (FOUCAULT, 1988) que o autor francês se volta para uma tecnologia política distinta da disciplina ou anátomo-política. Tanto a biopolítica (desde 1974) como a governamentalidade (a partir de 1977) são definidas por realizarem-se não sobre e através dos corpos individuais, mas por terem a população como objeto.

Embora estejam debruçadas sobre o mesmo problema – a emergência da população –, há diferenças significativas na forma como tal emergência é abordada nesse período de quatro anos, que aqui mais nos interessa, da obra de Foucault. No curso Em Defesa da Sociedade (1974-1975), introduz-se o conceito de biopolítica, indistinto do biopoder, para pensar a formulação do racismo de Estado moderno em contraste com o discurso da luta entre raças na França e na Inglaterra dos séculos XVII e XVIII. Este articulado por estratos usurpados ou excluídos dos atributos da soberania e da lei e que, contra isto, afirmam sua própria lei, enraizada na raça; aquele vinculado a uma biologização do tecido social, que estabelece um corte entre o que deve morrer (patológico) para fazer viver o que, no corpo da população, é identificado como normal e saudável.

Em A Vontade de Saber (1976), primeiro volume da História da Sexualidade, por sua vez, a biopolítica é pensada como, ao lado da disciplina, uma das tecnologias que constituem o biopoder, orientado para fazer viver e deixar morrer a população, em claro contraste com a prerrogativa do poder soberano de fazer morrer e deixar viver. A biopolítica aqui é introduzida como tecnologia política de regulamentação dos processos vitais da população (reprodução, natalidade, mortalidade, envelhecimento, acidentes, enfermidades, anomalias, questões hidrográficas, urbanísticas, migratórias, etc.) capaz de complementar, preencher os vazios, deixados pela disciplina ou anátomo-política, orientada para a produção (em fábricas, quartéis, hospitais, escolas, prisões, etc.) de corpos dóceis e úteis. O racismo continua a ser pensado como um compromisso entre soberania e a moderna biopolítica: fazer morrer (o patológico) para fazer viver (o núcleo saudável) do corpo da população – a soberania, quando aliada à biopolítica, produz o que nós, modernos, entendemos por genocídio.

A despeito de tratarem, direta ou indiretamente, de complexos prático-discursivos que dizem respeito ao aparelho-estatal, tanto em fins de regulamentação (higienização, urbanização, estatísticas oficiais, etc.) como em termos de disciplinamento (escolas, prisões, hospitais públicos, etc.), a genealogia foucauldiana das tecnologias de poder que se realizam sobre o corpo – dos indivíduos e da população – foi logo criticada por sua escala micro de abordagem.

Segundo Gordon (1991, p. 4), “Foucault introduziu seus cursos sobre governamentalidade como sendo, entre outras coisas, uma resposta” a essa objeção de que haveria uma “falha” da abordagem microfísica em “lançar luz sobre os assuntos globais da política, nomeadamente as relações entre sociedade e estado”.

Comentadores mais recentes chamam atenção para o mesmo ponto. Para Bröckling, Krasmann e Lemke (2011, pp. 1-2), “em meados dos anos 1970, ficou claro”, para Foucault, que a chamada “’microfísica do poder’... tinha dois sérios problemas”: a) o foco no disciplinamento dos corpos individuais desconsiderava “processos mais compreensivos de subjetivação”; b) a ênfase em “instituições específicas como o hospital e a prisão”, fundamentada numa “crítica das abordagens estado-centradas”, mostrou-se “insuficiente”, sendo incontornável a análise do “papel estratégico do estado na organização histórica das relações de poder e no estabelecimento de estruturas globais de dominação”. Em suma, tornou-se evidente a necessidade de uma “dupla expansão do aparato analítico, a fim de considerar apropriadamente ambos os processos de subjetivação e formação do estado”.

A leitura da governamentalidade como um alargamento do aparato – metodológico e conceitual – da genealogia para compreender, “simultaneamente” (GORDON, 1991, p. 36), processos totalizantes de formação do Estado e processos individualizantes de subjetivação evidencia sua razoabilidade quando confrontada à letra do texto foucauldiano.

Retomando as etapas da reflexão de Foucault sobre a emergência da população, no curso de 1978, biopolitique e bio-pouvoir voltam a ser utilizados de forma intercambiável e a reflexão sobre esta tecnologia de poder é anunciada, na primeira aula, como o centro do curso (ver FOUCAULT, 2008a, p. 3). Ao longo das aulas, no entanto, a terminologia é abandonada e torna-se evidente que o curso realiza fundamentalmente uma “história da ‘governamentalidade’” (FOUCAULT, 2008a, p. 143), título que o próprio Foucault julgava mais adequado do que Segurança, Território, População, história que é levada adiante no curso do ano posterior, Nascimento da Biopolítica, de 1979[2].

A história da governamentalidade continua necessariamente atrelada a uma genealogia da população, não a partir daqueles meios de regulamentação da biopolítica, mas de uma reflexão detida sobre as economias de poder, por um lado, e os regimes prático-discursivos veridicionais sobre a economia, por outro.

Em primeiro lugar, devemos definir, seguindo Foucault (2008a), a governamentalidade liberal em seu contraste com o par razão de Estado/mercantilismo. Enquanto esta, que tem como fim a preservação e ampliação do próprio Estado, define-se por uma totalização a princípio ilimitável do poder estatal a todos os âmbitos da vida de um determinado domínio territorial, legal e linguístico; a governamentalidade, que tem como fim governar a partir do conhecimento da dinâmica natural da população, define-se como um princípio de autolimitação da prática governamental[3].

Economia política e liberalismo são eletivamente afins por conceberem um domínio de realidade – população como mercado (Smith) ou sociedade civil (Ferguson) – com suas regularidades imanentes, tendentes, por meio dos desejos egoístas dos seus átomos constituintes, à realização do interesse da população. A partir da descoberta dessa verdade, o problema fundamental, prático e teórico, do governo não será mais, como o era para uma Polizeiwissenschaft, o de expandir-se sem limites sobre o tecido social, mas o de continuamente decidir sobre a correta ação em prol da preservação – segurança – da dinâmica populacional, não para restringir a realidade da população, interpelando-a, como nas tecnologias disciplinares concebidas em 1978 como “totalmente arcaicas” (FOUCAULT, 2008a, p. 87), mas para

deixar as pessoas fazerem, as coisas passarem, as coisas andarem, laisser-faire, laisser-passer e laisser-aller, quer dizer, essencial e fundamentalmente, fazer de maneira que a realidade se desenvolva e vá, siga seu trabalho, siga seu caminho, de acordo com as leis, os princípios e os mecanismos que são da realidade mesma (FOUCAULT, 2008a, pp. 62-3).

Dar segurança à liberdade de movimento da população como critério da “agenda/non agenda” (FOUCAULT, 2008, p. 184) das práticas de governo implica, também, em um estabelecimento dos limites entre os domínios da economia e da política. Por isso, a governamentalidade liberal é também definida como razão de Estado mínimo, em contraste com a inexistência daquela delimitação na totalização operada pelo Estado policial.

Três outros elementos básicos da governamentalidade se insinuam a partir dos parágrafos acima: a) as práticas de governo abrangem e condicionam as instituições e a formação do Estado; b) a governamentalidade define-se como um regime veridicional ou de verdade que orienta as práticas de governo e o Estado, e não como um regime jurisdicional ou de justiça intrínseco ao aparelho estatal; c) uma racionalidade de governo carrega consigo uma concepção do sujeito a partir do qual é modelada ao tempo que o governa – há uma relação de coconstituição entre processos globais de dominação e processos de subjetivação.

Os dois primeiros pontos apresentam-se de forma particularmente articulada. Já no predomínio da razão policialesca de Estado, desenvolve-se, no interior do próprio aparelho estatal, todo um aparato de saber voltado para o conhecimento dos súditos ou do povo de um determinado domínio soberano. Esse aparato representa os primórdios da moderna estatística, que apresenta inteiramente os seus contornos com o movimento simultâneo de declínio da razão de Estado e “emergência não apenas da noção, mas da realidade da população” (FOUCAULT, 2008a, p. 15).

A economia política, mais uma vez, aparece como um ponto de inflexão fundamental: ela se afirma como enunciação de uma verdade sobre essa realidade emergente que é a população e suas leis naturais particulares. Não se trata mais, cf. Foucault (2008a), do Estado discernindo e praticando o que é bom ou ruim, justo ou injusto, para o próprio Estado, mas de um saber científico, que se pretende autônomo em relação ao Estado, discernindo e orientando praticamente o que é verdadeiro ou falso, correto ou incorreto – não num sentido ético, mas lógico-científico – na arte de governar a população.

A enunciação da verdade do objeto do governo – população – por uma instância externa e autônoma em relação ao Estado implica não só uma evidente mudança na conformação da relação saber/poder e uma nítida separação entre Estado e governo, mas também uma primazia do governo, da racionalidade de governo, sobre o Estado, que continuamente terá que dar respostas, seja qual for a sua forma e constituição, às questões postas por essa verdade enunciada sobre a população[4].

O terceiro ponto – a questão da subjetivação ou do jogo totalização-individualização – diz respeito ao homo oeconomicus. Na razão de Estado, podemos dizer que o sujeito do Estado é o próprio Estado, na medida em que a coleção de súditos, em sua completa sujeição, nada mais é do que parte do corpo soberano, como tão bem representado na imagem do Leviatã hobbesiano. O povo, por sua vez, quando emerge como realidade e figura do discurso, aparece – conforme a sofisticada análise que Foucault faz do Essai sur les séditions et les troubles, de Francis Bacon – sobretudo como uma ameaça latente e contínua de sublevação, causada pela indigência e pelo descontentamento ou por tudo que “lesando, une”, causas que o soberano tem, para Bacon, o dever de suplantar.

O argumento de Bacon, assim, já tem em vista, em alguns aspectos, “elementos da economia” e da “opinião, quer dizer, não a aparência do príncipe, mas o que acontece na cabeça das pessoas que são governadas” (FOUCAULT, 2008a, p. 363), diferente de um Maquiavel, p.e., que identifica as ameaças ao príncipe basicamente na corte e em outros príncipes.

Para o par economia política/liberalismo, por sua vez, a questão do sujeito/objeto do governo é descentrada do Estado. Trata-se agora da população como naturalidade, naturalidade esta dinamizada pelo jogo entre uma dimensão individualizante e uma dimensão totalizante: a rede que imbrica uma multidão de motivações egoístas converte-se em satisfação comum e ohomo oeconomicus define o sujeito particular onde o compromisso entre a singularidade do desejo e a universalidade do interesse é possível.

A análise da governamentalidade por Foucault não se restringe a uma epistemofilia historiográfica ou exegética. É propriamente uma paixão genealógica, no sentido de perquirir, histórica e filosoficamente, os conjuntos de práticas e discursos contemporaneamente atuantes, relevantes para um diagnóstico do presente. “O que há de importante para a nossa modernidade”, enfatiza Foucault (2008a, pp. 144-5), “para a nossa atualidade, não é portanto a estatização da sociedade”, mas a “‘governamentalização’ do Estado”.

[É] possível que, se o Estado existe tal como ele existe agora, seja precisamente graças a essa governamentalidade que é ao mesmo tempo exterior e interior ao Estado, já que são as táticas de governo que, a cada instante, permitem definir o que deve ser do âmbito do Estado e o que não deve, o que é público e o que é privado, o que é estatal e o que não é estatal. Portanto, se quiserem, o Estado em sua sobrevivência e o Estado em seus limites só devem ser compreendidos a partir das táticas gerais de governamentalidade (FOUCAULT, 2008a, p. 145).

A atualidade da problemática posta pela governamentalidade liberal se revela nos esforços de renovação do liberalismo na Alemanha, na França e nos Estados Unidos. Esforços que modulam de maneira específica e original os pontos decisivos elencados acima.

Como o liberalismo, o neoliberalismo também se apresenta como um regime de verdade sobre a população. Esta verdade, no entanto, não afirma ser a população uma natureza, com sua legalidade própria (para usarmos a expressão de WEBER, 2016), a partir da qual o governo deve orientar-se, delimitando claramente os domínios do econômico e do político e a agenda/ non agenda das práticas governamentais e estatais em termos de segurança da liberdade de movimento da população.

Para o neoliberalismo, em suas versões não-manchesterianas, sobretudo o ordoliberalismo, a economia de mercado é algo a ser constituído e todos os meios – principalmente político-institucionais e jurídicos – devem orientar-se para essa constituição. A liberdade implicada no princípio da concorrência não é, assim, garantida por um mercado deixado a mercê de si mesmo, mas por um ativismo formal contínuo. Como no liberalismo clássico, o Estado continua sendo condicionado pela governamentalidade, mas num patamar radicalizado: o sentido do político e do jurídico é completamente arrastado pelo fim unívoco de constituição da economia de mercado. Trata-se aqui, escreve Foucault, “não de um governo econômico, como aquele com que sonhavam os fisiocratas”, cujo dever governamental seria “apenas de reconhecer as leis econômicas”, mas de um “governo da sociedade” (FOUCAULT, 2008b, p. 199), orientado para “o que os alemães chamam ‘die soziale Umwelt’, o ambiente social” (FOUCAULT, 2008b, p. 200).

A orientação das mais diversas práticas sociais para esse fim tem tanto uma face, podemos dizer, sistêmica ou totalizante, descrita acima, como uma face subjetiva ou individualizante.

No ordoliberalismo de Eucken e Röpke, Foucault identifica um discurso que pretende “fazer do mercado, da concorrência e, por conseguinte, da empresa o que poderíamos chamar de poder enformador da sociedade” (FOUCAULT, 2008b, p. 203) ou “obter uma sociedade indexada, não na mercadoria e na uniformidade da mercadoria, mas na multiplicidade e na diferenciação das empresas” (FOUCAULT, 2008b, p. 204). Em Gary Becker (ver FOUCAULT, 2008b, pp. 302-368), no neoliberalismo estadunidense, essa indexação total do social à economia de mercado aprofunda-se ainda mais na conquista do coração e da alma, para parafrasear a dama de ferro. Em seu conceito de capital humano, Becker formula um modelo de sujeito que porta-se como empresário de si, orientado para a reprodução ampliada de si mesmo, não só nos limites de sua atuação econômica, mas em todas as dimensões da vida: do casamento e da procriação até o cálculo utilitário de um ato criminoso e suas consequências.

Não só, portanto, a orientação das ordens da vida em prol da constituição da economia de mercado, mas a consideração do sujeito como empresa na totalidade de sua existência (para um aprofundamento, ver SILVA, 2018; SILVA, 2019b e SILVA, 2020). Podemos dizer que no liberalismo clássico é constituída a figura delimitada do homo oeconomicus – o parceiro de troca orientado para obter satisfação/prazer e evitar penúria/desprazer – como forma de pensar-agir numa instância delimitada de atividade. No neoliberalismo, por sua vez, o homo em geral é enquadrado como oeconomicus, num sentido não mais acoplado à gramática da satisfação, mas do consumo produtivo incessante de si mesmo.

Assim, ironicamente, a racionalidade de governo neoliberal aparentemente se aproxima mais da totalização policialesca da razão de Estado do que do princípio interno de autolimitação, ou razão de Estado mínimo, inaugurado pelo par liberalismo/economia política. Tal aparência causada pela imagem de um poder enformador da sociedade, objetiva e subjetivamente, não pode nos fazer esquecer que, para o neoliberalismo, assim como para o liberalismo clássico, o governo não tem como fim o Estado, mas a população, o que permite pensá-lo, portanto, como uma racionalidade de governo.

2. Governamentalidade autocrática: um diálogo com Florestan Fernandes

Embora Foucault (1999b, pp. 11-4) apresente enfaticamente o esforço genealógico como uma “insurreição dos ‘saberes sujeitados’”, “constituição do saber histórico das lutas”, que toma para si a tarefa de “fazer que intervenham saberes locais, descontínuos, desqualificados, não legitimados, contra a instância teórica unitária que pretende filtrá-los, hierarquizá-los, ordená-los em nome de um conhecimento verdadeiro, em nome dos direitos de uma ciência que seria possuída por alguns”, é particularmente difícil retirá-lo do espectro do que críticos pós e decoloniais chamam de pensamento eurocêntrico (ver HUGHET, 2012).

Não porque seus temas e objetos circunscrevam-se ao espaço europeu, mas porque nos temas que exigiriam uma apreciação mais ampla ou global, Foucault permanece restrito aos limites do velho continente. Um caso exemplar é a sua análise do racismo moderno em seu vínculo necessário com a emergência da biopolítica, que não leva em consideração a necessidade interna ao objeto de pensar a questão da raça e do racismo a partir da fratura colonial, como o faz, por exemplo, Quijano (1992) em seu conceito de colonialidade.

Um bias eurocêntrico também pode ser atribuído à sua análise das racionalidades modernas de governo. Nesta, que de fato vai além da Europa e chega nos Estados Unidos, está ausente uma reflexão sobre os problemas que emergiriam quando se pensa a racionalidade de governo liberal e neoliberal levando em conta formações sócio-nacionais pós-coloniais e pós-escravocratas, formações onde, durante a maior parte de sua história, as noções de soberania e razão de Estado, assim como de súditos e povo estiveram atreladas a um domínio territorial, político e linguístico estrangeiro. Ausenta-se também uma reflexão sobre as antinomias constitutivas do liberalismo como complexo prático-discursivo, a exemplo dos compromissos históricos e múltiplos entre liberalismo e escravidão (BOSI, 1988; LOSURDO, 2006), entre a liberdade de movimento de certos corpos e o disciplinamento sub-humanizante de outros, o que demandaria um retorno à reflexão sobre a latência racista do paradigma biopolítico e sobre o corte entre o que deve viver e o que deve morrer, movimento não realizado por Foucault[5].

Parece, no entanto, indubitável a relevância da mobilização do discurso da economia política e do liberalismo nos processos de emancipação nacional dessas formações. Indubitável também é, algumas décadas depois, a força do ideário neoliberal em nossas paragens, adiantando-se inclusive, se pensarmos no Chile, às experiências radicais de Reagan e Thatcher. Inquieta saber, porém, em que medida tais complexos prático-discursivos impõem-se, entre nós, nos termos gerais de uma racionalidade de governo, como pensada por Foucault, e, mais particularmente, como a racionalidade de governo é modulada em nossas paragens.

A partir dos resultados da seção anterior, vê-se que investigar a formação de uma racionalidade de governo implica em inquirir um conjunto de práticas e discursos sobre: a) a sua constituição como regime de verdade; b) o seu vínculo com o governo da população; c) o seu caráter condicionante, simultaneamente, de processos totalizantes e de subjetivação; d) a sua relação com o Estado e as outras esferas da vida social.

Minha hipótese é a de que a reflexão de Florestan Fernandes sobre as resistências à mudança social e sobre o conceito de dominação autocrática pode, e ganha maior relevo teórico ao fazê-lo, responder aquelas perguntas, permitindo a enunciação – e todo enunciado é intertextual – do conceito degovernamentalidade autocrática para pensar o Brasil e, quiçá, processos globais.

Vimos como, na letra de Foucault, a constituição do liberalismo como regime de verdade implica, de um lado, uma cisão com a polarização ética da prática de governo em termos de justiça e injustiça. Do outro lado, a descoberta da naturalidade específica da população, com seus dinamismos e regularidades imanentes, converte-se no eixo central da prática de governo, por isso o par economia/política liberalismo é definido como princípio interno de autolimitação do governo: a verdade dinâmica da população é o que deve orientar o quê, quando e como governar (ou não) em prol da segurança – no sentido da garantia do livre movimento e expansão intensiva e extensiva das conexões – da população.

Não parece particularmente problemático pensar, nesse sentido, o liberalismo no Brasil como regime veridicional, como aparato prático-discursivo que se instaura e reformula crescentemente, sobretudo no período que envolve a Independência, a Abolição e a República, a agenda/non agenda do governo.

Tal absorção do liberalismo como regime de verdade do que Fernandes chama ordem social competitiva (fundamentalmente aberta em seu modelo abstrato), em contraste com a ordem social estamental (fundamentalmente restritiva), é, como não poderia deixar de ser, eivado de ambivalências. Isto porque se desenvolve numa “sociedade na qual imperava a violência como técnica de controle do escravo” e num ambiente moral “em que se fundavam a escravidão, a dominação senhorial e o próprio regime patrimonialista”, contexto que converte “o antiescravismo e o abolicionismo numa revolução social dos ‘brancos’ e para os ‘brancos’”, não contra “a escravidão em si mesma”, mas contra “o que ela representava como anomalia” no “afã de expandir a ordem social competitiva” (FERNANDES, 2006, pp. 35-6).

Na Independência, um liberalismo mobilizado pelo topo e particularmente temeroso de grandes insurreições populares é fundamental para condenar e superar o “estatuto colonial... como estado jurídico-político”, sem romper “com o seu substrato material, social e moral, que iria perpetuar-se e servir de suporte à construção de uma sociedade nacional” (FERNANDES, 2006, p. 51), associando o Brasil, de forma “livre mas heteronômica”, “às nações que controlavam o mercado externo e as estruturas internacionais de poder” (FERNANDES, 2006, p. 54).

Na Abolição, o mesmo liberalismo é mobilizado, contra a escravidão, em favor da liberdade de mercado, sem integrar – seja através do oferecimento das condições básicas de produção e da educação para o desempenho, seja através da valorização simbólica do trabalho manual[6] – a massa de ex-escravizados e ex-escravizadas[7].

A República altera, mas não em seus fundamentos, uma sociedade nacional arquitetada sistematicamente para obstruir a emergência do Povo na história (FERNANDES, 1978a) e para a reprodução da extrema “concentração de renda, do prestígio social e do poder” (FERNANDES, 2008, p. 114).

Assim, o liberalismo enquanto regime veridicional assume, aqui, um caráter bem peculiar na constituição do seu objeto: a população.

Por um lado, contra o estatuto colonial e a escravidão defende-se aquele “laisser-faire, laisser-passer e laisser-aller”, “que a realidade se desenvolva e vá, siga seu trabalho, siga seu caminho, de acordo com as leis, os princípios e os mecanismos que são da realidade mesma” (FOUCAULT, 2008a, pp. 62-3). Nesse sentido, “teve um alcance criador, pois deixou o palco livre para um novo estilo de ação econômica: a partir daí, seria possível construir ‘impérios econômicos’ e abrir caminho para o ‘grande homem de negócios’ ou para o ‘capitão da indústria, figuras inviáveis no passado recente (como o atesta o infortúnio de Mauá)” (FERNANDES, 2006, p. 36).

Esse liberalismo é tanto produto como produtor do seu homo oeconomicus, dos seus “agentes econômicos” (FERNANDES, 2006, p. 37), que aqui assumem os “dois tipos” clássicos: “o que combina poupança e avidez de lucro à propensão de converter a acumulação de riqueza em fonte de independência e de poder; o que encarna a ‘capacidade de inovação’, o ‘gênio empresarial’ e o ‘talento organizador’, requeridos pelos grandes empreendimentos econômicos modernos” (FERNANDES, 2006, p. 36).

Por outro lado, trata-se de uma defesa do laissez faire dos agentes econômicos articulada essencialmente às “adaptações políticas que correspondiam, inextricavelmente, aos desígnios políticos” das “elites, empenhadas em privilegiar seu prestígio social, bem como em alcançar e em manter, assim, o monopólio social do poder” (FERNANDES, 2006, pp. 70-1).

A “duplicidade” do liberalismo – que Fernandes pensa, em relação ao processo da Independência, como “a força cultural viva da revolução nacional brasileira” (FERNANDES, 2006, p. 57) – está em ser, simultaneamente, centrífugo e expansionista, no sentido do laissez faire, e centrípeto e restritivo, pois se reduz aos segmentos privilegiados, material e simbolicamente, da população. Aqui, numa frase, a segurança do livre movimento da população, critério fundamental da governamentalidade, torna-se segurança da liberdade de movimento – econômica, política e cultural – das elites. Como consequência, o interesse da população, realizado por meio dos desejos dos seus agentes econômicos – desejos que são estruturalmente constrangidos pela situação heteronômica – também se restringe ao interesse dos segmentos localizados no tope da pirâmide social.

A restrição constituinte do que se concebe como população no Brasil, não se limita aos séculos anteriores ao XIX, quando “as elites no poder tendiam a localizar-se e a afirmar-se, historicamente, através e em nome da sociedade civil” (FERNANDES, 2006, pp. 62-3). Embora ampliada com o crescimento dos setores intermediários – mercantil, fazendeiro-burguês, imigrantes etc. – independentes da ou menos ligados à oligarquia, tal restrição manteve-se como atributo central: como já vimos, com o descaso pelo destino de negras (os) libertas (os), elemento básico para entender como, no Brasil, a “ordem social competitiva emergiu e expandiu-se, compactamente, como um autêntico e fechado mundo dos brancos” (FERNANDES, 1978a, p. 457); pelos atributos do próprio capitalismo dependente, onde “configurou-se, estrutural e funcionalmente, uma situação de mercado em que preponderavam as conexões econômicas com o exterior e em que as conexões econômicas com a vida econômica interna possuíam escassa importância estrutural e dinâmica” (FERNANDES, 2006, p. 110). Configuração geral que, para Fernandes (2006, 2008) mantém-se na passagem do capitalismo concorrencial para o capitalismo monopolista.

Em Crescimento Econômico e Instabilidade Política no Brasil, texto de 1966, esse caráter fundamentalmente restritivo é representado como “um ciclo vicioso perfeito”:

As condições extraeconômicas constrangem, debilitam ou deformam de várias maneiras os fluxos especificamente econômicos da produção e da circulação da riqueza. Por sua vez, o padrão de crescimento econômico, resultante dessa interação entre a economia, a sociedade e a cultura, não fornece à ordem social o substrato e os dinamismos econômicos necessários à absorção, à eliminação ou à superação de suas inconsistências e desequilíbrios puramente socioculturais. A economia cresce e se expande, sem contudo romper o ponto morto que a submerge dentro de uma cadeia de ferro, expressa em formas sociais obsoletas ou apenas parcialmente modernizadas, das quais provêm a neutralização ou a inibição dos efeitos construtivos do próprio crescimento econômico (FERNANDES, 2008, p. 129).

Como se sabe, em A Revolução Burguesa no Brasil, o golpe empresarial-militar de 1964 e os seus desdobramentos são lidos como “uma contrarrevolução autodefensiva” do poder burguês em crise para, trazendo plenamente à tona o seu caráter autocrático (de classe): criar laços renovados “com o capitalismo financeiro internacional”; “reprimir, pela violência ou pela intimidação, qualquer ameaça operária ou popular de subversão da ordem (mesmo como uma ‘revolução democrática-burguesa’)”; “transformar o Estado em instrumento exclusivo do poder burguês, tanto no plano econômico quanto nos planos social e político” (FERNANDES, 2006, p. 255).

Temos então que, passados os eventos históricos fundamentais na conformação do Brasil moderno, esta formação sócio-nacional manteve, a despeito e em razão do seu liberalismo peculiar, amplas parcelas da sua população à margem ou precariamente inseridas na economia de mercado ou no que, de uma perspectiva mais abrangente, Fernandes chama de ordem social competitiva.

Entender as razões desse dilema brasileiro – as chances perdidas ou o não aproveitamento das possibilidades históricas de consolidação de uma ordem social competitiva abrangente, de conformação de um capitalismo autônomo, de democratização da renda, do prestígio e do poder – ocupou Fernandes durante a maior parte de sua trajetória, acadêmica e política.

Numa primeira fase de suas intervenções como intelectual público, o dilema é articulado sob a forma da noção de cultural lag (ver FERNANDES, 2013, Existe uma crise da democracia no Brasil?): o Brasil é enquadrado na imagem de uma jovem nação, cujos princípios estruturais e organizativos estão no encalço do padrão da moderna civilização industrial. Essa trajetória de integração é, no entanto, descontínua, não obedece a um ritmo homogêneo em todos os âmbitos da vida social nacional. Atributos econômicos e político-formais mais avançados, por exemplo, entrariam em tensão com atributos socioculturais regressivos, arcaicos, ainda fortemente vinculados aos mores da sociedade escravocrata-estamental. Não haveria crise, portanto, da democracia no Brasil, mas uma democracia em formação, uma sincronização paulatina, mas inegável, das esferas da vida aos requisitos sistêmicos de uma sociedade moderna.

As reações das classes privilegiadas à Campanha em Defesa da Escola Pública levaram Fernandes, no entanto, a uma reformulação do dilema brasileiro não mais em termos de uma disritmia entre os níveis econômico, político e sociocultural. É através dos “resultados da observação endopática” realizados na Campanha que Fernandes afirma ter descoberto a “resistência residual à mudança como traço sociopático” (FERNANDES, 1976a, p. 134) das elites brasileiras; “a natureza imobilista, obscurantista e reacionária das pressões conservadoras” (FERNANDES, 1975, p. 35).

Participar na Campanha e sentir na pele a reação intransigente contra qualquer movimento de reforma e democratização exigiu “pela primeira vez em minha vida”, escreve Fernandes (1980, p. 200) em seu esboço autobiográfico, “definir a consciência burguesa em termos de uma equação concreta, que me ensinava que o controle burguês da sociedade civil estava bloqueando e continuaria a bloquear de modo crescente, no Brasil, a revolução nacional e a revolução democrática de recorte especificamente capitalista”.

Abandona-se a articulação do dilema brasileiro, feita em 1954, em termos de uma “teoria da demora cultural” e a sua superação por meio de um ajuste das “esferas da sociedade brasileira, que não se transformaram ou que se transformaram com menor intensidade, às esferas que se alteraram com maior rapidez e profundidade” (FERNANDES, 1976a, p. 210). O “nosso dilema,”, agora em 1962, “consiste na contradição entre os ‘propósitos exteriores de progresso econômico e social’ e as ‘disposições ultraconservantistas disfarçadas’, que animam o comportamento político (no sentido mais amplo possível) dos detentores das posições de mando e liderança na estrutura do poder” (FERNANDES, 1976a, p. 231). Consiste, mais uma vez, “numa resistência residual ultraintensa à mudança social, que assume proporções sociopáticas” (FERNANDES, 1976a, p. 211).

O artigo Reflexões sobre a Mudança Social no Brasil é repleto de atribuições que podem ser lidas, segundo o nosso problema, como constituintes de um padrão de governamentalidade dominante, específico e persistente em nossas paragens.

Além do imobilismo, do obscurantismo reacionário, do bloqueio da revolução nacional e democrática pelo controle burguês, do ultraconservantismo e da resistência sociopática, fala-se de uma “oposição ao progresso” que “nasce de uma desconfiança por assim dizer tribal diante da inovação” (FERNANDES, 1976a, p. 206), cujo produto é “a estagnação ou a inovação pervertida, conquistada a duras penas a custo de um preço tal que arruína pela base a ordem financeira e a ordem moral do regime estabelecido” (FERNANDES, 1976a, p. 207); de “grupos humanos” que colocam “acima de tudo as posições alcançadas na estrutura de poder da sociedade” e que, em nome dessa prioridade, projetam “os influxos inovadores e seus efeitos previsíveis... na área das ‘forças do mal’ – sendo repelidos num contexto de atuação irracional” (FERNANDES, 1976a, p. 211); de “um apego sociopático ao passado”, de um “conservantismo cultural sistemático”, onde “assuntos de importância vital para a coletividade” são “encarados e resolvidos à luz de critérios que possuíam eficácia no antigo regime” (FERNANDES, 1976a, p. 212).

Perfaz-se, em suma,

uma opção pela mudança social que pretende submeter as forças que alteram a estrutura e a organização da sociedade brasileira aos interesses e aos valores sociais de camadas tradicionalmente acostumadas à estabilidade social e ao que ela sempre ocultou no Brasil: extrema iniquidade na distribuição da terra, da renda e das garantias sociais; operação automática de controles sociais que regulavam ou dissimulavam as tensões sociais, por meio da dominação autocrática dos poderosos e da acomodação passiva dos subordinados [...] Em outras palavras, surgiu um novo estilo de opção, no qual a mudança social passou a ser pretendida com ansiedade. Mas, segundo a conduta da ave de rapina – a inovação e o progresso considerados em termos dos interesses imediatos de certos círculos, não importando os seus defeitos, o seu custo e a sua significação para a coletividade como um tudo (FERNANDES, 1976, p. 215).

A maior parte desses atributos continua, na obra de Fernandes, a constituir o que aqui lemos como a definição de um padrão de racionalidade de governo autocrático. O que se enriquece de nuances, no desenrolar de sua trajetória intelectual, é o estatuto, para além do olhar clínico, dessa mentalidade.

No ensaio já clássico de 1967, Sociedade de Classes e Subdesenvolvimento, não são róseas, para parafrasear o velho Marx (2008), as cores usadas para pintar a agência econômica na situação de dependência, onde “o que prevalece não é o ‘interesse lucrativo’ puro e simples”, mas “conforme a fase localizada, o que Sombart chamou, com referência ao passado, de pirataria econômica; e o que poderíamos designar, com relação ao presente, como ‘mentalidade espoliativa’ e ‘espírito especulativo” (FERNANDES, 2008, p. 74). Aqui, as “classes altas passam a resguardar o privilegiamento de sua posição como se ele devesse ser natural, eterno e sagrado”, opondo-se “sistematicamente, pela violência onde tornar conveniente, à institucionalização e à fruição das formas de equidade, que garantem à ordem social competitiva um padrão de equilíbrio dinâmico capaz de assegurar a classes sociais com interesses econômicos divergentes ajustamentos normais através da acomodação ou de conflito” (FERNANDES, 2008, p. 75). Cria-se um “regime de classes” adaptado “a iniquidades econômicas insanáveis, a tensões políticas crônicas e a conflitos sociais insolúveis, elevando a opressão sistemática, reconhecida ou disfarçada, à categoria de estilo de vida” (FERNANDES, 2008, p. 75).

O que começa a se alterar nesse ensaio de 1967 é que, diferente de apontar reiteradamente para um padrão irracional e sociopático de comportamento[8], Fernandes (2008, p. 78) explicitamente questiona: no capitalismo dependente brasileiro são, afinal, preenchidos os “requisitos de racionalidade de uma ordem econômica capitalista?”. Enuncia-se então como resposta – citando, em nota, Empresário Industrial e Desenvolvimento Econômico no Brasil (obra de Cardoso publicada em 1964) –, a noção de “racionalidade possível” da ação empresarial no capitalismo dependente, onde a dificuldade de “qualquer espécie de previsão e de controle racional é tão grande que ‘negócio’ e ‘aventura espoliativa’ andam sempre mais ou menos juntos, mesmo quando e onde existam uma contabilização e alguma previsão das relações com o mercado ou da evolução do empreendimento” (FERNANDES, 2008, pp. 78-9).

Dado o “circuito de indeterminação, inerente ao capitalismo dependente” (FERNANDES, 2008, p. 80), o homo oeconomicus que aqui atua “projeta as consequências puramente econômicas de sua ação em um raio tão curto e fechado quanto for possível”, assim como opera uma “transferência sistemática dos ‘riscos do negócio’ para outros fatores (de preferência: o agente de trabalho e o consumidor; adicionalmente, o fornecedor ou os mecanismos de crédito; num sentido mais amplo e complexo, para a coletividade)”, fatores que convertem “o imediatismo e a especulação imoderada em componentes essenciais do êxito econômico” (FERNANDES, 2008, pp. 81-2).

O “verdadeiro ‘espírito extorsivo’” do comportamento empresarial é pensado, assim, menos como uma sociopatia do que como fortemente condicionado pelas características estruturais postas pelo capitalismo dependente, divorciando “o fluxo normal das atividades econômicas da filosofia da livre empresa, especialmente quanto às tendências à depreciação do trabalho, à superestimação das mercadorias e ao recurso à proteção governamental ou ao crédito como fatores compensatórios” (FERNANDES, 2008, p. 82).

Em A Revolução Burguesa no Brasil a questão é novamente enfrentada, a saber, “se a debilidade congênita de uma burguesia que se vê compelida, historicamente, a congelar a expansão da ordem social competitiva, reduzindo ao mínimo o seu próprio impulso para manobras e barganhas estratégicas (nas relações internas e externas, de acomodação ou de conflito), não seria um fator específico de sua própria orientação ultraconservadora e reacionária” (FERNANDES, 2006, pp. 249-50). Questão, no fundo, sem “importância analítica fundamental”, pois, escreve Fernandes (2006, p. 250), “não existe uma ‘burguesia débil’: mas outras classes (ou setores de classes) que tornam (ou podem tornar) a dominação burguesa mais ou menos vulnerável”. Há sim um “fator de reforço” no conservadorismo de uma burguesia que tem origem na oligarquia, mas o fundamental repousa no fato de que o “capitalismo dependente é, por sua natureza e em geral, um capitalismo difícil, o qual deixa apenas poucas alternativas efetivas às burguesias que lhe servem, a um tempo, de parteiras e amas-secas” (FERNANDES, 2006, p. 251). “Ao fechar o espaço político aberto à mudança social construtiva”, continua Fernandes (2006, p. 251), “a burguesia garante-se o único caminho que permite conciliar sua existência e florescimento com a unidade e expansão do capitalismo dependente”.

As condições, portanto, que permitiram a aliança entre dominação burguesa, revolução democrática e nacional em selecionados países europeus, aquilo que Fernandes (2006, p. 340) nomeia “modelo democrático-burguês”, não se apresentam no processo de consolidação da dominação burguesa periférica, onde há “uma forte dissociação pragmática entre desenvolvimento capitalista e democracia; ou, usando-se uma notação sociológica positiva: uma forte associação racional entre desenvolvimento capitalista e autocracia” (FERNANDES, 2006, p. 340).

Assim, o que ‘é bom’ para intensificar ou acelerar o desenvolvimento capitalista entra em conflito, nas orientações de valor menos que nos comportamentos concretos das classes possuidoras e burguesas, com qualquer evolução democrática da ordem social. A noção de ‘democracia burguesa’ sofre uma redefinição, que é dissimulada no plano dos mores, mas se impõe como uma realidade prática inexorável, pela qual ela se restringe aos membros das classes possuidoras que se qualifiquem, econômica, social e politicamente, para o exercício da dominação burguesa (FERNANDES, 2006, p. 340).

Mais a frente, Fernandes escreve que, no Brasil, “as classes burguesas procuraram compatibilizar revolução nacional com capitalismo dependente e subdesenvolvimento relativo, tomando diante da dupla articulação uma atitude política ‘realista’ e ‘pragmática’, o que é, em suma, uma demonstração da sua racionalidade burguesa” (FERNANDES, 2006, p. 350): que identifica “a revolução nacional com seus alvos particularistas” (FERNANDES, 2006, p. 351); que “resiste organizada e institucionalmente às pressões igualitárias das estruturas nacionais da ordem estabelecida, sobrepondo-se e mesmo negando as impulsões integrativas delas decorrentes” (FERNANDES, 2006, p. 352); que contém ou sufoca “as impulsões societárias tão conhecidas ao igualitarismo, ao reformismo e ao nacionalismo exaltado de tipo burguês, expurgando-as, por meios pacíficos e violentos, da ordem social competitiva” (FERNANDES, 2006, p. 360).

Tal compreensão da governamentalidade autocrática não como uma sociopatia ou irracionalidade, mas como um tipo de racionalidade possível, é novamente reiterada na descrição que Fernandes (2006, p. 383) faz do modelo autocrático-burguês, caracterizado por uma muito pequena “massa dos que se classificam dentro da ordem”, de um lado, e um “muito grande” “volume dos que não se classificam ou só se classificam marginal e parcialmente”, o que “acirra o temor de classe e torna a inquietação social algo temível”, delineando “uma mentalidade política burguesa” como “reação societária”, fundada “em uma forma ultravulnerável de temor de classe” e não como “produto de um obscurantismo intelectual ou político”.

Para concluirmos essa incursão sobre a superação, ou ao menos relativização, da abordagem clínica do problema da dominação burguesa em situação de heteronomia, caracterizada pelo “individualismo egoístico”, pelo “particularismo agressivo”, pela “violência ‘racional’” (FERNANDES, 2006, p. 417), importa contemplar outro momento particularmente revelador, presente em As Mudanças Sociais no Brasil, texto de 1974, para pensar nossa “burguesia autocrática e ultraconservadora” (FERNANDES, 2013, p. 34).

Aqui Fernandes, novamente, converte em interrogação o que em 1962 era uma exclamação. Escreve que, embora a caracterização da “resistência sociopática à mudança” esteja “correta” em sua força interpretativa, ela “ignora que, na raiz do comportamento das classes dominantes e de suas elites”, no Brasil, “se acha outro componente de maior influência condicionante e determinante. Não é só a cegueira, que conta, mas também a certeza (ou quase certeza) de que se pode manipular uma ordem social como a competitiva de modo relativamente fácil e impune” (FERNANDES, 2013, pp. 51-2). Antes de uma sociopatia, trata-se de “vantagem estratégica”, por meio da qual “as classes privilegiadas e suas elites agravam, por medo histórico, as propensões porventura atuantes de resistência sociopática à mudança, enxergando em qualquer ‘abertura da ordem’ o início de um cataclismo social”, pânico frequentemente “manipulado e exagerado” para deslocar “os conservadores e os liberais de suas posições, politizando-os no centro ou na direita da reação” (FERNANDES, 2013, pp. 52-3).

Diferente de uma burguesia frustrada, “impotente”, de “segunda ordem” ou de uma “lumpen-burguesia”, embora decisivamente não possua uma “estatura heroica”, trata-se, para Fernandes (2013, p. 62), de uma burguesia que em grande medida cumpriu e cumpre sua tarefa: “compatibilizar desenvolvimento capitalista, dependência e subdesenvolvimento de tal modo que mesmo o proletariado mais explorado e as classes destituídas mais excluídas ou marginalizadas se identifiquem, de alguma maneira, com a condição burguesa”.

“O poder concentrado no topo só se reproduz sob a condição de um controle ativo, vigilante e persistente que impeça qualquer abalo da ‘tradição’ de concentração do poder”, “fim perverso” que absorve “o melhor da capacidade política inventiva” dos “de cima”, escreve Fernandes (1986, p. 68) em artigo publicado na Folha de São Paulo em agosto de 1985. E continua

A ausência de uma cultura cívica se mede pela bitola dessa perversidade das ações políticas institucionalizadas, conscientes e ‘nacionais’. Elas são racionais (e, portanto, funcionais) com vistas ao rendimento e à autorreprodução de semelhante sistema de poder ultraconcentrado, que alguns chamam de elitista, particularista e oligárquico ou autocrático. São parte dos ‘costumes políticos’ e viciam as instituições ditas ‘modernas’, pois lhes infiltram todos os tipos de distorções imagináveis. Sua lógica política é simples: o que é bom para os donos do poder é bom para a coletividade como um todo. E se o referido sistema de poder se mescla às liberdades civis e políticas, o faz de modo a ajustá-las aos mecanismos centrais perversos da engrenagem descrita. Na verdade, os fins justificam os meios. Os que ‘entendem das coisas’ determinam os fins e escolhem os meios – é a sua responsabilidade democrática perante a Nação, que eles devem conduzir ou gerir como a coisa nossa. (Não se leve a mal esta expressão. Ela não força a realidade. As elites dirigentes aparecem, à luz de seus procedimentos, como um bando de mafiosos. Existem várias pequenas, médias e grandes Sicílias por este vasto mundo...) (FERNANDES, 1986, pp. 68-9).

Temos agora elementos suficientes para pensar de maneira mais precisa a “mentalidade retrógrada ultrapredatória” (FERNANDES, 1986, p. 75) das nossas elites como um padrão autocrático de racionalidade de governo na obra de Florestan Fernandes.

De maneira geral, seja como sociopatia irracional, como racionalidade possível ou como racionalidade estratégica, a governamentalidade autocrática é caracterizada: a) em termos específicos de agência econômica, como predatória, imediatista, ultraegoísta, extorsiva, especulativa, violenta, tendente a continuamente socializar (para trabalhadores e para as classes subalternas em geral) os riscos de sua ação; b) em termos mais abrangentes – econômicos, políticos e socioculturais – trata-se de uma mentalidade de governo interessada em – patológica, fatal ou estrategicamente – reproduzir condições de ultraconcentração da riqueza, do poder e do prestígio, reagindo violentamente a todo tipo de pressão por ampliação do acesso a esses recursos.

Outra característica fundamental que perpassa todos os textos é que tal padrão de governamentalidade necessita de algum modo generalizar-se, ou melhor, criar algum tipo de unidade para além dos próprios ínfimos setores diretamente envolvidos nesse e privilegiados por esse padrão de governo ultraconcentracionista e monopólico. Recapitulemos: em Reflexões..., é apontada a interdependência entre a “dominação autocrática dos poderosos e a acomodação passiva dos subordinados” (FERNANDES, 1976a, p. 215); em A Revolução Burguesa no Brasil, diz-se que não existe burguesia débil, “mas outras classes (ou setores de classes) que tornam (ou podem tornar) a dominação burguesa mais ou menos vulnerável” (FERNANDES, 2006, p. 250); em As Mudanças Sociais no Brasil, fala-se da tarefa da burguesia dependente de compatibilizar desenvolvimento capitalista, dependência e subdesenvolvimento de um modo que “mesmo o proletariado mais explorado e as classes destituídas mais excluídas ou marginalizadas se identifiquem, de alguma maneira, com a condição burguesa” (FERNANDES, 2013, p. 62); em Que tipo de República?, indica-se uma racionalidade perversa que cimenta a nação de um modo que prevaleça a máxima “o que é bom para os donos do poder é bom para a coletividade como um todo” (FERNANDES, 1986, p. 68).

O que estou tentando apontar é que a governamentalidade autocrática, tal qual a governamentalidade liberal e neoliberal, também se articula através da ponte entre uma dimensão totalizante e uma dimensão individualizante, atingindo tanto processos de institucionalização e formação do estado como processos de individualização e formação de sujeitos. As táticas gerais da governamentalidade autocrática, para falar com Foucault, são internamente dependentes da contínua produção de submissão, que atinge os mais diversos níveis: desmantelamento contínuo dos mecanismos institucionalizados de pressão das massas; concentração dos instrumentos simbólicos de articulação do discurso insurgente ou mesmo reformista; expropriação permanente das condições e disposições para o alargamento da ordem social competitiva.

Pensar que o Povo ‘não tem consciência política’ é uma verdadeira tradição das elites culturais. ‘Pobre é ignorante e não tem opinião’. Pensa com os de cima (ou deixa-se conduzir por eles). Esse vem a ser o primeiro mandamento de uma concepção senhorial do mundo, que não se acabou com a escravidão (FERNANDES, 1986, p. 107).

Acrescentaria que não só pensar como produzir continuamente, discursiva e praticamente, essa população desamparada (política, cultural e economicamente) é o primeiro mandamento dessa racionalidade de governo autocrática. É a partir dessa produção prático-discursiva que se constitui e se justifica, também, a nossa tradição secular e atual de “idealismo orgânico” (BRANDÃO, 2007), que defende um poder superior – estatal ou não – capaz de formar, liderar e conduzir tal povo, num sentido que leva ao extremo (em seu sentido sombrio) a imagem foucauldiana do poder pastoral.

É possível indicar algumas semelhanças entre essa forma autocrática de laço entre as dimensões totalizante e individualizante, percebida em Fernandes, e a reflexão sobre a formação do sujeito neoliberal. Ao analisar textos basilares do neoliberalismo, como Human Action, de Von Mises, assim como as obras de Gary Becker, Foucault (2008b, pp. 368-9) chama atenção para a elaboração de um homo oeconomicus caracterizado por ser um sujeito que “aceita a realidade” e é, “do ponto de vista de uma teoria do governo”, “eminentemente governável”, pois apto a responder “sistematicamente às modificações nas variáveis do meio”. O interesse do sujeito de valorização de si mesmo como capital humano revela, sobretudo, sujeição às dinâmicas não totalizáveis, opacas a um olhar soberano (político ou jurídico), da economia de mercado.

Wendy Brown (2015) pretende ir além de Foucault, embora profundamente influenciada pelo mesmo, ao apontar a impossibilidade de conceber aquele sujeito eminentemente governável como sujeito de interesse, categoria que continua a permear a compreensão foucauldiana do homo oeconomicus. Para ela, a noção de “interesse” não “captura adequadamente o ethos ou subjetividade do sujeito neoliberal contemporâneo”, sujeito que “é tão profundamente integrado e, portanto, subordinado ao objetivo superveniente do crescimento macroeconômico que o seu bem-estar é facilmente sacrificado em nome desses propósitos maiores” (BROWN, 2015, p. 83). A vitória, nunca absoluta, do homo oeconomicus sobre o homo politicus (entendido como o exercício individual e/ou coletivo da soberania política para além do Estado) no neoliberalismo contemporâneo, estabelece a transição de um sujeito econômico orientado por “interesses de satisfação” para um sujeito forçado “a engajar-se em uma forma particular de autossustento que se mistura à moralidade do Estado e à saúde da economia” (BROWN, 2015, p. 84).

A “economização normativa da vida política” assim como “a usurpação do homo politicus pelo homo oeconomicus” que caracteriza, para Brown (2015, p. 201), a nossa época, constitui assim menos um sujeito do interesse do que um sujeito do sacrifício: “Em vez de ser segurado ou protegido, o cidadão responsabilizado tolera insegurança, privação e extrema exposição para manter a posição competitiva, o crescimento ou a classificação de crédito da nação como empresa” (BROWN, 2015, p. 213).

Por fim – no que se refere à relação entre autocracia, Estado e as outras esferas da vida social –, temos, como na governamentalidade liberal, uma racionalidade que transcende e condiciona as práticas estatais, de fato estabelecendo, como na enunciação foucauldiana, a agenda/non agenda do Estado (seu o quê, como e quando intervir ou não intervir). Esse caráter abrangente e condicionante, no entanto, é também modulado pela particularidade da mentalidade de governo autocrática.

A restrição estrutural do que se define como população, reduzida aos limites daqueles que monopolizam os atributos necessários para a atuação competente nas esferas econômica, política e sociocultural, faz com que o Estado seja capturado por essa metonímia perversa: os interesses de uma reduzida elite são representados e efetivados como interesse da população e o Estado é direcionado para reproduzir e manter essas condições de extrema concentração da renda, do prestígio e do poder.

Em As Mudanças Sociais no Brasil, de 1974, Fernandes (2013: 31) sintetiza: “As classes dominantes internas usam o Estado como um bastião de autodefesa e de ataque, impondo assim seus privilégios de classe como ‘interesses da nação como um todo’, e isso tanto de cima para baixo”, na relação interna entre as classes sociais, “como de dentro para fora”, nas relações internacionais[9].

Logo, diferente da imagem pintada por Foucault ao pensar a governamentalidade liberal, onde economia e política, população e Estado, são claramente delimitados e relacionam-se a partir de suas respectivas autonomias, teríamos aqui uma indexação radical ou um tipo de amálgama essencial não só entre o político-estatal e o econômico, mas também da dimensão sociocultural. Nesse sentido, a governamentalidade autocrática se aproxima muito mais da imagem da governamentalidade neoliberal, de um poder enformador da sociedade, de uma orientação radical de todas as dimensões da vida para a constituição da economia de mercado.

Como um neoliberalismo avant la lettre, o Estado aqui, de algum modo, sempre esteve indexado ao fim da economia (dependente e duplamente articulada), mas não em termos de mecanismo de concorrência, mas como manutenção de privilégios. Trata-se de intervir ou não intervir em nome da segurança de classes definidas pela monopolização permanentes de recursos (objetivos) e condições habilitadoras (subjetivas).

3. Considerações finais

Em síntese, a governamentalidade autocrática define-se como regime de verdade sobre e em defesa da liberdade de movimento de uma população estruturalmente restrita, cuja racionalidade (patológica, possível ou estratégica) está permanentemente voltada para a reprodução das condições de concentração da renda, do poder e do prestígio, e, simultaneamente, para o bloqueio, por meio de reações violentas e desproporcionais, a todo esboço de movimento dos amplos segmentos subalternos – para os quais o laisser-faire, laisser-passer e laisser-aller são tão abstratos quanto conhecer a França – que tenha em vista um mínimo desbloqueio, descongelamento ou abertura desse circuito (FERNANDES, 2010). A reprodução dessas condições de ultraconcentração, de um lado, e desamparado radical, de outro, dos mais diversos atributos, tem como suporte fundamental o aparelho estatal, praticamente orientado para esse fim.

Quais são, afinal, as vantagens de ler os conceitos de Fernandes nos termos da analítica da governamentalidade foucauldiana?

Antes de qualquer coisa, não se trata de prescindir das significativas diferenças entre a proposta genealógica foucauldiana e o ecletismo metodológico criticamente orientado do sociólogo paulista que, em sua trajetória, passou de uma busca de síntese das contribuições dos clássicos da sociologia, como se pode ver em textos como Fundamentos Empíricos da Explicação Sociológica (FERNANDES, 1978b) ou os Ensaios de Sociologia Geral e Aplicada (FERNANDES, 1976b), para uma orientação mais decididamente marxista de abordagem.

Obviamente, não podem ser negligenciadas as diferenças entre, por um lado, uma abordagem nominalista centrada na investigação de práticas discursivas (saberes) diversas, da escala micro à macro, em seus vínculos recíprocos com as relações de poder, e, por outro lado, caso tomemos a última fase de Fernandes (sobre a qual nos debruçamos mais detidamente), uma investigação global, para não dizer da perspectiva da totalidade, de padrões específicos de desenvolvimento desigual e combinado do capitalismo (desenvolvido/subdesenvolvido, autônomo/heterônomo ou dependente, semicolonial, etc.), a singularidade dos princípios estruturais e organizativos que emergem a partir dessa base (modelo democrático-burguês/modelo autocrático-burguês, etc.), assim como das tendências heterogêneas de conduta (do irracionalismo patológico ao racionalismo de tipo weberiano). Acredito, entretanto, que a genealogia foucauldiana e a abordagem de Fernandes podem entrar em diálogo na medida em que ambas se inserem dentro de uma teoria crítica concebida de forma a mais ampla possível.

Ora, a genealogia tem como fim não somente abordar de outra maneira os saberes institucionalizados, mas inquiri-los decisivamente a partir daquilo que foi esquecido, inferiorizado ou tido como superado no processo de institucionalização dos saberes. O cânon funciona apenas como um ponto de partida para a classificação daquilo que é central e daquilo que é considerado marginal ou estranho à história dos saberes, sendo os saberes desqualificados a perspectiva fundamental através da qual os cânones serão questionados e criticados. Nas palavras de Foucault (1999, p. 16), “a arqueologia” define “o método próprio da análise das discursividades locais, e a genealogia, a tática que faz intervir, a partir dessas discursividades locais assim descritas, os saberes dessujeitados que daí se desprendem”, por isso uma insurreição dos saberes. Se a margem ou o interdito, do discurso e do poder, aparecem como fundamento de orientação do programa genealógico, também Fernandes calcou o seu projeto intelectual num tipo de periferia ou interdito de natureza sociológica, “no drama e na tragédia cotidianos vividos pelas camadas populares marginalizadas da participação nos rumos do país e excluídas das conquistas civilizadas e que explicam os dilemas do Brasil no trânsito do moderno” (ARRUDA, 2010, p. 13).

Assim, é tomando-os como esforços heterogêneos, mas unidos na crítica às formas hegemônicas de vida de sua época e do presente, que o cotejamento e o enriquecimento recíproco dos dois aportes pode ter resultados frutíferos.

Ler de modo articulado as reflexões de Fernandes que vão das resistências à mudança social ao modelo autocrático de dominação permite, primeiramente, conjugar elementos de um padrão de racionalidade – discursos, táticas, práticas, disposições comportamentais, etc. – que não se restringem a uma abordagem clínica (resistência sociopática à mudança, debilidade congênita, irracionalidade), determinista/economicista (racionalidade possível nas condições do capitalismo dependente), ou estratégica (manipulação em prol da unidade de setores dominantes contra a ampliação da ordem social competitiva). Se todas as abordagens captam momentos de verdade variados, a enunciação dos seus atributos comuns em termos de uma governamentalidade autocrática permite considera-los como significativamente autônomos em relação a condicionamentos psíquicos, econômicos e deliberativos, podendo ser acionados nas mais diversas circunstâncias históricas e conjunturais.

Chama a atenção, em segundo lugar, para a longue durée desse padrão de racionalidade de governo no curso dos acontecimentos históricos e a sua atuação em situações variáveis no pêndulo (a favor ou contra) dos processos de mudança social, no sentido de forças politicamente organizadas contra o fechamento (nunca completo) do circuito. Possibilita, por fim, refletir sobre um padrão autocrático de atuação do Estado, a despeito dos governos (no sentido do senso comum) do momento, assim como destaca processos de subjetivação também de longa duração, marcados pela relação necessária entre autoritarismo e acomodação passiva, autocracia e submissão, englobando, a um só tempo, questões de totalização e de individuação.

Não se trata, porém, de apenas enquadrar o esforço intelectual de Fernandes sob o aparato analítico proposto por Foucault. Na medida em que vai muito além de uma análise genealógica de formações discursivas, objeto prioritário de Foucault, Fernandes avança: a) numa análise das contradições internas aos discursos e práticas liberais, captando, em razão do seu próprio objeto de investigação, padrões de mentalidade de governo no centro (modelo democrático-burguês) e na periferia (modelo autocrático-burguês); b) analisa o que chamamos de governamentalidade autocrática (resistência sociopática à mudança, dominação autocrática, etc.) sempre em busca do concreto, a saber, de como tal racionalidade de governo atua e é atuada nas lutas entre grupos e classes em constelações históricas específicas; c) reflete sobre processos de governo da população sem nunca abandonar uma reflexão sobre os problemas do desenvolvimento global (desigual e combinado) do capitalismo, da democracia, da herança escravocrata, da questão nacional, utilizando atributos mais abrangentes (renda, poder, prestígio) para pensar a população do que exclusivamente a constituição do homo oeconomicus.

Aprofundando alguns elementos já anunciados na seção anterior, pergunto: os atributos elencados da governamentalidade autocrática acima definida continuam a ter uma validade circunscrita a formações sócio-nacionais periféricas, flageladas pela colonialidade, pelo subdesenvolvimento, pelo capitalismo dependente ou heteronômico e pelo modelo autocrático-burguês de revolução? Tais atributos (restritivos, bloqueadores, extorsivos, monopolizantes, ultraconcentracionistas, predatórios, violentamente reativos e disciplinadores) não poderiam ser encontrados nas mais diversas coordenadas geográficas de um mundo caracterizado pelo acirramento de novas guerras (frias e quentes), pela crise generalizada do Welfare State, pela persistência de uma governamentalidade neoliberal que se alimenta da sua própria crise e pela ascensão de novos fascismos e autoritarismos?

O próprio Fernandes de algum modo já vislumbrava a possibilidade de uma generalização do modelo autocrático.

Em A Revolução Burguesa no Brasil, em seu sétimo capítulo, escrito em 1973, lê-se que, naquela quadra histórica, seja as burguesias periféricas seja as “centrais e hegemônicas” tencionavam, sobretudo, “manter a ordem, salvar e fortalecer o capitalismo, impedir que a dominação burguesa e o controle burguês sobre o Estado nacional se .deteriorassem]” (FERNANDES, 2006, p. 343). Assim, a revolução burguesa periférica é “fortalecida por dinamismos especiais do capitalismo mundial” e levada, “de modo quase sistemático e universal, a ações políticas profundamente reacionárias, pelas quais se revela a essência autocrática da dominação burguesa e sua propensão a salvar-se mediante a aceitação de formas abertas e sistemáticas de ditadura de classe” (FERNANDES, 2006, p. 343). Despida de qualquer “idealismo” e “romantismo”, a “dominação burguesa revela-se à história, então, sob seus traços irredutíveis e essenciais”:

A sua inflexibilidade e a sua decisão para empregar a violência institucionalizada na defesa de interesses materiais privados, de fins políticos particularistas; e sua coragem de identificar-se com formas autocráticas de autodefesa e de autoprivilegiamento. O ‘nacionalismo burguês’ encerra assim um último giro, fundindo a república parlamentar com o fascismo (FERNANDES, 2006, p. 345).

Converte-se, “por fim, o Estado nacional e democrático em instrumento puro e simples de uma ditadura de classe preventiva” (FERNANDES, 2006, p. 346).

O curso publicado em 1977, Apontamentos sobre ‘A Teoria do Autoritarismo’, também oferece elementos para pensar a generalização da, aqui nomeada, governamentalidade autocrática:

O que Horkheimer, Adorno e outros fizeram com relação ao nazismo – o que é a potencialidade fascista – poder-se-ia fazer em um plano mais geral: como as potencialidades autoritárias, intrínsecas ao capitalismo, crescem com a passagem para a fase de crise e de possível desmoronamento... A autodefesa cria um enrijecimento inevitável, nasça ela dos riscos de uma greve geral, das ameaças do movimento operário ou da viabilidade de uma revolução socialista. Automaticamente, os requisitos do contrato, do consenso e da representação sofrem um debilitamento, que se traduz por uma exacerbação das formas de dominação burguesa. O componente autoritário oscila, as relações autoritárias ganham saliência e a democracia fica um privilégio dos mais iguais (ou das elites no poder) (FERNANDES, 1979, p. 13).

Arantes (2004), ao revisar criticamente as teses euroamericanas da brasilianização do mundo, reforça, com seu estilo peculiar, vários dos elementos enfatizados ao longo do texto. O mundo brasilianizado, a despeito da recaída em dualismos cognitivos já amplamente criticados na produção intelectual latino-americana dos anos 60 e 70, busca expressar um Brasil que volta a ser “vanguarda, só que da desintegração”, sintoma da “prevalência (e transparência) absoluta da razão econômica na gênese de uma ‘sociedade’ que, por isso mesmo (se Mauss e Durkheim têm alguma razão...) dificilmente poderia atender por esse nome” (ARANTES, 2004, p. 58). Algo particularmente próximo daquela supressão radical do homo politicus pelo homo oeconomicus, traço fundamental na nossa época denunciado por Wendy Brown (2015).

A brasilianização é sintoma não só da prevalência absoluta da razão econômica, mas de uma razão econômica de corte explicitamente predatório: “Como nossa burguesia nunca se pautou, nem poderia, salvo por motivos suicidas, pelo austero ethos weberiano da acumulação, sua dualidade rebaixada – um pé no patrimonialismo local, outro nas trocas transatlânticas modernas – por assim dizer antecipara a desmoralização contemporânea das finadas burguesias mundiais” (ARANTES, 2004, p. 68-9). Assim, “o lusco-fusco malandro, a promíscua alternância do lícito e do ilícito, se deixam reconhecer em estado bruto na delinquência financeira de hoje...” (ARANTES, 2004, p. 69).

Wolfgang Streeck (2016), por sua vez, ao refletir sobre o capitalismo contemporâneo, marcado pela simultânea hegemonia e crise do neoliberalismo, assim como pela crise generalizada do pacto welfarista que caracterizou os trinta anos gloriosos do pós-guerra nos países centrais, apresenta diagnóstico semelhante:

[...] o enfraquecimento do crescimento, que intensifica o conflito distributivo; a crescente desigualdade resultante; a gestão cada vez mais difícil da macroeconomia, como se manifesta, entre outras coisas, pelo aumento do endividamento, pela inflação da oferta monetária e pela possibilidade sempre presente de outro colapso econômico; a captura do mecanismo do capitalismo pós-guerra constituído pelo progresso social e pela democracia, contra o qual se eleva a intensificação do domínio oligárquico; a menor capacidade dos governos e o déficit sistêmico de governança para limitar a mercantilização de trabalho, natureza e dinheiro; a onipresença da corrupção mais diversa, em resposta à intensificação da concorrência em mercados onde o vencedor leva tudo e aproveita oportunidades ilimitadas de enriquecimento; a erosão da infraestrutura pública e dos benefícios sociais associada à comercialização e privatização de serviços; o fracasso após 1989 do principal país capitalista, os Estados Unidos, na construção e manutenção de uma ordem global estável; etc. etc. Esses e outros desenvolvimentos, eu sugiro, levaram a um cinismo generalizado que governa a vida econômica, o que descarta por muito tempo, se não para sempre, uma recuperação da legitimidade normativa do capitalismo como uma sociedade justa capaz de oferecer oportunidades iguais para o progresso individual – uma legitimidade à qual o capitalismo teria que recorrer em momentos críticos – e de fundar, pelo contrário, a integração social na resignação coletiva como o último pilar da ordem – ou desordem – social capitalista (STREECK, 2016, pp. 30-1).

Mais a frente no mesmo texto, Streeck (2016, p. 52) reitera o diagnóstico de um “cinismo generalizado” que se difundiu “profundamente no senso comum”, que passa “a entender como um fato normal que o capitalismo nada mais é que uma oportunidade institucionalizada para que os super-ricos bem conectados se façam ainda mais ricos”.

O abismo do tempo presente, vislumbrado em diagnósticos de autoras e autores tão distintos em suas influências e fins, não por acaso leva à radicalização dos elementos de crítica presentes na analítica foucauldiana da biopolítica e da governamentalidade, ambas pensadas sob o marco mais geral da emergência de um poder de fazer viver e deixar morrer a população. Não só Brown (2015) decreta a supressão do sujeito de interesse pelo sujeito do sacrifício, também Achille Mbembe acredita, ao debruçar-se sobre as relações de poder em experiências como a “ocupação colonial da Palestina” (MBEMBE, 2011, p. 46), que “a noção de biopoder é insuficiente para refletir as formas contemporâneas de submissão da vida ao poder da morte”. A noção de necropolítica torna-se de uso necessário para pensar “os meios pelos quais, em nosso mundo contemporâneo, as armas são empregadas com o objetivo de uma destruição máxima das pessoas e a criação de mundos de morte, formas únicas e novas de existência social em que as numerosas populações se veem submetidas a condições de existência que as conferem o status de mortos-vivos” (MBEMBE, 2011, p. 74-5).

Também a Crítica da Razão Negra representa uma radicalização do marco conceitual foucauldiano. Para Mbembe, baseado em Foucault, “a economia do poder característica do liberalismo e da democracia do mesmo tipo assenta no jogo cerrado da liberdade, da segurança e da proteção contra a omnipresença da ameaça, do risco e do perigo”, que podem ser diversos, sendo um destes perigos, presente desde a gênese do liberalismo, o “escravo negro” (MBEMBE, 2014, p. 143). Por isso, o “medo racial, em particular, foi sempre um dos pilares da cultura do medo intrínseca à democracia liberal” (MBEMBE, 2014, p. 144). “Permanecerá inacabada a crítica da modernidade”, escreve Mbembe (2014, p. 102) páginas antes, “enquanto não compreendermos que o seu advento coincide com o surgir do princípio de raça e com a lenta transformação deste princípio em paradigma principal, ontem como hoje, para as técnicas de dominação”, princípio de raça entendido como “a forma espectral de divisão e de diferença humana susceptível de ser mobilizada para fins de estigmatização e de exclusão, de segregação, pelos quais tenta isolar, eliminar e, até, destruir fisicamente determinado grupo humano”.

Percebe-se como a reflexão de Fernandes sobre as resistências à mudança e sobre a dominação autocrática apresenta tanto amplas como sutis afinidades com esse conjunto de abordagens mais recentes sobre o estado atual do mundo: o predomínio de uma racionalidade econômica extorsiva e ultraconcentracionista – Arantes (2004, p. 75) nos fala de “dialética da malandragem em escala global”, Streeck em cinismo generalizado – erigida em mentalidade de governo compulsivamente orientada para demarcar a fronteira rígida, no seio das dinâmicas populacionais, entre o que deve viver e o que deve morrer, entre aquelas (es) que têm liberdade de movimento e aquelas (es) fadados à prisão da subsistência, entre, para usar a terminologia de Brown (2015), os sujeitos de interesse e os sujeitos do sacrifício. Para Fernandes tanto como para Mbembe, a raça se apresenta como um dos princípios constitutivos dessa fronteira, desse corte, nas dinâmicas de hierarquização, exploração, dominação e exclusão na modernidade capitalista.

Parece-me que esses elementos são suficientes para suscitar, em leitoras e leitores a questão da generalização da governamentalidade autocrática naquele tempo e em nosso tempo. Há algo de profundamente trágico na atualidade do pensamento crítico e radical por sua riqueza de investigação dos meandros de efetivação da barbárie e do que há de brutal nas práticas humanas, posto que, em seu íntimo, toda crítica genuína deseja, como homenagem póstuma, a sua inatualidade, o seu anacronismo.

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Notas

[1] Obviamente, poderíamos remontar à própria sociologia do desenvolvimento de Costa Pinto e à teoria da dependência, ou mesmo aos avanços introduzidos pela Cepal na crítica à lei das vantagens comparativas, o mesmo intento de fazer, desde as “periferias”, teoria em termos globais. Não só para compreender a singularidade das formações sociais pós-coloniais ou periféricas, mas para inquirir como a singularidade de toda formação sócio-histórica, ao Sul ou ao Norte, à Leste ou Oeste, é produzida por uma articulação ou entrelaçamento com a história englobante da modernidade capitalista, o que de imediato fundamenta o alcance universal das contribuições e descobertas realizadas nas margens do mundo, tomado como um todo integrado ou interdependente.
[2] Se, de fato, a terminologia do governo e da governamentalidade continua a ser utilizada por Foucault em suas obras e cursos posteriores, avançado nos primeiros anos da década de 80, prescindiremos da análise desses por se desatrelarem de uma reflexão sobre processos de formação do estado ou de “estruturas globais de dominação”, na expressão supracitada.
[3] “A economia política, a meu ver, é fundamentalmente o que possibilitou assegurar a autolimitação da razão governamental” (FOUCAULT, 2008b, p. 19); “É isso, a emergência desse regime de verdade como princípio de autolimitação do governo, o objeto que eu gostaria de tratar este ano” (FOUCAULT, 2008b, p. 26); “o princípio da autolimitação da razão governamental” (FOUCAULT, 2008b, p. 28).
[4] “The nature of the institution of the state is, Foucault thinks, a function of changes in practices of government, rather than the converse” (GORDON, 1991, p. 4).
[5] No entanto, o amplo uso de conceitos foucauldianos na obra de um Achille Mbembe (2011, 2014) pode ser lido como sintoma da potencialidade antieurocêntrica presente no programa genealógico.
[6] Em 1962, escreve Fernandes em Economia e Sociedade no Brasil...: do “trabalho escravo ao trabalho livre realizamos todo o progresso aparente da civilização moderna, sem conseguirmos jamais conferir ao trabalho as funções dinamizadoras que ele deveria desempenhar como fator social construtivo” (FERNANDES, 1976a, p. 331).
[7] Fernandes (1978a) escreve, em plenos anos 60, no segundo volume d’A Integração do Negro na Sociedade de Classes: “a sociedade de classes está se convertendo em um sistema social aberto, em termos da organização das relações raciais, mas sem modernizar, a curto prazo pelo menos, os padrões de dominação racial herdados do passado, os quais conferem o monopólio do poder aos círculos dirigentes da ‘raça branca’ e dão a esta a condição quase monolítica da ‘raça dominante’” (FERNANDES, 1978, p. 333). “A ‘cor’ continua a operar como marca racial e como símbolo de posição social, indicando simultaneamente ‘raça dependente’ e ‘condição social inferior’” (FERNANDES, 1978, p. 337).
[8] Deixando claro que a terminologia não deixa de ser utilizada nesses anos: em texto de 1965/1966, A Dinâmica da Mudança Sociocultural no Brasil, Fernandes (2008, p. 111) escreve sobre o “solapamento sistemático de empreendimentos de significação nacional e a resistência sociopática à mudança”. No próprio ensaio de 1967, Fernandes (2008, p. 53) continua a indicar a “intensidade sociopática da resistência à mudança” no capitalismo dependente.
[9] “Elas”, aquelas classes dominantes, continua Fernandes (2013, p. 31), “precisam de um ‘excedente de poder’ (não só econômico, mas especificamente político) para fazer face e, se possível, neutralizar: 1º) as pressões internas dos setores marginalizados e das classes assalariadas; 2º) as pressões externas vinculadas aos interesses das nações capitalistas hegemônicas e à atuação da ‘comunidade internacional de negócios’; 3º) as pressões de um Estado intervencionista, fortemente burocratizado e tecnocratizado, por isso potencialmente perigoso, especialmente se as relações de classes fomentarem deslocamentos políticos no controle societário da maquinaria estatal, transformações nacional-populistas ou revoluções socialistas”. Não é “um mero comitê dos interesses privados da burguesia. Ele se torna uma terrível arma de opressão e de repressão, que deve servir a interesses particularistas (internos e externos, simultaneamente), segundo uma complexa estratégia de preservação e ampliação de privilégios econômicos, socioculturais e políticos de origem remota (colonial ou neocolonial) ou recente” (FERNANDES, 2013, p. 31).


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