Resumo: O campo de estudos de movimentos sociais tem-se caracterizado pela adoção de uma perspectiva analítica movimentocêntrica, que concentra seu foco de análise em características e processos internos aos movimentos sociais e suas organizações, bem como tem privilegiado como objetos de investigação os atores coletivos progressistas ou dominados, secundarizando a análise da mobilização coletiva de setores conservadores ou dominantes da sociedade. Desenvolvido no âmbito de perspectivas relacionais de análise dos movimentos sociais, o conceito de “contramovimentos” oferece ferramentas para superar essas lacunas, ao propor um deslocamento do foco analítico para as relações de conflito entre organizações de movimentos sociais de perfis ideológicos ou de segmentos da população distintos. O objetivo deste artigo é apresentar esse conceito a partir de uma revisão da literatura a respeito: a) de sua apropriação pela literatura nacional e internacional; b) dos debates teóricos em torno de sua definição e explicação; c) e das principais temáticas que têm sido investigadas empiricamente a partir desse conceito.*
Palavras-chave:contramovimentoscontramovimentos,movimentos sociaismovimentos sociais,conflitos sociaisconflitos sociais,sociologia relacionalsociologia relacional.
Abstract: The literature on social movements has tended to adopt a “movement-centric” perspective, which concentrates its analytical focus on the internal characteristics and processes of social movements and their organizations. It has also tended to define as its objects of study the progressive or subaltern collective actors, neglecting the mobilization of dominant or conservative social groups. Developed under relational approaches to social movements, the concept of “countermovements” offers tools to overcome those gaps by moving the analytical focus to the contentious relations between social movement organizations of different ideological orientations or from different social groups. This paper seeks to present this concept by reviewing the literature regarding: a) its appropriation by the national and international literature; b) the theoretical debate over its definition and explanation; and c) the main topics of empirical investigation related to this concept.
Keywords: countermovements, social movements, social conflicts, relational sociology.
Dossiê
Movimentos e contramovimentos sociais: o caráter relacional da conflitualidade social
Social movements and countermovements: The relational character of social conflict
Recepción: 01 Abril 2020
Aprobación: 22 Septiembre 2020
A emergência de “novos personagens” na cena pública dos conflitos sociais no Brasil (Tatagiba, Trindade & Teixeira, 2015), especialmente a partir do ciclo de protestos de 2013, explicitou as fragilidades do campo de estudos de movimentos sociais no Brasil para abordar os processos de organização e mobilização contestatória de segmentos dominantes e/ou conservadores.
Em primeiro lugar, tais processos e seus atores foram tradicionalmente negligenciados pelo campo de estudos de movimentos sociais, que tendeu a concentrar seus foco analítico na mobilização das classes populares e das “minorias”, secundarizando o estudo da mobilização das elites e das classes dominantes; ou seja, secundarizando o que Pichardo (1995) conceitua como elite-driven movements e Boies e Pichardo (1993-1994) denominam de elite social movement organizations. Em segundo lugar, o campo de estudos de movimentos sociais tem dedicado a maior parte de sua atenção à mobilização de grupos progressistas situados à esquerda do espectro político, secundarizando as análises de grupos conservadores à direita do espectro político.[1]
Essa escassa preocupação com os processos de organização e mobilização social contestatória de grupos dominantes e/ou conservadores pode ser interpretada como decorrência de uma tendência problemática da literatura de movimentos sociais: privilegiar determinados atores (em geral, dominados que se organizam e mobilizam visando a produção de mudanças sociais a partir de uma agenda progressista) e não o campo relacional que se estrutura em torno dos conflitos sociais, com seus diversos atores interdependentes. Tal tendência tende a produzir uma perspectiva analítica movimentocêntrica, caracterizada pela concentração do foco de análise em características e processos internos aos movimentos sociais ou, mais comumente, às organizações de movimentos sociais (OMSs). A partir da identificação e análise de tais características e processos, os pesquisadores buscariam explicar a formação, o desenvolvimento e/ou os resultados da atuação dos movimentos ou das OMSs. Tal perspectiva movimentocêntrica dificulta, assim, a identificação e análise das relações de interdependência entre os atores envolvidos nos processos conflitivos.
O objetivo deste artigo é apresentar e analisar uma ferramenta teórica – o conceito de contramovimento social[2] – que parece contribuir para confrontar essa tendência, instrumentalizando uma apreensão relacional dos processos conflitivos nos quais se constituem e inserem os movimentos sociais. Tal conceito possibilita ampliar a perspectiva relacional para além das relações entre movimentos sociais e Estado, ao mesmo tempo em que complexifica a análise de tais relações (Van Dyke, Soule & Taylor, 2004). Argumenta-se que a introdução do conceito de contramovimento social no campo de estudos de movimentos sociais possibilita uma qualificação dos modelos teóricos, instrumentalizando as pesquisadoras para apreender e analisar configurações conflitivas que não se adequam à perspectiva simplista dos modelos bipolares “movimentos sociais versus Estado”. Esse conceito permite, ainda, analisar as relações entre grupos societais opositores, organizados e mobilizados em torno de determinada temática, e Estados/governos, que podem se aliar a um desses grupos ou, ainda, ser atravessados pelo conflito entre movimentos e contramovimentos, em um processo capaz de colocar em conflito setores da própria burocracia estatal.
Para desenvolver essa apresentação e análise do conceito de contramovimentos sociais, o artigo encontra-se estruturado da seguinte forma: a próxima seção apresenta uma rápida caracterização da trajetória da discussão sobre contramovimentos na literatura internacional e nacional; a segunda seção analisa as diversas definições do conceito e os modelos formulados para explicar a formação, o desenvolvimento e os resultados dos contramovimentos; a seção seguinte aborda alguns temas que têm sido investigados pela literatura de contramovimentos e discute tópicos que expressam tendências contemporâneas dessa literatura; por fim, são apresentadas considerações finais dialogando com a revisão e a argumentação desenvolvidas ao longo do artigo.
A partir da pesquisa bibliográfica realizada[3], observa-se que a construção e o emprego do conceito de “contramovimento” social tendem a concentrar-se quase exclusivamente na literatura norte-americana. No caso brasileiro e, mais amplamente, latino-americano, o uso desse conceito é não só muito recente, mas também pouco expressivo quantitativamente (Inclán, 2012).
No campo de estudos de movimentos sociais dos Estados Unidos, esse conceito possui uma longa trajetória, que se inicia nos anos 1950. Apesar de autores como Albrecht (1972) fazerem referência ao texto de Killian (1964) como aquele que teria introduzido o conceito na literatura norte-americana, identificou-se no artigo de Zanden (1959) uma referência mais antiga ao conceito de “contramovimento”. Nesse artigo, o autor parte de uma crítica à tendência da literatura de movimentos sociais da época de concentrar-se unicamente nos movimentos sociais voltados à produção de mudanças sociais, deixando de lado os contramovimentos de resistência às mudanças. Em oposição a essa tendência, o autor argumenta que
Em um mundo caracterizado por profundas transformações e convulsões sociais, nas quais as dinâmicas de movimento e contramovimento se tornaram crescentemente inescapáveis em suas consequências cotidianas, a resistência à mudança social se tornou um fenômeno que apresenta desafios crescentes para os sociólogos (Zanden, 1959, p. 315, tradução nossa).
Apesar dessa defesa enfática de Zanden (1959) sobre a necessidade de pesquisas sobre a relação movimento-contramovimento, observa-se uma escassa produção teórica e empírica sobre o tema na sociologia norte-americana dos movimentos sociais ao longo das décadas de 1960 e 1970, nas quais se destacam os trabalhos de Albrecht (1972), McCarthy e Zald (1977), Turner e Killian (1972) e Warnick (1977).
Nos anos 1980 também não se observa uma produção significativa sobre o tema. Os destaques, nesse período, são dois artigos teóricos que buscam desenvolver o conceito de contramovimentos sociais. O primeiro artigo é o de Mottl (1980). Nesse texto, o autor estabelece uma definição de contramovimentos sociais bastante influente e que será rediscutida na próxima seção: contramovimentos são definidos como ações de reação contra tentativas de produção de mudanças sociais por parte dos subalternos e, assim, são intrinsicamente conservadores e realizados por atores que buscam preservar o status quo.
É em função dessa interpretação do conceito de “contramovimento” que se abriu um espaço importante na literatura de movimentos sociais norte-americana para o tratamento dos processos de organização e mobilização contestatória conservadores, de direita ou de setores/classes dominantes[4], algo que não se observa na literatura latino-americana até muito recentemente.
O segundo artigo de destaque no período é o de Lo (1982). Propondo uma abordagem distinta de Mottl, a autora argumenta que definir contramovimentos como opositores à mudança social tende a obscurecer que, assim como movimentos sociais, contramovimentos tanto resistem a algumas mudanças quanto defendem outras (Lo, 1982, p. 118). Assim, para Lo, um contramovimento se define por surgir em oposição a outro movimento social, sem que haja nele um caráter ideológico (conservador, de direita, reacionário) pré-determinado.
Assim como nas décadas anteriores, a produção sobre contramovimentos na literatura norte-americana é pequena nos anos 1990. O principal destaque desse período é o artigo de Meyer e Staggenborg (1996), referido por diversos autores como a principal elaboração teórica sobre o conceito (Reynolds-Stenson & Earl, 2018) e tendo se tornado o artigo de referência para a literatura posterior. Além de desenvolverem o debate sobre a definição do conceito, Meyer e Staggenborg (1996) formulam um conjunto de hipóteses teóricas relacionadas ao surgimento de contramovimentos, ao seu desenvolvimento, às relações que estabelecem com movimentos opositores, às relações que estabelecem com governos e oportunidades políticas e aos seus resultados. Tais hipóteses vão orientar grande parte dos estudos empíricos e das discussões teóricas futuras.
A partir dos anos 2000, observa-se um conjunto crescente de produções sobre as interações entre movimentos e contramovimentos em diversos campos de conflito: ambiental (Austin, 2002; Farrell, 2016); gênero (Banaszak & Ondercin, 2010; McCaffrey & Keys, 2000; Rohlinger, 2002); sexualidade (Dorf & Tarrow, 2014; Fetner, 2001, 2008; Werum & Winders, 2001); raça (Andrews, 2002; Gallagher, Reagan, Danforth & Dodds, 2018; Luders, 2003; McVeigh, Cunningham & Farrell, 2014); moradia (Lind & Stepan-Norris, 2011); e extrema-direita (Vann Jr., 2018). Esse crescimento pode ser associado à emergência de diversas perspectivas relacionais no campo de estudos de movimentos sociais (Barcelos, Pereira & Silva, 2016), tais como a perspectiva do confronto político (McAdam, Tarrow & Tilly, 2001). Apesar dessa proliferação de estudos, diversos autores enfatizam a escassez de pesquisas empíricas ou o subdesenvolvimento teórico da literatura de contramovimentos sociais (Austin, 2002; Dorf & Tarrow, 2014; Fetner, 2001; Rohlinger, 2002).
Quando se observa a literatura latino-americana, o resultado é bastante distinto. As escassas produções encontradas são bastante recentes e, em geral, não há um aprofundamento teórico em relação ao conceito de contramovimento social. Na maior parte dos casos, há uma mobilização do conceito apenas para nomear um campo de atores do conflito sob análise.
Na pesquisa sobre a literatura brasileira e latino-americana realizada através de repositórios de periódicos e de teses e dissertações, foram encontradas apenas nove produções que mobilizam, direta ou indiretamente, a discussão sobre contramovimentos sociais (Alonso, 2014; Inclán, 2012; Malagón Penen, 2018; Pereira, 2018; Rezende, 2016; Ruibal, 2014, 2015; Szwako, 2014; Vaggione, 2012).[5]
Em suma, a trajetória do conceito de contramovimentos na literatura norte-americana tem suas origens no período entre o final dos anos 1950 e os anos 1990. Porém, é a partir dos anos 2000, em diálogo com o fortalecimento de perspectivas relacionais nesse campo de estudos, que o conceito passa a ganhar maior atenção de pesquisadores de movimentos sociais. No cenário brasileiro e, mais amplamente, latino-americano, porém, essa ferramenta conceitual ainda tem sido pouco explorada em estudos empíricos e elaborações teóricas sobre movimentos sociais.
Para estruturar a caracterização do debate sobre o conceito de contramovimentos sociais na literatura analisada optou-se por separar esta seção em duas subseções: a primeira aborda os debates em torno da definição do conceito de contramovimento; a segunda apresenta alguns modelos analíticos e hipóteses voltados à explicação da constituição, desenvolvimento e resultados dos contramovimentos.
Como o próprio termo indica, o conceito de “contramovimento” parte do argumento de que a conflitualidade na qual se constroem os movimentos sociais também tende a gerar processos de construção de organizações e mobilizações de oposição àqueles: os contramovimentos sociais (Lind & Stepan-Norris, 2011; Lo, 1982). Assim, um elemento comum a todas as definições de contramovimentos é que estes se constroem em relação de oposição e conflito com movimentos sociais que desafiam ou ameaçam interesses, valores, modos de vida, posição social, entre outros aspectos, de determinado segmento da sociedade.
Outro elemento comum à literatura é o argumento de que, sendo uma ação coletiva de caráter contestatório assim como o movimento social a que se opõe, o processo de organização e mobilização de um contramovimento social tende a apresentar fortes similaridades com o que se observa no caso dos movimentos. Nesse sentido, os mesmos modelos analíticos que são utilizados para abordar a formação, desenvolvimento e resultados dos movimentos poderiam ser utilizados para abordar os contramovimentos (Ruibal, 2014).
Porém, a literatura se divide no que se refere à vinculação do conceito de “contramovimentos” a uma posição ideológica e/ou a um grupo social específico. Em uma primeira posição nesse debate, “contramovimentos” são definidos como ações coletivas contestatórias dotadas de uma posição ideológica específica (conservadora, reacionária ou de direita) ou como processos de mobilização protagonizados por um segmento social particular (elites e classes ou grupos dominantes). Essa definição tende a estar relacionada a uma concepção de “movimento social” também marcada por um perfil ideológico determinado (transformador, progressista ou de esquerda) e/ou vinculado a um segmento social específico (grupos subalternos, dominados ou “minoritários”).
Uma vez que, para autores que defendem essa definição conceitual, movimentos sociais são ações coletivas contestatórias, por parte de segmentos dominados, voltadas a produzir mudanças sociais de caráter progressista, os contramovimentos naturalmente se definiriam como ações coletivas contestatórias, por parte de segmentos dominantes, voltadas a impedir ou reverter aquelas mudanças sociais (Austin, 2002; Dorf & Tarrow, 2014; Jasper & Poulsen, 1993; Lim, 2017; McCarthy & Zald, 1977; McGlen & O’Connor, 1988).
Autores que definem contramovimentos como um repertório de ação coletiva contestatória de grupos conservadores ou dominantes sugerem que eles detêm algumas características próprias que os distinguiriam dos movimentos sociais (definidos como ação coletiva contestatória dos dominados). Boies e Pichardo (1993) e Pichardo (1995), por exemplo, argumentam que contramovimentos construídos e desenvolvidos por elites se baseiam fortemente nos recursos que essas elites podem mobilizar em função do seu poder econômico. Nesse sentido, ao contrário dos movimentos sociais dos dominados, que dependem centralmente de sua capacidade de mobilização de pessoas, os contramovimentos de elites tenderiam a ser compostos por organizações profissionalizadas cuja atuação e impacto dependeriam menos da visibilidade produzida pelo uso de repertórios de confronto e mais pela mobilização de diversos recursos de poder controlados pelas elites (acesso à mídia e às instituições estatais; formação e contratação de profissionais qualificados; financiamento de pesquisas, campanhas publicitárias e candidaturas políticas etc.).
Já Warnick (1977) destaca que os movimentos conservadores de resistência às mudanças sociais, que ela define como contramovimentos (1977, p. 257), tendem a se caracterizar por uma retórica específica, marcada por um conteúdo moral. Devido a essa característica, os contramovimentos tenderiam à radicalização e à polarização política, uma vez que sua retórica moral enquadraria o conflito como uma disputa entre um “mal” e um “bem” absolutos, sem a possibilidade de construção de acordos ou saídas negociadas (Warnick, 1977).
Porém, conforme salientado anteriormente, uma parte da literatura rejeita o argumento de que contramovimentos possuiriam características ideológicas ou seriam protagonizadas por grupos sociais predeterminadas, sustentando uma segunda posição nesse debate (Andrews, 2002; Lo, 1982; Meyer & Staggenborg, 1996; Werum & Winders, 2001). Para esses autores, a definição de uma ação coletiva contestatória como um contramovimento envolve dois critérios. Em primeiro lugar, um critério cronológico; ou seja, o contramovimento se constrói posteriormente e em resposta ao movimento social a que se opõe. Em segundo lugar, tal definição envolve um critério relacional, ou seja, o contramovimento constrói seus enquadramentos interpretativos, estruturas organizativas e repertórios de ação em referência direta ao movimento social opositor. Essa definição de “contramovimento” pode ser associada a uma definição de “movimento social” que rejeita sua associação exclusiva a projetos de transformação social de grupos progressistas ou subalternos (Jasper, 2016; Snow & Soule, 2010).
Ainda dentro dessa segunda posição, encontram-se na literatura autoras (Fetner, 2001; Meyer & Staggenborg, 1996) que defendem a restrição do uso do conceito de “contramovimento” aos estágios iniciais de construção de um confronto político entre forças sociais oponentes, enfatizando-se a precedência de um grupo mobilizado sobre outro. Porém, na medida em que o confronto se mantém e se desenvolve, esses autores propõem a utilização do conceito de “movimentos opositores”, que “se influenciam mutuamente tanto de forma direta quanto ao alterar o ambiente no qual cada um dos lados age” (Meyer & Staggenborg, 1996, p. 1634, tradução nossa).
Em suma, a literatura parece apontar para um consenso na definição de contramovimentos como esforços de oposição a movimentos sociais, bem como na defesa de que ferramentas analítico-conceituais utilizadas para o estudo de movimentos também podem ser aplicadas para contramovimentos. Porém, há uma controvérsia na literatura sobre a vinculação exclusiva do conceito de “contramovimentos” a processos de mobilização coletiva de grupos de dominantes e/ou conservadores.
Partindo do pressuposto relacional de que nas relações de confronto se constroem não apenas movimentos sociais, mas também podem se construir contramovimentos oponentes, a literatura de contramovimentos sociais desenvolveu diversos argumentos, hipóteses e modelos explicativos para apreender e analisar como tal processo de construção ocorre.
Um elemento recorrente nas análises sobre contramovimentos refere-se à centralidade das ameaças constituídas pelos movimentos sociais como um elemento explicativo para a constituição dos primeiros[6]. Na medida em que se define o contramovimento como uma ação coletiva de oposição à mobilização prévia de um movimento social, a probabilidade que tal ação coletiva ocorra dependeria do grau de ameaça atribuído àquela mobilização prévia (Reynolds-Stenson & Earl, 2018).
Porém, observa-se na literatura analisada uma divergência entre dois argumentos sobre como se estrutura a relação entre a emergência de um movimento social e a constituição de um contramovimento opositor. Tal divergência refere-se a dois entendimentos distintos sobre a causa geradora do sentido de ameaça que motivaria a constituição de um contramovimento social.
O primeiro argumento estabelece que a emergência e visibilidade de um movimento social, em si própria, seria uma condição suficiente para que se construísse um contramovimento social (Banaszak & Ondercin, 2010). Ao começar a agir na defesa de certas demandas e propostas, um movimento social criaria ameaças para aqueles segmentos da população que veem seus modos de pensar, suas práticas e/ou seus interesses afetados negativamente por tais demandas e propostas. Ao definir determinadas situações ou condições sociais como problemáticas, o movimento social geraria um referente identitário para a reunião e mobilização daqueles que se beneficiam de ou valorizam aquelas situações ou condições.
Outros autores, por sua vez, defendem o argumento de que não seria a emergência e visibilidade em si dos movimentos sociais o elemento central para a constituição de um contramovimento. Para tais autores, o elemento central seria a conquista de determinados êxitos por parte de um movimento, pois essas conquistas criariam as condições para a constituição de um contramovimento entre aqueles que se identificam como ameaçados por tais êxitos (Banaszak & Ondercin, 2010; Rezende, 2016; Vaggione 2012). Ou seja, para esses autores são as conquistas de um movimento que tornam uma preocupação genérica em um ameaça concreta e urgente, oportunizando a constituição de um contramovimento social.
Na medida em que grande parte das demandas e propostas dos movimentos sociais são direcionadas ao Estado, essa parte da literatura enfatiza que a resposta do Estado àquelas demandas e propostas é um elemento fundamental para a conquista de resultados positivos por parte dos movimentos sociais e, assim, para oportunizar a emergência de contramovimentos sociais em oposição a tais conquistas (Inclán, 2012). Apenas quando a ação do Estado começa a ser interpretada como favorável às demandas dos movimentos, indicando a relevância política dos mesmos, é que se colocaria um sentido de ameaça que mobilizaria a formação de um contramovimento social (Lim, 2017).
Nessa linha, para Zald e Useem (1983), a tendência dos grupos confrontados pelas demandas dos movimentos sociais (em especial, grupos conservadores ou de elite) é, inicialmente, considerar que seus interesses serão defendidos e assegurados pelas autoridades estatais. Além disso, tais grupos tendem a usar os mecanismos institucionais disponíveis, antes de recorrerem à ação coletiva contestatória.
A centralidade atribuída por essa literatura à emergência e ao sucesso de um movimento como “causa” de um contramovimento, no entanto, parece contradizer a observação de que nem todos os movimentos sociais ou suas campanhas, mesmo quando efetivas, confrontam contramovimentos organizados. Assim, da mesma forma que a literatura sobre movimentos sociais tem destacado que “problemas sociais” não explicam a mobilização coletiva, parte da literatura sobre contramovimentos também destaca que a mera existência de um “problema” (no caso, a ameaça constituída pela emergência e/ou as conquistas de um movimento social) tende a não ser uma condição suficiente para a constituição de um contramovimento social.
Nesse sentido, essa literatura indica diversas condições ou mecanismos que, junto com a atribuição da ameaça representada por um movimento, devem operar para que se produza um contramovimento em uma relação de confronto. McGlen e O’Connor (1988), por exemplo, enfatizam a importância da forma como as demandas de um movimento social serão enquadradas (pelo movimento, pela mídia, pelo governo, pela opinião pública, pelos oponentes etc.) para a definição da forma como o conflito irá (ou não) se estruturar. Já Lim (2017), McGlen e O’Connor (1988) e Zald e Useem (1983) destacam a importância da existência de organizações previamente constituídas que possam ser apropriadas e utilizadas como estruturas de mobilização por parte dos agentes que atuam com a intencionalidade de construir um contramovimento. Meyer e Staggenborg (1996), por sua vez, salientam a disponibilidade de aliados políticos como um aspecto importante para a constituição de um contramovimento. Os mesmos autores (1996) apresentam, ainda, quatorze proposições de hipóteses que, no seu conjunto e interrelação, explicariam a constituição e desenvolvimento dos contramovimentos sociais. Dessa forma, essa literatura parece reafirmar que aspectos que têm sido apontados como importantes para o surgimento de um movimento social – como enquadramentos interpretativos, redes sociais mobilizáveis e oportunidades políticas – também são essenciais para o desenvolvimento de um contramovimento.
Em suma, como se observa a partir desta rápida síntese, a formação e o desenvolvimento de um contramovimento social, assim como em toda forma de ação coletiva contestatória, são processos complexos, que envolvem diversas condições e mecanismos. Destaca-se a importância da emergência e do fortalecimento de um movimento social como condições básicas para o surgimento de um contramovimento. Porém, a literatura tem indicado que a existência ou as vitórias de um movimento social não explicam por si sós a emergência de seus opositores, já que a contramobilização também depende de mecanismos básicos que sustentam a mobilização, tais como o desenvolvimento de enquadramentos interpretativos, a apropriação de redes sociais e a atribuição de oportunidades e ameaças (McAdam, Tarrow & Tilly, 2001).
Um primeiro tema discutido pela literatura sobre “contramovimentos” se refere aos impactos desses movimentos. A perspectiva relacional subjacente à literatura de contramovimentos coloca como um tema central de estudo os resultados produzidos pelos efeitos combinados da ação de movimentos e contramovimentos, distanciando-se de perspectivas segundo as quais movimentos sociais produzem efeitos de forma isolada, sem a interferência de outros atores, como seus opositores (Andrews, 2002; Banaszak; Ondercin, 2010).
A partir do foco nas relações de conflito entre movimentos e contramovimentos, diversos estudos chamam a atenção para a importância de analisar os efeitos não intencionais gerados pela dinâmica relacional entre movimentos opositores, os quais, por vezes, podem ser opostos aos resultados buscados pelos movimentos e contramovimentos (Dorf & Tarrow, 2014; Fetner, 2001; Vann Jr., 2018).
A própria emergência de um contramovimento já é identificada e analisada por essa literatura como um resultado não intencional da constituição e atuação de um movimento social (Andrews, 2002; Jasper & Poulsen, 1993). Nesse sentido, por exemplo, Vaggione (2012) demonstra como as mobilizações dos movimentos feminista e de diversidade sexual na América Latina produziram não apenas conquistas em termos de políticas públicas e novas legislações, mas também oportunizaram uma politização reativa de setores religiosos conservadores em oposição àquelas conquistas. De forma mais geral, Andits (2015, p. 10, tradução nossa) argumenta que “a presença de oponentes não estatais forneceu uma oportunidade para que organizadores repensassem seus enquadramentos e estratégias e mobilizassem apoiadores”, podendo a mobilização de um movimento ser uma oportunidade e não um obstáculo para um contramovimento.
Alguns autores ampliam essa discussão ao abordarem casos em que a mobilização contestatória de um determinado movimento ou contramovimento gerou um processo conflitivo no qual seus oponentes acabaram sendo favorecidos e, assim, saíram vitoriosos do confronto. Dorf e Tarrow (2014), por exemplo, mostram como a campanha vitoriosa pelo casamento de pessoas do mesmo sexo nos Estados Unidos nasce como uma resposta do movimento LGBT a uma mobilização conservadora inicial que colocou na agenda política o tema do casamento de pessoas do mesmo sexo (que, na época, não era um tema central para o movimento LGBT). Fetner (2001), por sua vez, analisa como o contramovimento “anti-gay” norte-americano acabou sendo útil para seus oponentes ao oferecer personagens concretos que corporificavam, de forma radicalizada, o preconceito e o ódio contra pessoas LGBT. Por fim, Vann Jr. demonstra como a mobilização do movimento conservador Tea Party nos Estados Unidos acabou contribuindo para uma contramobilização eleitoral de seus oponentes, fortalecendo a votação no Partido Democrata.
O foco no tema das consequências não intencionais que se produzem nas relações de conflito entre movimentos e contramovimentos possibilita, assim, uma perspectiva analítica mais qualificada para apreender as contingências e os imprevistos do confronto político, que dificilmente se limitam aos resultados intencionalmente planejados pelos agentes envolvidos.
Um segundo tema que se destaca nessa literatura é o das “batalhas de enquadramentos” que se produzem nas dinâmicas conflitivas entre movimentos e contramovimentos (Austin, 2002; Farrell, 2016; Fetner, 2001, 2008; McCaffrey & Keys, 2000; Rezende, 2016; Rohlinger, 2002). Na medida em que os enquadramentos são produzidos relacionalmente, movimentos e contramovimentos estão continuamente monitorando, avaliando e respondendo aos enquadramentos veiculados por seus oponentes. Um caso notório de “batalhas de enquadramento” pode ser encontrado nos slogans de dois movimentos opositores na temática dos direitos reprodutivos: aquele que se autodenominou de pro-life e aquele que se denominou de pro-choice (Rohlinger, 2002). Essas batalhas podem ser determinantes para definir os resultados do confronto entre movimentos opositores. Rohlinger (2002), por exemplo, argumenta que a capacidade de adaptação dos enquadramentos de uma OMS a diversos fatores, dentre eles os enquadramentos desenvolvidos por contramovimentos, é um dos aspectos que contribuem para que essa organização tenha sucesso em atrair uma cobertura ampla e favorável da mídia de massa.
Um terceiro tema abordado pela literatura sobre contramovimentos é o da construção de protestos e repertórios de ação de movimentos opositores. Assim como os enquadramentos, a construção dos repertórios de ação também é abordada como um processo relacional por essa literatura. As definições sobre como e quando realizar ações coletivas confrontacionais dependeriam não apenas das intencionalidades e estratégias dos movimentos, mas também das ações desenvolvidas por seus opositores. Nesse sentido, um tema de destaque na literatura analisada é o das contramanifestações: a mobilização contestatória para confrontar diretamente a manifestação pública de oponentes (Gallagher & Reagan; Danforth & Dodds, 2017; Reynolds-Stenson & Earl, 2018).
Na medida em que a atuação dos agentes estatais é interpretada como um aspecto central na estruturação, desenvolvimento e resultado das relações de confronto entre movimentos e contramovimentos, um quarto tema que ganha destaque na literatura é a relação entre movimentos opositores e processos eleitorais (Rezende, 2016).
Dentro desse tema, autores como McVeigh, Cunningham e Farrell (2014) analisam como a presença e atuação de um contramovimento de oposição à igualdade racial (no caso, expresso pela OMS Ku Klux Klan no sul dos Estados Unidos) produziu um realinhamento político-eleitoral com impactos de longo prazo, que se estendem inclusive após o desaparecimento da organização. Tal realinhamento gerou um deslocamento do voto de parte do eleitorado que se identificava com esse contramovimento e que tradicionalmente votava no partido Democrata, para o Partido Republicano, que passa a ser interpretado como aliado da causa defendida pelo contramovimento.
De forma semelhante, McAdam e Kloos (2014) argumentam que a ampliação da polarização eleitoral entre os partidos Democrata e Republicano nos Estados Unidos é resultado da crescente influência de movimentos opositores que se mobilizaram, em especial, em torno de questões raciais nesse país. Assim, de acordo com os autores “na medida em que a política dos movimentos tem crescentemente desafiado as tradicionais lógicas pragmáticas e centristas da política eleitoral, o Partido Republicano passou a temer muito mais sua base movimentalista em comparação ao cada vez menos relevante ‘eleitor médio’” modificando assim suas estratégias (McAdam & Kloos, p. 17, tradução nossa). Enquanto esses autores descrevem os impactos dos confrontos entre movimentos opositores sobre a política eleitoral, Rezende (2016) aborda como os ciclos eleitorais se constituem em momentos importantes para a (re)configuração das disputas entre movimentos e contramovimentos. Por fim, Vann Jr. (2018) analisa como a mobilização de um movimento pode gerar o efeito não intencional de intensificar a mobilização eleitoral de seus opositores para votarem em partidos também opositores.
Assim como a política partidária apresenta diversas relações com os confrontos entre movimentos e contramovimentos sociais, um quinto e último tema a ser destacado na literatura analisada é o das relações que movimentos opositores estabelecem com o campo jurídico e seus agentes. Nesse tema, destacam-se os trabalhos de Ruibal (2014, 2015) sobre os processos de mobilização e contramobilização legal[7] nos conflitos entre movimentos feministas e contramovimentos religiosos conservadores na América Latina. Para Ruibal (2015), os mesmos processos que ampliaram as oportunidades legais para a judicialização das demandas dos movimentos sociais progressistas teriam oportunizado também que contramovimentos conservadores construíssem suas estratégias e repertórios de contramobilização legal.
Em suma, diversas possibilidades de investigação empírica têm sido exploradas por estudiosos da relação entre movimentos e contramovimentos. Em primeiro lugar, destacam-se na literatura estudos sobre os efeitos combinados e não intencionais das dinâmicas de confronto entre movimentos opositores. Em segundo lugar, a literatura tem analisado como movimentos e contramovimentos respondem uns aos outros em “batalhas de enquadramento”. Um terceiro tema investigado pela literatura é a construção relacional de repertórios de ação e, de forma mais específica, o fenômeno das contramanifestações. Um quarto tema que se destaca nessa literatura é o estudo das relações das múltiplas influências entre movimentos, contramovimentos e a “política dos gabinetes”. Por fim, estudos recentes têm investigado as batalhas jurídicas travadas entre movimentos opositores.
A partir da argumentação desenvolvida, é possível destacar três considerações para finalizar este artigo. Primeiramente, defende-se a necessidade de uma incorporação do conceito de contramovimento social e, mais amplamente, da perspectiva relacional da conflitualidade que subjaz ao mesmo pelos estudos de movimentos sociais na América Latina. Mesmo que sintética, a apresentação do debate sobre contramovimentos permite identificar diversas potencialidades analíticas, que enriqueceriam as análises tanto em termos teóricos como em termos metodológicos.
Situar os movimentos sociais em campos multiorganizacionais, conformados por diversos agentes interdependentes que se constituem e atuam em relações conflitivas possibilita a ruptura com a perspectiva movimentocêntrica que caracterizou e ainda caracteriza parcela importante da literatura de movimentos sociais. Conceder centralidade analítica aos oponentes dos movimentos sociais, seja na forma de contramovimentos sociais ou não, possibilita ampliar o foco relacional dos conflitos para além da díade movimento social-Estado. A incorporação dos oponentes dos movimentos sociais nas análises possibilita, também, superar outra importante lacuna da literatura sobre movimentos sociais: a secundarização de análises sobre a ação coletiva contestatória de grupos conservadores ou dominantes da sociedade. Ainda, abordar as disputas entre movimentos e contramovimentos não apenas no âmbito societário, mas também por e com apoios de agentes estatais possibilita complexificar as análises sobre processos conflitivos que envolvem coalizões de atores estatais e societários contra coalizões oponentes que também atuam na sociedade e no Estado.
A segunda consideração, no entanto, remete à necessidade de não tomar o conceito de contramovimentos como o único capaz de descrever de forma satisfatória a ação política de grupos conservadores e setores dominantes. Nesse ponto, é possível destacar as contribuições de Offerlé (2015) que argumenta que, embora o campo de estudo de movimentos sociais tenha se dedicado à análise de movimentos conservadores, poucos estudos buscaram compreender através do ferramental teórico-conceitual desenvolvido nesse campo outras formas de mobilização das elites, como o “militantismo patronal”, que busca promover os interesses e causas do empresariado por meio da ação coletiva de sindicatos e organizações patronais. O associativismo empresarial destacado pelo autor é apenas um dos exemplos de um amplo repertório de ações políticas conservadoras e de elite que não se limita aos contramovimentos, incluindo táticas como a mobilização midiática e o lawfare.
Dessa forma, argumentamos que, assim como nem tudo que se movimenta é um movimento social, nem toda ação política conservadora ou protagonizada por grupos dominantes é um contramovimento social e, portanto, não consideramos analiticamente profícuo o uso indiscriminado desse conceito para fenômenos de naturezas diversas. Concebemos, portanto, os contramovimentos como uma forma de ação contenciosa dentre as muitas existentes no amplo repertório da conflitualidade social contemporânea. O conceito de “contramovimentos” é apenas um dos elementos de uma vasta “caixa de ferramentas” conceitual que permite pensar os movimentos sociais de forma relacional.
Por fim, a terceira consideração, relacionada à anterior, é a defesa da necessidade de atentar empírica e teoricamente às especificidades da conflitualidade presente nos países latino-americanos, os quais se encontram entre os mais desiguais e violentos do mundo, neste processo de incorporação do conceito de contramovimentos sociais. Ou seja, a necessidade de atentar às configurações específicas da conflitualidade social e política em países nos quais a grande maioria da população não goza de um efetivo estatuto de cidadania, estando sujeita a violações diversas por parte de agentes estatais e societários.
A partir dessa preocupação, coloca-se a questão sobre o lugar e o significado dos contramovimentos sociais em um país como o Brasil, particularmente no que se refere ao repertório de ação coletiva contenciosa dos seus segmentos dominantes. Quando e como (se é que) tais segmentos recorrem à constituição de contramovimentos sociais? Como essa forma de ação contenciosa se relaciona a outras formas de ação tradicionalmente mobilizadas por esses segmentos na defesa ou promoção de seus interesses, tais como a violência direta contra opositores, a mobilização social de massa com objetivo de promover rupturas institucionais, a mobilização midiática como instrumento de disputa da opinião pública, a instrumentalização política do aparato jurídico-repressivo do Estado, o associativismo das elites empresariais, entre outros?
Para responder a essas questões, é preciso uma perspectiva de análise que incorpore as contribuições da literatura de contramovimentos e, ao mesmo tempo, conceda um estatuto analítico às características particulares do confronto político em países como o Brasil, rompendo com as tradicionais perspectivas que analisam tais particularidades a partir das ideias de falta, atraso ou incapacidade. Nesse sentido, é necessário que a incorporação do conceito de contramovimentos aos modelos de análise do confronto político no Brasil e, mais amplamente, na América Latina seja feita de forma problematizadora. É necessário, portanto, questionar se e como a forma específica de configuração do conflito social apreendida pelo conceito de contramovimentos se manifesta nos países latino-americanos, relacionando-o a outros conceitos que apreendem formas de ação distintas presentes na configuração da conflitualidade nesses países, como assassinato político, golpes de Estado e lawfare.