Dossiê

Movimentos sociais, controle social repressivo e criminalização no Rio de Janeiro

Social movements, repressive social control and criminalization in Rio de Janeiro

Taísa Sanches
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Brasil
Brena Almeida
Fundação Oswaldo Cruz, Brasil
Angela Randolpho Paiva
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Brasil

Movimentos sociais, controle social repressivo e criminalização no Rio de Janeiro

Revista Brasileira de Sociologia, vol. 8, núm. 20, pp. 153-176, 2020

Sociedade Brasileira de Sociologia

Recepción: 21 Junio 2020

Aprobación: 02 Octubre 2020

Resumo: A criminalização dos movimentos sociais no Brasil tem sido acirrada nos últimos anos, marcados pela adoção de um modelo de controle social repressivo direcionado às populações faveladas. Este artigo propõe que dita criminalização se remete especificamente aos símbolos e identidades relacionados à população pobre, notadamente na cidade do Rio de Janeiro. A partir da categoria “urbanismo subalterno” proposta por Ananya Roy, explora-se como os movimentos sociais favelados operaram transformações em seu repertório de ação, de forma a contestar dita criminalização. Apresentamos resultados e interpretações derivadas de pesquisas, realizadas entre 2013 e 2020, que acompanharam movimentos de mães e familiares de vítimas de violência estatal e movimentos em luta por moradia.

Palavras-chave: criminalização, movimentos sociais, subjetividades.

Abstract: The criminalization of social movements in Brazil has been rampant in recent years, marked by the adoption of a model of repressive social control directed at favela’s populations. This article proposes that this criminalization targets specifically symbols and identities related to the poor population, notably in the city of Rio de Janeiro. Based on the category “subaltern urbanism” proposed by Ananya Roy, we explored how the favela’s social movements transformed their repertoire of action in order to contest this criminalization. We present results and interpretations derived from research carried out between 2013 and 2020, which followed movements of mothers and family members of victims of state violence, as well as movements in the struggle for housing.

Keywords: criminalization, social movements, subjectivities.

Apresentação

Repressão e criminalização possuem raízes ancoradas na história brasileira, fortemente marcada pelo colonialismo, pelo sistema escravocrata e por longos períodos autoritários. A violência no país circunscreve de maneira diferenciada a construção da cidadania e das pessoas enquanto sujeitos de direitos, e as camadas desfavorecidas da população são historicamente marcadas não só pela inexistência ou pouca eficácia na proteção aos seus direitos civis, mas também são continuadamente alvo seletivo da violência estatal, mesmo após a reentrada na conjuntura democrática pós 1988.

As configurações da arena pública em torno da participação política brasileira são herdeiras das “desigualdades categóricas”, como bem analisou Charles Tilly (1998, 2005), e são historicamente assentadas, ainda que tenham passado por grandes transformações nas últimas duas décadas. Apesar de promover um longo período de avanços em políticas de participação social a partir dos anos 1990, os governos federais não conseguiram criar um espaço decisório aberto à participação social, principalmente no que se refere à política urbana e de segurança pública.

A política urbana do Rio de Janeiro, particularmente, demonstra a falta de um pacto federativo aberto à participação. A escolha da cidade do Rio como sede dos Jogos Olímpicos e de partidas da Copa do Mundo representou carta branca aos governos federal e estadual para operar políticas de austeridade e criminalização de vidas e movimentos sociais, que já vinham sendo desenhadas havia algum tempo. Essa política se manteve com a pressão internacional sofrida no período após a repercussão das manifestações de junho de 2013[1].

Orlando Alves dos Santos Júnior (2015) denomina como “governança empreendedorista neoliberal” o processo segundo o qual se criam ambientes favoráveis à geração de lucro, sustentados na cultura empreendedora, com foco em parcerias público-privadas subordinadas ao mercado e, portanto, direcionadas a áreas específicas da cidade onde o capital produz rentabilidade. Esse tipo de governança contribui para o acirramento das desigualdades socioespaciais, uma vez que não leva em conta o conjunto do território. Os interesses econômicos, sociais e políticos se voltam aos bairros mais próximos dos eventos, aprofundando as desigualdades socioespaciais da capital do Estado.

Nesse sentido, as populações mais pobres que vivem em locais que passam a ser valorizados pelo mercado são as mais vulnerabilizadas, devido às transformações do espaço urbano. Somente na cidade do Rio de Janeiro, estima-se que 67.000 pessoas foram removidas de suas casas e bairros entre 2009 (ano em que a cidade é anunciada como sede dos Jogos Olímpicos) e 2013 (Faulhaber & Azevedo, 2016, p. 36). Em diálogo com autores que analisaram os efeitos do neoliberalismo nos movimentos sociais (Della Porta, 2015; Santos Jr. 2019), pode-se dizer que dito sistema prega um estilo de vida voltado ao mercado e ao consumo, sendo a população que vive nos lugares das “margens”[2] percebida como desvirtuada. A criminalização, portanto, se volta justamente a elas e aos símbolos e identidades que carregam e que não condizem com o padrão buscado pelo sistema. A remoção das populações marginalizadas dos espaços urbanos valorizados constitui-se em uma forma de criminalização de suas vidas que não são reconhecidas como parte do tecido urbano vigente.

Além disso, parte considerável do planejamento estratégico que envolveu a construção desse modelo de cidade apta a sediar os megaeventos esteve circunscrita à preocupação com a segurança pública. O chamado PAC-Favelas foi acompanhado do projeto de “pacificação” armada pelas Unidades de Polícia Pacificadora[3] (UPPs), articulando urbanização e militarização, constituindo o que Mariana Cavalcanti (2013) expressou através do termo “PACificação” – uma mesma gramática que compõe a lógica de controle social e passa a ser estrategicamente implementada em diversas favelas do Rio.

Pesa sobre os sujeitos marginalizados a militarização da vida urbana, ou o “novo urbanismo militar”, conforme elaborado por Stephen Graham (2016), que na realidade brasileira se caracteriza pela presença frequente e ostensiva tanto das forças policiais, quanto das Forças Armadas, em espaços favelados e periféricos da cidade, impondo uma lógica de urbanismo marcadamente estigmatizante e enquadramentos de criminalização aos “indesejáveis” da cidade.

Ao direcionar o aparato violento do Estado às populações das margens, enfatiza-se o fato de certas identidades ligadas à população marginalizada não serem aceitas. Loic Wacquant (2003), ao explorar as transformações estatais norte-americanas a partir do final dos anos 1970, aponta para a passagem de um Estado-providência (ou caritativo) a um Estado-penal, transição que se dá na medida em que os Estados perdem a capacidade de lidar com uma crescente população vivendo em situação precária. O autor aponta para o aumento da população encarcerada nos Estados Unidos[4] e desenha as implicações do aprofundamento de práticas neoliberais em meio a uma radicalização das formas de controle social, particularmente direcionadas às populações desfavorecidas, as chamadas “classes perigosas”, formadas à margem da sociedade civil, como analisado por Alberto Passos Guimarães (1981) e Cecília Coimbra (2001).

No Rio, esse processo de administração penal da miséria inscreve os lugares das margens a partir da “metáfora da guerra” delineada por Márcia Leite (2012). Constituídos como distantes dos parâmetros regulares da vida “normal” e das pessoas que seguem o caminho “honesto” das esferas consideradas legítimas do trabalho, da família, da moral e do Estado, as referências cognitivas sobre as pessoas que neles habitam engendram figurações dominantes que produzem efeitos sobre as dinâmicas sociais e conflitos que emergem nesses territórios, influindo diretamente sobre os caminhos adotados pelas políticas de segurança pública e programas políticos direcionados à gestão dos pobres.

Os sujeitos marginalizados, por sua vez, ao se sentirem violentados em sua dignidade e identidade, por conta das remoções e dos modos de operar do referido “urbanismo militar”, buscam novos caminhos para construção de formas de resistência e reconhecimento, muitas vezes distintas das vias oficiais que o sistema impõe. Neste artigo defendemos que os movimentos sociais organizados nas favelas cariocas buscam caminhos alternativos de participação, não só pelo caminho da resistência, mas também pela via cultural, a partir de um resgate das emoções e da memória.

Tomamos como base pesquisas desenvolvidas pelas autoras com os movimentos em luta por moradia e contra as remoções, organizados na Vila Autódromo e na comunidade do Horto[5], bem como, com os seguintes movimentos de mães e familiares de vítimas de violência estatal do Rio de Janeiro: as Mães de Manguinhos, as Mães sem Fronteiras do Chapadão e a Rede de Comunidades e Movimentos contra Violência. Os movimentos sociais foram acompanhados entre os anos 2013 e 2020, através de pesquisa qualitativa em caráter descritivo e analítico, com observação e acompanhamento em campo e realização de entrevistas semiestruturadas e em profundidade, sob orientação da “pesquisa-ação” tematizada por Michel Thiollent (2011).[6]

Ao longo da análise apresentada neste artigo, verificou-se que os movimentos buscam mobilizar a criminalização das margens como repertório de ação, demonstrando o aprendizado que adquiriram através do resgate das memórias e do histórico de repressão em relação às suas vidas e existências. Tomamos como base o conceito de repertório como proposto por Charles Tilly:

A palavra repertório ajuda a descrever o que acontece, identificando um conjunto limitado de rotinas que são aprendidas, compartilhadas e executadas através de um processo de escolha relativamente deliberado. Repertórios são criações culturais aprendidas, mas não descendem da filosofia abstrata ou tomam forma como resultado da propaganda política; eles emergem da luta. As pessoas aprendem a quebrar janelas em protesto, atacar prisioneiros com pilhagem, derrubar casas depredadas, organizar marchas públicas, petições, realizar reuniões formais, organizar associações de interesses especiais. Em qualquer ponto particular da história, no entanto, eles aprendem[7] (Tilly,1995, p. 42 – a tradução é nossa).

A partir desse quadro, apresentamos, em um primeiro momento, o contexto de repressão e criminalização dos lugares das margens na cidade do Rio de Janeiro, para em seguida refletir sobre algumas iniciativas encontradas pelos movimentos favelados para elaborar formas de existência e resistência na cidade. Nessa direção, apresentamos algumas dessas alternativas societárias propostas pelos movimentos de favelados do Rio, considerando, de um lado, a organização de Museus Sociais por movimentos por moradia, como ferramenta de luta contra as remoções operadas pelo Estado e de demanda por espaços urbanos mais inclusivos e que considerem a memória das populações estigmatizadas e criminalizadas. De outro lado, o repertório desenvolvido pelos movimentos de mães e familiares de vítimas de violência estatal, que produzem estratégias de cuidado e processos de luta por memória, justiça e resistência ao governo de mortes operado pela “guerra” exercida nesses territórios.

Controle social repressivo e criminalização nas margens da cidade

Os vários dispositivos do controle social repressivo e a intensidade no uso da força policial nos lugares dos pobres possuem uma áspera e incômoda relação de continuidade na história brasileira, com a perpetuação de diversas práticas de “brutalidade autorizada”, que abrangem desde humilhações e distintas formas de tratamento cruel e degradante, até mesmo torturas e execuções extrajudiciais perpetradas por agentes estatais (Ramos, 2016).

No Rio de Janeiro, o Instituto de Segurança Pública (ISP/RJ), usando o indicador de letalidade violenta[8], registrou no estado 5.980 homicídios dolosos, somente em 2019. As chamadas “mortes por intervenção de agentes estatais” – quando policiais matam em supostos confrontos – representaram o maior número da série histórica desde 1998, totalizando 1.810 casos. Além do aumento expressivo, os números também evidenciam a seletividade étnico-racial que marca a desigualdade social e a estratificação de classes da sociedade brasileira: 75,4% das pessoas mortas em intervenções policiais entre 2017 e 2018 eram negras, em sua maioria pobres e jovens (FBSP & IPEA, 2019). Nesse registro, o referido processo de gestão penal da pobreza como política social da contemporaneidade encontra-se intrinsecamente relacionado ao racismo institucionalizado em nosso país.

Esse panorama representa não somente um déficit na fruição dos direitos humanos e garantias fundamentais por considerável parcela da população, mas também conduz à percepção de que vivenciamos uma tragédia humanitária. A própria construção de determinadas ações como legítimas possui relação com a produção das representações sobre os lugares dos pobres.

Márcia Leite (2012) identifica como a representação dos lugares das margens na cidade do Rio de Janeiro constituiu-se ao longo da história. A reiterada percepção de que esses territórios não são incorporáveis à cidade e que os torna alvos da implantação de políticas autoritárias de caráter higienista e disciplinar[9], de demolições, despejos e remoções violentas, vem com o processo de incorporação da chamada criminalidade violenta. Assim, em particular a partir da década de 1990, as favelas passam a ser significativamente reconhecidas pelos signos da violência e criminalidade que se tornam cada vez mais evidentes: o tráfico de drogas, o uso de armamentos, a delinquência, os confrontos entre a polícia e grupos armados e entre facções rivais de traficantes, delineando o quadro de “difusão do medo” e das “demandas autoritárias por segurança a qualquer custo” , conforme descrito por Luís Eduardo Soares (1998, p. 32).

O medo e a insegurança, ainda que justificados pela ameaça à integridade física e patrimonial, contribuíram para produção dessa imagem distorcida das margens, caracterizando uma população inteira a partir de um mesmo quadro homogêneo, como apontam Luís Antônio Machado da Silva e Márcia Leite: os moradores das favelas rejeitam as normas oficiais do país e optam pela obediência à chamada “lei do tráfico”, confirmando seu pertencimento a uma “subcultura desviante e perigosa” (Machado da Silva, & Leite, 2007, p. 549, grifos nossos)

No Rio de Janeiro, os moradores das favelas vivenciam de forma profunda e particular esse caráter de contiguidade de uma “sociabilidade violenta” descrita por Machado da Silva e Leite (2007). De acordo com esse entendimento, seus moradores encontram-se sempre “no meio do fogo cruzado” ou “entre dois deuses”[10], expressões usadas para caracterizar o fato de que duas ordens coabitam regulando os territórios e impondo formas de violência específicas sobre as pessoas: a “lei” das forças de segurança e a atuação do comércio varejista de drogas ilícitas. Alicerça-se, assim, a identificação desses lugares e a percepção dos favelados enquanto territórios e sujeitos que podem ser submetidos não somente a remoções e políticas de urbanização segregatórias, mas também às consequências de uma associação direta com a marginalidade e o crime violento, que os traduz como criminosos ou potenciais criminosos, sempre suspeitos.

Somam-se a esse processo os traços que delineiam o “inimigo”: aquele que pode ser alvo da repressão militarizada, da vigilância, da prisão e até mesmo da morte. No redesenho da cena urbana, que inscreve a cidade a partir de uma lógica militarizada, traduzem-se enquadramentos discursivos criminalizadores que engendram artefatos de invisibilização do sujeito pobre, preto, favelado e periférico, que é diluído nas estatísticas de desaparecimentos e nos registros de mortes dos chamados “autos de resistência” ou das “mortes por oposição à intervenção policial”[11]. Tais registros atuam articulando a justificativa do “confronto” e da “guerra” com o peso da legalidade própria ao documento estatal, confeccionando uma legitimidade para as mortes, em acordo com a previsão da excludente de ilicitude dos agentes estatais, definida segundo os termos da lei penal, traduzindo essas mortes como um fenômeno “conforme o direito” (Zaccone, 2015).

A referida noção de margens do Estado (Das & Poole, 2004) orienta na compreensão do modo específico como se desenvolvem as ações e dispositivos estatais no que tocam os territórios das margens e a população que neles habita, impondo um controle social, em última instância, considerado legítimo, embora opere nas dimensões sombreadas do legal e do ilegal e no “governo de mortes” (Mbembe, 2018) que permeia práticas de exercício do poder as quais permitem que determinadas vidas sejam descartáveis, enquanto outras são protegidas. Cabe destacar que essa lógica de ações estatais específicas nos lugares das margens combina dinâmicas repressivas distintas que não somente impõem deslocamentos forçados, controle militarizado dos espaços e modos de circulação das pessoas, mas também cravam destruição e ruínas. A instauração das UPPs nas favelas cariocas, por exemplo, veio de mãos dadas aos processos de remoções. As unidades de polícia representaram o principal programa da Secretaria de Segurança Pública do Rio de Janeiro. Sua presença, no entanto, serviu para a expansão do capital imobiliário nas favelas, o que, por sua vez, ocasionou a “remoção branca” (Faulhaber & Azevedo, 2016) de muitas famílias.

Processos de remoções violentas compreendem também táticas de destruição e promovem uma espécie de desenraizamento da vida, conforme as experiências são vividas em determinados territórios, forçando deslocamentos urbanos e articulando a decomposição e o desbotamento do lugar moral que se compõe pelas experiências do habitar. A partir de seu trabalho sobre remoções, Alexandre Magalhães articula os efeitos dessas ações:

Ao demolir, ao provocar a “destruição” e levar o “terror”, a intervenção estatal revelaria não somente que aquela favela seria um lugar da margem, mas, sobretudo, um espaço onde o próprio poder se produz, produção esta realizada no limite da vida, contra a qual se poderia fazer qualquer coisa, suspendendo-a, mesmo que sem eliminá-la imediatamente, conduzindo-a e reconduzindo-a ininterruptamente (Magalhães, 2018, p. 279).

Diante das repressões a que são submetidos em seu cotidiano, os sujeitos marginalizados procuram traduzir as injustiças que sofrem de forma a torná-las legíveis para grande parte da sociedade, como forma de denúncia, ou seja, criam uma linguagem conhecida. Sidney Tarrow considera fundamental a realização dessa espécie de tradução que os movimentos são capazes de fazer:

Os movimentos tentam enunciar reivindicações em termos de quadros de significados compreensíveis para uma sociedade mais ampla; usam formas de ação coletiva extraídas de um repertório existente e desenvolvem tipos de organização que frequentemente imitam as organizações às quais se opõe. (Tarrow, 2009, p.45)

Esse exercício de tradução é verificado, por exemplo, na criação dos Museus Sociais nas comunidades analisadas. Utilizando uma linguagem conhecida a uma parcela ampla da sociedade, os movimentos buscam traduzir sua luta pelo pertencimento à cidade e contrária às remoções através do uso de documentos que comprovam seu histórico de vida nos bairros, como será explorado adiante.

Na próxima seção, apontaremos para exemplos de movimentos sociais analisados, que têm buscado formas de reconhecimento distintas, constituindo-se como parte de um urbanismo subalterno contrário à criminalização das existências faveladas. Ao passo que os “repertórios de interação Estado-sociedade”[12] (Abers, Serafim & Tatagiba, 2014) são mais frequentemente marcados pela violência, na análise aqui desenvolvida, os movimentos buscam outras formas de interação institucional e reconhecimento, logrando transformar suas ações cotidianas em novos quadros interpretativos de ação coletiva, em novas subjetividades, cuja base para a construção dessa identidade coletiva se assenta na luta pelos direitos mais elementares, como o respeito à vida e à moradia, assim como na denúncia da violência perpetrada pelo próprio Estado.

Do “urbanismo militar” ao “urbanismo subalterno”: experiências de reconhecimento frente à criminalização

Ananya Roy (2017) propõe o termo “urbanismo subalterno” para se referir às novas formas de agência e de reconhecimento nos espaços ocupados pela população periférica ao redor do mundo. A autora sugere a ideia de ocupação do espaço não somente através do capital, mas também de ações cotidianas desses indivíduos, como fundamental para pensar as formas de ativismo que nascem nos territórios:

O urbanismo subalterno é então um paradigma importante, pois busca conferir reconhecimento a espaços de pobreza e formas de agência popular que muitas vezes permanecem invisíveis e negligenciadas nos arquivos e anais da teoria urbana (Roy, 2017, p. 7)

É interessante adotar os termos utilizados pela autora – reconhecimento, agência e invisibilidade – ao abordar algumas iniciativas de movimentos sociais existentes atualmente na cidade do Rio de Janeiro e não compreendidos como tais pela literatura acerca do tema, por diferenciarem-se daqueles movimentos mais tradicionais e hierarquicamente construídos. Alexis Cortés (2018), ao pesquisar acerca do movimento favelado no Rio de Janeiro entre as décadas 1970 e 1980, apontou esse fato: percebeu que a literatura não tratava o movimento como tal, pois valorizava mais a perspectiva segundo a qual a “racionalidade política dos favelados” seria utilizada para “instrumentalizar o sistema político”, ou seja, a racionalidade dos sujeitos favelados não seria utilizada como forma de contestação e organização social, mas como forma de conseguir benefícios.

Defendemos aqui que as formas de agência dos sujeitos favelados devem ser analisadas a partir da literatura referente aos movimentos sociais, uma vez que apresentam repertórios de ação em resposta à criminalização e à invisibilidade das subjetividades existentes nos territórios. É o caso de duas ações específicas que serão trazidas a seguir: os museus sociais de favela, tais como Museu das Remoções, Museu Sankofa da Rocinha, Museu da Maré e Museu do Horto; e a emergência do movimento de mães que denunciam práticas policiais repressoras que resultaram na morte de seus filhos. Tais iniciativas podem ser compreendidas como importantes repertórios de ação dos movimentos favelados, adotados pela população subalternizada, a qual ocupa espaços sociais que não se resumem a lugares materiais, ao mesmo tempo em que os reivindica, a partir da possibilidade de remoção e criminalização de sua existência nesses espaços.

Os museus comunitários da cidade do Rio de Janeiro, ademais de representarem um repertório interessante no que tange à agência da população favelada, constituem formas de interação com o Estado que apontam caminhos alternativos. Suas origens coincidem com um período de grande abertura do Estado à participação, analisado por diversos autores (Abers et al, 2014, dentre outros). São reconhecidos institucionalmente a partir do Programa Pontos de Memória, criado em 2009 através de uma parceria entre os Programas Mais Cultura, do Ministério da Cultura, e do Programa Nacional de Segurança Pública e Cidadania – PRONASCI, do Ministério da Justiça[13].

Segundo informações encontradas na página do programa Pontos de Memória na web, ele consistia em “um conjunto de ações e iniciativas de reconhecimento e valorização da memória social”, visando garantir o direito à memória a populações que “requerem maior reconhecimento de seus direitos humanos, sociais e culturais”[14]. A partir do programa, comunidades reconhecidas por desenvolverem “um trabalho sistemático de identificação, registro, compartilhamento e preservação de suas memórias” foram identificadas e selecionadas para integrar um projeto-piloto, e a experiência passou a ser replicada nos anos seguintes, seguindo a mesma lógica (Alcântara, 2019, p.173).

É interessante notar que a utilização do título de museu possibilita diferentes perspectivas acerca da denominada “museologia social”. A proposta de transformação museológica nasce no final dos anos 1970, de mãos dadas aos grandes movimentos sociais da época, tais como movimento feminista e movimento negro, todos buscando, de certa forma, explorar as possibilidades de “descolonização do mundo da vida” em que estavam inseridos – ou seja, o processo de questionamento das relações sociais existentes como o define Habermas (2014). Esse caminho levou ao desenvolvimento do debate acerca do papel dos museus e, durante a Rio-1992, no Rio de Janeiro, passou-se a tratar do tema de forma mais específica na cidade, sendo o Ecomuseu de Santa Cruz o primeiro a ser reconhecido e reconhecer-se dentro dessa nova perspectiva sociomuseológica. Em 1993, os termos museologia social e sociomuseologia foram oficialmente registrados e passaram a ser utilizados para enfatizar o caráter político da proposta, com diversos compromissos, tais como “redução das injustiças e desigualdades sociais; com o combate aos preconceitos; com a melhoria da qualidade de vida coletiva; com o fortalecimento da dignidade e coesão social”, dentre outros (Chagas & Gouveia, 2014, p.17).

Os museus sociais da cidade do Rio de Janeiro podem ser entendidos, a partir do colocado, como partes de um movimento das classes subalternas de criação de uma identidade coletiva em contraposição à criminalização e de busca por amplo reconhecimento. Analisá-los como integrantes do repertório de ação dos movimentos sociais favelados na cidade nos direciona a percebê-los como importante quadro interpretativo (seguindo categoria proposta por Tarrow, mencionado acima). Os Museus Sociais têm como objetivos preservar a memória da população que vive ou viveu nesses locais e servir como repertório de luta coletiva. Ao passo que demonstram sua existência nos territórios por décadas, buscam negar a ideia de “ocupação irregular”, por exemplo, tão utilizada como justificativa para remoções e políticas higienistas. A proposta dos museus é casada à luta dos movimentos favelados, e sua existência marca a permanência das pessoas no território, procurando dificultar qualquer ameaça de remoção.

Percebe-se um direcionamento das ações reivindicativas para o setor cultural, capitaneado pelo IBRAM (Instituto Brasileiro de Museus) e pelo atualmente extinto Ministério da Cultura. Pode-se argumentar que esse caminho é tomado, em razão das oportunidades políticas abertas por essas esferas (e fechadas com a extinção do Ministério das Cidades, por exemplo), e como resposta à criminalização das vidas faveladas. Ditas oportunidades relacionam-se às transformações ocorridas no país desde a redemocratização. Seus efeitos e a posterior introdução da agenda neoliberal à participação civil foram analisados por Evelina Dagnino (2005). A autora assinala que, na contramão dos avanços realizados pós-88, houve uma crescente dimensão individualista da participação civil no país. Isso se deu, principalmente, porque o estado neoliberal, além de retirar de sua responsabilidade a oferta de direitos sociais básicos, instrumentalizou os acessos à participação.

Segundo a análise de Dagnino, temas como pobreza e desigualdade foram retirados da pauta pública e tornaram-se de responsabilidade privada, passíveis, portanto, de soluções solidárias e filantrópicas. A privatização desses temas, por seu lado, dificultou a definição de um espaço público mais democrático no Brasil, onde predomina uma cultura política que não leva em conta as práticas cotidianas de exclusão e a completa privação de direitos a que é submetida grande parte da população. O resultado disso seria uma prevalente transferência de serviços de garantia de direitos (de bem-estar social) a terceiros, como ONGs e fundações. Os movimentos sociais, no contexto exposto por Dagnino, passam a ser criminalizados, ficando a esfera da participação cívica circunscrita às organizações do terceiro setor, creditadas como confiáveis em um cenário de união entre valores neoliberais e provisão de direitos relativos ao bem-estar social, na qual a compreensão de cidadania é erodida e passa a se confundir com participação.

Nesses contextos de criminalização, surgem os espaços para a criação das formas alternativas de reconhecimento de que fala Roy. Os museus sociais simbolizam, assim como muitas outras iniciativas culturais empreendidas pelos movimentos favelados, um embate com a cultura dominante, com a força do Estado. Tendo nascido justamente como parte do processo contra as remoções, esses museus se tornaram importantes ferramentas de luta contra um formato de Estado colonizador, que impõe determinadas formas de existência a certas camadas sociais, e que não reconhece os tipos de vida que essas pessoas levam como dignas de serem vividas.

Há, portanto, através da formação dos museus sociais, uma demanda por agência na construção e participação da e na cidade. Essa demanda se situa no trânsito entre reivindicação material e sua significação simbólica, como desenvolve Ilse Scherer-Warren (2009). Ao traduzirem em linguagem acessível as reivindicações dos movimentos, os Museus Sociais promovem a possibilidade de engajamento de pessoas não diretamente atingidas pela criminalização, tais como pesquisadores e universidades, possibilitando a participação eletiva nos movimentos sociais por indivíduos que compartilham dos valores de uso e participação da cidade, publicizados pelos movimentos.

Os movimentos de mães e familiares de vítimas de violência estatal, por seu lado, elaboram suas ações coletivas em um processo que lança a dor e o sofrimento do luto na esfera pública, em contraposição ao exercício do controle social repressivo nas favelas e ao governo das mortes dele decorrente. Desse modo, uma rede de movimentos sociais entrelaça todo um conjunto de ações, gramáticas e significados, que mobilizam estratégias de cuidado, solidariedade, memória, emoções e reivindicações por direitos e justiça, buscando transmutar os significantes por meio dos quais seus entes queridos são apreendidos e desconstruir a naturalização e a fabricação da legitimidade dessas mortes.

Em especial a partir de 1990, inúmeras mobilizações, atos públicos e movimentos sociais organizados por familiares de vítimas de violência no “asfalto” e nas favelas, tiveram as mães como principais protagonistas, configurando tanto o engajamento individual, quanto o coletivo, através de movimentos específicos, como as Mães de Acari; a Associação dos Parentes das Vítimas e dos Sobreviventes da Chacina de Vigário Geral; o movimento Posso me identificar? e, posteriormente, a Rede de Comunidades e Movimentos contra a Violência e a Rede de Mães e familiares de vítimas da Violência de Estado na Baixada Fluminense, dentre diversos outros grupos de mães que se organizam a partir de suas localidades, como as Mães de Manguinhos e as Mães sem Fronteiras do Chapadão[15].

Ao acompanhar de perto esses movimentos no Rio, foi possível identificar narrativas de encontro entre memórias do passado e do presente, entre memória individual e coletiva, compreendendo como as ações coletivas se encontram imbricadas na apreensão da memória narrada pelas mães, não como uma espécie de reflexo do passado, mas como uma construção compartilhada coletivamente nas relações entre elas e no processo da luta política, como definiria Melucci (2001), enquanto parte da produção social da “identidade coletiva” das mães como “mãe de vítima de violência de Estado”. Essa composição abrange a legitimidade que compartilham em meio ao luto, enquanto mães de vítimas, de falar publicamente, de evocar o sofrimento e elaborar a memória da perda, ao passo que exigem justiça e a reparação do irreparável.

Ao colocar suas vozes e vivências na esfera pública, as mães e familiares que sofrem com a perda irreparável de um ente querido elaboram suas ações coletivas diante das vivências de grande precariedade, vulnerabilidade e do extremo da distribuição desigual até mesmo da possibilidade de enlutar um filho. Compreender essas interlocuções implica pensá-las no acionamento do caráter indissociável relativo às dinâmicas de opressão estrutural – e da trilha do conjunto de opressões que a rede de mães expressa. Tais opressões se inserem na demarcação de uma perspectiva interseccional, compondo os múltiplos significados da herança escravocrata, patriarcal e de classe do país. Nesse contexto, a maternidade funciona como mecanismo catalisador da possibilidade de politização, interligando estruturas de raça, classe e gênero, como sugerem os estudos que enfatizam a interseccionalidade (Collins, 1994).

Em um processo, ao mesmo tempo, individual e coletivo, todo esse complexo de arranjos e texturas envolve memória, vida e morte, e possui forte carga emocional e simbólica, entretecendo delineados particulares no desenvolvimento de recursos e estratégias específicas de atuação, direcionadas tanto pelo luto, quanto pelo manifesto cuidado e solidariedade entre as mães e familiares. De um lado, conectando indignação e sofrimento em meio ao luto pessoal, através de um processo de subjetivação, as mães e familiares de vítimas também constituem a si mesmas, em um processo de produção de si e de mudança em suas visões de mundo que é central em relação à própria construção da identidade coletiva e que se produz a partir das vivências e do compartilhamento de emoções no âmbito das ações coletivas.

De outro lado, a força da solidariedade entre as mães e familiares se refere também às formas cotidianas de luta que não representam necessariamente uma confrontação coletiva, mas que constituem elaborações da ordem do dia a dia que, em geral, não são observadas nas análises dos movimentos sociais e, no entanto, são fundamentais, em particular diante dos inúmeros impactos à saúde física e mental dessas pessoas (Scott, 2011). Tais arranjos engendram estratégias de cuidado, resistência e recomposição do mundo despedaçado que podem fazer com que a morte ceda lugar à vida, com que o luto se torne luta[16].

As mães e familiares em luta se organizam a partir de redes de movimentos sociais[17] que entrecruzam diversos atores, organizações e movimentos em vários níveis de articulação, em contínua elaboração, construção identitária e busca por reconhecimento na sociedade (Scherer-Warren, 2006). Ao observar os movimentos de mães, é possível compreender como estão intrinsecamente relacionados a essa atuação em rede, não só enquanto espaço de definição de práticas coletivas e ações políticas e sociais, mas também através dos modos de organização que a diferenciam da política tradicional mais vertical e hierarquizada.

Os elos que se estabelecem entre as mães não se dão apenas em uma dimensão organizacional ou estratégica. Como mencionamos, elas estabelecem entre si uma rede de solidariedade e apoio mútuo que implica a construção das subjetividades e identidades coletivas. De acordo com Geoffrey Pleyers (2018), o processo de subjetivação faz parte da confecção de uma “identidade positiva e propositiva” que permitirá a constituição do movimento social, deslocando os sujeitos da condição de vítima para a condição de ator social, em meio às demandas contra a impunidade e por reconhecimento de direitos.

Desse modo, as mães e familiares têm se articulado em rede em contraposição à violência estatal, em nível local e comunitário no Rio de Janeiro, buscando conectar-se com organizações e movimentos de mães de outros estados, estruturando uma articulação nacional que se desenvolve em torno do “Encontro Nacional de Mães e Familiares de Vítimas de Terrorismo do Estado” e da “Rede Nacional de Familiares de Vítimas do Terrorismo do Estado”. Esse processo em contínua construção é alcançado através da facilitação na comunicação via internet e por meio das redes sociais, que garantem a manutenção do contato entre as mães e que permitem arrecadar recursos e viabilizar a organização dos encontros anuais e outros eventos em várias regiões do país.

Como fruto dessa atuação, produz-se forte diálogo e reflexividade entre os movimentos, apoiadores, ativistas e parte do mundo acadêmico. Nessa direção, as mães se contrapõem às representações da guerra às drogas e à militarização, questionam as decisões em torno das políticas de segurança pública e dos recursos públicos investidos com as operações policiais e intervenções militarizadas, em detrimento de políticas que possam garantir os direitos de cidadãos em situação de vulnerabilidade.

Em sua luta, no grito que enunciam ao final de tantos discursos públicos: “Nossos filhos têm mãe, nossos mortos têm voz!”, os movimentos de mães e familiares fazem ecoar uma reivindicação pelo “direito a ter direitos” enunciado por Hannah Arendt (2009), que não trata apenas da garantia do direito à voz, enquanto direito ao exercício da liberdade de expressão na esfera pública, mas da construção de uma forma de resistência que se encontra intrinsecamente associada à possibilidade de sobrevivência.

Considerações finais

Charles Tilly (1998; 2005) aponta para as categorias raça/etnia, gênero, classe e nacionalidade como marcadores sociais mais significativos das “desigualdades duráveis”. Sua análise ajuda a entender o processo de construção da sociedade brasileira, com grande parcela da população deixada às margens do acordo social, em uma realidade desprovida dos direitos sociais mais básicos, como saúde, educação, saneamento e moradia, e, também, do direito civil de acesso à justiça. Seguindo um processo de “esquizofrenia social” (Paiva, 2004), em que determinados grupos estão sujeitos a diversas formas de preconceito, estigmas e violações de direitos, foi sendo constituída uma desigualdade durável e persistente.

Os movimentos sociais de favelados fazem parte de um processo da articulação desse segmento da sociedade civil que se organizou em associações, organizações e movimentos sociais, denunciando o acordo social incompleto no tocante aos diversos tipos de direitos. Em especial a partir da década de 1980, esse processo representou o momento em que começa a haver a “quebra de consenso”, para usar a definição de Hannah Arendt (1999), quando a aquiescência a padrões existentes é questionada.

A década de 1990 inaugurou, assim, várias formas inovadoras de participação e de demandas de movimentos sociais específicos, ao passo que há um alargamento da reflexividade necessária para sair da conformidade perante formas de dominação existentes, sejam elas econômicas, sociais ou culturais. Mesmo que a educação formal universalizada e de qualidade ainda fosse uma promessa para a maioria da população, as pedagogias alternativas dos movimentos e associações das periferias (Gohn, 2012) representaram caminhos virtuosos de engajamento para a construção de distintas subjetividades.

As décadas seguintes trouxeram um aperfeiçoamento nas estratégias de participação e no repertório de interação Estado-sociedade, mas foi um caminho tenso e como sempre ambíguo. Como lembra Adorno (2008), essas novas formas conviviam com a violência estrutural da sociedade brasileira. As reações à visão de mundo de sujeito de direitos da Constituição de 1988 podem ser exemplificadas pelas chacinas perpetradas contra a população pobre e pelo controle dos territórios subjugados sob o manto da violência.

Na análise apresentada, mostrou-se como essa tensão está presente na violência a partir do Estado, direcionada à parcela específica da população. Dita violência favoreceu a diversificação do repertório de ação dos movimentos sociais, que não têm mais no Estado seu principal opositor (McDonald, 2004; Della Porta, 2015), e valorizam a formação de redes e a tradução de suas demandas a parcelas mais extensas da população. Pode-se afirmar, a partir da análise dos movimentos sociais exposta, que a criminalização das identidades relacionadas às margens, por parte do Estado, leva os movimentos a buscarem outras formas de organizar suas demandas, que não somente em políticas públicas.

O quadro delineado toca, em particular, a cidade do Rio de Janeiro, ainda que se possa observar que a criminalização dos sujeitos e movimentos sociais favelados seja uma realidade em muitas outras partes do Brasil e do mundo. Os repertórios adotados pelos movimentos sociais, aqui brevemente apresentados, lançam luz às formas de tradução que têm encontrado para denunciar o fracasso social demonstrado pela criminalização e angariar apoio de parcelas expressivas da população, tecendo redes e construindo lugares de memória capazes de produzir formas de “urbanismo subalterno”, diante de modos de exercício do controle social repressivo que, por vezes, atua quase inviabilizando a continuidade da vida.

A partir de pesquisa extensa com os movimentos sociais elencados, mobilizou-se a literatura sobre violência e repressão nos lugares das margens, unida à dos movimentos sociais, de modo a lançar luz às formas de atuação que os grupos encontram frente aos desafios da criminalização das subjetividades relacionadas às populações faveladas. As pesquisas indicam não só a necessidade de análises com ênfase nos movimentos sociais favelados, mas também a interpretação da ampliação de seu repertório de ação advinda da consolidação das identidades coletivas.

Referências

Abers, Rebeca, Serafim, Lizandra, & Tatagiba, Luciana. (2014). Repertórios de Interação Estado-Sociedade em um Estado Heterogêneo: a Experiência na Era Lula. Dados, 57(2), 325-357.

Adorno, Sérgio. (2008). Direitos Humanos. In Ruben G. Oliven, Marcelo Ridenti, & Gildo M. Brandão (orgs) A Constituição de 1988 na vida Brasileira (pp. 191-224). São Paulo: Aderaldo & Rothschild Editores: ANPOCS.

Alcântara, Camila F.S.M. (2019). Museus em periferias urbanas brasileiras. Horizontes Antropológicos, 25(53), 169-201. https://doi.org/10.1590/s0104-71832019000100007

Almeida, Brena C. de. (2019). Quando é na favela e quando é no asfalto: controle social repressivo e mobilizações entre lugares de luta. Tese (Doutorado em Ciências Sociais), Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Disponível em: http://www.cis.puc-rio.br/assets/pdf/PDF_CIS_1574786412_Brena_Costa_de_Almeida_-_2019.pdf.

Araújo, Fábio A. (2007). Do Luto à Luta: A Experiência das Mães de Acari. Dissertação (Mestrado em Sociologia) Universidade Federal do Rio de Janeiro. Disponível em: http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action=&co_obra=86052

Arendt, Hannah. (1999). Crises da República. São Paulo: Editora Perspectiva.

Arendt, Hannah. (2009). As origens do totalitarismo. São Paulo: Companhia das letras.

Birman, Patrícia, & Leite, Márcia P. (orgs). Um mural para a dor: movimentos cívico-religiosos por justiça e paz. Porto Alegre: Ed. da UFRGS.

Castells, Manuel. (2002). A sociedade em rede: a era da informação: economia, sociedade e cultura, vol. 1. São Paulo: Paz e Terra.

Cavalcanti, Mariana. (2013). À espera em ruínas: urbanismo, estética e política no Rio de Janeiro da ‘PACificação’. Dilemas - Revista de Estudos de Conflito e Controle Social, 6(2), 191-228.

Chagas, Mario, & Gouveia, Inês. (2014). Museologia social: reflexões e práticas (à guisa de apresentação. Cadernos do CEOM, 27(41), 9-22.

Coimbra, Cecília. (2001). Operação Rio. O mito das classes perigosas: um estudo sobre a violência urbana, a mídia impressa e os discursos de segurança pública. Rio de Janeiro: Oficina do Autor e Intertexto.

Collins, Patricia H. (1994). Shifting the center: race, class, and feminist theorizing about motherhood. In: Evelyn N. Glenn, Grace Chang, & Linda R. Forcey (eds.). Mothering: Ideology, Experience, and Agency. New York: Routledge.

Cortés, Alexis. (2018). Favelados e pobladores nas ciências sociais: a construção teórica de um movimento social. Rio de Janeiro: Ed. UERJ

Dagnino, Evelina. (2005). Meanings of Citizenship in Latin America. IDS Working paper, Institute of Development Studies, Brighton.

Das, Veena, & Poole, Deborah. (2004). Antropology in the margins of the state. Oxford University Press, New Delhi.

Della Porta, Donatella. (2015). Social Movements in Times of Austerity: Bringing capitalism back into protest analysis. Polity Press, Cambridge.

Farias, Juliana. (2007). Estratégias de Visibilidade, Política e Movimentos Sociais: reflexões sobre a luta de moradores de favelas cariocas contra violência policial. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

Farias, Juliana. (2014). Governo de Mortes. Uma etnografia da gestão de populações de favelas no Rio de Janeiro. Tese (Doutoradoem Sociologia e Antropologia). Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Faulhaber, Lucas, & Azevedo, Lena (2016). SMH 2016: Remoções no Rio de Janeiro Olímpico. 1.ed. Rio de Janeiro, Mórula.

Ferreira dos Santos, Carlos N. (1981). Movimentos Urbanos no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Zahar.

Fórum Brasileiro de Segurança Pública, & Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. (2019). Atlas da Violência. Rio de Janeiro e São Paulo: FBSP e IPEA.

Foucault, Michel. (2009). Vigiar e punir: nascimento da prisão. 36ª ed. Rio de Janeiro: Vozes.

Gohn, Maria da Gloria. (2012). Movimentos sociais e educação. São Paulo: Cortez.

Graham, Stephen (2016). Cidades Sitiadas: o novo urbanismo militar. São Paulo: Boitempo

Guimarães, Alberto P. (1981). As classes perigosas: banditismo urbano e rural. Rio de Janeiro: Graal.

Habermas, Jurgen. (2014). Mudança estrutural da esfera pública: investigações sobre uma categoria da sociedade burguesa. São Paulo: Unesp.

Instituto de Segurança Pública do Rio de Janeiro. (2020). Séries Históricas Anuais de Taxa de Letalidade Violenta no Estado do Rio de Janeiro e Grandes Regiões. Rio de Janeiro: ISP, março, 2020. Disponível em: http://www.ispdados.rj.gov.br/Arquivos/SeriesHistoricasLetalidadeViolenta.pdf

Lavalle, Adrián G., Carlos, Euzeneia, Dowbor, Monika, & Szwako, Jose E. (2019). Movimentos sociais e institucionalização. Rio de Janeiro: Editora UERJ.

Leite, Márcia P. (2012). Da metáfora da guerra ao projeto de pacificação: favelas e políticas de segurança pública no Rio de Janeiro. Revista Brasileira de Segurança Pública, 6(2), 374-389.

Leite, Márcia P., Farias, Juliana, Rocha, Lia de M., & Carvalho, Monique (orgs). (2018). Militarização no Rio de Janeiro: da pacificação à intervenção. Rio de Janeiro: Mórula.

Machado da Silva, Luís Antônio, & Leite, Márcia P. (orgs.). (2008). Vida sob cerco: violência e rotina nas favelas do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.

Machado da Silva, Luís Antônio, & Leite, Márcia P. (2007). Violência, crime e polícia: o que os favelados dizem quando falam desses temas? Sociedade e Estado, 22(3), 545-591.

Magalhães, Alexandre. (2018). A lógica da destruição: sufocamento, asfixia e resistências nas favelas do Rio de Janeiro. In Márcia P. Leite, Lia de M. Rocha, Juliana Farias, & Monique Carvalho (orgs.). Militarização no Rio de Janeiro: da pacificação à intervenção (pp. 262-281). Rio de Janeiro: Mórula Editorial.

Mbembe, Achille (2018). Crítica da razão negra. São Paulo: n-1 edições.

Melucci, Alberto. (2001). A invenção do presente. Petrópolis: Vozes.

Menezes, Palloma V. (2018). “Vivendo entre dois deuses”: a fenomenologia do habitar em favelas “pacificadas”. In Márcia P. Leite, Lia de M. Rocha, Juliana Farias, & Monique Carvalho (orgs.). Militarização no Rio de Janeiro: da pacificação à intervenção (pp. 262-281). Rio de Janeiro: Mórula Editorial.

Menezes, Palloma V. (2015). Entre o “Fogo Cruzado” e o “Campo Minado”: uma Etnografia do Processo de “Pacificação” de Favelas Carioca. Tese (Doutorado em Sociologia). Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

McDonald, Kevin. (2004). Oneself as Another: From Social Movement to Experience Movement. Current Sociology, 52(4), 575-593.

Paiva, Angela R. (2004). A difícil equação entre modernidade e desigualdade. Interseções, 6(1), 7-17.

­­­­­­­­­Pleyers, Geoffrey. (2018). Movimientos sociales en el siglo XXI: perspectivas y herramientas analíticas. Buenos Aires: Clacso.

Ramos, Silvia. (2016). Violência e polícia: três décadas de políticas de segurança pública no Rio de Janeiro. Boletim Segurança e Cidadania, 21. Rio de Janeiro: Cesec.

Roy, Ananya. (2017). Cidades faveladas: repensando o urbanismo subalterno. Revista e-metropolis, 8(31), 6-21.

Sanches, Taísa (2020). Morar é pessoal, político e cultural: experiências de precariedade e luta por moradia em Londres e Rio de Janeiro. Tese (Doutorado em Ciências Sociais), Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.

Santos Jr., Orlando. (2015). Governança empreendedorista: a modernização neoliberal. In Luiz Cesar Q. Ribeiro (org). Rio de Janeiro: transformações na ordem urbana (pp. 453-483) . Rio de Janeiro: Observatório das Metrópoles/ Letra Capital.

Santos Jr., Orlando. (2019). Participação e Insurgências: ideias para uma agenda de pesquisa sobre os movimentos sociais no contexto da inflexão ultraliberal no Brasil. Revista e-metropolis, 10(39), 13-25.

Scherer-Warren, Ilse. (2009). Redes para a (re)territorialização de espaços de conflito: os casos do MST e MTST no Brasil. Interface, 1(1), 105-124.

Scherer-Warren, Ilse. (2006). Das mobilizações às redes de movimentos sociais. Sociedade e Estado, 21(1), 109-130.

Scott, James C. (2011). Exploração normal, resistência normal. Revista Brasileira de Ciência Política, 5, 217-243.

Soares, Luiz Eduardo. (1996). Violência e Política no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: ISER, Relume Dumará.

Soares, Luiz Eduardo. (1998). Sociedade Civil e movimentos sociais no mundo globalizado. Comunicações ISER, 49, 25-45.

Tarrow, Sidney. (2009). O poder em movimento: movimentos sociais e confronto político. Petrópolis: Vozes.

Thiollent, Michel. (2011). Metodologia da pesquisa-ação. São Paulo: Cortez.

Tilly, Charles. (1995). Popular contention in Great Britain 1758 - 1834. London: Paradigm Publishers.

­­Tilly, Charles. (1998). Durable inequality. Berkeley e Los Angeles: University of California Press.

Tilly, Charles. (2005). Identities, boundaries and social ties. London: Paradigm Publishers.

Vianna, Adriana, & Farias, Juliana. (2011). A guerra das mães: dor e política em situações de violência institucional. Cadernos Pagu, 37, 79-116.

Wacquant, Loïc (2003). Punir os pobres. a nova gestão da miséria nos Estados Unidos. Rio de Janeiro: Revan.

Wacquant, Loïc. (2005). Os condenados da cidade: estudos sobre a marginalidade avançada. Rio de Janeiro: Revan.

Zaccone, Orlando. (2015) Indignos de vida: a forma jurídica da política de extermínio de inimigos na cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Revan.

Notas

[1] Em 2016 foi aprovada a Lei 13.260, conhecida como Lei Antiterrorismo. A aprovação da lei representou uma sinalização de maior controle às manifestações coletivas. Além disso, permanecem tensões entre setores do Legislativo em torno de outros projetos de lei que ainda podem ser discutidos e votados, e que preveem a criminalização direta de movimentos sociais e de manifestações de apoio ou de crítica com objetivos reivindicativos.
[2] A noção de margens refere-se àquela desenvolvida por Veena Das e Deborah Poole (2004), segundo a qual as ações estatais são realizadas de modo específico nos territórios marginalizados e no que toca à população que os habita.
[3] Lançado no final de 2008, o projeto das UPPs teve como proposta a ocupação permanente e militarizada de determinados territórios por agentes estatais, com o objetivo de “recuperá-los” do controle de grupos armados ilegais.
[4] O autor defendeu que “'the construction of prisons has effectively become the country's main housing programme” em entrevista concedida ao programa Thinking Allowed, da BBC. Para ouvir, acessar: https://www.bbc.co.uk/sounds/play/b00n1jbd. Acesso em janeiro de 2020.
[5] Em ambas as comunidades cariocas, existem movimentos sociais em luta por moradia organizados. Também nos dois casos, os Museus Sociais constituem-se como repertório de ação. Para maior aprofundamento sobre essas questões, ver Sanches (2020).
[6] Para mais detalhes, ver: Almeida (2019) e Sanches (2020).
[7] “The word repertoire helps describe what happens by identifying a limited set of routines that are learned, shared, and acted out through a relatively deliberate process of choice. Repertoires are learned cultural creations, but they do not descend from abstract philosophy or take shape as a result of political propaganda; they emerge from struggle. People learn to break windows in protest, attack pilloried prisoners, tear down dishonored houses, stage public marches, petition, hold formal meetings, organize special-interest associations. At any particular point in history, however, they learn.”
[8] A letalidade violenta corresponde ao somatório dos seguintes títulos: homicídio doloso, roubo seguido de morte, lesão corporal seguida de morte e morte por intervenção de agente do Estado. A série histórica da taxa de homicídio doloso é contabilizada por 100 mil habitantes (ISP/RJ, março de 2020), disponível em: , acesso em 02 de junho de 2020.
[9] O estabelecimento da disciplinarização implica não apenas o deslocamento da população pobre para longe dos centros urbanos, mas também serve ao esquadrinhamento de áreas para o controle da rotina e enquadramento disciplinar dos indivíduos (Foucault, 2009).
[10] A expressão vivendo no “fogo cruzado” e “entre dois deuses” foi empregada por Menezes (2015, 2018).
[11] O procedimento do “auto de resistência” foi regulamentado durante o regime militar em 1969. Figura como espécie de investigação especial para esclarecer lesões corporais e mortes praticadas por policiais em serviço, evitando a prisão em flagrante quando há o chamado “uso legal da força”, previsto na lei penal.
[12] Definido da seguinte forma pelas autoras: “sugerimos complementar a noção original de repertoire of contention, de Tilly, através do conceito de “repertório de interação” entre Estado e sociedade civil. Esta ampliação permite incorporar a diversidade de estratégias usadas pelos movimentos sociais brasileiros e examinar como estas têm sido usadas, combinadas e transformadas” (Abers et al., 2014, p.331-332).
[13] Os museus sociais já existiam antes deste reconhecimento. É o caso, por exemplo, do Museu da Maré, reconhecido em 2006 como Ponto de Cultura. O Museu Sankofa, da Rocinha, também é anterior à política de reconhecimento dessas iniciativas; foi inaugurado em 2003.
[15] Acerca dos processos de mobilização e do histórico dos vários grupos de mães e familiares de vítimas no Rio, ver: Birman e Leite (2004); Araújo (2007); Vianna e Farias (2011); Juliana Farias (2007, 2014) e Almeida (2019).
[16] Uma análise mais detida dos movimentos de mães e familiares de vítimas de violência estatal na atualidade pode ser encontrada em Almeida (2019).
[17] Um aporte fundamental é elaborado por Manuel Castells (2002), para quem as redes compõem uma espécie de nova “morfologia social” que rearranja as relações de poder, funcionando como elemento estruturante da sociedade de informação na contemporaneidade, atravessando as dimensões institucionais e culturais, estruturando também os movimentos sociais.
HTML generado a partir de XML-JATS4R por