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Etnografando “casas” de folclore: relações entre configurações do espaço e os sentidos da prática do folclore “alemão” no Brasil
An ethnography of folklore “houses”: relations between space configurations and the meanings of “German” folklore practices in Brazil
Etnografando “casas” de folclore: relações entre configurações do espaço e os sentidos da prática do folclore “alemão” no Brasil
Revista Brasileira de Sociologia, vol. 8, núm. 20, pp. 224-247, 2020
Sociedade Brasileira de Sociologia
Recepción: 06 Febrero 2020
Aprobación: 21 Mayo 2020
Resumo: Com inspiração na produção sociológica acerca das “casas”, este artigo tem por objetivo analisar as relações entre os usos e as configurações do espaço e os sentidos investidos nas práticas sociais que constituem o que se compreende por folclore “alemão” no Brasil. Para a execução da análise, procedo à apresentação de duas etnografias sobre “casas” de folclore. A primeira descreve a estrutura física e espacial da principal instituição do espaço do folclore, a Associação Cultural Gramado / Casa da Juventude. A segunda descreve a Trachtenhaus (“Casa dos Trajes”), residência pessoal da principal especialista na confecção de trajes típicos germânicos no país. O artigo sustenta o argumento de que as configurações do espaço, a disposição dos objetos e os usos sociais de tais “casas” oferecem indícios profícuos para a compreensão da lógica e dos sentidos investidos na prática do folclore “alemão” no Brasil.*
Palavras-chave: casas, folclore “alemão”, etnografia.
Abstract: Inspired by the sociological production about “houses”, this article aims to analyze the relations between the uses and configurations of space and the meanings invested in social practices that constitute what is understood by “German” folklore in Brazil. To perform the analysis, I present two ethnographies about “houses” of folklore. The first describes the physical and spatial structure of the main institution of the folklore space, the Associação Cultural Gramado / Casa da Juventude. The second describes Trachtenhaus (“House of Costumes”), the personal residence of the main specialist in the production of typical Germanic costumes in the country. The article supports the argument that the configurations of space, the arrangement of objects and the social uses of such “houses” provide useful evidence for understanding the logic and meanings invested in the practice of “German” folklore in Brazil.
Keywords: houses, “German” folklore, ethnography.
Introdução: o espaço de práticas do folclore “alemão” no Brasil
No Brasil, nos estados das regiões Sul e Sudeste, um conjunto de agentes atua na promoção e na legitimação da prática do folclore “alemão” autênticoe historicamente fidedigno. Ao evocar o termo “folclore alemão”, refiro-me de modo mais específico à prática da dança popular de origem germânica, performance baseada na reprodução de registros históricos e folclóricos de danças (as Tanzbeschreibungen), produzidos principalmente nos séculos XIX e início do XX, que tomam como período histórico de referência um intervalo que compreende os séculos XVI a XVIII. Como suporte à prática da dança, os folcloristas confeccionam trajes folclóricos que, igualmente, baseiam-se em registros históricos e iconográficos de indumentárias utilizadas em comunidades germânicas no passado, compilados em publicações que catalogam trajes folclóricos.[1]
Os agentes envolvidos com a prática do folclore se articulam nacionalmente, estabelecendo redes de relações de interconhecimento e de inter-reconhecimento (Bourdieu, 1998), promovendo e participando de cursos de formação e de especialização em folclore, organizando eventos públicos para apresentações de folclore, além de atuarem nas atividades promovidas por centros culturais, bem como em eventos de massa ligados à cultura germânica, tais como as Oktoberfesten (Voigt, 2018b). Ademais, os agentes que ocupam as principais posições em instituições promotoras de folclore, executando o trabalho de mediação cultural (Reis, 2010) e de legitimação do folclore, formam uma elite cultural responsável pela definição dos critérios de “autenticidade” do folclore “alemão” no Brasil (Voigt, 2018a).
No que tange aos agentes institucionais que constituem o “espaço” (Saint Martin, 2002) do folclore “alemão” no Brasil, temos, nos níveis local e municipal, os grupos de dança folclórica. Pode-se constatar a existência de ao menos duzentas entidades desse tipo no país, em sete estados da federação. Tais grupos são formados por dançarinos – usualmente, numa escala que varia de oito a quarenta – dirigidos por um “coordenador”, responsável pela instrução das danças aos demais integrantes do grupo. Em âmbito regional, constata-se a existência de “associações regionais de folclore”, sete ao total, instituições que ofertam formação em nível regional e que agremiam e representam um conjunto de grupos de dança folclórica.
Em nível nacional, como principal entidade formadora e representativa de especialistas em folclore, temos a Associação Cultural Gramado (ACG)/Casa da Juventude, fundada em 1965, na cidade de Gramado (RS). A fundação de tal entidade foi um processo capitaneado pela Federação dos Centros Culturais 25 de Julho e, de modo mais direto, pelo secretário-geral da entidade, Theodor (Theo) Kleine (1917-1999). Tal federação agremiava os Centros Culturais 25 de Julho, um conjunto de clubes de lazer e sociabilidade de elites locais, entidades voltadas à promoção de atividades recreativas, esportivas e culturais. Desde a fundação da Casa da Juventude até os dias atuais, com exceção de um breve período no início da década de 1970, a entidade foi dirigida por três gerações da família Kleine: inicialmente, por Theodor; posteriormente, por seu filho Gerhard Kleine (1942-2017); e, atualmente, por seu neto Dieter Kleine (1975-).
A Casa da Juventude foi fundada com o propósito de ofertar formação cultural a “jovens lideranças” para atuação junto aos Centros Culturais 25 de Julho, fornecendo competências em “cultura germânica” e subsídios que possibilitassem o desenvolvimento de práticas culturais no âmbito de atuação dos Centros Culturais. Em 1966, pouco tempo após a inauguração da entidade, têm início os primeiros cursos. Tratava-se de cursos voltados à formação de professores de alemão, de professoras de jardim de infância e de lideranças culturais. O curso mais expressivo, nesse contexto, era o de Jugendleiter (“lideranças jovens”), que envolvia competências como o teatro, a música, o canto coral e, de modo bastante incipiente, a dança folclórica.
Em 1983, começam a ser promovidos pela Casa da Juventude os cursos voltados especificamente à prática da dança, constituídos no formato de um “seminário”, que ofereciam subsídios para a decodificação dos registros históricos das danças. A partir de 1989, tais cursos passam a ser ministrados por professores e experts estrangeiros convidados. No ano de 1991, contando com a existência de mais de uma centena de grupos folclóricos vinculados à entidade, é fundado na Casa da Juventude um departamento especializado de danças, voltado à promoção de cursos especializados e à pesquisa e à sistematização de fontes históricas que subsidiem o folclore “alemão”. Em tal processo, verifica-se a atuação destacada de Beno Heumann (1944-), primeiro diretor do departamento, cargo que ocupou até 2006. Tal acontecimento – a fundação do departamento de danças da Casa da Juventude – pode ser considerado o marco da sistematização de um espaço de práticas do folclore “alemão” no Brasil.[2]
De modo correlato à sistematização da prática da dança folclórica, os folcloristas brasileiros começam a executar pesquisas acerca de indumentárias típicas, visando garantir a “autenticidade” dos trajes folclóricos, subsidiando a prática da dança – que já estava relativamente consolidada. Em tal processo, verifica-se a atuação destacada de Eredi (Frau) Heumann (1948-), esposa de Beno, reconhecida no espaço como a principal especialista na temática dos trajes folclóricos no país. Frau Heumann possui um ateliê voltado à confecção desse tipo de indumentária, localizado em Nova Petrópolis (RS), além de possuir o maior acervo e repositório bibliográfico sobre o tema no Brasil. De acordo com informações levantadas em pesquisa, constata-se a existência de aproximadamente uma dezena de ateliês voltados à confecção de trajes folclóricos no país (Voigt, 2018b).
Neste artigo, realizo a apresentação e a análise de duas etnografias sobre “casas” de folclore. Nas ciências sociais, a “casa” constitui-se como um tema privilegiado de interesse e análise, tendo recebido atenção por parte de pensadores clássicos da sociologia e da antropologia, além de fomentar um conjunto de reflexões e debates recentes. Compreendida seja no sentido de uma estrutura de habitação ou como agrupamento de indivíduos a ela afiliados – isto é, o conjunto de agentes agrupados em uma unidade doméstica –, diversos trabalhos demonstraram que a “casa”, as formas de morar, os modos de ocupação do espaço e os usos sociais dos utensílios domésticos representam objetos extremamente pertinentes e profícuos para a análise e a compreensão das práticas sociais desenvolvidas em determinado espaço social, da cosmovisão dos agentes e dos grupos sociais, bem como dos sentidos que os agentes atribuem às suas práticas (Elias, 2001; Bourdieu, 1999, 2006; Lamaison & Lévi-Strauss, 1987; Freyre, 2003; Carvalho, 2008; Rosatti, 2018).
As etnografias apresentadas executam uma descrição da estrutura física, das configurações e dos usos do espaço, bem como da disposição de objetos[3] domésticos e pessoais. A primeira etnografia apresenta a Casa da Juventude, principal instituição representativa de folcloristas e legitimadora da prática da dança folclórica no país. A segunda etnografia descreve a Trachtenhaus (“Casa dos Trajes”), residência pessoal de Frau e Beno Heumann[4], que pode ser considerada o principal espaço de documentação e de produção de trajes folclóricos germânicos no país. As duas casas foram selecionadas por se constituírem como os principais espaços “domésticos” de definição e produção de práticas relacionadas ao folclore “alemão” no Brasil: a dança folclórica, no caso da Casa da Juventude, e a confecção de trajes folclóricos, no que tange à Casa dos Trajes. Tais práticas culturais – a dança e a utilização de indumentárias folclóricas – constituem as principais manifestações do que se compreende por folclore “alemão” no país.
Como será mostrado, enquanto a Casa da Juventude possibilita uma discussão sobre aspectos como família, gênero e domesticidade no espaço do folclore – cruciais para a compreensão das estruturas sociais que fundam as práticas desenvolvidas no espaço –, a Casa dos Trajes permite refletir sobre os esquemas mentais e sociais que regem o investimento na prática do folclore “alemão”, na medida em que os sentidos investidos no folclore – uma prática orientada à autenticidade, à antiguidade e ao enraizamento na cultura popular – podem ser identificados igualmente na organização e na constituição do espaço doméstico. Desse modo, a análise de tais casas permite compreender os sentidos investidos na prática do folclore “alemão”, as estruturas sociais que geram as práticas ligadas ao folclore, bem como a lógica das práticas desenvolvidas no espaço do folclore.
Uma etnografia da Casa da Juventude
Nesta seção, executo uma incursão etnográfica à Casa da Juventude, descrevendo o espaço físico e as instalações que compõem a entidade[5]. Em outras palavras, proponho um tour na sede da instituição. O emprego da palavra tour não é gratuito. A Casa da Juventude está situada em uma área nobre de Gramado (RS), junto ao Lago Negro, um dos principais destinos turísticos da cidade. Como será explicitado, uma das principais formas de financiamento da entidade é a oferta de serviços de hotelaria e hospedagem. Ademais, Gramado é uma cidade caracterizada pelo turismo, tendo investido largamente nessa atividade econômica. Em Gramado, a estrutura econômica, a arquitetura, os locais públicos e a organização espacial se orientam em função da exploração desse tipo de atividade comercial, o que se explicita pela presença de vários estabelecimentos de hotelaria, restaurantes, lojas de souvenires, lojas de roupas, fábricas de doces e chocolates etc.
A Casa da Juventude é uma ampla e antiga edificação de dois andares, construída há cerca de meio século. Ao subir as escadas que levam à porta de entrada do prédio, adentra-se uma pequena antessala decorada com fotografias históricas. As fotografias compreendem personagens icônicos da instituição, com destaque a Theo Kleine e sua esposa Marie-Agnes[6] – fundadores e primeiro casal-diretor da entidade –, bem como agentes destacados envolvidos na fundação da Associação Cultural Gramado, notadamente políticos e autoridades públicas; eventos históricos marcantes, como a inauguração e o lançamento da pedra fundamental da entidade; além de fotos históricas da sede da Casa da Juventude através do tempo. Essa antessala opera propriamente como um lugar de memória[7] da instituição.
Ao atravessar a antessala na entrada da Casa da Juventude, chega-se a uma portaria, que opera como uma recepção aos visitantes e hóspedes. A recepção está localizada precisamente no centro de um corredor que corta horizontalmente todo o primeiro andar do prédio. Esse corredor central divide o primeiro andar em duas partes (frações) de tamanho equivalente. A recepção possui uma localização estratégica e desempenha uma função crucial na entidade, especialmente quando se considera que um dos principais serviços ofertados pela instituição é a hotelaria.
A recepção está localizada na segunda fração do primeiro andar, transpassando o corredor. À esquerda da entrada – e, portanto, à direita da recepção – encontram-se, na primeira fração do prédio, duas portas que levam, primeiramente, à biblioteca e, depois, à sala do departamento de danças. Do lado oposto a essas salas, atravessando o corredor, encontram-se na segunda fração do prédio dois banheiros (masculino e feminino) e mais uma porta, que dá acesso a um “apartamento” destinado à hospedagem. O fim do corredor desemboca em uma porta que dá acesso a outro apartamento, de dimensões amplas, onde no passado residiam os diretores da Casa da Juventude e que, atualmente, também se destina à hospedagem externa.
Na extremidade direita do prédio, entre o antigo apartamento de residência dos diretores da Casa e o departamento de danças, está o acesso a uma escada. Ao subir essa escada, tem-se acesso, à direita, aos alojamentos da ala masculina, no segundo andar. À esquerda, em um nível um pouco abaixo da ala masculina, a escada dá acesso a um amplo auditório (conhecido como Tanzsaal, isto é, o “salão de danças”), utilizado como espaço para palestras e eventos e, mais importante, para os cursos de dança. O Tanzsaal fica no segundo andar de uma edificação construída e anexada posteriormente à estrutura da Casa da Juventude, situando-se em cima do apartamento de residência do casal diretor da Casa (que está localizado no primeiro andar dessa edificação acoplada). Esse apartamento de residência dos diretores da ACG está localizado, significativamente, no local de fluxo de entrada e saída da ala masculina; desse modo, pode-se aferir que sua localização possuía uma função de controle.
À direita da entrada do prédio – e, portanto, à esquerda da recepção – o corredor leva, na primeira fração do prédio, primeiramente a uma sala de proporções pequenas utilizada para serviços financeiros (tesouraria) e de impressão. Ao lado dessa sala, há uma “sala de apoio” com dimensões semelhantes às da biblioteca, onde ocorrem aulas de alemão e atividades gerais. Ao lado da sala de apoio, próximo ao fim do corredor, há um terceiro quarto, que funciona como depósito de materiais de expediente e rouparia (toalhas e roupa de cama). Do lado oposto a esses quartos, na segunda fração do prédio após se transpassar o corredor, está localizada – imediatamente ao lado da recepção – uma sala de estar equipada com televisão e poltronas. Essa sala dá acesso a outro apartamento de hospedagem, à esquerda da recepção. No fim do corredor, na extremidade esquerda do prédio, chega-se ao refeitório.
O refeitório é um ambiente de proporções amplas, com cerca de uma dezena de mesas para uso coletivo. Para hospedagem, o refeitório oferece café da manhã; durante os cursos, oferece aos “internos” três refeições diárias. Nos fundos do refeitório, à direita, há uma sala destinada às anotações e administração da cozinha. À esquerda, próximo à entrada do refeitório e ao lado de uma lareira, se localiza uma porta que dá acesso à sala das louças, à despensa (equipada com câmaras frias) e à cozinha. À direita da entrada da cozinha e imediatamente junto à entrada do refeitório, há ainda uma porta que dá acesso à lavanderia, por meio de uma escada que leva até o porão. Nesse local fica também a caldeira, alimentada à base de lenha e integrada a um sistema de calefação.
As paredes do corredor que leva ao refeitório são ornamentadas com quadros que reproduzem documentos que marcaram a história e a trajetória da Casa da Juventude, tais como: a primeira ata da entidade, estatutos de regulamentação, a planta do prédio, decretos municipais (que estabeleceram a cessão do terreno para a Federação 25 de Julho ou que declararam a Casa da Juventude como entidade de utilidade pública), divulgação da Casa da Juventude na imprensa (com destaque ao jornal da Federação 25 de Julho, o Mitteilungsblatt), dentre outros.
Ao fim de cada um dos extremos do primeiro andar do prédio, há escadas que levam ao segundo andar, onde estão localizados os alojamentos. Na escada junto ao refeitório, na extremidade esquerda do prédio, tem-se acesso à ala feminina dos alojamentos, cujo primeiro espaço é uma antecâmara de uso comum com poltronas, sofás, televisão e banheiros de uso coletivo e, adiante, sete quartos equipados com camas e beliches e que servem de dormitórios compartilhados. São quartos amplos, de tamanho variável, que hospedam de quatro a oito pessoas cada um. Na extremidade direita do prédio, como foi dito, a escada dá acesso à ala masculina, que não possui uma sala de estar de uso comum, consistindo apenas de um corredor com acesso aos quartos; a meio caminho entre os quartos está situado o banheiro coletivo. Em cada uma das alas, um dos quartos possui banheiro – normalmente destinado ao professor convidado responsável pelos cursos. Os demais quartos são atendidos por um banheiro de uso comum. No total, a Casa da Juventude tem hospedagem para cerca de cem pessoas.
De modo geral, pode-se descrever a Casa da Juventude como um ambiente extremamente organizado e caracterizado por uma limpeza impecável. Trabalham diretamente na instituição, garantindo seu funcionamento e operação, um conjunto de funcionários: o diretor da entidade e do departamento de danças, dois funcionários para a recepção – atuando no agendamento de hospedagem e recepção de visitantes –, uma funcionária encarregada da cozinha, limpeza, manutenção dos alojamentos e serviços em geral, uma funcionária responsável pelo setor financeiro, um jardineiro, além de funcionárias terceirizadas que atuam como faxineiras e auxiliam nos serviços da cozinha.
A descrição da estrutura espacial e dos usos sociais do espaço da Casa da Juventude permite esboçar um conjunto de constatações extremamente relevantes, de um ponto de vista sociológico. Em primeiro lugar, podemos constatar a importância da memória institucional da entidade acerca dos principais acontecimentos e personagens envolvidos em sua história, o que se explicita no fato de a antessala de entrada do prédio constituir-se propriamente em um lugar de memória (Nora, 1993), e no fato de existirem mementos e documentos históricos expostos e distribuídos pelas paredes do corredor central da entidade.
Em segundo lugar, constata-se a importância do serviço de hospedagem externa, possibilitado pela estrutura da Casa da Juventude. O uso da Casa da Juventude como um “hotel” é uma atividade crucial para o financiamento da entidade. Segundo o diretor da Casa da Juventude, o serviço de hospedagem é a principal forma de manutenção e financiamento da Casa. Nesse contexto, pode-se apontar também uma imbricação entre as formas de financiamento da Casa da Juventude – isto é, a hospedagem – e a dinâmica e o contexto em que a entidade está inserida, a saber, as atividades turísticas características da cidade de Gramado. Além da admissão de hóspedes “avulsos”, a Casa da Juventude realiza também a locação de espaço para eventos e seminários externos à instituição, que utilizam simultaneamente o serviço de hospedagem e as instalações do prédio (especialmente o auditório). Além do serviço de hospedagem externo, verifica-se ainda outra atividade de financiamento de características similares: a Casa da Juventude alugou um espaço na parte frontal da entidade – abaixo do refeitório, onde se localizava uma garagem – para uma empresa de fotografia que oferece serviço destinado a turistas, produzindo fotografias temáticas com base em personagens de filmes de animação americanos. Esse conjunto de atividades, estranho aos propósitos da entidade, demonstra as limitações de financiamento e de sustentação da principal entidade do espaço do folclore “alemão” no Brasil – que revela uma impossibilidade de se autofinanciar apenas por meio do trabalho cultural. Com base nesses indícios, por extensão, pode-se antever as limitações de recursos no espaço do folclore como um todo.
Em terceiro lugar, é central reter que a estrutura da Casa da Juventude foi concebida com uma separação estrita entre as alas masculina e feminina. Tais alojamentos se situam em lados opostos e não integrados do segundo andar do prédio. Deve-se levar em conta que a Casa da Juventude foi fundada nos anos de 1960, e que os principais quadros dirigentes da instituição possuíam vinculação com a Igreja Luterana. Além disso, a Casa da Juventude foi concebida como uma entidade promotora de cursos para a juventude, especialmente os cursos de Jugendleiter, que possuíam uma estrutura bastante semelhante às atividades executadas por grupos de jovens da igreja. Esses jovens – de ambos os sexos – ficavam hospedados por meses na Casa da Juventude, longe da família e da supervisão dos pais. Nesse sentido, levando em conta a concepção de moralidade subjacente ao contexto social, histórico e religioso pertinente, pode-se afirmar que a separação estrita entre as alas masculina e feminina explicita a preocupação com interações indecorosas entre os jovens. A Casa da Juventude, assim, possui a estrutura de um internato, com dois alojamentos situados em extremos opostos que só são acessíveis por meio da passagem por um extenso corredor, no primeiro andar, dividido ao meio por um posto de vigilância – a recepção.
Como tratei de demonstrar (Voigt, 2019), constata-se uma relação intrínseca entre a Casa da Juventude e a Igreja Luterana, especialmente nos seus primeiros anos de funcionamento. As marcas dessa relação podem ser percebidas na constituição da estrutura espacial da Casa, nos agentes envolvidos na sua fundação e nos quadros dirigentes da instituição (diretores, instrutores) que possuíam vinculação com tal confissão religiosa, no sentido das atividades de formação que foram ali desenvolvidas, bem como no contexto de recrutamento de quadros para a realização dos cursos promovidos pela entidade.[8]
Por fim, pode-se apresentar uma quarta constatação, possivelmente a mais relevante para esta discussão. A análise da estrutura espacial permite constatar que a Casa da Juventude é, propriamente, uma “casa” – isto é, uma estrutura de habitação, possuindo alojamentos, refeitório e lavanderia. Assim, a Casa da Juventude foi projetada como uma unidade doméstica, concebida a partir de um modelo familiar.[9] A entidade seria dirigida por um casal-diretor – marido e mulher – que administrariam um ambiente destinado a receber jovens de diversas localidades – um “albergue para a juventude” –, visando à realização de cursos de formação e à promoção de atividades culturais relativas à cultura alemã. Em suma, está na base do projeto da Casa da Juventude uma estrutura de habitação e uma concepção específica da ideia de “família”, relacionadas e direcionadas à educação e à formação cultural da juventude.
Casa, família e divisão sexual do trabalho no espaço do folclore
A discussão acerca da estrutura física e espacial da principal instituição do espaço do folclore, a Casa da Juventude – que pode ser considerada, metaforicamente, como a unidade e a estrutura doméstica exemplar desse espaço –, e sua relação com as estruturas sociais que estão na base das práticas nele gestadas, possibilita adentrar e aprofundar a discussão de outra chave correlata e essencial, a família. Pode-se afirmar que a inserção e a atuação no espaço do folclore se fundam na reprodução de um modelo de organização familiar, com uma divisão sexual do trabalho definida e uma concepção específica da noção de “família”.
No que tange ao espaço do folclore, verifica-se uma atuação central de agentes vinculados à Igreja Luterana. Os principais agentes envolvidos na fundação e administração da principal entidade do espaço do folclore, a Casa da Juventude, possuíam ligação com a esfera religiosa. Ademais, os quadros que terão atuação na promoção e na coordenação da prática do folclore “alemão” – uma das manifestações que integra a “cultura alemã” – foram recrutados no contexto religioso. Embora seja possível constatar a atuação relevante de políticos e industriais para a fundação, financiamento e viabilização das entidades promotoras do folclore, não foram tais agentes – que detêm profissões dominantes no mundo social – os responsáveis pela condução e direção dessas atividades na esfera da cultura – trabalho que recaiu sobre agentes ligados à esfera religiosa, especialmente professores vinculados a escolas de orientação luterana.
O espaço do folclore “alemão” no Brasil pode ser identificado como um espaço propriamente feminino, sobretudo porque se destina à dança – prática cultural socialmente definida como feminina, segundo os princípios dominantes de visão e de divisão do mundo social. Além disso, a principal instituição do espaço, a Casa da Juventude, foi concebida como uma unidade doméstica destinada à educação de jovens de origem germânica – isto é, dos “filhos” de famílias teuto-brasileiras. Ademais, um dos componentes centrais para a garantia da “autenticidade” do folclore é a utilização de indumentárias historicamente embasadas, o que depende de um trabalho cuidadoso de confecção e costura. Tais atividades de trabalho e esferas de atuação – isto é, a educação dos jovens e a costura – são marcadamente femininas, segundo os princípios sociais dominantes de divisão sexual do trabalho, vigentes mormente no período inicial de constituição do espaço do folclore, que remonta à década de 1960. Nesse sentido, o folclore enquanto prática cultural e, portanto, prática dominada no mundo social, adquire conotação fortemente feminina.
Na mesma linha de argumentação, pode-se indicar também que alguns grupos de dança folclórica foram fundados e coordenados por mulheres – nas décadas de 1980 e 1990, que representa o período mais expressivo de fundação desses grupos –, muitas delas esposas de próceres – nas esferas da economia e da política – das localidades de atuação dos grupos. Os grupos folclóricos, de escopo municipal, são fundados como espaços de sociabilidade para elites em âmbito local – notadamente a modalidade de grupos destinada a “casais”. Outro conjunto de grupos, na modalidade ou categoria “juvenil”, é concebido como um trabalho cultural ou ocupacional – em alguma medida “filantrópico” – destinado à juventude, coordenado igualmente por mulheres pertencentes a famílias de elite de âmbito local. Desse modo, em alguma medida, os grupos folclóricos se constituíam como uma forma de ocupação e atuação social para mulheres de famílias de elite. A presença feminina na condução desse tipo de atividade se explicita pela divisão sexual do trabalho social: enquanto os homens, via de regra, estavam incumbidos das posições e ocupações nas esferas da política e dos negócios, cabia às mulheres a condução das atividades culturais, muitas vezes relacionadas ao trabalho nas igrejas.
Entretanto, embora o espaço do folclore possa ser socialmente definido como um espaço simbólico e feminino, é extremamente significativo o fato de a tomada de decisão e de responsabilidade nas principais entidades de folclore – ligada ao “poder” e socialmente definida como masculina – ter sido, via de regra, conduzida por homens. As posições de direção e administração das principais entidades – a Casa da Juventude é um exemplo emblemático – são ocupadas por homens. Nesse sentido, pode-se sugerir a existência de uma divisão sexual do trabalho bem definida no espaço do folclore, com tarefas claramente concernentes ao universo feminino, e outras marcadamente masculinas.
A produção sociológica e historiográfica sobre a problemática das “casas” e da família tem salientado as dimensões de gênero e da domesticidade em suas reflexões (Carvalho, 2008; Rosatti, 2018). De acordo com Rosatti:
É preciso levar em conta que o espaço da casa foi visto historicamente como lugar de práticas tipicamente femininas e que o papel da mulher estaria restrito à ordem privada, ao se sustentar a ideia que a mulher estaria voltada “para dentro”, para o privado, e o homem “voltado para fora”, para o público (Rosatti, 2018, p. 855).
Em sua obra acerca do sistema doméstico em São Paulo, com recorte histórico que compreende o período entre 1870 e 1920, Vânia Carneiro de Carvalho (2008) desenvolve uma reflexão sobre as relações de gênero a partir da organização espacial e material das moradias de famílias de elite. Articulando o campo dos estudos de gênero com a perspectiva da cultura material, a autora procura explicitar a relação entre os objetos domésticos e a construção das identidades sociais de gênero.
Partindo da premissa de que “gênero” é uma categoria necessariamente relacional, Carvalho (2008) argumenta que, apesar de a casa ser um espaço historicamente associado ao feminino, o espaço doméstico é construído a partir das relações entre os gêneros. Assim, ainda que a casa usualmente seja concebida como o reino da mulher – ao passo que o domínio masculino remeteria ao universo “de fora”, do trabalho e da vida pública –, os objetos domésticos acabam gravitando em torno da figura do homem. A uma baixa capacidade de individualização da mulher – que exerceria no espaço doméstico uma “ação centrífuga”, com sua feminilidade e sua personalidade irradiando-se para os objetos e os espaços da casa –, contrapõe-se uma identidade masculina altamente individualizada – que exerceria uma “ação centrípeta”, fazendo com que os objetos gravitem em torno do polo masculino. Nesse sentido, os objetos domésticos têm a função de consolidar a personalidade do homem, uma personalidade individualizada e distinta da imagem associada à família (Carvalho, 2008).
Mais importante para a presente discussão é reter o argumento de Carvalho (2008), de que a imagem da família depende de uma atuação da mulher enquanto mediadora de tensões e de conflitos, bem como das relações entre o homem e os círculos sociais em que está inserido. Tal atuação está assentada em uma divisão sexual do trabalho, segundo a qual caberiam à mulher as funções de ordenamento e de decoração da casa, dotando-a de harmonia e de beleza, que seriam um reflexo da harmonia e do ordenamento do próprio núcleo familiar. Nesse sentido, a mulher assumiria os papeis sociais de mãe, esposa e dona de casa, cabendo a ela a organização e a manutenção do espaço doméstico. Um “lar” propriamente adequado possuiria estabilidade e ordem, que seriam resultado do trabalho da mulher. De acordo com a autora, a mulher não produziria uma identidade própria, mas sim da família que representa – cuja imagem está, em última instância, associada à figura do homem. Ademais, a harmonia de uma casa, propriedade feminina e produto do trabalho da mulher, representava para o homem uma possibilidade de fuga e de esquecimento das tensões do universo mundano e do trabalho (Carvalho, 2008).
Assim, pode-se atestar a centralidade da chave da “família” no espaço do folclore. Podemos verificar uma imbricação entre dinâmica familiar e constituição do espaço público por meio da atuação no folclore. Dito de outro modo, a constituição do espaço do folclore e as tomadas de posição nesse espaço se dão, em seus primórdios, pela constituição de entidades que seguem a estrutura e o modelo da instituição familiar. Desse modo, a construção da imagem pública nas instituições do folclore é a própria imagem da família. Por conseguinte, a posição ocupada em uma instituição de folclore – como a Casa da Juventude, tomada como instituição exemplar para a análise desenvolvida – e, consequentemente, a posição ocupada no espaço do folclore, é a posição ocupada na família. O papel da mulher consiste no ordenamento e na administração do espaço doméstico e da família, auxiliando o marido, que ocupa uma posição pública e é o principal responsável pelas tomadas de decisão. Assim, é através da família que se realiza a mediação entre os agentes e o espaço público, por meio de uma homologia estrutural entre a posição no espaço do folclore e a posição na família. Em suma, é o habitus (Bourdieu, 2009; 2010) pertinente a essas famílias o princípio gerador das práticas – que seguem um modelo familiar – no espaço público do folclore.[10]
Procurarei explicitar tais assertivas por meio de uma análise pormenorizada da Casa da Juventude. Em grande medida, a história da Casa da Juventude é reconstituída através da memória dos e sobre os casais que a administraram. Nesse sentido, pode-se compreender o papel de destaque das fotografias de Theo e Marie-Agnes Kleine na antessala da entrada da Casa da Juventude. Trata-se dos fundadores e do primeiro casal-diretor da Casa da Juventude, os primeiros “pais” a exercerem autoridade na entidade, concebida como uma estrutura e uma unidade doméstica.
Como foi argumentado, as principais instituições do espaço do folclore são dirigidas, via de regra, por homens. No entanto, verifica-se uma atuação crucial das suas esposas para a administração e o funcionamento de tais entidades, e os agentes que entrevistei – inclusive homens – reconhecem e enfatizam tal fato. Ao falar de seus pais, Gerhard Kleine tem a preocupação de salientar que sua mãe Marie-Agnes teve um trabalho importante para a promoção da cultura alemã, atuando como “secretária” do seu pai Theo Kleine, nos trabalhos da Federação 25 de Julho e na administração da estrutura doméstica e habitacional da Casa da Juventude. Não obstante, é sugestivo o fato de que nas memórias e nos textos produzidos por Gerhard (Kleine, 2008), realiza-se uma consagração da trajetória do seu pai – um “visionário” pela fundação da Casa da Juventude, a “alma mater”[11] da Federação 25 de Julho. Nesse sentido, embora possuam um papel essencial no espaço do folclore, as mulheres atuam como coadjuvantes quando se tem em mente que os principais postos de direção e de autoridade são ocupados por homens, bem como quando se consideram as memórias consagradas à história das instituições e do espaço.
Por esse caminho, pode-se afirmar que a atuação familiar no espaço do folclore – tomando o modelo e a estrutura da Casa da Juventude em sua exemplaridade – orienta-se por uma concepção particular e específica de família “ideal” e “em ordem”, baseada em princípios dominantes de visão e de divisão do mundo social: o chefe e detentor da autoridade é o homem; esse patriarca é secundado – no duplo sentido, de auxiliar e de estar em segundo – pela esposa, que contribui – auxiliando o marido, em uma atuação “privada”, quase que “doméstica”, haja vista que a “rua” é o espaço par excellence do homem – para a promoção do nome da família em determinado espaço de práticas. No caso do folclore, as posições femininas contribuem para a promoção da “cultura alemã” – e, por consequência, do nome da família –, tendo por base uma representação da divisão sexual do trabalho social e do lugar ocupado pela mulher na família – esposa e mãe, com atuação em âmbito doméstico e privado. Assim, a atuação feminina, desindividualizada, visa à promoção do grupo familiar que, em última instância, tem a sua imagem associada ao homem e à sua autoridade.
Pode-se afirmar que o espaço e a prática do folclore têm sua gênese na atuação e no investimento de grupos familiares. Desse modo, é por meio da atuação de grupos familiares – isto é, de unidades de parentesco – que se verifica a formação do espaço do folclore, cujas principais posições serão ocupadas, em grande medida, por membros dessas próprias famílias. Assim, por meio do investimento no espaço do folclore, grupos familiares se esforçam para a afirmação e a construção da sua imagem pública, que é a própria imagem dessas famílias posicionadas no espaço de práticas do folclore. Dentre o conjunto numeroso de agentes que tiveram atuação destacada no espaço do folclore, pode-se ressaltar duas famílias que, por sua atuação relevante, tiveram um papel central para a fundação e a formação do espaço – chegando a constituir e formar, propriamente, esse espaço, levando-se em conta a imbricação existente entre “instituição” e “família”: a família Kleine e a família Heumann.
A família Kleine se caracteriza por um histórico e uma “tradição” de investimento na esfera da cultura que remonta a várias gerações, sendo composta por professores, escritores e religiosos. É por meio da atuação da família na esfera da cultura que os Kleine projetam e mantêm uma posição de elite na esfera da intelectualidade. Como foi exposto, Theo Kleine foi o principal envolvido na fundação da Casa da Juventude; posteriormente, a entidade foi dirigida por seu filho Gerhard e, atualmente, é administrada por seu neto, Dieter. A família Heumann, especialmente por meio do investimento de Beno Heumann na gênese da prática da dança folclórica e na fundação do departamento de danças da Casa da Juventude, e por meio da atuação e especialização de sua esposa, Frau Heumann, na confecção de indumentárias “autênticas” para os dançarinos, constituiu e definiu um espaço social legítimo de inserção e de atuação familiar no folclore – o que constitui e define, por consequência, a imagem pública da família e suas possibilidades de ascensão social.
A divisão sexual do trabalho e a atuação feminina no espaço do folclore se explicitam notadamente na confecção das indumentárias para os grupos de dança. A confecção de trajes, ainda que se verifique o envolvimento masculino, é uma posição feminina no espaço e uma atividade quase que exclusivamente realizada por mulheres. No que tange à trajetória daquela que é considerada a maior especialista em trajes folclóricos no Brasil, Eredi (Frau) Heumann, o trabalho de confecção de trajes – que envolve pesquisa, além do trabalho de costura – mostrou-se a possibilidade de inserção e de atuação no espaço do folclore, visto que podia ser realizado em espaço doméstico – concomitantemente à criação dos filhos –, enquanto seu marido Beno Heumann realizava viagens para a formação de grupos folclóricos e atuava integralmente no espaço institucional da Casa da Juventude. É bastante interessante apontar, entretanto, que a atividade de confecção de trajes permite rendimentos econômicos razoáveis – a fabricação de trajes é uma das principais formas de profissionalização e de ganhos econômicos no espaço do folclore. Desse modo, o investimento em tal atividade, caracteristicamente feminina, contribuiu para a sustentação familiar, permitiu ganhos econômicos relativamente significativos e representou uma possibilidade de ascensão social.
Uma etnografia da Casa dos Trajes
Passemos, por fim, a uma incursão etnográfica na Trachtenhaus (“Casa dos Trajes”). Ao evocar o termo Trachtenhaus, refiro-me à residência de Frau e Beno Heumann. Ainda que Frau Heumann possua um ateliê comercial com o mesmo nome, optou-se pela realização de uma etnografia da sua “casa”. A escolha pela residência do casal Heumann pareceu-me mais produtiva, por um conjunto de razões: a casa possui também o material de trabalho de Beno sobre danças folclóricas; a confecção de trajes por parte de Frau teve início nesse espaço doméstico; seu acervo de pesquisa está localizado nesse local; e, o mais importante, a estrutura e a organização da casa oferecem indícios para a compreensão dos sentidos do investimento de Frau Heumann na prática de confecção de trajes folclóricos e, simultaneamente, dos usos sociais que efetua de suas obras e referências de leitura e de pesquisa.
A Trachtenhaus fica localizada na região central de Nova Petrópolis (RS), cidade de colonização alemã localizada na Serra Gaúcha, sendo uma edificação de dois andares. Além dos dormitórios, banheiro e cozinha, o espaço principal do primeiro andar é uma ampla sala de estar. A sala dispõe uma decoração, móveis e memorabilia de grande interesse para análise. Na sala principal da casa, a parte superior das paredes é decorada com quadros de imagens de castelos alemães, que Frau elaborou a partir das páginas de um calendário. É uma decoração que está lá há décadas e, segundo ela, mesmo com críticas em relação à decoração por alguns – uma “velharia” –, não cogita retirá-los.
Ao lado dos sofás da sala, está um armário que foi de seu bisavô. Frau ressaltou os detalhes da produção do armário, que não possui um prego sequer em sua estrutura. Esse é um tipo de técnica de marcenaria muito comum em móveis alemães antigos – toda a estrutura do móvel é encaixada. O armário comporta louças antigas, herança de antepassados. O ponto mais interessante no tocante ao armário é que cada prateleira congrega as louças de um antepassado específico, denotando grande importância à organização e à definição de origens históricas e geográficas precisas – há louças inglesas, por exemplo – para os elementos que perduraram no presente.
Além das louças, objetos extremamente comuns em decorações de casas de teuto-brasileiros, pode-se destacar outro elemento recorrente: à esquerda do armário, há uma coleção de canecos de chopp em cerâmica. Em festividades étnicas e nas antigas festas de comunidade – Kerb, festas de igreja, festas de colheita etc. –, era bastante comum a produção de canecos específicos e representativos da festividade, que serviam também como registro de participação. Segundo Frau, “cada caneco tem uma história”: muitos foram presentes, outros foram adquiridos nos lugares visitados pela família. Assim, tais objetos recebem toda uma carga simbólica e um sentido relacionado à memória da família, sendo a expressão de um conjunto de relações sociais.
Na decoração da casa, na parede oposta ao armário de louças, destaca-se ainda um quadro de cera de uma taberna europeia, vasos de bronze trazidos pelo sogro de Frau quando foi missionário na Índia, e uma pequena reprodução da famosa obra “Mãos que oram” (“Betende Hände”, também conhecida como “Studie zu den Händen eines Apostels”), do artista renascentista Albrecht Dürer, datada de cerca de 1508.
Segundo uma história popular circulada oralmente, a família de Dürer tinha baixa origem social – seu pai trabalhava nas minas de carvão, e tinha dezoito filhos. Tanto Albrecht como um irmão tinham o desejo de estudar arte. Não obstante, era impossível que ambos se dedicassem aos estudos, pois um deles deveria trabalhar e auxiliar no sustento da família, além de pagar os estudos do outro irmão. Ficou combinado que após a conclusão dos estudos, o irmão já formado auxiliaria o outro a perseguir o sonho de estudar e se tornar artista. Por decisão da sorte, Albrecht foi o primeiro a ir para a academia. Já um artista renomado, retornou à sua casa e procurou o irmão, dizendo-lhe que havia chegado a sua vez de dedicar-se aos estudos. Seu irmão, então, mostrou-lhe as mãos embrutecidas pelo trabalho nas minas de carvão, dizendo que seu tempo e sua chance haviam passado. Segundo a história, em homenagem ao irmão, Albrecht Dürer elaborou as “Mãos que oram”, uma representação das mãos de seu irmão, que teriam lhe possibilitado ter-se tornado um artista. Essa história foi-me contada por Frau, em detalhes, quando me apresentava a Trachtenhaus, e foi possível identificar outras versões bastante semelhantes.[12]
O que se sabe a respeito das “Mãos que oram” é que a obra se trata de um estudo de Dürer para as mãos de um apóstolo, que integraria um painel tríptico do Altar de Heller (em Frankfurt). Há sugestões de que as mãos representadas são as do próprio Dürer. Além disso, a narrativa é pouco verossímil se considerarmos que não havia no período propriamente “escolas” ou “academias de arte” – a independência da arte é resultado de um longo processo de autonomização em relação às guildas medievais, por meio da fundação de academias de arte (Pevsner, 2005) –, e em função do fato de que a educação de Dürer – ao menos no início – tenha ocorrido na oficina de seu pai, que era ourives. De todo o modo, a veracidade e a exatidão histórica da narrativa construída por Frau são elementos pouco relevantes ao argumento que irei propor.
No segundo andar da Trachtenhaus, logo ao subir a escada, vemos à esquerda uma mesa que apoia uma máquina de costura e um ferro de passar. É o espaço de trabalho de Frau. À esquerda da mesa, ao fundo, localiza-se uma espécie de escritório, com um armário que comporta textos, livros, CDs, DVDs, fitas cassete e videocassetes, além de exibir placas honoríficas. Esse é o espaço utilizado por Beno para seus estudos de dança. À direita desse quarto de trabalho, vê-se mais uma sala, cujas paredes são decoradas por imagens emolduradas de reproduções de trajes folclóricos. O resto do andar é composto ainda por banheiro, quarto e varanda.
A descrição da Trachtenhaus mostra-se relevante, pois dá pistas dos sentidos investidos na prática de confecção de trajes por parte de Frau. A decoração de sua casa aponta: uma valorização e preocupação com a memória familiar e a herança cultural dos seus antepassados e dos colonizadores alemães; uma organização criteriosa dos espólios históricos herdados – como explicita especialmente a organização do armário de louças; a busca e a definição de uma história que atribua sentido aos objetos expostos, que visa à antiguidade, à coerência e à autenticidade; busca essa direcionada à história popular e à tradição comum “alemã”, enraizando os objetos no contexto da cultura popular – como explicita especialmente a narrativa sobre a obra de Albrecht Dürer. Percebe-se, assim, que um esquema conceitual em torno dos sentidos da tradição e da herança “alemãs” estrutura tanto o espaço de moradia de Frau, como seu investimento consciente e consequente na confecção de trajes folclóricos. Em suma, tanto a organização da Trachtenhaus – a casa de Frau Heumann – como seu trabalho na confecção de trajes folclóricos são orientados por um mesmo esquema de percepção e de classificação, isto é, são possibilitados por um conjunto de disposições que funcionam como princípios organizadores de suas práticas e representações.
Considerações finais
As etnografias das duas “casas” de folclore “alemão” apresentadas neste artigo permitem constatar e postular relações entre, de um lado, as estruturas de habitação, as configurações e as disposições do espaço e os usos sociais das casas e objetos e, de outro, os sentidos investidos na prática do folclore “alemão”, as estruturas sociais constitutivas do espaço do folclore e as disposições e os princípios sociais que geram e regem as práticas em tal microcosmo social.
A descrição da Casa dos Trajes demonstra que um mesmo princípio de organização de práticas e representações é responsável tanto pelo ordenamento e disposição de objetos na residência pessoal de Frau Heumann, quanto por seu investimento no trabalho de pesquisa e de confecção de trajes folclóricos: em ambos os casos, tanto os objetos como os trajes são enraizados na “tradição”, na história e na cultura popular germânica, por meio da produção de uma narrativa que visa à coerência, à precisão histórica, à antiguidade e à autenticidade – princípios que, em última instância, servem à legitimação do folclore “alemão” praticado no Brasil.
A etnografia da Casa da Juventude, metáfora da unidade doméstica elementar do espaço do folclore, permite explicitar características centrais da instituição e, por consequência, do próprio espaço do folclore. Algumas das características apontadas foram: a centralidade da memória dos fundadores da instituição e, por extensão, da memória dos imigrantes e descendentes de alemães; as concepções de moralidade subjacentes ao espaço, que estruturam a organização espacial da Casa e que implicam relações com o universo do luteranismo; os usos do espaço para serviço de hospedagem externo voltado ao turismo e, consequentemente, as possibilidades restritas de financiamento do folclore “alemão” no país exclusivamente mediante a oferta cultural; e, por fim, a função efetiva da Casa da Juventude como uma “casa”, isto é, uma estrutura de habitação e uma unidade doméstica, concebidas a partir de um modelo familiar. Como foi argumentado, subjacente à estrutura de tal “casa” temos uma concepção particular da “família” e da divisão sexual do trabalho social, estruturadas segundo os princípios globais de dominação social e de relação entre os sexos vigentes no mundo social.
Nesse sentido, é possível argumentar que a execução de etnografias e descrições de casas, habitações e espaços oferecem indicativos profícuos e substantivos para a compreensão das práticas – e da lógica das práticas – sociais, levadas a cabo pelos agentes nos distintos contextos e espaços sociais. Desse modo, a atenção e a sensibilidade dos sociólogos em relação aos espaços e aos objetos, nos marcos de uma sociologia das casas, pode representar um campo profícuo de análise e uma ferramenta metodológica pertinente para o estudo e a compreensão das estruturas, das dinâmicas e dos processos sociais.
Como tratei de demonstrar (Voigt, 2018c), o investimento na prática do folclore “alemão” no Brasil tem por efeito a fabricação e o estabelecimento de laços culturais e históricos entre descendentes de alemães radicados no Brasil e a Alemanha, elemento central à construção dos sentidos identitários e de pertencimento étnico por parte de tais agentes. As casas etnografadas são precisamente o lócus em que se desenvolve uma parte significativa das práticas associadas à tradição e ao folclore “alemão” no país. Desse modo, as casas analisadas mostram-se particularmente interessantes, na medida em que demonstram não apenas o papel da “casa” para o fortalecimento de afiliações e de alianças no contexto de grupos familiares – isto é, para a produção de um sentido de continuidade e de pertença de natureza “familiar” –, mas atestam também seu papel excepcional para a produção e o reforço de afiliações e de sentidos de pertencimento de ordem étnica e identitária.
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