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Mulheres em cena: disputas em torno da inclusão de grupos marginalizados na 5ª Conferência Municipal de Políticas para as Mulheres de São Paulo
Ana Paula Rodrigues Diniz; Mariana Mazzini Marcondes; Beatriz Rodrigues Sanchez
Ana Paula Rodrigues Diniz; Mariana Mazzini Marcondes; Beatriz Rodrigues Sanchez
Mulheres em cena: disputas em torno da inclusão de grupos marginalizados na 5ª Conferência Municipal de Políticas para as Mulheres de São Paulo
Women on the scene: Disputes over the inclusion of marginalized groups in the 5th Municipal Conference of Policies for Women of São Paulo
Revista Brasileira de Sociologia, vol. 8, núm. 20, pp. 199-223, 2020
Sociedade Brasileira de Sociologia
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Resumo: Nas duas primeiras décadas do Século XXI, as conferências projetaram-se como importante instância de estruturação de políticas para as mulheres no Brasil. Nesse contexto, por meio de um estudo de caso qualitativo, analisamos os discursos e argumentações da 5ª Conferência Municipal de Políticas para as Mulheres da Cidade de São Paulo, com o objetivo de debater em que medida instituições participativas contribuem para a inclusão de grupos marginalizados. Por meio dessa análise, depreendemos a articulação de diferentes discursos, personagens discursivas, cenografias, modos de enunciação e meios de persuasão, a fim de obter a adesão às diferentes teses defendidas. Concluímos que esses espaços participativos, que foram planejados a partir de uma concepção de democracia mais inclusiva, podem reproduzir formas de desigualdade e exclusões.*

Palavras-chave:Conferências de Política PúblicaConferências de Política Pública,FeminismoFeminismo,Análise do DiscursoAnálise do Discurso.

Abstract: In Brazil, over the first two decades of the 21st century, participatory conferences became an important instance of structuring policies for women. In this context, through a qualitative case study, we analyze the speeches and arguments of the 5th Municipal Conference of Policies for Women of the City of São Paulo, with the purpose to investigate in which measures participatory institutions contribute to the inclusion of marginalized groups. Through this analysis, we enlighten the articulation of different discourses, aiming to obtain adhesion to the different theses defended. Also, we identified discursive characters, scenographies, and modes of enunciation. We conclude that these participatory institutions may reproduce forms of inequality and exclusions, even though they are meant to adopt a more inclusive conception of democracy.

Keywords: Public Policy Conference, Feminism, Discourse Analysis.

Carátula del artículo

Dossiê

Mulheres em cena: disputas em torno da inclusão de grupos marginalizados na 5ª Conferência Municipal de Políticas para as Mulheres de São Paulo

Women on the scene: Disputes over the inclusion of marginalized groups in the 5th Municipal Conference of Policies for Women of São Paulo

Ana Paula Rodrigues Diniz
University of Essex, Reino Unido
Mariana Mazzini Marcondes
Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Brasil
Beatriz Rodrigues Sanchez
Universidade de São Paulo, Brasil
Revista Brasileira de Sociologia, vol. 8, núm. 20, pp. 199-223, 2020
Sociedade Brasileira de Sociologia

Recepción: 30 Mayo 2020

Aprobación: 22 Septiembre 2020

1 Introdução

As conferências de políticas públicas constituíram-se em esferas de participação proeminentes no cenário brasileiro durante as duas primeiras décadas do século XXI. Criadas nos anos 1930 e remodeladas a partir de 2003, elas ganharam relevância durante as gestões do Partido dos Trabalhadores (PT – 2003-2016) em nível federal (Avritzer, 2013; Souza, Cruxên, Lima, Alencar & Ribeiro, 2013). Nesse contexto, as conferências projetaram-se como uma das principais instâncias de diálogo entre Estado e sociedade civil para pactuação de diretrizes de políticas públicas.

A Conferência Nacional de Políticas para as Mulheres (CNPM) surgiu nesse processo. Criada em 2004, a CNPM visou construir diagnósticos e propostas voltadas a subsidiar políticas para as mulheres, em todos os níveis federativos, com a participação de movimentos feministas e de mulheres[1] (Brasil-SPM, 2015; Matos & Alvarez, 2018). No total, foram realizadas quatro edições nacionais, além das subnacionais.

Pesquisas sobre conferências têm debatido seus múltiplos aspectos, por exemplo, a efetividade dessas instâncias na democratização da deliberação pública e orientação da ação estatal (Avritzer, 2013), suas interfaces com o ciclo de políticas públicas (Souza et al., 2013), além dos padrões de interação Estado-sociedade (Abers, Serafim & Tatagiba, 2014). Há, ainda, reflexões que enfocam menos seus resultados e mais os processos de (re)construção de identidade de sujeitos coletivos que atuam nesses espaços (Aguião, 2016). Partindo dessa última abordagem, buscamos, neste artigo, investigar a ação coletiva constitutiva das identidades dos feminismos e a dinâmica de inclusão/exclusão de sujeitos marginalizados nessa identidade.

Para isso, tomamos a literatura acima citada sobre conferências como ponto de partida, mas agregamos também elementos da Análise do Discurso (AD) (Fairclough, 1985; Maingueneau, 2001; 2012; 2013; 2015; Fiorin, 1999). Assim, compreendemos as conferências como eventos essencialmente políticos e argumentativos, em que uma multiplicidade de atrizes defende seus pontos de vista e tenta persuadir as participantes a apoiá-los, invocando, compartilhando, disputando e reconstruindo visões de mundo e identidades. As teses que conseguem a adesão do auditório podem influenciar as políticas de uma determinada área. Nessa dinâmica, permeada por relações de poder, emergem discursos, personagens, cenografias e modos de enunciação, inclusive reconstituindo memórias discursivas daquela arena participativa.

Ancorando-nos nessas bases, realizamos uma análise dos discursos e dos argumentos mobilizados durante a 5ª Conferência Municipal de Políticas para as Mulheres da Cidade de São Paulo (5ª CMPM-SP), realizada entre os dias 18 e 20 de setembro de 2015, enfocando a (re)construção de identidades feministas e a inclusão/exclusão de grupos marginalizados nelas. Para isso, realizamos uma pesquisa qualitativa, baseada em um estudo de caso único (Gibbs, 2009), correspondente à plenária de abertura dessa conferência.

Nosso argumento é que, antes mesmo da entrada das atrizes em cena, a 5ª CMPM-SP já tinha um palco e um roteiro estruturados. Entretanto, esse quadro cênico foi parcialmente validado e parcialmente reconstruído a partir da interação entre as atrizes. Nesse processo, não apenas as regras do jogo e as representações de democracia e feminismos estiveram em disputa, mas também as identidades e a legitimidade das protagonistas nessa Conferência. Nesses termos, concluímos que esses espaços participativos, planejados a partir de uma concepção de democracia mais inclusiva, também reproduzem desigualdades e exclusões.

Este trabalho está organizado em seis seções, incluindo esta introdução. Na segunda, apresentamos o referencial teórico-metodológico, ancorado na AD. Em seguida, apresentamos o percurso metodológico da pesquisa. A quarta seção é dedicada à reconstituição do quadro cênico e da cenografia da 5ª CNPM. Na quinta seção, com a entrada das atrizes em cena, analisamos a dinâmica argumentativa e a construção de identidades discursivas, estabelecendo um diálogo com a literatura feminista. Por fim, apresentamos uma síntese dos principais resultados e destacamos possíveis contribuições deste trabalho.

2 Argumentação no palco do teatro discursivo

A Análise do Discurso (AD) visa construir uma interpretação possível dos efeitos de sentido produzidos na interação entre sujeitos e mediados pela linguagem, relacionando texto e contexto (Fairclough, 1985; Fiorin, 1999). Por isso, a dinâmica argumentativa é de especial interesse para a AD, uma vez que, como observa Maingueneau (2013, p. 187), “por um lado a argumentação é necessariamente conduzida pelo discurso, por outro lado, o discurso está constantemente a serviço de pontos de vista argumentativos”. É, portanto, possível (e desejável) compreender os discursos e as argumentações de forma integrada.

Para construirmos o arcabouço teórico-metodológico de nossa investigação, lançamos mão da metáfora do teatro. Trata-se de um recurso recorrente em algumas vertentes de análises de discurso (Charaudeau & Maingueneau, 2016). É possível compreender que as dimensões espaço-tempo do teatro correspondem ao contexto histórico, cuja arquitetura é moldada por relações sociais de poder e dominação, ideologias e práticas sociais (Fairclough, 1985). A estrutura do teatro constrange o discurso, contudo, esse não é apenas resultante do contexto, mas também o (re)constrói.

Nesse teatro há, ainda, um palco e um script, que se conectam à materialidade contextual do teatro. Trata-se, em nossa representação metafórica, do que Maingueneau (2013) denomina de quadro cênico, que compõe um espaço discursivo relativamente estável, em que o enunciado produz efeitos de sentido. Segundo o autor, ele inclui os tipos de discursos (p.ex.: religioso, publicitário, político) e os gêneros discursivos (p.ex.: conversação, receituário médico etc.), sendo que esses últimos definem as unidades de enunciados e temas, podendo ser mais ou menos roteirizados.

A entrada em cena das atrizes pode ou não recompor o teatro e o palco e modificar o script. As personagens discursivas emergem no curso da interação, assim como os efeitos de sentido do discurso, sendo que as atrizes podem deslocar-se por essas personagens, interpretando mais de uma. A identidade dessas personagens é constitutivamente interdiscursiva, uma vez que ela é atravessada e condicionada pelo outro do discurso (Fiorin, 1999; Mendes, 2008; Maingueneau, 2015).

A interdiscursividade, acima mencionada, opera em dois níveis. O primeiro, é o que denominamos de memória discursiva, do qual se depreende que todo discurso retoma outro que lhe precedeu, seja para parafraseá-lo ou para contrapô-lo. Um discurso político sobre a igualdade, realizado em uma conferência de políticas públicas, por exemplo, retoma uma série de discursos precedentes, não sendo “o” discurso inaugural. Apesar dessas constrições, o discurso também pode trazer inovações.

Um segundo nível é o da polêmica constitutiva. A identidade discursiva é forjada em antagonismo com um outro. O interdiscurso não se relaciona, entretanto, apenas por concorrências que resultam de conflito aberto, mas também das alianças e até mesmo de uma neutralidade aparente (Maingueneau, 2015). Importante observar que a neutralidade é apenas aparente, porque não existe o neutro quando se trata de discursos, que são permeados por simbologias e relações de poder. Há, contudo, situações em que discursos não se relacionam por conflitos ou alianças. O discurso feminista antagoniza com o discurso machista, mas pode, por exemplo, associar-se ou não ao discurso da igualdade racial e, ainda, emergir em neutralidade aparente à defesa de direitos de animais.

No desenrolar da peça, as personagens convidam, por meio de seus argumentos, quem com elas interage a identificar-se com um universo de sentidos, mesclando enunciados com representações de mundo. Para isso, elas adotam, segundo Maingueneau (2012, p. 53), uma “maneira de dizer” que é uma “maneira de ser” (exemplo: a esportista, a executiva etc.). Esse tom ou modo de enunciação (Mendes, 2008) pode pertencer, inclusive, a uma comunidade discursiva, ainda que para seus membros isso ocorra de forma imperceptível.

O modo de enunciação possui uma corporalidade textual que, embora não esteja visível, habita a totalidade do plano discursivo (Mendes, 2008). Conforme Maingueneau (2012), esse tom se expressa por meio da modulação da fala, escolha de palavras, pausas e até mesmo olhares. Pode, ainda, depreender-se de indumentárias, adereços e símbolos (como bandeiras e faixas) que sejam associados à enunciadora.

Pelo modo de enunciação, as personagens discursivas elaboram uma cenografia – uma cena –, que se estabelece por meio do próprio discurso e é enlaçada a ele, de modo que, em um movimento espiralado, um reforça o outro (Maingueneau, 2012). As personagens discursivas convidam quem elas pretendem convencer de um argumento a habitar essa cenografia, sendo, portanto, com ela que plateia e participantes se deparam no primeiro contato. Embora uma cenografia possa ser uma reprodução de um quadro cênico estabilizado, é possível que as cenas sejam transformadas durante as interações discursivas[2] (Maingueneau, 2012; Charaudeau & Maingueneau, 2016). Além disso, nessa construção das cenografias, as personagens discursivas podem recorrer às cenas validadas que, segundo Maingueneau (2001, p. 102) são aquelas “já instaladas na memória coletiva, seja a título de modelos que se rejeitam ou de modelos que se valorizam”.

A ancoragem teórico-metodológica que apresentamos pode subsidiar a compreensão de um amplo conjunto de tipos e gêneros discursivos, em que a argumentação seja central. Neste estudo, nós a mobilizamos para a análise da 5ª CMPM-SP.

3 Caminhos metodológicos

A escolha das Conferências de Políticas para as Mulheres como objeto de pesquisa deveu-se ao nosso interesse em refletir sobre as interfaces de discursos e argumentações na construção de identidades feministas. As Conferências constituem uma arena participativa, em que atrizes[3] discutem, negociam e deliberam, baseando-se em diferentes padrões de ação, trajetórias e identidades (Avritzer, 2013; Abers, Serafim & Tatagiba, 2014; Aguião, 2016). Assim, as conferências não apenas (re)constroem reivindicações, mas também (re)formulam identidades coletivas dos sujeitos que nela atuam (Aguião, 2016).

A pesquisa realizada consistiu em um estudo de caso único com análise qualitativa (Gibbs, 2009), privilegiando a investigação aprofundada e contextual para adensar a multiplicidade de elementos observados. O caso escolhido foi a 5ª CMPM-SP, etapa municipal da CNPM, realizada em São Paulo.[4] Isso se deu por duas razões. Primeiramente, por conta da arquitetura federativa do processo de escolha de representantes em conferências, a etapa municipal é a única em que as delegadas não foram eleitas em etapa anterior, sendo potencialmente mais plurais do que as subsequentes.

Em segundo lugar, a escolha desse caso deveu-se ao fato de que o evento realizado nesse município propiciava evidências de dinâmicas, inclusive conjunturais, que também se reproduziam em nível nacional, sem que se perdesse de vista a dimensão local. Com efeito, a 5ª CMPM ocorreu em um momento em que o PT governava o Brasil e a cidade de São Paulo. Essa liderança era fortemente questionada, o que levou, nos anos subsequentes, à destituição da então presidenta Dilma Rousseff e à derrota do prefeito Fernando Haddad em sua tentativa de reeleição.

O corpus da pesquisa foi composto por textos verbais e não verbais. Realizamos a coleta de dados, em um primeiro momento, por meio da observação participante da 5ª CMPM-SP. Nela, acompanhamos as plenárias, painéis e grupos temáticos (GTs), com base em um roteiro para a observação construído previamente, a partir da observação de pré-conferências regionais. Registramos os dados da observação em diário de campo, incluindo registros fotográficos.

A partir dessa primeira incursão, identificamos a plenária de abertura como a etapa de maior conflito na 5ª CMPM-SP. Nela, ocorreu a eleição de delegadas estaduais e a leitura, discussão e votação do regulamento interno – instrumento que estabelece as regras de funcionamento da conferência (SMPM-SP, 2015b). Para investigar os argumentos e discursos, recuperamos o arquivo audiovisual da plenária de abertura, transcrevemos a íntegra das falas das participantes e analisamos seus efeitos de sentido.

A análise partiu da compreensão da linguagem como parte irredutível da vida social, dialeticamente conectada com elementos não linguísticos (Fairclough, 1985). Foram enfocadas as relações semânticas, gramaticais e lexicais, observando os vocabulários empregados e em competição. Além disso, ainda que de modo não central, consideramos as relações fonológicas, que abarcam ritmo e entonação da língua falada, que auxiliaram na compreensão do tom. Se, por um lado, nosso olhar voltou-se principalmente para as práticas linguísticas enquanto parte necessária do processo de produção de sentido, os elementos não linguísticos tampouco foram ignorados. A observação de imagens reprodutoras de indumentárias, adereços e símbolos (como bandeiras e faixas) auxiliou-nos tanto na identificação da corporalidade textual, quanto do contexto socio-histórico.

Nas próximas seções, apresentamos o resultado da análise. Nelas, permeamos a reflexão sobre os dados com contribuições da literatura feminista, inclusive reconhecendo que ela integra a memória discursiva na qual se engendra a ação coletiva de construção de identidades analisadas.

4 O quadro cênico da 5ª CMPM-SP

Para apresentarmos as atrizes em cena na 5ª CMPM-SP, é necessário, primeiramente, contextualizarmos o quadro cênico das Conferências Nacionais de Políticas para as Mulheres (CNPM). Desde a criação da CNPM, em 2004, ela se tornou uma das principais instâncias de participação na estruturação de políticas para as mulheres em todos os entes federativos (Brasil- SPM, 2015; Matos & Alvarez, 2018). Essas políticas ganharam maior relevância após a institucionalização da então Secretaria de Políticas para as Mulheres (SPM) e durante a condução da pasta nos governos petistas (2002-2016).

A CNPM propunha-se a formular diagnósticos, definir propostas e avaliar políticas para as mulheres, subsidiando a construção e implementação de Planos Nacionais de Políticas para as Mulheres. Entre 2004 e 2016, foram realizadas quatro edições, nas quais as etapas municipais e distritais deliberaram sobre resoluções e elegeram delegadas para as etapas estaduais que, por conseguinte, o fizeram para a nacional (Brasil-SPM, 2015).

A 5ª CMPM-SP correspondeu à etapa municipal da 4ª CNPM para a cidade de São Paulo.[5] Realizada em setembro de 2015, seus objetivos foram deliberar sobre propostas e delegação para a etapa estadual e definir orientações para a elaboração do 1º Plano Municipal de Políticas para as Mulheres (SMPM-SP, 2015a). Com o tema “Participação, Políticas Públicas e Consolidação de Direitos: construindo o Plano Municipal de Políticas para as Mulheres”, a programação da Conferência abarcou: solenidade de abertura; plenária de abertura; painéis para prestação de contas da SMPM-SP e para subsidiar a elaboração do Plano Municipal; sete GTs para discussão e elaboração das propostas; e plenária final, para aprovação de propostas e moções, definição de prioridades e eleição de delegadas (SMPM-SP, 2015b).

A plenária de abertura foi o momento de debate e pactuação do Regulamento Interno da 5ª CMPM-SP (SMPM-SP, 2015b, p. 1). Nela, as “regras do jogo” foram votadas em uma dinâmica permeada por disputas. A plenária foi coordenada por representantes do poder público e da sociedade civil, integrantes da Comissão Organizadora Municipal, responsáveis pelo encaminhamento da votação do regimento. Participaram delegadas, com direito à voz e ao voto; convidadas, com direito à voz; e observadoras(es), sem direito a voz ou voto, condição dos homens presentes (SMPM-SP, 2015b). A legitimidade de fala foi, portanto, roteirizada previamente.

O regimento da conferência era seu script. Segundo ele, a posição de oradora era ocupada por diferentes participantes que, dirigindo-se ao auditório, após atender a uma ordem de inscrição, poderiam, por dois minutos, defender ou contrapor-se a uma proposta (“pedindo destaque”), ou apresentar uma questão de ordem ou esclarecimento. Foi, ainda, prevista uma segunda posição de oradora, a coordenadora. Esse lugar coube a representantes governamentais e integrantes da Comissão Organizadora da sociedade civil. Seu tempo e momento de fala eram distintos, assim como o conteúdo abordado. Em relação a elas, o tempo não era restringido, mas o conteúdo de sua fala deveria versar sobre o regulamento, o controle das falas, esclarecimentos e condução do processo de votação.

O auditório constituiu-se no espaço em que se situou a plenária, cabendo a essa votar as teses defendidas. A plenária, soberana no processo decisório, foi composta, majoritariamente, por delegadas e convidadas, vinculadas a organizações ou não. Em uma plenária, como as regras garantem às atrizes iguais condições e tempo para ocupar a posição de oradora e expor seus argumentos, é esperado que, pelo poder de argumentação, as oradoras conquistem a adesão do auditório a suas teses. No caso da plenária de abertura da 5ª CMPM-SP, essas teses diziam respeito às regras do jogo da Conferência.

A partir desses elementos, é possível depreender o quadro cênico da 5ª CMPM-SP. O tipo de discurso predominante foi o político, em que todas as participantes se encontravam no espaço-tempo deliberativo e democrático, fundado, supostamente, no reconhecimento do estatuto de igualdade de fala e de escuta. A argumentação foi central nesta cena, pois foi por meio dela que se buscou persuadir as demais participantes a aderirem a uma determinada tese, que poderia ser desde a aprovação de uma resolução até a eleição de uma delegada. O gênero discursivo, por sua vez, foi o de conferência de políticas públicas, que é relativamente estabilizado, visto que são previamente estabelecidos papeis, finalidade e circunstâncias de enunciação, inclusive por textos normativos (p. ex., regulamentos e regimentos). Todavia, esse gênero comporta variações, permitindo tanto que a cenografia reproduza o quadro cênico, quanto que a transforme. Para refletirmos sobre esse processo, entretanto, é necessário trazer as mulheres para a cena.

5 Mulheres em cena na 5ª CMPM-SP
5.1 Situando as atrizes e suas interações

Abertas as cortinas, as mulheres adentraram a cena, em sua pluralidade de trajetórias, pertencimentos organizacionais e identidades políticas. A presença mais ostensiva foi a de mulheres de partidos e sindicatos que compunham a coalizão de sustentação do governo municipal, especialmente do PT e da Central Única dos Trabalhadores (CUT). Elas se apresentavam vestindo camisetas e portando bandeiras com os símbolos de suas organizações e repetiam palavras de ordem como “Não vai ter golpe”.

O comparecimento de mulheres de diversos movimentos sociais foi também expressivo, com destaque para os de moradia. Igualmente, faziam-se presentes organizações de movimentos feministas, de mulheres negras, de lésbicas, bissexuais, transexuais e travestis (LBTT) e de pessoas com deficiência, além de representantes das regiões da cidade e de associações. A presença dos grupos afirmou-se por meio de cartazes e faixas, contendo pautas prioritárias e símbolos organizacionais, como observamos na Figura 1.


Figura 1
Bandeiras de movimentos e organizações presentes
Fonte: elaboração própria.

Esses elementos compunham o mosaico identitário da plenária. O primeiro nível de expressão desses símbolos abrangeu indumentárias, acessórios e penteados, entre outros. Mulheres do movimento negro utilizaram roupas coloridas e turbantes; representantes de sindicatos e partidos empunharam bandeiras com suas siglas; e militantes de outros movimentos vestiram camisetas personalizadas, com os símbolos das organizações. Havia mulheres que trajavam diferentes adereços, reafirmando símbolos diversos, demonstrando como eram atravessadas por múltiplos marcadores. No entanto, era comum que elas permanecessem reunidas em seus grupos específicos.

Embora o script da conferência tenha sido definido pelo regimento, as normas estabelecidas foram, frequentemente, renegociadas ou subvertidas. Isso se deu pela extrapolação do tempo de fala, pela inclusão de discussões que iam além dos debates sobre o regimento e pelo uso da posição de coordenadora para a defesa de posições. Assim, o script foi reescrito nas interações entre as mulheres participantes.

A identificação dos argumentos, das identidades e das cenografias construídas perpassa a reconstrução dos discursos e personagens discursivas presentes na 5ª CMPM-SP. Para isso, recortamos a principal polêmica que emergiu durante a votação do regimento na plenária de abertura. De forma mais específica, enfocamos a discussão, suscitada sobretudo pelas mulheres travestis e transexuais, sobre a adoção de critérios que permitissem uma maior participação de representantes do grupo LBTT na delegação eleita para a etapa estadual.

Com base nessa reivindicação, foi proposta uma cota de participação, que aumentaria a presença de representantes desse grupo, mas limitaria a participação de outras que estavam em maior número, como integrantes de partidos, sindicatos e movimentos de moradia. Isso instaurou uma polêmica discursiva em torno das múltiplas identidades e desigualdades que estruturam os significados de “mulher(es)”, o que Aguião (2017) também visibilizou em sua análise da CNPM. Além disso, essa polêmica trouxe para o centro do debate a importância da presença dos grupos marginalizados nas instituições estatais como forma de promoção de justiça social e de reparação histórica (Phillips, 1995).

Esta disputa entre os movimentos de mulheres LBTT e as demais organizações refletiu uma tensão mais ampla e histórica entre os movimentos feministas. A crítica à suposta universalidade do sujeito “mulher” foi feita há bastante tempo por teóricas e ativistas feministas lésbicas, como Monique Wittig e Adrienne Rich. Wittig, referência do pensamento feminista francês, chegou a afirmar em uma de suas obras que “as lésbicas não são mulheres” (Wittig, 1992, p. 32). Por essa afirmação, ela buscava questionar a constituição da identidade feminina com base em noções patriarcais, já que, de acordo com ela, a definição do que é ser “mulher” foi estabelecida por homens. Adrienne Rich, por sua vez, criticou o fato de a heterossexualidade compulsória não ter sido incluída entre as preocupações centrais das feministas, desafiando o apagamento das existências lésbicas no pensamento feminista hegemônico (Rich, 2012).

As mulheres trans também questionaram os movimentos feministas por reforçarem, mesmo que inadvertidamente, a essencialização das mulheres. Com a contribuição teórica de Judith Butler (2010), quem demonstrou que não somente o gênero, mas também o sexo é uma construção social, as reivindicações políticas das mulheres trans ganharam ainda mais força. Mais recentemente, as formulações de Preciado (2002), teórico que operou a radicalização das teorias queer, contribuíram para a visibilização dos corpos não binários e para a desnaturalização do sexo, principalmente do falo.

Essas disputas teóricas e políticas em torno da construção das identidades feministas são o pano de fundo dos embates surgidos durante a Conferência, como veremos a seguir.

5.2 Mulheres em cena: discursos e argumentações

A partir da análise das falas, depreendemos três tipos discursivos – “majoritário”, “minoritário” e “mediador” – e quatro personagens discursivas – “Mulher Universal”, “mulheres marginalizadas”, “guardiã das normas” e “autoridade pragmática”. O discurso majoritário foi enunciado pela mulher universal; o minoritário, pelas mulheres marginalizadas; e o mediador, pela guardiã das normas e pela autoridade pragmática. Enquanto os dois primeiros discursos ampliaram a polêmica, o terceiro assumiu uma posição de aparente neutralidade ao conflito instalado, embora compartilhasse com o primeiro algumas práticas e identidades. As atrizes não enunciavam a partir de apenas uma posição, transitando por elas.

O trecho 1 nos introduz à cena.

(1) Mas, assim, a reivindicação de vocês [grupo LBTT] é dez titulares e dez suplentes. Então, 10% é o suficiente. Vinte por cento é muito pra nós, porque a quantidade de delegada que nós temos aqui, a quantidade de representações... Então, a gente tem que limitar uma quantidade, limitar uma quantidade pra chegar à quantidade que elas estão reivindicando, que seriam dez titulares e dez suplentes (Delegada da sociedade civil 1).

Os pronomes dêiticos (Maingueneau, 2013) “nós” e “vocês” posicionam as falantes e a sua outra, introduzindo a polêmica que constitui os discursos “majoritário” e “minoritário”. A referência numérica – tanto de números absolutos, quanto de relativos – é o conteúdo central desse enunciado, pois é o objeto do conflito interdiscursivo que versa sobre a representação de um grupo majoritário e de um minoritário.

A referência à maioria institui, por um lado, o próprio tom dessa personagem, pois sua credibilidade é depreendida de sua condição majoritária. Mas, também, revela uma concepção de justiça que evoca sentidos clássicos sobre a participação política, em que a maioria deve ser proporcionalmente representada nas tomadas de decisões, indo ao encontro das regras das conferências, que igualmente preveem votação por maioria. Em contraposição a esse discurso “majoritário”, despontou o “minoritário”:

(2) Aqui, a maior parte das mulheres são heterossexuais e não são transexuais, quer dizer, são cisgênero. Então, as mulheres lésbicas, bissexuais, travestis e mulheres transexuais, elas acabam ficando invisibilizadas, dentro deste conjunto de mulheres (Delegada da sociedade civil 2).

Esse discurso foi encarnado especialmente por mulheres travestis e transexuais. Elas se identificaram como em menor número naquele momento (“aqui”), o que se depreende do subtexto contido na relação de oposição com o trecho “a maior parte das mulheres” (a menor parte das mulheres). Mais do que demarcar a oposição numérica, esse trecho introduz outro aspecto identitário desse conflito, apresentando-nos às personagens que se antagonizam, caracterizadas no trecho 3.

(3) E uma coisa que eu queria fazer de recomendação à coordenação, à comissão organizadora desse evento de mulheres, que é para todas as mulheres. Inclusive mulheres transexuais e travestis, porque nós estamos invisíveis aqui dentro desta conferência! Porque em momento algum nós fomos citadas! Nós pedimos um momento de fala e o momento de fala que nós tivemos foi esse por conta de um destaque. Então, assim, isso é um desmerecimento muito grande e nós não estamos pedindo nada demais, porque também nós somos cidadãs e nós pagamos impostos, como qualquer mulher que está aqui nessa plenária! (Delegada da sociedade civil 3).

De um lado, uma maioria de mulheres identificadas como heterossexuais cisgênero. De outro, mulheres lésbicas e bissexuais cis, travestis e transexuais, que se viam invisíveis na regra da maioria. As “mulheres marginalizadas” não identificaram a existência de um espaço discursivo legítimo para elas, embora possuíssem a garantia de tempo de fala, como todas as delegadas. Elas afirmaram sofrer preconceitos, inclusive na conferência (“aqui dentro”); elas não eram vistas, tampouco se falava sobre elas. Segundo a enunciadora, isso é injusto, porque o que define a identidade entre as mulheres é ser cidadã e pagar impostos, e não a sexualidade ou a identidade de gênero.

A enunciação dessa personagem evidencia uma representação de democracia distinta da regra da maioria. Nela, para que todas as mulheres sejam tratadas como iguais, é necessário visibilizá-las, nomeá-las e escutá-las. Reivindica-se, assim, uma representação plural de grupos identitários excluídos, mesmo que minoritários. O que estava em disputa, portanto, era a inclusão da identidade de gênero e da orientação sexual como eixos de definição da categoria “mulheres”, demanda histórica dos movimentos LBTT.

Na interdiscursividade com as “mulheres marginalizadas”, surgiu a “Mulher Universal”. Ela representaria a norma do ser mulher, que, apesar de também ser perpassada por marcadores sociais específicos (p.ex., a heterossexualidade), é generalizada como “A Mulher”. Como demonstram teóricas feministas negras (Lorde, 1984; hooks, 2019), os grupos dominantes não costumam reconhecer suas próprias marcações identitárias, enquanto os dominados precisam recorrer ao reconhecimento dessas diferenças como forma de sobrevivência.

Esse conflito retoma uma memória discursiva fundamental dos feminismos, que foi elaborada principalmente por mulheres negras (Lorde, 1984; hooks, 2000). Nessas bases, o conceito de interseccionalidade, formulado por Crenshaw (2002), pretende dar conta da complexidade das interações entre os diversos marcadores sociais da diferença, reivindicando-se que a categoria “mulheres” não seja vista como universal, nem homogênea. Como dito anteriormente, também mulheres lésbicas, bissexuais, transexuais e travestis (Butler, 2010) denunciaram a heterossexualidade compulsória dessa construção política universalizante, além da identificação desse sujeito pelo biológico (mulheres cis). Em síntese, a partir dessas formulações, “A Mulher” é compreendida como atravessada por outras relações sociais, como gênero, em sentido amplo, classe e raça, entre outras.

As “mulheres marginalizadas” compartilharam tons, modos de enunciação e cenografias com a “Mulher Universal”, mas também mobilizaram outros, como podemos analisar a partir do trecho 4.

(4) Não estamos aqui fazendo oposição não, porque nós estamos aqui no mesmo lugar. O direito das mulheres. Não vamos deixar as pessoas fazerem guerra com “nós”. Isso não vai haver. Nós estamos no mesmo lugar. Entendam isso, não vamos brigar. Não foi esse o nosso intuito. Estamos do lado de vocês. Mas pedimos, por favor, que nos respeitem pelo gênero de mulher transexual e travesti, que não foi dito. É sempre escondido isso. Estamos apoiando vocês para tudo! Para tudo! Sem restrição a nada. Você é nossa referência. Nós estamos aqui por todo amor por vocês. Por favor, não queremos briga (Delegada da sociedade civil 3).

O espaço discursivo é demarcado nesse enunciado. Existe um lugar que é coabitado pelo “nós” e “vocês”, que é o do direito das mulheres. Entretanto, o uso da conjunção adversativa (“mas”) permite desvendar que esse compartilhamento não é igualitário, porque a diferença ainda não é respeitada. Ainda assim, a personagem que enuncia invoca “o amor”, convidando a outra de seu discurso a uma aliança, sendo esta reconhecida como uma “referência”. Esses vocábulos, valorados positivamente, são contrapostos a outro, a que se atribui carga negativa (“brigar”), que é o efeito assumido como não desejado. Dessa forma, o tom adotado é emotivo, mobilizando como recurso persuasivo a construção de empatia da plenária com aquelas que vivenciam uma experiência de marginalização, também na Conferência, de forma a construir uma coalizão política que não seja necessariamente pautada pelas identidades.

A “Mulher Universal” também constrói a cenografia de seu discurso, assim como busca persuadir o seu “outro”, como explicita o trecho 5.

(5) A votação desse item já foi encerrada [gritos]. Não se volta àquilo que já votou! É isso! Pronto! Caminhamos! Caminhamos! Vocês são mulheres, vamos pactuar. Nós somos mulheres. Somos guerreiras. Precisamos ir pro grupo! Não é esse tipo de coisa pequena que vai fazer o nosso engrandecimento (Delegada da Sociedade Civil 4).

Essa fala foi enunciada imediatamente após a proposta de cotas de representação para as mulheres travestis e transexuais para a delegação estadual ser colocada em votação. Nesse momento, ignorou-se abruptamente as negociações que estavam em curso, submetendo-se a questão ao voto da maioria, o que contrariou as mulheres travestis e transexuais. Assim, ao se constatar que alguns consensos não seriam alcançados, mas considerando a sua representação majoritária na plenária, foi mobilizada uma cenografia que reproduziu uma cena mais genérica e universal de conferências. Nela, buscou-se legitimidade no voto, na vontade da maioria e na observância de procedimentos (“Não se volta àquilo que já votou!”), tendo sido adotado um tom enérgico (“É isso! Pronto! Caminhamos!”).

Além disso, o “nós” e o “vocês” foi retomado. Agora, para afirmar a proximidade (“Nós somos mulheres” e “Vocês são mulheres”), convidando a uma aliança em torno da concepção de mulher una, na qual a igualdade é reforçada, a despeito das diferenças, classificadas como “coisa pequena”. De certa forma, naquele momento, a universalização da categoria mulheres, criticada por feministas não brancas e não heterossexuais, foi reforçada. Também ganhou força um terceiro discurso, que já vinha sendo mobilizado desse o início da plenária; o “mediador”:

(6) Questão de ordem, como está no regulamento, é questão que vai contra a ordem regimental. Então, primeira questão, a gente vai estabelecer aqui que todas as questões de ordem que forem apresentadas vão ser apresentadas pra mim, a gente vai dialogar aqui na mesa e apresenta, porque ela é ou não rejeitada. Se você não está apresentando uma questão de ordem regimental, você está indo contra a democracia que a gente está colocando aqui, porque são essas as regras que a gente está acordando (Delegada do Poder Público 1).

A intervenção é marcada pelo tom elucidativo, parafraseando-se o regulamento, como na explicação da questão de ordem. Diferentemente dos demais, a forte demarcação da situação de enunciadora dá espaço a um “eu” apagado, que se expressa apenas por meio do pronome oblíquo “mim”, que não é sujeito da ação. Ou, ainda, pelo ambíguo “a gente”, que pode tanto ser referido às representantes da coordenação, simbolizadas pela metonímia “mesa”, quanto à coordenação conjuntamente com quem oferece a discordância, em que “aqui na mesa” representaria o lugar físico do diálogo entre as partes. Embora apagado das ações, esse sujeito exerce um poder assimétrico em relação às demais participantes, legitimado por sua condição de coordenadora e, portanto, de suposta neutralidade. Isso porque a legitimidade de seu poder estaria na sua função de aplicação das regras do jogo pactuadas (“a gente está acordando”), e, ainda, na sua missão de mediar os conflitos.

Constrói-se, assim, o discurso “mediador”, em uma relação de neutralidade aparente com os outros discursos (Maingueneau, 2015). Ele foi encarnado, em regra, por representantes da Comissão Organizadora da Conferência, a qual agregou tanto representantes do poder público quanto da sociedade civil. Uma das personagens discursivas que o mobiliza é a “guardiã das normas”, que atua no reforço das regras, informando e esclarecendo procedimentos ditos adequados. Sua legitimidade de fala e seu tom decorrem também da posição de saber institucional que ocupa – supostamente objetivo –, e no qual reside a base para o exercício de sua argumentação.

Pressuposta a essa forma de agir está a representação da conferência como um espaço regulado. A reprodução do quadro cênico seria, assim, condição para um processo deliberativo democrático, e o desvio dele seria ir “contra a democracia”, como consta no trecho 6. Seu modo de enunciar também pode ser depreendido do próximo fragmento.

(7) Pessoal, vamos prestar atenção aqui um minutinho que eu acho que está tendo uma confusão. Vamos ler direito. [...] Vou ser bem objetiva e simples. [Discorre sobre o artigo]. É só isso esse artigo, não tem grande problema. Nem pras centrais, nem pra ninguém, nem pra quem está fora, nem pra quem está dentro da comissão, gente. Sem falsa polêmica (Delegada do Poder Público 2).

O tom adotado é professoral (“vamos prestar atenção aqui um minutinho”), o que, por um lado, invoca uma imagem de argumentação pelo convencimento. Entretanto, ao assumir a condição de enunciadora da verdade, de forma objetiva e simples e que pode ser extraída da leitura da regra (“vamos ler direito”), também incorpora traços de autoridade. A outra, nesse caso, é “quem está fora da comissão”, ou seja, parte das “mulheres marginalizadas” e tantas outras presentes na Conferência. A essa outra categoria é atribuída a “confusão” e a “falsa polêmica”, ou seja, uma ação de embaralhamento do diálogo.

Outras personagens mobilizaram o discurso “mediador”. O excerto a seguir nos introduz à categoria que denominamos de “autoridade pragmática”.

(8) Por favor, nós estamos solicitando, antecipadamente, que quem solicitou destaque no mesmo ponto, já se junte pra “vim” com uma proposta já consolidada, pra que não chegue aqui e fique... Porque, se não, nós vamos perder tempo, fechado? (Delegada da Sociedade Civil 4).

As modulações de tempo (“antecipadamente”) e espaço (“aqui”) são relevantes nesse enunciado. A recomendação às participantes é para que desloquem a negociação de propostas da plenária para um outro lugar, em que a negociação seja realizada antes da votação. O “aqui” remete ao que identificamos como um “espaço de negociação”. Ele não existia, enquanto estrutura física, tampouco estava previsto nas regras da Conferência. Mas foi criado a partir da interação entre as participantes.

Nesse “espaço de negociação”, uma grande concentração de mulheres na lateral direita do palco reuniu-se para discutir, paralelamente à realização da plenária, antes que as propostas fossem submetidas à votação. Nele, posições foram negociadas, e consensos, forjados. Com isso, caberia à plenária a função de ratificar esses acordos previamente estabelecidos. Isso era feito inclusive para acelerar as decisões, considerando que a discussão da plenária poderia ser pouco eficiente (“perder tempo”). O critério de representação e a proposta de cotas foram debatidos nesse espaço, negociação que, como mencionamos anteriormente, foi rompida bruscamente (excerto 5).

É interessante observar que, apesar de a “autoridade pragmática” compartilhar com a “guardiã das normas” o discurso “mediador”, ela subverteu as regras, orientada pelo pragmatismo de obter um acordo de forma mais célere e negociado entre as partes, ainda que às margens da discussão da plenária. Sua cenografia e seu tom remeteram, na verdade, a uma outra cena, distinta da conferência, mas que também corresponde a uma cena validada.

Como mencionamos anteriormente, por cenas validadas, Maingueneau (2001, p. 102) entende aquelas “já instaladas na memória coletiva, seja a título de modelos que se rejeitam ou de modelos que se valorizam”. Há, portanto, na cena validada, uma memória discursiva que é evocada. No caso da “autoridade pragmática”, sua cenografia e seu tom remetem ao modelo de negociação tripartite, que integra as práticas sindicais. Nessa negociação, discutem-se posições contrárias e, a partir de concessões de ambos os lados, torna-se possível construir um consenso sobre uma terceira posição. Assim, práticas sociais institucionalizadas em outros espaços de poder, como os habitados por partidos políticos e sindicatos, foram retomadas na conferência, inclusive modificando as normas de fala e o quadro cênico.

Esses elementos eram compartilhados, sobretudo, com o discurso majoritário. Isso se evidenciou no emprego frequente do léxico “companheiras”. Trata-se de um termo construído e reforçado entre militantes de esquerda no Brasil, cujo uso estava recorrentemente associado a uma tentativa de apaziguamento dos ânimos e de construção de bases para solidariedade. No entanto, ele era empregado não só por essas militantes, mas pela maior parte das mulheres presentes na Conferência, sinalizando a amplitude dessas práticas. Isso retoma o que Alvarez et al. (2003) denominam de dupla militância, demarcando que as práticas que despontaram na conferência decorriam da vivência dessas mulheres de outros espaços e formas de fazer política (p.ex., partidário e sindical). A dupla militância desafia análises dicotômicas das interações entre Estado e sociedade, uma vez que essas ativistas faziam parte de movimentos feministas e de mulheres, mas também eram líderes partidárias e sindicais e, em alguns casos, ocupavam cargos estatais.

Quando foi preciso garantir adesão da plenária à tese defendida, a “autoridade pragmática” mobilizou, ainda, um tom diverso do conciliatório.

(9) A comissão organizadora, em função da magnitude desta conferência, vai apresentar uma nova proposta de formatação da comissão organizadora, ok? A comissão organizadora, ok? Ponto! (Delegada da Sociedade Civil 2).

O argumento em si perde a importância, uma vez que o modo de enunciação se funda no poder que legitima o discurso de mediação, não apenas para negociar posições divergentes, mas para decidir em última instância, como evidencia a reiterada afirmação da Comissão Organizadora, a quem compete definir o que deve ou não ser feito na plenária. Tampouco o tom de autoridade é velado, mas se explicita, principalmente na exclamação “Ponto!”, que é a forma encurtada de dizer ponto final, ou seja, fim da discussão.

Em síntese, eventos como a 5ª CMPM-SP constituem-se em arenas políticas, nas quais uma multiplicidade de mulheres (feministas ou não, organizadas coletivamente ou não, governamentais e não governamentais) encontram-se para debater diretrizes para a implantação de políticas pelo Estado (Aguião, 2017; Matos & Alvarez, 2018). Nessas arenas, embates históricos dos movimentos feministas e de mulheres emergem, de forma semelhante ao que Alvarez et al. (2003) identificaram em sua análise dos Encontros Latino-Americanos e do Caribe. Segundo as autoras, nesses eventos despontaram debates acerca da autonomia dos movimentos feministas e dos riscos de cooptação a partir de sua relação com outras atrizes e instituições, incluindo o Estado; controvérsias em relação à inclusão e expansão desses movimentos; e tensões entre a suposta universalidade do ser mulher e as diferenças e desigualdades experimentadas pelas mulheres. Em grande medida, foi o que identificamos na análise da 5ª CMPM-SP, principalmente a partir das disputas entre a personagem discursiva “mulheres marginalizadas”, representada, principalmente, pelos movimentos LBTT, e a personagem discursiva “Mulher Universal”, representada pelas organizações compostas majoritariamente por mulheres cis e heterossexuais.

6 Considerações finais

As conferências de políticas públicas adquiriram notável importância durante as primeiras décadas do século XXI. Sua legitimidade foi atribuída à potencialidade desses espaços para a construção de consensos, envolvendo atrizes governamentais e da sociedade civil. Esses acordos, cristalizados em resoluções das conferências, influenciaram o ciclo de políticas públicas de diversas áreas.

As conferências foram debatidas pela literatura, adotando-se múltiplas abordagens. Em nosso trabalho, assim como Aguião (2016), enfocamos as articulações e disputas entre participantes para depreender a construção coletiva de identidades. Para isso, enfocamos a dinâmica desse processo, investigando argumentações e discursos produzidos no contexto da 5ª CMPM-SP.

Analisando as falas, contextualmente situadas, depreendemos três discursos – o “majoritário”, o “minoritário” e o “mediador” – e quatro personagens discursivas – “Mulher Universal”, “mulheres marginalizadas”, “guardiã das normas” e “autoridade pragmática”. Utilizando-nos de contribuições da AD, percebemos uma disputa discursiva em torno da construção da categoria “mulher” e dos eixos de opressão que atravessam as experiências de vida dessas “sujeitas”, disputa que permeia também os movimentos feministas de forma mais geral. As mulheres travestis e transexuais, sobretudo, encarnaram a personagem discursiva “mulheres marginalizadas”. Elas trouxeram as dimensões da orientação sexual e da identidade de gênero como marcadores sociais relevantes, e que historicamente foram negligenciados por parte dos movimentos feministas. No caso analisado, esse silenciamento foi produzido pela personagem discursiva “Mulher Universal”.

Em suas composições e confrontações, essas personagens construíram cenografias particulares, reconfigurando parcialmente o quadro cênico das conferências. Nesses termos, elas ora modificaram, ora validaram esse quadro cênico das conferências de participação social. É exemplar o discurso “mediador” e a performance das duas personagens que o mobilizaram. Enquanto a argumentação da “guardiã das normas” girou em torno de seu papel de garantidora das regras do jogo, a “autoridade pragmática” aceitou modificar essas regras em prol da efetividade, inclusive reproduzindo cenas validadas de outros contextos políticos.

Nessa complexa trama, as normas e convenções da plenária foram ora afirmadas como base em um processo democrático, ora questionadas como fonte de reprodução de desigualdades. O princípio da democracia como vontade da maioria, incrustado nas regras da conferência, foi reencenado pela “Mulher Universal”, por meio do discurso majoritário. E foi criticado pelas “mulheres marginalizadas”, que, encarnando o discurso minoritário, reivindicaram a necessidade de adoção de medidas que garantissem sua presença nas instituições participativas, valorizando a diversidade.

Enredada em polêmicas, alianças e neutralidades aparentes, uma cena abstrata foi substituída por uma cenografia complexa, em que elementos estruturantes dessa arena foram (re)negociados, a exemplo dos significados de “mulher(es)” e “democracia”. Consequentemente, a 5ª CMPM-SP congregou uma multiplicidade de atrizes, inclusive ativando a memória discursiva de embates constitutivos dos movimentos feministas, não apenas no país, mas em outros contextos, como ilustra o embate entre “Mulher Universal” e “mulheres marginalizadas”. Com base na reflexão sobre essa dinâmica, evidenciamos que, a despeito das conferências serem concebidas para promover a inclusão nos processos decisórios, elas podem conduzir à exclusão de determinadas vozes e, consequentemente, à redução da pluralidade.

A conjuntura política em que as conferências floresceram e difundiram-se modificou-se no Brasil na última década. Entretanto, isso não torna inválida a reflexão sobre as instâncias de participação social, ou sobre movimentos sociais, que devem (ou deveriam) ser relevantes em quaisquer conjunturas que tivessem a democracia como valor fundamental. Nesse sentido, pensamos que este trabalho pode contribuir não apenas para o conhecimento sobre conferências, mas também sobre a (re)construção de identidades feministas e as tensões envolvidas neste processo.

Material suplementario
Referências
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Notas
Notas
* Uma versão preliminar deste artigo foi apresentada no VII Encontro de Administração Pública e Governança (ENAPG) da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Administração (ANPAD), realizado em São Paulo, em 2016. Agradecemos à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) pelas bolsas de doutorado concedidas.
[1] Essa distinção deriva do fato de que nem todos os movimentos de mulheres se consideram feministas.
[2] Importante observar que, neste artigo, apresentamos um arcabouço inspirado na teoria de Maingueneau sobre cenas de enunciação, que é mais complexa. O autor apresenta uma diferenciação entre três tipos de cenas: englobante (tipo de discurso), genérica (gênero do discurso) e cenografia (depreendida do próprio discurso, que pode ou não reproduzir as cenas englobantes e genéricas). Para aprofundamento no tema, ver Maingueneau (2012) e Charaudeau e Maingueneau (2016).
[3] Usamos o gênero feminino tanto para dar visibilidade às mulheres, quanto para questionar a existência de um sujeito universal neutro que se conjugaria no masculino.
[4] A pesquisa resultou também em um outro artigo, em que foi adotada uma abordagem distinta da realizada no presente trabalho, vide Marcondes e Diniz (2018).
[5] Os números de edições realizadas em nível nacional e municipal não coincidem porque a cidade de São Paulo realizou uma edição de modo independente.

Figura 1
Bandeiras de movimentos e organizações presentes
Fonte: elaboração própria.
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