Artigos

Sociologia, universidade e política

Sociology, university and politics

Maria Alice Rezende de Carvalho
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Brasil

Sociologia, universidade e política

Revista Brasileira de Sociologia, vol. 8, núm. 20, pp. 308-324, 2020

Sociedade Brasileira de Sociologia

Recepción: 05 Febrero 2020

Aprobación: 13 Febrero 2020

Resumo: Este artigo fez parte do colóquio “A Sociologia Brasileira: contrafogos”, organizado pela SBS no âmbito do 43º Encontro Anual da ANPOCS. Discute a feição assumida pela sociologia nas democracias contemporâneas; sobre a universidade, entendida como rede material de atores e recursos, capaz de alcançar e articular públicos muito diversos; e sobre as mediações sociotécnicas como dispositivo de organização e autonomização social.

Palavras-chave: ataque à sociologia brasileira, estudos sociológicos da ciência, papel da universidade, cultura científica.

Abstract: This article was part of the colloquium “A Sociologia Brasileira: contrafogos”, organized by SBS as part of the 43rd Annual Meeting of ANPOCS. It discusses the aspect assumed by sociology in contemporary democracies; about the university, understood as a material network of actors and resources, capable of reaching and articulating very diverse audiences; and on socio-technical mediations as a device for organization and social autonomy.

Keywords: attack on Brazilian sociology, sociological studies of science, role of the university, scientific culture.

Em outubro de 2019, a Sociedade Brasileira de Sociologia - SBS organizou um colóquio no âmbito do 43º Encontro Anual da ANPOCS, cujo título, A sociologia brasileira: contrafogos, sugeria uma reflexão sobre as ciências sociais em contexto adverso[1]. A publicação deste artigo – versão pouco alterada da minha intervenção no colóquio – contraria uma regra prudencial de Erving Goffman (2019), que certa vez afirmou que discursos contêm exigências bem distintas daquelas enfrentadas por artigos de revistas científicas, principalmente a de se restringirem ao recinto em que foram proferidos.

Este artigo se arrisca em três notas breves, cuja articulação é suposta, mas não exatamente elaborada, na crença de que um tratamento mais refinado dessa articulação não agregaria ganhos substanciais à compreensão do argumento. A primeira nota dialoga explicitamente com a ementa do colóquio, que propõe ser a sociologia aspecto fundamental da dinâmica das sociedades contemporâneas, tanto na sua dimensão imaginativa, que reage ao mundo ao seu redor, objetivando questões apenas parcialmente conscientes, quanto na perspectiva de um problem-solvingthought, mais próxima de uma ciência aplicada à correção do mundo (Nisbet, 1970).

Portanto, quer como imaginação pública, quer como instrumento de políticas públicas, é possível dizer que a sociologia se fortalece globalmente, na contramão, inclusive, do desprestígio que, desde os anos de 1980, começou a assaltar a noção de ciência, tida como atividade elitista e excessivamente confiante na superioridade epistemológica do Ocidente (Shinn & Ragouet, 2008). Em suma, este artigo subscreve o diagnóstico de que a sociologia é uma poderosa engrenagem cultural do nosso tempo e um recurso reflexivo com o qual divisamos lógicas e finalidades intelectuais e políticas. Mas sugere que essas não são as causas exclusivas – e sequer as mais importantes – da ferocidade com que o Executivo brasileiro se refere à sociologia e aos seus praticantes, apontados como peças do “marxismo cultural”, refratárias aos valores nacionais e cristãos[2].

A hipótese esboçada aqui é a de que o ataque à sociologia se deve principalmente ao fato de ser através dela que a ciência e os cientistas se relacionam com a sociedade – afinal, é a sociologia que define contemporaneamente o que é ciência, explica a sua organização e problematiza os seus impasses. Exagerando um pouco o argumento, pode-se dizer que tudo o que a sociedade global aprendeu acerca da atividade científica no século XX decorreu da ultrapassagem da epistemologia – isto é, da consciência filosófica do conhecimento – pela compreensão sociológica dos nexos entre ciência, interesses sociais e relações de poder (Shinn & Ragouet, 2008). Por isso, “combater” a sociologia é questão tão sensível e estratégica para os que objetivam restringir a imaginação e instrumentalizar a ciência.

A segunda nota trata da universidade, cuja centralidade na moderna história brasileira é notória e tem sido abordada sob duas principais perspectivas: a que a toma principalmente como agência da crítica intelectual à modernidade, às dinâmicas que a modernidade sustenta na sociedade brasileira[3]; e a que a toma, prioritariamente, como agência formadora do gosto pela ciência e valorizadora do papel do cientista. Em um caso, uma universidade boa para pensar; no outro, para formar agentes da ciência e fortalecer o campo científico.

É claro que esse esforço de síntese é precário, entre outros motivos porque, no mundo inteiro, os sistemas de educação superior tendem a desempenhar simultaneamente diferentes papéis, por vezes contraditórios, o que também é verdadeiro no Brasil (Schwartzman, 1988). Pode-se dizer, no máximo, que as duas perspectivas apostam em ênfases distintas para definirem a universidade. De qualquer modo, o numeroso conjunto de reflexões e autores dedicados a esse debate não será tratado aqui.

Busca-se, alternativamente, apontar outra dimensão da universidade que, salvo engano, não tem merecido suficiente atenção. É como rede de atores e recursos, capaz de alcançar transversalmente regiões sociais diversas, que talvez se possa atribuir à universidade a ampliação contemporânea do espaço público. O que se propõe à reflexão é, portanto, menos a universidade como continente da crítica ou da ciência, e mais como uma relação, um caminho para a aproximação de diferentes atores e de suas representações acerca do mundo. Financiadores, comitês avaliadores, gestores universitários, editores científicos, docentes, discentes, pesquisadores, divulgadores, destinatários finais da pesquisa, artefatos e dinâmicas, e mais as equipes de assistentes e técnicos responsáveis pelas diferentes rotinas desse compósito institucional – toda essa cadeia de atores transforma a ciência em linguagem pública, resultado de muita disputa e de acordos contingentes quanto à noção de bem, de útil... Nesse sentido, talvez se possa discutir a ideia da universidade como um campo autônomo em relação ao próprio campo científico, refratário a muitas das suas imposições, e capaz de acumular um capital específico, mais procedimental, digamos, do que objetal (Bourdieu, 2004).

Finalmente, a terceira nota, trata da sociologia como política – uma sociologia, evidentemente, reflexiva, que ajude a pensar o vivido como percepção inteligível do mundo e da ação sobre ele (Miceli, 2005). Nesse sentido, e levando em consideração o exposto, este artigo afirma o papel fundamental da sociologia, da universidade e do uso público da imaginação no Brasil contemporâneo – sem triunfalismo, é claro, mas sem abdicar das arenas que a práxis social põe em marcha.

Sociologia

A sociologia permite entender a organização social da ciência moderna; e os cientistas buscam intervir nesse plano para garantirem o desenvolvimento de suas pesquisas. Por isso, realizam estudos comparados sobre os sistemas de ciência em diferentes países, movem redes de conhecimento transnacionais, constituem lobbies no plano político e travam um debate permanente sobre a autonomia e a autorregulação de seu trabalho. O que está em jogo é a possibilidade ou não de a ciência se manter como um campo social diferenciado e infenso a perturbações exógenas, sejam elas pressões empresariais ou estatais (Shinn & Ragouet, 2008).

Esta representação da ciência, que Terry Shinn e Pascal Ragouet denominam de “diferenciacionista”, foi predominante no período compreendido entre os anos de 1940 e 1970, e teve em Joseph Ben-David – depois de Robert Merton – um de seus maiores representantes. Para os diferenciacionistas,a existência da ciência depende da institucionalização de uma comunidade científica autônoma; portanto, ainda que o conhecimento a que hoje chamamos de “ciência” tenha começado a florescer antes do século XVII, a ciência moderna somente se desenvolveu após o aparecimento de instituições específicas e de comunidades de cientistas. Em outras palavras, a representação diferenciacionista da ciência insiste na autonomia e especificidade de seus praticantes como alicerce sociológico da atividade científica.

Em 1976, Ben-David esteve no Brasil a convite de José Pelúcio Ferreira, então presidente da Financiadora de Estudos e Projetos – FINEP, cuja liderança, segundo Simon Schwartzman, “conseguiu introduzir dinamismo à atividade de pesquisa científica no Brasil e, ao mesmo tempo, protegê-la tanto quanto possível do autoritarismo político e ideológico então reinante” (Schwartzman, 1987, 68). Na ocasião, Ben-David apresentou um relato das suas observações sobre a ciência no Brasil, que Schwartzman sintetizou em quatro tópicos: (a) controles burocráticos que pesam sobre as instituições científicas; (b) nexos fracos entre pesquisa e ensino superior, com baixo impacto da inovação científica nos cursos de graduação; (c) escassez de bolsas de estudo para o exterior; e, finalmente, (d) necessidade de desenvolver a pesquisa básica e universitária, ao invés de conceber o caminho do desenvolvimento brasileiro com base em projetos tecnológicos ou industriais. E Schwartzman (1987, 68) arremata:

Sua tese é que tecnologia [pode ser importada], não tem sentido reinventá-la; a atividade científica, no entanto, requer o fortalecimento de tradições locais próprias e bem assentadas socialmente. O que faz falta ao Brasil, diz ele [Ben-David], é a institucionalização do “papel do cientista” como algo reconhecido e valorizado. A precariedade do ensino superior, combinado com uma percepção exageradamente tecnológica e utilitarista da atividade científica, pareciam conspirar contra isto. Agora, como dez anos atrás, ele [Ben-David] parece ter toda a razão.

Quando Ben-David aqui esteve, o Brasil ampliava seu sistema nacional de ciência, cuja montagem tivera início após a II Guerra Mundial, com a criação, em 1951, do CNPq e da Capes. E nas décadas seguintes, a FINEP (1967) e o Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, administrado por ela a partir de 1971, deram mostras da progressiva estruturação de um sistema de ciência que, em largos traços, é o que vige ainda hoje (Fernandes, 2020). Nele, de modo mais explícito em alguns momentos, menos perceptível em outros, o tema do desenvolvimento nacional e o sistema de medidas da ciência – principalmente as medidas de impacto, estandardizadas e difundidas pela Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) – caminham juntos, estabelecendo uma correspondência entre financiamento para pesquisa e utilidade para o crescimento econômico.

Até os anos de 1970, os estudos sociológicos sobre a ciência se dedicavam, principalmente, a questões atinentes à maneira como ela se organiza e como essa organização afeta a modernização econômico-social dos diferentes países, deixando à filosofia o tratamento das questões cognitivas. Proliferavam, então, as pesquisas quantitativas sobre todas as coisas concernentes ao campo científico: os processos avaliativos, as pesquisas bibliométricas, os escores de citações etc., pois esses são aspectos que, segundo o entendimento que prevalecia à época, favorecem a gestão do sistema, ainda que não se refiram ao que, de fato, esse sistema está produzindo. As décadas de 1970 e 1980, porém, trariam mudanças.

Vários fatores contribuíram para a emergência de uma nova relação entre sociologia e ciência: (a) a repercussão da obra de Thomas Kuhn, por exemplo, com a ideia de que nem o funcionalismo sociológico, nem a lógica filosófica explicariam a dinâmica da ciência, chamando a atenção para o fato de que tal dinâmica leva em conta as “cosmologias sociais”, que são mutantes e estão subjacentes às teorias científicas (Kuhn, 1998); (b) o ceticismo político em relação aos benefícios advindos do binômio ciência/tecnologia – ceticismo que muitas vezes transbordou a crítica ao utilitarismo e se traduziu em perspectivas regressivas e anticientíficas; e, finalmente, (c) a escalada da agenda da igualdade e suas repercussões também no plano epistemológico, com o estabelecimento de equivalência cognitiva entre saberes comunitários e ciência, já que ambos “traduzem” os seus respectivos mundos.

À nova relação estabelecida entre a sociologia e a ciência, em que predominam abordagens etnográficas e/ou enfoques radicalmente construtivistas, Shinn e Ragouet dão o nome de “antidiferenciacionista”, pois ela nega um lugar especial à ciência dentre todas a atividades socialmente construídas. E, ao contrário da corrente diferenciacionista, que proclama a sua estabilidade e uniformidade, os autores antidiferenciacionistas apontam que eventual unidade atribuída a eles será devida mais a uma coalização antimertoniana e anti-iluminista do que propriamente a semelhanças na forma como exploram e explicam a ciência. Em síntese, o antidiferenciacionismo não entende a ciência como um campo que deve se fechar às pressões externas, e busca aproximá-la dos problemas apresentados pelos atores sociais e seus interesses:

Essa é a lição da sociologia antidiferenciacionista que, desde o início dos anos 1980, começou a desenhar o retrato desmistificado de um campo científico, no qual o poder, o dinheiro e o lucro simbólico constituem poderosos motores práticos, como em qualquer outro microcosmo social (Shinn & Ragouet, 2008, 161).

Distinguindo-se da sociologia que toma a ciência como uma prática exclusiva de cientistas, a “nova” sociologia da ciência se dedica a revelar o quanto ela é mundana, portadora de uma verdade entre outras equivalentes. Em sua versão relativista mais radical, os antidiferenciacionistas anunciam a morte da ciência e de suas instituições associadas – uma delas, a universidade –, considerando que o conhecimento demandado socioeconomicamente será o único a ter futuro. Contudo, como argumentos estéticos têm lugar na ciência e na reflexão sobre ela, o final da saga narrada por Shinn e Ragouet contém um desfecho dramaturgicamente conciliador das posições polarizadas – diferenciacionismo vs. antidiferenciacionismo –, com a introdução de uma perspectiva que aponta para o movimento permanente, para a sustentação da controvérsia, para o combate científico como aspectos constitutivos do conhecimento e do “fazer ciência”. A essa “terceira via”, os autores chamam de “transversalista”; e sua principal característica consistiria em sustentar empiricamente a ultrapassagem do enfoque diferenciaionista, sem cair no niilismo antidiferenciacionista.

Assim, sob o enfoque transversalista, ganha maior importância a conformação de “zonas de troca” e a validação de linguagens ou artefatos representativos de interesses amplos o suficiente para postularem universalidade, pois nenhum conhecimento adquire validade apenas pela adesão de seus próprios praticantes. São, portanto, redes de pesquisa que articulam campos, interesses, alianças, e fazem de uma determinada ideia a solução mais universal para o problema posto originalmente. Como afirma Manuel Palácios, “a penetração do discurso científico no debate público sempre denuncia quando as questões em pauta envolvem uma articulação mais ampla de interesses sociais” (Palácios, 1992, p. 130).

Nesta seção, foram destacados três temas, que fazem a vez de uma conclusão parcial do artigo: (a) a sociologia é uma disciplina e, ao mesmo tempo, uma forma historicamente situada de relação social com o conhecimento; (b) ela permite compreender os atravessamentos entre ciência, interesses sociais e poder; c) universalizá-la é, pois, parte da luta pela ampliação do contrato social em torno da ciência.

Universidade

A possibilidade de universalização do conhecimento não decorre de um ideal normativo do mundo científico, e sim de uma prática e de uma história que autonomizaram a ciência e lhe deram características sociais e cognitivas que a distinguem de outras práticas socialmente constituídas (Bourdieu, 2004).

As potencialidades da ciência derivam, pois, do modo como ela se institucionalizou e foi incorporada no habitus científico (Caria, 2007). Nesse processo de institucionalização, as grandes universidades do mundo jogaram (e jogam) um papel decisivo. Mas, e quanto às lógicas de funcionamento da ciência em sociedades periféricas, em que as universidades são mais recentes e de vocação local? Ou mesmo às lógicas de funcionamento da ciência global, que não passam contemporaneamente pela hegemonia das universidades?

Tais questões foram formuladas por Telmo H. Caria, sociólogo português, que afirma que, embora Pierre Bourdieu fale a partir “desse lugar”, isto é, da universidade, não a toma como objeto de análise ou, quando o faz, tende a reconhecê-la como externa à ciência (Caria, 2007, p.140), o que fragiliza a sua teoria do campo científico. Isto porque, em primeiro lugar, o campo científico depende de os seus agentes (a) acreditarem que o jogo que ali se trava tem regras; (b) viverem tais regras com seriedade; e, ao mesmo tempo, (c) flexibilizá-las com a ajuda da história da ciência, que os “ensina” acerca da transitoriedade de suas construções. Mas, como promover tal reflexividade científica sem levar em conta a especificidade contextual dos espaços institucionais em que essa história se desenrola?

Em segundo lugar, porque a ausência de reflexão sobre a universidade periférica acaba por “fazer esquecer” o peso que a política detém sobre o campo científico em geral, embora tal peso seja mais visível na periferia do sistema. O próprio Bourdieu escreveu que o campo científico mantém um instável equilíbrio entre dois tipos de capital: o incorpoado ou científico, que decorre das competências práticas de fazer e pensar, e concede ao cientista uma autoridade legítima; e o temporal ou simbólico, que remete a uma espécie de poder institucional e define quem tem prestígio suficiente para participar e tomar posição nas lutas políticas pela ciência (Bourdieu, 2004). Se essas modalidades de capital se equilibram, há condições para um trânsito facilitado entre a ciência e a política, transformando cientistas em protagonistas das decisões públicas concernentes ao campo. Se, entretanto, não há coincidência entre os dois tipos de capital, a liderança científica se torna paralela à hierarquia simbólica das instituições de ciência, fazendo com que o campo perca algo da sua autonomia e se torne mais vulnerável a pressões exógenas.

Finalmente, e em terceiro lugar, porque o campo científico supõe, além da crença prática no jogo da ciência, outras disposições, como, por exemplo, a estética, que permite recompensar simbolicamente a originalidade científica e, principalmente, a disposição para a autolimitação dos cientistas com maior poder institucional, que precisarão negociar com pares mais jovens algumas das regras que sempre defenderam e que os levaram até a posição de prestígio que desfrutam. Em resumo,

para se desenvolver uma ciência com aspirações a gerar centralidade é necessário cultivar junto dos aprendizes da ciência o gosto por um conhecimento lúdico [...], por um conhecimento inovador [...] e por um conhecimento autolimitado... Mas esta educação do gosto científico será sempre uma actividade inconsciente e regulada apenas pelo habitus? Será que ela se manifesta de um modo tão exclusivo [...], que apenas a podem ter os que a aprendem de modo prático e incorporado? (Caria, 2007, p.146)

Destaco a passagem: “a educação do gosto científico será sempre uma atividade inconsciente e regulada apenas pelo habitus?” Em outras palavras, a valorização da ciência e do cientista dependem exclusivamente da socialização na atividade de pesquisa?

A questão reside, portanto, no papel que as universidades desempenham ou podem desempenhar na formação do gosto pela ciência e da valorização dos seus praticantes. No Brasil, como já mencionado, a ausência desses requisitos foi apontada nos idos de 1970-80 por Joseph Ben-David e Simon Schwarztman, num momento em que tinha início um grande esforço político-militar de estruturação do sistema nacional de pesquisa para o desenvolvimento, que veio a conformar a paisagem científica brasileira. Ainda que se possa discutir acerca da autonomia do campo científico naquele contexto, o fato é que o gosto pela ciência não foi disseminado.

Crítico do modelo único de universidade – que entre nós se traduz no combo ensino-pesquisa-extensão – Schwartzman afirma que, embora seja essa a norma vigente, ela não resiste a qualquer observação mais cuidadosa. A própria história regional brasileira terá jogado um papel importante na organização do sistema universitário, cuja feição compreende, ainda hoje, uma superposição de “eras geológicas” que compromete qualquer pretensão de uniformidade da educação superior no país. Elas estão dispostas, basicamente, em três camadas: (a) a que forma para as profissões liberais clássicas (Direito, Medicina, Engenharia), mais tradicional, mais resistente à reforma universitária de 1968 e com um corpo docente que não se dedica integralmente à atividade acadêmica; (b) a que forma para as chamadas “novas profissões”, isto é, todas as profissões com exceção das liberais clássicas e das técnicas – que nos EUA são chamadas vocationaleducation (Agrimensura, Gastronomia, Hotelaria etc...), constituindo a maior parte das candidaturas para ingresso no sistema; e (c) em um percentual bem pequeno, a que confere formação científica, incluídas as instituições não exatamente universitárias, como, por exemplo, a Fundação Oswaldo Cruz (Schwartzman, 1994).

Assim, nosso maciço universitário seria resultado de uma história marcada pela precedência das escolas profissionalizantes – tradicionais e novas –, com a interseção, nos anos de 1970, de um sistema bastante abrangente de pesquisa e pós-graduação, que constituiu, segundo Schwartzman, a frente dinâmica do ensino superior brasileiro. O Brasil tem reproduzido, desde então, um sistema de ciência ao qual a pesquisa universitária empresta alguma visibilidade. Entretanto, é pequeno o contingente de jovens que se socializa no interior de equipes de pesquisa e experimenta “de modo prático” a incorporação de disposições para a ciência – e as bolsas de Iniciação Científica estão aí para atestar a regulação que o habitus poderia operar, massivamente, na trajetória desses jovens se a oferta fosse mais extensa e abrangente.

Dada a atual limitação da atividade de pesquisa em um universo acadêmico predominantemente profissionalizante, a sociologia talvez pudesse desempenhar papel mais relevante do que tem desempenhado na formação do gosto pela ciência – a começar, por um empreendimento reflexivo dos agentes acerca da sua própria universidade, não como objeto de pesquisa especializada, mas como dimensão metodológica do “fazer ciência” (Bourdieu, 2005). Nesse caso, além de se perguntar sobre o que aquela instituição tem a dizer às suas escolhas como professor, pesquisador ou estudante, é também importante se debruçar sobre as questões que ali se apresentam sob a forma de disputas acerca da política universitária, como as que opõem “diversidade vs. meritocracia”, ou as que reconhecemos sob a forma de disputas acerca da própria noção de ciência, que contrapõem, por exemplo, “realistas vs. construtivistas”. Essa sociologia reflexiva, praticada por docentes e discentes que não têm necessariamente a universidade como seu objeto específico de estudo, poderia imantar a academia em torno de questões que atravessam a pesquisa social contemporânea.

Enfim, como formadora de uma cultura científica, a universidade tem um papel a jogar. Telmo Caria, sugere que, sem abandonar a teoria dos campos, se associe a ela uma abordagem fenomenológica da ciência, que leve em conta diferentes usos do conhecimento e valorize não apenas os resultados da prática científica, mas também o processo pelo qual ela se dá. Pois, afinal, dos gestores universitários aos destinatários da pesquisa, há sempre um conjunto de pessoas, métodos, ferramentas e, sobretudo, tipos de raciocínios que acompanha o pesquisador e interfere no resultado de sua pesquisa. Enfim, sob a abordagem fenomenológica, interessa observar a universidade como ambiente em que se desenvolve uma linguagem comum, uma zona de troca e sociabilidade entre todos os seus agentes e extensões extra campus. (Nunes, 2000).

Para concluir esta seção, há que destacar a mudança que vem ocorrendo na universidade brasileira e a ausência de discussão, ou a timidez com que se discute, a relação entre esse fenômeno e a formação do gosto pela ciência, a valorização do papel do cientista.

Em seu último livro, O Brasil e seu duplo, Luiz Eduardo Soares (2019) retoma o tema da grande migração rural-urbana no país, ocorrida entre as décadas de 1950 e 1970, para destacar a brutalidade material e subjetiva que envolveu a chegada de milhões de homens e mulheres às cidades brasileiras, sem “canais de expressão, mecanismos de organização, nem a proteção de um Welfare State digno desse nome” (Soares, 2019, p. 93). O autor, em diálogo com o antropólogo Tim Ingold (2000), propõe uma abordagem fenomenológica para tratamento do tema, que não separe analiticamente a cultura e seu lugar, isto é, o conhecimento que os sujeitos detêm e a experiência prática em que ele emergiu. A construção do argumento o leva a considerar a radicalidade da experiência do migrante, que, em seu “novo” lugar se reinventará com base no universo religioso, “onde provavelmente terá sido mais fácil encontrar e tecer narrativas que atribuíssem unidade e sentido a trajetórias surpreendentes e acidentadas [...]” (Soares, 2019, p. 108).

A referência, nesse passo, à análise de Luiz Eduardo Soares sobre a “grande migração” se explica pela apropriação dessa metáfora. Ela pretende dar conta da chegada de milhões de jovens pobres, negros e periféricos à universidade – última etapa da conquista de um território hostil à história e às experimentações que constituem esses “novos” migrantes. Aqui, contudo, diferente da passagem das plantations à indústria, a temporalidade é uma só, a socialização urbana, uma também, e a crise de sociabilidade que se aprofunda no Brasil contemporâneo recai sobre todos – apenas a objetivação intelectual dessa trajetória ainda não ganhou o debate público. Mas não é esse exatamente o papel da universidade?

(Sociologia como) Política

Por fim, esta última sessão aborda a sociologia como “linguagem” da democracia, e mantém óbvia conexão com o último movimento da seção anterior. Os caminhos argumentativos, contudo, seriam muito longos caso se pretendesse fazer justiça aos autores que os trilharam anteriormente. Aqui, portanto, se encontrará – ao modo de uma conclusão – brevíssima reflexão política sobre a sociologia do nosso tempo.

É possível dizer que as democracias contemporâneas apresentam dois fenômenos de grande evidência e abrangência: (a) a expansão da demanda por direitos, que alterou os modos de interação social, de agenciamento de identidades e de participação política; e (b) a nova forma de acesso a eles, mediante a recusa a práticas clientelistas e a adesão a movimentos de organização e autonomização social. No Brasil, o marco legal desse processo é a Constituição de 1988, que, como se sabe, contém avanços notáveis em termos de direitos individuais, sociais, coletivos e difusos. Seu traço mais interessante, contudo, é a potencialidade que confere à democracia participativa, ao munir a sociedade civil de ferramentas eficientes para pressionar a agenda governamental e encaminhar soluções para conflitos sociais e políticos (Carvalho & Burgos, 2013).

Exemplo disso é o Estatuto da Cidade – lei que regulamenta o capítulo constitucional que trata da política urbana –, cuja especificidade é a sua natureza procedimental, isto é, o fato de não garantir diretamente direitos, e sim fornecer instrumentos processuais que regulam as negociações entre a sociedade civil, o poder e o mercado. Como afirma Ana Paula Carvalho (2016), seu principal mérito é a constitucionalização de uma cultura de gestão democrática, que obriga os municípios a incorporarem a participação popular na elaboração de seus respectivos Planos Diretores.

Mas, a constitucionalização da participação popular impõe mudanças no desenho das políticas públicas, sobretudo a elaboração de diagnósticos que sejam, ao mesmo tempo, abertos à ampla colaboração da sociedade e tecnicamente consistentes. Daí a necessidade de se desenvolver um conjunto de metodologias e procedimentos reaplicáveis, que articule: (a) a experiência que a comunidade detém sobre o problema; (b) o acervo de conhecimentos produzidos por cientistas sociais e agentes públicos e privados; e (c) o repertório de demandas elaborado pelos diretamente interessados, a fim de que, tudo ajustado, seja estruturada uma comunicação, tecnicamente mediada, entre os responsáveis pelo planejamento e os destinatários das políticas públicas.

Nos processos convencionais de comunicação entre formuladores de políticas e populações-alvo, inquiria-se abertamente os virtuais beneficiários acerca de suas pretensões. E era bastante frequente o desfecho em que a área edificada fosse a originalmente prevista, com a incorporação de algumas sugestões – muito valorizadas retoricamente ao longo do processo – recolhidas entre os futuros usuários. Nesse tipo de comunicação entre técnicos e destinatários não há propriamente paridade decisória. Para que ela ocorra – e esse é um passo mais recente – é necessário que os recursos cognitivos/sociológicos acumulados sobre a área – mapa de espaços, acessos e usos do entorno etc. – estejam ao alcance de todos os envolvidos, a fim de que se construam adequadamente as decisões.

Nos anos iniciais do século XXI, apontei as ONGs como agentes sociotécnicos que, desde a década de 1980, atuam no processo de democratização brasileira, capacitando lideranças populares, sem lograr reconhecimento. E considerei que seu desprestígio público talvez se devesse ao fato de que suas agendas desbordam os marcos naciocêntricos da tradição de pensamento sobre o Brasil, que, em larga medida, se reproduzem no ambiente acadêmico. Sugeri ainda que a associação entre ONGs, departamentos universitários de pesquisa, e organizações profissionais – como, por exemplo, as que, à época, reuniam agentes do sistema judiciário e arquitetos envolvidos com processos de regularização fundiária em favelas – nos levaria a uma nova formação intelectual, a uma inteligência coletiva e representativa de interesses tornados visíveis para o Estado (Carvalho, 2007). Tratava-se, portanto, de generalizar o acesso às operações críticas que constituem o fazer científico, alinhando, sob a mesma linguagem, desde o governo até o destinatário final. Quando esse alinhamento é vitorioso, é provável que a sociologia ponha em andamento a constituição de um problema de interesse universal.

De qualquer modo, as ONGs eram majoritariamente externas às organizações de moradores de favelas. Essa condição mudou, como também mudaram as condições estruturais para participação na esfera pública brasileira. Estamos entrando na terceira década do século XXI e um de seus traços característicos é o crescimento sustentado do contingente de jovens pobres e negros que têm acesso a universidades públicas. O número ainda está longe de ser satisfatório, mas é evidente a força com que essa travessia vem sendo realizada. O resultado já se vê na composição demográfica dos programas de pós-graduação e na incidência de pesquisas científicas sobre questões que afetam a experiência moderna e não apenas os redutos periféricos.

Em tempos de pandemia, a capacidade de auto-organização das favelas brasileiras foi evidenciada: Paraisópolis, em São Paulo, Rocinha, no Rio de Janeiro, foram exemplares. Mas, para o propósito desse artigo, a Maré, na Zona Norte do Rio de Janeiro, um conglomerado de microbairros e favelas, ilustra perfeitamente a relação entre uma Universidade democrática, uma sociologia bem-compreendida e a política. Embora não seja a única com essa característica, a Maré tem tradição em pesquisas realizadas por quadros intelectuais e por docentes de instituições de ensino superior, que moraram ou moram em uma de suas 16 microáreas. Junto com pesquisadores da Universidade Federal do Rio de Janeiro, com o Observatório de Favelas e outros parceiros, a ONG Redes de Desenvolvimento da Maré definiu como uma de suas metas, “a produção de conhecimento sobre as comunidades da Maré e seus moradores, a partir de pesquisas regulares no território – o Censo Maré”, que, além da atualização de informações demográficas e territoriais, atua na capacitação dos próprios moradores para a consecução deste e outros projetos[4].

O efeito dessa comunicação entre moradores não costuma se extinguir após o término de uma pesquisa, o que se verifica pela contínua produção e compartilhamento de conhecimentos sobre o local, a ampliação do contingente universitário ali residente, a formulação autônoma de diagnósticos e projetos, e uma bem-sucedida construção de rede extracomunitária de aliados – tudo isso operando como ingredientes da auto-organização da comunidade.

É dessa perspectiva que se pode falar em uma sociologia como política, uma sociologia de combate ao autoritarismo estrutural brasileiro e às forças antidemocráticas. Ela deverá articular ciência, universidade e política.

Referências

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Notas

[1] Agradeço a Carlos Benedito Martins, então presidente da Sociedade Brasileira de Sociologia, o convite para participar do colóquio; e aos pareceristas da RBS, os comentários, cujo pleno atendimento, contudo, ameaçaria o regime da oralidade mantido no texto. Originalmente sem referências bibliográficas, os poucos títulos acrescentados à intervenção apenas indicam a direção e filiação do argumento.
[2] A intervenção preparada para o colóquio e sua posterior transformação neste artigo se deu sob os Ministérios de Marcos Pontes (Ciência, Tecnologia e Inovações) e Abraham Weintraub (Educação).
[3] Exemplo competente, é o livro de Maria Arminda Nascimento Arruda, Metrópole e cultura. São Paulo no meio século XX (2001), no qual ela argumenta que a universidade “produz” a moderna São Paulo nos anos 1940.
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