Dossiê
Entre o “cuidado da casa comum” e a “psicose ambientalista”: disputas em torno da ecoteologia católica no Brasil
Between “Care of the Common House” and “Environmental Psychosis”: Disputes Around Catholic Ecotheology in Brazil
Entre o “cuidado da casa comum” e a “psicose ambientalista”: disputas em torno da ecoteologia católica no Brasil
Revista Brasileira de Sociologia, vol. 8, núm. 20, pp. 78-101, 2020
Sociedade Brasileira de Sociologia
Recepción: 01 Mayo 2020
Aprobación: 02 Octubre 2020
Resumo: O artigo discute os conflitos de enquadramento e contraenquadramento desencadeados pela mobilização da Igreja Católica no Brasil em torno das questões ambientais. O primeiro passo consiste em mostrar como sacerdotes brasileiros manejaram, ao longo das últimas décadas, as molduras interpretativas estabelecidas pela ecoteologia católica oficial, elaborada no Vaticano. Em seguida, a análise se desloca para as principais características das contestações antiambientalistas encampadas pelo Instituto Plinio Corrêa de Oliveira (IPCO), uma espécie de thinktank do conservadorismo católico brasileiro. Por fim, são examinadas algumas das convergências entre os enquadramentos propostos pelo IPCO e pelo atual governo federal brasileiro.
Palavras-chave: religião e ambientalismo, ecoteologia, disputas de enquadramento.
Abstract: The article aims to discuss the conflicts of framing and counter-framing raised by the environmental mobilization of the Catholic Church in Brazil. In the first part, it is presented how the Brazilian priests maneuvered, in the last decades, the frameworks established by the official Catholic ecotheology created in the Vatican. Then, the analysis proceeds to the main characteristics of the anti-environmentalist contests carried out by the Instituto Plinio Corrêa de Oliveira (IPCO) [Plinio Corrêa de Oliveira Institute], a kind of think tank of Brazilian Catholic conservatism. Finally, some convergences between the frames proposed by the IPCO and members of the current federal government in Brazil are examined.
Keywords: Religion and Environmentalism, Ecotheology, Frame Disputes.
Introdução
O ativismo religioso em torno das causas ambientais é um fenômeno crescente e tem sido amplamente documentado em diversos contextos ao redor do mundo (Veldman, Szasz & Haluza-Delay, 2016; Ellingson, 2016; Kearns & Kyle, 2018; Santos, 2017). Em meio a essas iniciativas, a atuação da Igreja Católica vem tendo grande destaque. Documentos até então pouco conhecidos, como encíclicas papais, passaram a ser debatidos e difundidos tanto por católicos quanto por membros de outras religiões, e até mesmo por ambientalistas e parcelas da comunidade científica que não se identificam com qualquer denominação religiosa (Santos, 2019, p. 88).
Não é o apenas o lado simpático à causa ambiental, contudo, que apela às diretrizes religiosas. No Brasil, um dos representantes do contramovimento ambientalista é um coletivo de caráter religioso: o Instituto Plinio Correa de Oliveira (IPCO), espécie de think tank do conservadorismo católico brasileiro. A despeito do conjunto de variáveis políticas, teológicas, culturais e geográficas que perpassam o ambientalismo católico, culminando em distintas ênfases e agendas nos diferentes contextos locais, são poucos os que se dedicam a uma negação tão contundente da pauta ecológica como faz o IPCO. Sendo assim, suas contestações ao engajamento ambiental não devem ser encaradas como o segundo lado de uma disputa binária, mas como um lócus significativo justamente pela oposição frontal à corrente hegemônica (pró-ambiental).
Outro fator importante na escolha por analisar esse instituto é sua atual ressonância entre os representantes do poder executivo nacional. Dentre os livros publicados pelo IPCO para tratar do tema, está o Psicose ambientalista. os bastidores do ecoterrorismo para implantar uma “religião” ecológica, igualitária e anticristã (Bragança, 2017), recorrentemente citado nas contraposições que o atual presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, e seu entorno têm feito aos movimentos ambientalistas.
A intenção neste artigo é, portanto, discutir os conflitos de “enquadramento” e “contraenquadramentos” (Benford & Snow, 2000) que surgem dessas disputas entre iniciativas ecoteológicas encampadas pela Igreja Católica no Brasil e as contestações encampadas pelo IPCO[1]. A conformação (sempre aberta e mutável) desses diferentes enquadramentos, isto é, o “trabalho de significação ou de construção de sentidos, do qual resultam os quadros interpretativos”, constitui parte significativa da atividade dos movimentos sociais (Bertoncelo, 2009, p. 179). O processo, porém, não é simples, uma vez que
a possibilidade de que os interlocutores dos ativistas considerem o enquadramento apresentado pelos movimentos sociais como uma boa definição de “o que está acontecendo aqui” diminui se esse enquadramento não se aproximar, ao menos em parte, das molduras já entendidas como adequadas para esse interlocutor (Pereira & Silva, 2017, p. 190).
No caso em tela neste artigo, as iniciativas ecoteológicas procuram articular propostas ecológicas e molduras religiosas, criando identidades coletivas baseadas, por exemplo, na ideia de que aceitar os princípios teológicos “x” implica necessariamente adotar (ou rejeitar) os princípios ecológicos “y”. São essas escolhas, feitas ao longo de processo de elaboração – que envolve tanto a dimensão interna (o debate entre os membros) quanto a externa (o debate com outros movimentos e contramovimentos) –, que determinam o problema em relação ao qual o movimento demanda mobilização e as estratégias para enfrentá-lo (Alonso, 2009, p. 78).
Vale ressaltar que tal seletividade – que redunda na filtragem de conceitos ecológicos considerados “mais palatáveis e mais adaptáveis” aos diferentes sistemas de crença (Sideris, 2010, p. 448, tradução minha[2]) – não é um traço exclusivo do ativismo religioso. Por isso, não só as iniciativas ecoteológicas, mas o movimento ambientalista como um todo é um “caleidoscópio” que comporta os mais distintos enquadramentos, identidades, objetivos, aliados e adversários (Castells, 1999, p. 144). Assim, a análise dos conceitos e diretrizes que são incorporadas, rejeitadas ou ressignificadas em cada enquadramento é de fundamental importância para a compreensão sociológica dos movimentos que os articulam.
O levantamento de dados que ampara a discussão aqui proposta – e que também constitui parte de minha pesquisa de doutorado em andamento – utiliza uma série de fontes secundárias, produzidas pelos próprios ativistas ecoteológicos e seus contestadores. Em primeiro lugar, foram feitas pesquisas sobre o tema ambiental no próprio site do Vaticano, que hospeda digitalmente grande parte dos textos pontifícios, conferências, compêndios doutrinários etc. Em seguida, foram compilados os temas, lemas, hinos, orações, reflexões e atividades propostas em quatro Campanhas da Fraternidade que trataram especificamente da questão ambiental no Brasil (1979, 2011, 2016, 2017). Esse corpus foi complementado com análise qualitativa (Sabiote, Quiles & Torres, 2005) de artigos sobre meio ambiente escritos por bispos brasileiros ou apresentados em atividades organizadas por entidades oficiais (pastorais, conferências etc.) da Igreja Católica no Brasil. Também foram compilados e analisados artigos e livros de Leonardo Boff, que hoje se identifica como ecoteólogo, mas que ficou conhecido por ser um dos principais representantes da teologia da libertação no Brasil. Por fim, foram examinadas as produções visuais e escritas sobre meio ambiente disponibilizadas nos sites e canais digitais do IPCO e o livro Psicose ambientalista (Bragança, 2017), editado pela Comissão de Estudos Ambientais do IPCO.
Transposições da ecoteologia católica oficial: do Vaticano ao Brasil
O cerne do enquadramento proposto pela ecoteologia católica oficial, desde que a mesma começou a ser elaborada no Vaticano, ainda no início da década de 1970, consiste na conexão entre a questão ambiental e a questão dos costumes, que estariam se degradando na mesma medida em que, no diagnóstico dos próprios intelectuais católicos, o mundo ia progressivamente colocando a religião católica em segundo plano (Santos, 2017). Segundo esse raciocínio, ambos os ambientes, o físico e o moral, estariam sendo poluídos e, portanto, ambos precisariam ser purificados: não bastaria impedir que seja despejado esgoto nos rios, se a mídia despeja nos lares um conteúdo que “contamina os espíritos com pornografia, programas imorais e performances licenciosas” (Paulo VI, 1973).
Haveria, assim, uma conexão entre a “ecologia moral” (mundo interior) e a ecologia física (mundo exterior), e a “aspiração à pureza e à limpidez desses elementos externos” deveria se juntar ao “desejo de que um processo regenerativo semelhante seja aplicado às condutas e ao espírito do homem” (Paulo VI, 1971, p. 3). A “regeneração das condutas” aspirada pela Igreja Católica, como não poderia deixar de ser, significa, nessa perspectiva, a retomada de valores morais que estariam sendo deixados de lado com o avanço da secularização no mundo moderno. Em suma, a ancoragem religiosa dessa proposta ecoteológica consiste no raciocínio de que “se não é a natureza pura e simplesmente que se trata de proteger, mas a ‘natureza criada por Deus’, os ensinamentos da Igreja Católica poderiam ajudar mais do que a ciência, a política e a moral secular” (Santos, 2019, p. 90).
Para as iniciativas católicas que surgiram ao redor do mundo após esses primeiros pronunciamentos de Paulo VI, o quadro oficial da ecoteologia católica funciona como uma espécie de baliza simbólica. Ao contrário do que ocorre em iniciativas ecoteológicas ecumênicas ou inter-religiosas, as iniciativas ecoteológicas originadas no âmbito da Igreja Católica contam com diminuto espaço para a inovação simbólica e adaptações individuais, uma vez que diversos especialistas e assessores assumem a tarefa de centralizar e controlar, a partir do núcleo Vaticano, as orientações que devem ser dadas pela religião sobre cada assunto. Isso, aliás, é típico da dinâmica da esfera religiosa, na qual os sacerdotes têm como função preservar a hierarquia, a doutrina oficial e o funcionamento burocrático do “empreendimento de salvação” do qual são funcionários (Weber, 2004 [1922], p. 303).
Isso posto, é preciso ter em mente que a margem para inovação nos enquadramentos ecoteológicos católicos locais é menor, mas não é inexistente. Ou seja, molduras interpretativas da ecoteologia elaborada pela alta hierarquia católica podem ser mais ou menos tensionadas pelos sacerdotes e colegiados eclesiais fora do Vaticano (Agliardo, 2016, p. 174; Veldman et al., 2016, p. 301).
No que se refere ao tema da ecologia, a Igreja Católica no Brasil foi uma das primeiras a incorporá-lo e adaptá-lo às suas discussões e pautas locais. Em 1979, mesmo ano em que Francisco de Assis seria proclamado santo padroeiro da ecologia por João Paulo II (1979), ocorreu no Brasil a Campanha da Fraternidade (CF) “Preserve o que é de todos” (CF-1979). Para além da proximidade entre a Igreja Católica e movimentos sociais urbanos e rurais, nessa época marcada pela ditadura (Sader, 1988), contou bastante na escolha do tema da CF-1979 a influência que o ícone ambientalista brasileiro José Lutzenberger exerceu sobre o cardeal Paulo Evaristo Arns (Urban, 2001, p. 80).
Como o evento ocorreu nos tempos áureos da teologia da libertação, a conexão entre ecologia e ética, típica da ecoteologia católica oficial, acionava no contexto brasileiro muito mais questões do âmbito social do que temas da moral individual. Numa das frases do manual que sintetiza esse raciocínio, afirma-se que “há uma íntima relação entre justiça humana e renovação da terra e entre injustiça humana e degradação ambiental” (CNBB, 1978[3], p. 84). Além disso, as “duas espécies de poluição mais degradantes”, segundo o documento, seriam a “poluição da miséria” e a “poluição da riqueza” (CNBB, 1978, p. 11). A “poluição moral” de que fala a CF-1979, portanto, é uma poluição que se refere, sobretudo, às injustiças sociais — um tipo de enquadramento interpretativo denominado “ecojustiça”, que apresenta como coisas indissociáveis o dever cristão de ajudar os mais desfavorecidos e a luta contra a degradação ambiental, já que eles serão os primeiros a sentir os efeitos de tal degradação (Kearns, 1996, p. 57).
Em oposição às opressões típicas da sociedade moderna, identificada com a indústria poluente e com o capitalismo, há nessa ecoteologia uma valorização do modelo das populações tradicionais (indígenas, agricultores, posseiros e seringueiros) (Costa, 2015b). Já num plano mais geral, as contradições entre as potências industriais do Norte e os países em modernização no Sul acabam espelhadas no “antagonismo entre viver humildemente e em harmonia com a natureza versus viver na modernidade, com soberba e explorando a natureza” (Costa, 2015a, p. 97).
É interessante notar ainda que, em dado momento do manual da CF-1979, a Igreja Católica brasileira chega a afirmar quase explicitamente que o contexto era propício para o lançamento da campanha ecológica, mas sua intenção não era se alinhar aos movimentos sociais já existentes (identificados como superficiais), e sim propor transformações mais “profundas” que passassem, obviamente, pela ação especificamente religiosa – a única que seria capaz de ir à “raiz do problema” (CNBB, 1978, p. 94).
A figura erigida como modelo desse engajamento ecoteológico proposto pela CF-1979 é a de Francisco de Assis, e o sacerdote que mais se destacava, à época, nas discussões teológicas sobre a figura de Francisco de Assis como modelo ecoteológico, era ninguém menos do que Leonardo Boff. Quatro anos antes da CF-1979, Boff já havia lançado significante artigo sobre o tema. Intitulado “A não-modernidade de São Francisco: a atualidade do modo de ser de S. Francisco face ao problema ecológico”, o artigo defendia Francisco de Assis como a melhor forma de representar, no âmbito das discussões teológicas, a “síntese entre arqueologia interior com a ecologia exterior” (Boff, 1975, p. 342).
Além disso, também já constava nesse artigo de Boff a mesma estratégia de legitimação da inserção religiosa no debate ambiental através do enquadramento de uma “crise mais profunda”, à qual somente o saber espiritual teria como responder: “o problema da ecologia não está na ecologia e a solução não reside na criação de uma legislação mais restritiva, no invento de instrumentos limitadores da poluição etc. Repousa numa dimensão mais profunda” (Boff, 1975, p. 336).
O alinhamento entre Boff e a doutrina católica oficial, porém, começaria a ruir na década de 1980, na medida em que se iniciava no Vaticano, sob o papado de João Paulo II, um movimento de marginalização da teologia da libertação (tanto em termos teológicos quanto em termos de recursos institucionais), o que caminhou em paralelo com o esvaziamento das Comunidades Eclesiais de Base - CEBs no território brasileiro (Prandi & Santos, 2015). O documento da Congregação para a Doutrina da Fé[4], que enquadrava a teologia da libertação como heterodoxia, afirmava que “alguns, diante da urgência de repartir o pão, são tentados a colocar entre parênteses e a adiar para amanhã a evangelização” (Congregação para a Doutrina da Fé, 1984).
Já o estopim do processo que culminou na “imposição de silêncio obsequioso” a Boff foi a repercussão do livro Igreja: carisma e poder (Boff, 1981). Segundo a avaliação da Congregação para a Doutrina da Fé, o “relativismo eclesiológico” defendido por Boff explicitava “profundo desentendimento daquilo que a fé católica professa a respeito da Igreja de Deus no mundo”, e suas ideias colocavam “em perigo a sã doutrina da fé (Congregação para a Doutrina da Fé, 1985).
Na esteira desse escanteamento da teologia da libertação e do apagamento do ativismo político centrado nas CEBs, também o ativismo ecológico da Igreja Católica no Brasil permaneceu adormecido por vários anos, limitando-se apenas a algumas ações isoladas de dioceses e pastorais[5]. A grande efervescência ecológica que agitou o Brasil com a realização da Eco-92, contudo, voltaria a tirar a Igreja Católica de sua inércia: “diante do surpreendente despertar da consciência ecológica em toda a sociedade, a Igreja se sentiu convocada a retomar e aprofundar o tema” (CNBB, 1992, p. 3). O movimento, portanto, ressurgiu de fora para dentro.
Na avaliação da Igreja Católica no Brasil, estaria ocorrendo uma “emergência de movimentos sociais questionadores dos padrões culturais dominantes em nossa sociedade” e, em razão disso, “nas últimas décadas, temas como gênero, etnia, sexualidade e meio ambiente [despontaram] na esfera política como campos de mobilização e luta social” (CNBB, 1992, p. 13). Ou seja, mais uma vez, a Igreja avaliou que o contexto social era propício para o lançamento de uma nova iniciativa ecoteológica. Sua proposta, como sempre, vinha no sentido de “ampliar os horizontes da questão do meio ambiente e do desenvolvimento”, considerando-a “à luz de critérios teológicos e éticos” (CNBB, 1992, p. 4-14, grifos meus).
O delicado equilíbrio entre holismo, ecologia e ortodoxia
Ao mesmo tempo em que se davam essas discussões no interior da Igreja Católica no Brasil, Boff, que a essa altura já era o mais destacado ecoteólogo do círculo católico latino-americano, renunciava ao sacerdócio por estar na iminência de sofrer uma segunda sanção disciplinar oriunda do Vaticano. O tom que ele adotaria, a partir de então, seria crescentemente crítico à instituição católica. Segundo defendia em seus escritos da época, haveria, sim, a necessidade de uma evolução espiritual para o saneamento das questões ambientais, mas essa evolução poderia ocorrer “a despeito das Igrejas e das religiões instituídas” (Boff, 1993, p. 149).
Ao abandonar o papel de sacerdote, Boff se viu, então, livre para acionar uma gama de repertórios, táticas, identidades, enquadramentos e redes que seriam rechaçados pela ortodoxia da ecoteologia católica oficial. Alheio aos interesses institucionais da Igreja Católica, Boff passou a desenvolver a ideia, típica de enquadramentos “ambientalistas esotéricos”[6] (Santos, 2017, p. 39), de que a resolução dos problemas ambientais demandaria um reencantamento do mundo que prescindiria da tutela institucional de qualquer religião.
Foram essas “experimentações reflexivas heterodoxas” que aproximaram Boff cada vez mais do mundo new age, no qual passou a ser visto como um “guru” (Camurça, 2007, p. 402-3). Ora, dentre as características distintivas desse milieu esotérico consta, justamente, a “busca de novos paradigmas de conhecimento[7], de uma espiritualidade independente de sistemas religiosos institucionalizados e de uma visão ‘holística’ do homem e da natureza” (Magnani, 1999, p. 7-8). Aliás, Magnani menciona as formulações de Boff, “após suas recentes [ainda na década de 1990] incursões pela seara da Nova Era”, como variações consonantes com a matriz discursiva do circuito neoesotérico (Magnani, 1999, p. 97, nota 43).
O ponto a não se perder de vista é que, a partir de seu aprofundamento nas questões ambientais, Boff passou a postular que o planeta “vivo” (Mãe-Terra, Gaia, Pachamama), mais do que a Igreja, deveria a ser visto como lócus do sagrado. E as críticas não se limitavam à Igreja Católica. Conforme argumentava Boff, apesar de possuir alguns traços positivos do ponto de vista ambiental, o próprio cristianismo também teria certa responsabilidade em relação à crise ecológica, na medida em que ajudou a desencantar o mundo (Boff, 1993, p. 47).
Tais críticas já eram velhas conhecidas da Igreja Católica desde o lançamento do artigo de Lynn White Jr., The Historical Roots of Our Ecological Crisis, em 1967[8]. O próprio documento elaborado pela Igreja para a Eco-92 menciona a necessidade de uma “autocrítica da participação dos cristãos, das Igrejas e da teologia cristã na construção do modelo de desenvolvimento linear, utilitarista e predatório do meio ambiente” (CNBB, 1992, p. 9). Em resposta a isso, propõe-se uma “releitura” das narrativas bíblicas a partir da qual se deve entender que “Deus não está distante, totalmente transcendente a essa sua criação” – o que não deve implicar, segundo alerta o documento, na condenável postura de “ressacralizar a natureza” (CNBB, 1992, p. 38-41).
Esse delicado equilíbrio entre o dogmatismo estrito, que rejeita a sacralização da natureza, e a abertura a posturas mais esotéricas é um ponto de tensão em torno do qual todas as propostas ecoteológicas oriundas da instituição católica gravitaram. Quase sempre, as discussões oriundas não só do Brasil mas de todo o contexto católico latino-americano enfatizaram os benefícios ecológicos de uma postura mais mística e contemplativa, aberta à perspectiva de integração dos seres naturais ao universo do sagrado, ao passo que os enquadramentos ditados pelo Vaticano procuraram, sempre que possível, impor freios a esse tipo de abertura que poderia ser considerada panteísta por setores teologicamente mais conservadores.
O simples ato de nomear o planeta, fazendo com isso alusão à metáfora de que ele é um ser vivo, costuma ser um desses pontos de tensão com a ortodoxia católica. Não obstante, o documento da CNBB conhecido como Profecia da Terra falava em “Gaia e Pachamama” (CNBB, 2009, p. 63), e a Campanha da Fraternidade de 2011 cantava em seu hino: “Nossa mãe terra, Senhor, geme de dor noite e dia [...]. A terra é mãe, é criatura viva” (CNBB, 2010, p. 5, grifos meus).
O mesmo manual da CF-2011, porém, também registra a tentativa vaticana – então sob a égide de Bento XVI – de impor uma maior rigidez doutrinária nas tratativas do tema ecológico. Conforme o “alerta” registrado pelo manual, “Bento XVI quer evitar os desequilíbrios como conceder mais importância à natureza do que à pessoa humana” (CNBB, 2010, p. 78). É também partindo dessas orientações que o manual afirma que a visão desencantada da natureza construída pelo cristianismo “é libertadora para o ser humano, pois contribui para se evitar a sacralização ou demonização do mundo ou de alguns de seus elementos” (CNBB, 2010, p. 85).
A ascensão do argentino Jorge Mario Bergoglio ao papado, contudo, vem retirando alguns desses freios doutrinários e dando mais espaço às “vozes do Sul” nas discussões vaticanas (Maçaneiro, 2016). Vale lembrar, nesse sentido, que além de A igreja e a questão ecológica, outro texto latino-americano, o Documento de Aparecida (CELAM, 2007), também serviu de aporte à elaboração da encíclica Laudato Si’ (Francisco, 2015).
Por fim, vale lembrar que o tema ambiental também esteve na pauta da Igreja Católica no Brasil nas Campanhas da Fraternidade dos anos 2016 e 2017, ambas sob o pontificado de Francisco. Essa recorrência no tema por dois anos seguidos, algo extremamente raro, ilustra o esforço protagonizado por Francisco para finalmente emplacar a Igreja Católica como ator relevante no debate contemporâneo sobre o tema ambiental.
A CF-2016 foi ecumênica e teve a organização do Conselho Nacional de Igrejas Cristãs do Brasil (CONIC). Apesar de seu lema ter sido “Casa Comum, nossa responsabilidade”, o foco das discussões foi o saneamento básico. A concretude do tema teve muito a ver com a estratégia de evitar divergências que surgiriam na tratativa de questões mais complexas, como a conexão entre degradação moral (cujo diagnóstico varia conforme cada corpo doutrinário) e degradação ambiental.
Já na CF-2017 aprofundou-se como nunca a conjunção das pautas de justiça social com elementos antes tratados como esotéricos, mas que agora contam com a chancela do Vaticano. No manual da CF-2017, a diversidade dos biomas brasileiros é valorizada em conjunto com a diversidade cultural, e tudo isso é aglutinado no discurso criacionista que teria o potencial de regenerar, do ponto de vista católico, o relacionamento do ser humano com o planeta, chamado explicitamente de “Mãe-Terra, a Pacha-mama” (CNBB, 2016, p. 165).
Tal abertura à personificação do planeta e à elevação de status do mundo natural, vale ressaltar, caminha a par com o sempre repetido pressuposto de que a degradação (antropocêntrica) da moral religiosa individual está, ao fim e ao cabo, na raiz da degradação do meio ambiente. Conforme afirma o manual da CF-2017, “tudo ficaria melhor, na natureza e na sociedade humana, se vivêssemos de acordo com os preceitos que dele [Deus] recebemos” (CNBB, 2016, p. 201-2, grifos meus).
Contraenquadramentos religiosos da questão ecológica: IPCO e a “Psicose ambientalista”
Plinio Correia de Oliveira (1908-1995), expoente do catolicismo tradicionalista brasileiro, foi um dos fundadores da Sociedade Brasileira de Defesa da Tradição, Família e Propriedade (TFP), entidade que protagonizou por décadas no Brasil o ativismo conservador católico contrário a pautas como reforma agrária, divórcio, aborto e comunismo. Plinio e os demais membros da TFP eram alinhados ao integrismo, movimento católico que defendia, internamente à Igreja Católica, a excomunhão de sacerdotes e teólogos progressistas e, na frente externa, a retomada de esferas da vida pessoal e social (sobretudo os espaços políticos) que foram expropriadas da instituição católica com o avanço do processo de secularização (Pierucci, 1992). Em suma, tratava-se de um movimento de reação, ou reacionário, contra a modernização religiosa e contra a modernização social.
Após a morte de Plinio houve intenso conflito sucessório na TFP e formaram-se dissidências. Uma delas, liderada por Adolpho Lindenberg (primo-irmão de Plinio) e por Bertrand de Orléans e Bragança, criou, em 2006, o Instituto Plinio Corrêa de Oliveira (IPCO). Lindenberg não é tão presente no ativismo do instituto, mas Bragança, tido como príncipe imperial do Brasil, é reconhecido sobretudo por sua atuação no movimento de restauração da monarquia brasileira, fazendo-se presente em diversas das manifestações de massa ocorridas desde 2013 (Quadros, 2017, p. 22). Também não é incomum encontrar membros do IPCO em diversas outras manifestações públicas de caráter conservador no Brasil, como os protestos contra a exibição da peça Jesus Cristo Superstar (Santos & Crumo, 2019) e contra a participação da filósofa Judith Butler em um seminário em São Paulo[9].
Nos últimos anos, Bragança também vem centralizando em sua figura a contraposição do IPCO ao movimento ambientalista. Tal contraposição não se reduz à simples negação da pauta, sobretudo porque poucos se oporiam explicitamente à ideia de que é preciso “cuidar da natureza”. A estratégia aqui é parecida com aquela de movimentos com pautas autoritárias que, no entanto, se dizem “a favor da democracia” (sem uma definição clara do que entendem com essa categoria)[10]. Ou seja, Bragança e o IPCO colocam-se contra os “ambientalistas” mas, não contra a proteção (“sóbria”, não “psicótica”) do meio ambiente — ainda que, entre seus enquadramentos, constem diretrizes como: por “consequência do pecado [original], a natureza tornou-se hostil” e, portanto, é preciso “dominá-la” (Bragança, 2012, p. 15).
Na retaguarda de Bragança, há uma série de membros do IPCO que atuam ativamente na produção de artigos e na conclamação de passeatas atacando as pautas e as organizações “verdes”. Uma incursão pelos títulos de artigos divulgados pelo IPCO já fornece uma pista do tipo de enquadramento que o instituo propõe para a questão do meio ambiente: “Problema dos ursos polares ‘em extinção’: estão gordos e numerosos demais”[11]; “Vaticano acolhe maiores inimigos da vida com pretextos ambientalistas radicais”[12]; “Terra entrou em mini-era glacial, mas IPCC ainda discute o furado Acordo de Paris”[13]; “Brasil sendo desgarrado: a Panamazônia ‘místico-ecológica’ se prepara para ver a luz”[14]; “Castelos, abadias e aldeias medievais: melhor integrados na natureza que utopias ‘verdes’”[15]; “Prof. Molion denuncia manobras políticas que manipulam a ciência climática”[16]; “‘Aquecimento global’: a maior ‘fake news’ da História”[17].
Algumas dessas produções, em conjunto com a apostila Ambientalismo: preservação da natureza ou cavalo de Troia?[18], constituem a base do livro Psicose ambientalista. os bastidores do ecoterrorismo para implantar uma “religião” ecológica, igualitária e anticristã (Bragança, 2017), lançado em 2012.
A sinopse do livro descreve da seguinte maneira as intenções do instituto:
o conjunto de atividades empreendidas pelo IPCO visa a mobilização da sociedade civil, a fim de preservar os pilares básicos da civilização cristã ameaçados pela Revolução ateia e igualitária [...]. Dando continuidade a essa Cruzada, o IPCO edita o presente livro – Psicose Ambientalista – denunciando a investida das esquerdas para implantar uma “religião” ecológica no Brasil e no mundo (Bragança, 2017).
Segundo o enquadramento proposto pelo IPCO, o movimento ambientalista, de forma genérica, é um cavalo de Troia que esconde, em seu interior, várias das ideologias e pautas às quais o instituto se opõe, tanto no plano político quanto no religioso. Assim, são recorrentes os trechos em que Bragança pretende desmascarar os agentes que estariam camuflados na roupagem ambientalista. Um deles é a teologia da libertação, descrita como “a velha e desacreditada utopia socialista, acolhida em ambientes de esquerda católica, que se apresenta agora com ares de defensora da ‘boa causa’ ambientalista” (Bragança, 2017, p. 11). Além da teologia da libertação, o ambientalismo também estaria propondo “uma nova religião, que pretende justificar e implantar uma sociedade humana igualitária e neotribal, lastreada num misto de pseudociência com filosofias arcaicas e pagãs” (Bragança, 2017, p. 31). Em outros textos, os adversários se multiplicam e, às vezes, se misturam, como um dragão de várias cabeças:
Isto não é outra coisa senão o ideal comuno-indigenista disfarçado de verde. Por detrás da ecologia surge o marxismo de sempre, com características próprias da Teologia da Libertação [...]. Os argumentos pseudotécnicos amplamente propagandeados são meros pretextos para iludir a opinião pública e implantar uma ordem social falsa, que não é outra coisa senão o socialismo de Estado, ou seja, o velho comunismo metamorfoseado [...]. [P]or detrás dessa investida ambientalista em favor de uma pretensa preservação da natureza, o que se oculta sorrateiramente é o cavalo de Troia do neocomunismo verde (Bragança, 2017, p. 168-71).
Para contra-atacar esse adversário, visto como pluripotente, o IPCO utiliza-se de um repertório discursivo diversificado que lhe permite contestar o (e oferecer recursos de contestação ao) ativismo ecológico em termos religiosos e seculares. De forma esquemática, na seara teológica os raciocínios mais acionados são: a) a acusação de que o movimento ambientalista é herege (panteísta, politeísta etc.) porque sacraliza a natureza e os seres naturais; b) a ideia de que nem a Igreja nem o papa têm legitimidade para tratar do tema ambiental, sendo assim os discursos ecoteológicos formulados pelo Vaticano seriam apenas “sugestões” sem caráter impositivo, derivadas de uma assessoria enviesada, na qual se “infiltraram”, por exemplo, sacerdotes panteístas e adeptos da teologia da libertação; c) a reafirmação de um trecho do livro bíblico de Gênesis (1: 28) no qual consta famoso mandamento da dominação que diz “enchei a terra e sujeitai-a, dominai sobre os peixes do mar, sobre as aves do céu e sobre todo animal que rasteja sobre a terra”.
Já na frente secular, há três campos principais de combate: a ciência, a economia e a política. No primeiro, o IPCO recorre à divulgação de diversos estudos dos assim chamados negacionistas ambientais, céticos do clima etc. (Leite, 2015), afirmando basicamente que há uma “contestação científica ruidosa às hipóteses ambientais” (Bragança, 2017, p. 51). Paradoxalmente, segundo o enquadramento proposto pelo IPCO, a carência de evidências é outra característica que faz do ambientalismo uma “religião”. Ou seja, assume-se, a partir disso, que “religião” é uma categoria de acusação, uma desqualificação. Mais do que isso, as metáforas e ironias utilizadas pelo IPCO para fazer paralelos entre o ativismo ecológico e a crença religiosa muitas vezes partem de exemplos históricos que foram característicos da própria Igreja Católica, como a inquisição:
As discussões ambientais viraram debates sobre dogmas de fé, e quem contrariar as eco-verdades será condenado à fogueira. Se bem que essa nova inquisição, a do aquecimento global, não possa enviar ninguém para a fogueira, porque a lenha e o nosso corpo são feitos de carbono e queimá-los liberará gases que vão incrementar o aquecimento global (Bragança, 2017, p. 43).
Já sobre a crítica econômica das pautas ecológicas, o IPCO busca ressaltar a suposta irracionalidade que deriva dos custos oriundos da demarcação de reservas, das restrições do código florestal à produção agrícola etc. Por fim, na esfera política, afirma-se que a ecologia é uma retórica adotada por políticos de esquerda e seus seguidores ansiosos por maior controle sobre as propriedades e liberdades individuais, ou até mesmo com planos de instaurar “um governo mundial totalitário, e assim transformar a humanidade numa sociedade hostil e até persecutória à civilização cristã” (Bragança, 2017, p. 103).
O enquadramento do ativismo ambiental como uma forma de globalismo que se articularia com partidos de esquerda, ONGs e outros atores para atacar a soberania nacional, tal como proposto pelo IPCO, mostrou-se particularmente interessante para o núcleo do atual governo federal brasileiro. Os acontecimentos em torno do Sínodo da Amazônia[19], conclamado pela Igreja Católica, simbolizam bem essa convergência. Segundo membros do governo, o Sínodo seria parte de uma “agenda de esquerda”[20], e um dos ministros chegou a afirmar: “estamos preocupados e queremos neutralizar isso aí”, “vamos entrar fundo nisso”[21]. Por sua vez, o IPCO, em um de seus abaixo-assinados[22], declarou-se solidário com “a resolução das autoridades nacionais de defender a integridade do seu território”, uma vez que estariam tendo lugar no Sínodo discussões que representam “inaceitável atentado contra diversas soberanias nacionais”[23].
Ainda que o IPCO não tenha um número expressivo de seguidores, suas formulações têm encontrado ressonância e aderência não só entre segmentos mais reacionários (e minoritários) do catolicismo tradicional, mas também em certos círculos próximos do poder político. Prova disso é que membros próximos ao IPCO e a Bragança vêm ocupando cargos governamentais, além de se reunirem repetidamente com deputados e senadores no Congresso[24]. Além disso, a obra de Bragança, Psicose ambientalista, não só foi propagandeada por Eduardo Bolsonaro em suas contas nas redes sociais como vem sendo recorrentemente citada pelo presidente Bolsonaro em ocasiões nas quais são discutidas questões ecológicas – como no encontro do G-20 com Ângela Merkel e Emmanuel Macron[25], no Japão; ou quando acusou o ex-diretor do Instituto Nacional de Pesquisa Espacial (INPE) de estar “a serviço de alguma ONG”[26] na polêmica sobre a divulgação de dados sobre o desmatamento da Amazônia.
Conclusões
A despeito do caráter centralizado e altamente hierárquico da instituição católica, os enquadramentos ecológicos desenvolvidos pelos sacerdotes brasileiros, tal como foi visto acima, muitas vezes incorporam vértices próprios, ao mesmo tempo em que deixam de lado, ou ressignificam, orientações elaboradas no Vaticano. É por isso que houve, nos enquadramentos ecoteológicos católicos brasileiros, maior abertura a posturas mais esotéricas em relação à natureza e uma ênfase em questões éticas relacionadas a problemas sociais, não a temas da moral individual.
Assim, mesmo com o declínio da teologia da libertação e o afastamento de figuras centrais no tensionamento das molduras da ecoteologia católica oficial, como Leonardo Boff, as iniciativas ecológicas oriundas do catolicismo brasileiro nunca se limitaram à ênfase do moralismo conservador que marca o cerne das orientações vindas do Vaticano – e que permanecem, ainda que de forma às vezes ambígua, no papado de Francisco (Rosado-Nunes, 2013; Santos, 2017).
Isso posto, vale lembrar que, embora a Igreja Católica elabore sua ecoteologia sob uma lógica conservadora, os movimentos (religiosos ou não) que se apropriam dessa ecoteologia não têm necessariamente objetivos igualmente conservadores. Isso reforça o postulado de que a lógica social subjacente à formulação da ecoteologia católica oficial não é, necessariamente, semelhante à lógica de seus desenvolvimentos teóricos ou práticos nas iniciativas locais, que podem até mesmo chegar ao ponto de contradizer intenções de seus mentores originais.
Tais distinções e nuances, contudo, são em grande parte ignoradas pelo IPCO em sua oposição à incorporação católica das pautas ambientais. Para Bragança e seus seguidores, tanto o Vaticano quanto os sacerdotes brasileiros estão sendo iludidos pelo “canto da sereia” ambiental. Aliás, do ponto de vista defendido pelo instituto, as reafirmações conservadoras que porventura constem nessas discussões ecoteológicas poderiam ser mais bem classificadas como disfarces cujo propósito seria apenas desviar o foco dos “guardiães da santa tradição”. Assim, seja em oposição à ecoteologia vaticana ou àquela elaborada pelos sacerdotes católicos brasileiros, o instituto propõe que o ambientalismo é apenas outra ideologia que, na esteira do comunismo, da teologia da libertação, do paganismo, do globalismo etc., está voltada à dissolução ou transformação dos milenares ensinamentos cristãos.
Se o inimigo é visto como dragão de várias cabeças que atua tanto no campo religioso como no secular, também o próprio IPCO, em seus “contraenquadramentos”, procura mobilizar atores relevantes na instituição católica e nas esferas seculares do Estado e da comunidade científica. Dessa maneira, apesar da ancoragem religiosa do instituto, suas redes ramificam-se não só nos corredores das cúrias e das igrejas, mas também nas diversas instâncias da sociedade civil e do poder público[27]. Isso possibilita uma instrumentalização recíproca: ao mesmo tempo em que o IPCO dá visibilidade a estudos negacionistas, defende a administração de Bolsonaro e enriquece sua oposição aos movimentos ambientalistas de forma geral, o presidente e seus seguidores divulgam as iniciativas da IPCO, expandem suas redes e potencializam seus recursos.
Como resultado dessa paradoxal confluência conservadora entre membros democraticamente eleitos de uma república e membros de um instituto que tem entre suas pautas principais a restauração da monarquia, a Igreja Católica no Brasil vem sendo cada vez mais empurrada para o campo político da oposição. Nesse novo cenário, ela vem se configurando como potencial ponto de apoio ao ativismo ambiental nacional, seja atuando como “parteira” (Kearns & Kyle, 2018, p. 60) de movimentos ecológicos que não necessariamente levam a marca religiosa, seja usando seu aparato institucional para publicizar crimes ambientais cometidos no país.
Tal reposicionamento não gera só contestações externas, como as do IPCO, mas também críticas internas, que questionam um suposto apagamento do foco religioso que deveria presidir a atuação da Igreja Católica. Tanto assim que, em declarações mais recentes, como aquelas oriundas do Sínodo da Amazônia, o próprio papa Francisco vem reafirmando que o ativismo ambiental católico precisa caminhar em conjunto com a evangelização, do contrário, a igreja estaria se transformando em “mais uma ONG” (Francisco, 2020, p. 19). Assim, resta saber até que ponto uma instituição que se propõe a mediar a salvação no outro mundo estará disposta a alargar suas molduras interpretativas visando motivar, entre seus seguidores, o engajamento em favor da salvação deste mundo.
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Notas