Resumo: O artigo discute o uso que Roberto Schwarz e Maria Sylvia de Carvalho Franco fazem do conceito de reconhecimento. Desse modo, busca mostrar que reconhecimento é, ao mesmo tempo, um princípio normativo e revelador de uma subordinação a práticas arbitrárias nos textos de ambos sobre a sociedade brasileira. Assim, a ordem do favor e a rede de relações de dominação pessoal que Schwarz e Franco, respectivamente, descrevem podem ser vistas como formas derivadas da subordinação do reconhecimento às necessidades práticas das camadas dominantes. Com isso, ao identificar uma “dissonância vexatória” entre o que intenciona uma norma de reconhecimento recíproco e o que intencionam as práticas concretas de reconhecimento, Schwarz e Franco mostram ser possível denunciar criticamente a transformação de um princípio legítimo de organização da vida social em um mecanismo de reprodução de hierarquias.
Palavras-chave:reconhecimentoreconhecimento,favorfavor,dominação pessoaldominação pessoal.
Abstract: This paper presents the concept of recognition, as used by Roberto Schwarz and Maria Sylvia de Carvalho Franco. It tries to show that recognition is, at once, both a normative principle and a concept that reveals how everyday practices were subordinated by arbitrariness in Brazil. Accordingly, the relations of favor and personal domination, which Schwarz and Franco respectively describe, could be taken as consequences of practical necessities of the dominant classes. So, in identifying a “shaming dissonance” between what the norm of recognition implies and what it becomes within Brazilian society, both authors are able to show that is possible to critically denounce the inversion of a legitimate principle of social life’s organization into a mechanism of reproduction of social hierarchies.
Keywords: recognition, favor, personal domination.
Artigos
Reconhecimento social e seu contrário no Brasil
Social recognition and its opposed in Brazil

Recepción: 15 Enero 2020
Aprobación: 24 Agosto 2020
Talvez devido às necessidades analíticas associadas à proverbial diversidade social e cultural do Brasil, a incorporação do tema do reconhecimento na sociologia feita no país inclui interpretações diversas do significado desse conceito. Essa interpretações, por sua vez, são majoritariamente apropriações e traduções de debates iniciados fora do Brasil – o que não é nenhum demérito, pelo contrário – mas não apenas isso. O presente artigo se propõe discutir o porquê de o reconhecimento no Brasil ser uma espécie de reapropriação conceitual e, ao mesmo tempo, uma ideia original quando operacionalizado no país. Ao longo do texto, espera-se poder demonstrar que, ainda que não tenha sido um conceito central nem para as interpretações nacionais, nem para os estudos de formação, certos usos do conceito de reconhecimento estiveram presentes explícita ou implicitamente em trabalhos de sociologia política brasileira. Isso se deve – e demonstrá-lo é a segunda intenção do artigo – ao fato de que no Brasil a dinâmica do reconhecimento, sustentada normativamente pelo princípio de reciprocidade, esteve intimamente associada à dinâmica do personalismo, gerando uma cultura política permissiva às desigualdades e a diversos limites ao pleno usufruto da cidadania (Reis, 2000; Sales, 1994; Telles, 2000). Nesse sentido, o texto retoma uma constatação de Maria Arminda do Nascimento Arruda, referindo-se a Antonio Candido, que identifica a tensão entre a importância de estudar sociologicamente a cultura nacional e, ao mesmo tempo, reconhecer seu acanhamento (Arruda, 2004, p. 108). Aceita a constatação, mas revirando-a, tem-se que os processos sociais típicos do Brasil, em seu acanhamento, revelam não apenas algo sobre a vida social nacional, mas também sobre a cultura política a que a sociologia se refere. No caso do Brasil, quero defender que se trata de uma relação íntima entre reconhecimento social e seu contrário, cujos efeitos extrapolam o momento da formação nacional e vivenciam uma permanência em forma de desigualdade, mas também contribuem para a recorrente opção nacional (de parcela significativa da nação e de sua elite) pelo velho autoritarismo, que às vezes se traveste de novo, e logra mobilizar “o fundo regressivo da sociedade brasileira, descontente com os rumos liberais da civilização” (Schwarz, 2019, p. 327).
Quero mencionar, inicialmente, três interpretações do conceito de reconhecimento, das quais duas considero as mais difundidas devido a seu caráter explícito de modelo teórico, enquanto a terceira, por se tratar de um uso da categoria analítica, considero a mais instigante para a compreensão sociológica da realidade brasileira. Em primeiro lugar, em um diálogo mais amplo com as outras duas disciplinas que compõem as ciências sociais, reconhecimento foi ou tem sido tomado como um índice que orienta lutas sociais centradas em demandas culturais e identitárias, servindo assim de aporte às reivindicações de grupos politicamente desrespeitados. Essa é a apresentação do reconhecimento como “paradigma popular de justiça”, na expressão de Nancy Fraser (1997). Em segundo lugar, de um ponto de vista em que a sociologia encontra a filosofia normativa, as raízes hegelianas do conceito de reconhecimento têm sido buscadas e atualizadas em teorias da integração social e das instituições. Essa é a apresentação do reconhecimento como princípio normativo, tornada popular no debate teórico social recente principalmente por Axel Honneth (2011). Essas duas formas do reconhecimento, combinadas de diferentes modos, têm sido apropriadas, traduzidas e reformuladas com diferentes ênfases no Brasil, resultando em trabalhos de grande interesse para a compreensão de movimentos sociais nacionais (Neves, 2007, 2018; Paiva, 2018; Pinto 2008), das recentes transformações do mundo do trabalho (Maciel, 2017; Rosenfield, Mello & Corrêa, 2015; Rosenfield & Pauli, 2012) e da cidadania política no país (Silva, 2019, cap. 6; Sobottka, 2015). Todavia, em terceiro lugar, há uma forma do conceito de reconhecimento que se esconde em alguns textos da sociologia política brasileira e que o conecta com a análise de um fenômeno típico dessa sociedade, o personalismo, especialmente em sua tensa relação com os princípios de liberdade e meritocracia.
Nesse último caso, reconhecimento é utilizado como uma categoria descritiva, mas, como pretendo demonstrar aqui, sem perder as dimensões normativa e crítica. Chamarei esse uso de reconhecimento de denúncia crítica, e quero enfatizar a indissociabilidade de ambos os termos, inclusive porque as duas outras formas do conceito de reconhecimento mencionadas acima também possuem uma dimensão crítica. Aquela crítica realizada por Fraser, Honneth e por autoras e autores que se apropriam de seus modelos, porém, parece-me antes ‘terapêutica’, no sentido de que enxerga nas relações de reconhecimento uma dimensão fundamentalmente positiva, que remete à corporificação de um princípio de reciprocidade. Meu interesse aqui é outro: ressaltar no uso do reconhecimento enquanto denúncia crítica em que medida seu aspecto normativo, isto é, sua validade como ideal de justiça publicamente mobilizado por movimentos sociais ou como parâmetro institucional, serve também para explicitar sua própria transformação em uma forma conivente de prestação e contraprestação, em um momento de “compensação simbólica” (Schwarz, 2000, p. 18).
Aqui há de se notar que a adoção da nomenclatura denúncia crítica permite diferenciar levemente a crítica do reconhecimento no Brasil do modelo, em certo sentido importado, de uma crítica imanente. Isso porque o modelo da crítica imanente reconstrutiva, mobilizado de modo especialmente frutífero por Honneth, identifica no descompasso entre as práticas sociais e as normas que as sustentam um critério de crítica que não introduz a visão particular da cientista nos motivos da crítica, mas as crenças sociais dos próprios indivíduos. Essa vantagem analítica, porém, repousa sobre uma concepção unilateral dos princípios reconstruídos. No caso de que trata o presente texto, isso significa que o princípio de reciprocidade encarnado nas relações de reconhecimento, quando objeto de uma crítica imanente reconstrutiva, mantém seu caráter terapêutico, como a forma normativa a ser alcançada; quando, por outro lado, é confrontado com o fato de que a norma da reciprocidade, ao mesmo tempo, reforça desigualdades, é preciso fazer dessa categoria também um instrumento de denúncia1. Nesse sentido, o modelo de Teoria Crítica com o qual dialogo aqui é antes o de Honneth do que a dialética adorniana, uma vez que o modelo da crítica reconstrutiva – terapêutica ou como denúncia – necessariamente assume o objeto como o foco privilegiado da análise.
Recorrendo a dois trabalhos clássicos da sociologia política brasileira, o de Maria Sylvia de Carvalho Franco e o de Roberto Schwarz, parece possível destacar um entendimento das relações de reconhecimento em que a intenção dessas relações possui dois planos: por um lado, porque se trata de um princípio organizador da vida institucional, as relações de reciprocidade que esse princípio engendra funcionam como um critério normativo; por outro lado, porque essas relações de reciprocidade não são, na prática, propriamente recíprocas, o princípio do reconhecimento anunciaria uma “dissonância vexatória” (Schwarz, 2012, p. 168) entre a realidade social e a promessa que ela contém. Desse descompasso experimentado como inautenticidade decorre uma forma complexa de crítica da ideologia, que é mais do que apenas uma crítica da ideologia: ela é, principalmente, uma reconstrução da tensão latente entre um sistema baseado em princípios e as práticas sociais que lhe dão forma. É nessa reconstrução, um método eminentemente sociológico, que a crítica como denúncia se insere – por um lado, sendo mais que um discurso de justiça, porque possui a legitimidade moral de um princípio; por outro lado, tornando-se mais do que mera reconstrução, porque critica algo e, finalmente, sendo mais do que crítica da ideologia, porque não critica um falso entendimento, mas aquela dissonância entre legitimidade e prática social. Nessa versão de uma reconstrução normativa (Honneth, 2011), então, reconhecimento serviria como um guia possível para reconstruir sociologicamente as normas e valores de nossas sociedades, mas também para analisar o processo social em que essas normas são corporificadas, resultando na possibilidade de criticar a relação entre forma normativa e processo social sem privilegiar uma sobre a outra, justamente porque a situação social na qual as normas e princípios ganham corpo também afeta sua existência enquanto critérios de crítica – daí, afinal, a necessidade de avançar a crítica também como denúncia.
Para começar a tratar do reconhecimento como denúncia crítica, quero tomar como ponto de partida um ensaio de Roberto Schwarz chamado “Complexo, moderno, nacional e negativo” (1987), pois ali o uso que o autor faz do conceito de reconhecimento remete tanto à adequação normativa quanto à prática social. Nesse ensaio, cujo objeto imediato é a correspondência entre a composição narrativa utilizada por Machado de Assis em seus romances, notadamente nas Memórias póstumas de Brás Cubas, e a exposição de certos “dinamismos da sociedade brasileira” (Schwarz, 1987, p. 115), Schwarz foca a análise na passagem final do primeiro capítulo e em parte do segundo capítulo do romance, que são os momentos em que Brás Cubas explica a causa de sua morte. Ali, escrevendo já em meio aos vermes que lhe roeram a fria carne, o defunto autor enumera as razões que o levaram a justificar a criação do emplastro que levaria seu nome: para o governo, escreve uma petição chamando atenção para os resultados cristãos do medicamento anti-hipocondríaco; para os amigos, revela as vantagens pecuniárias; mas para a leitora e o leitor, finalmente, assume “a paixão do arruído, do cartaz, do foguete de lágrimas (…) De um lado, filantropia e lucro; de outro lado, sede de nomeada. Digamos: - amor da glória” (Machado de Assis apudSchwarz, 1987, p. 116-117).
Esse trecho, entre outras coisas, apresenta a hipótese de que, no romance em questão, filantropia e lucro não se encontram em lados opostos, mas revelam uma inversão da denúncia típica do romance realista. Enquanto, nessa tradição, é típico o desvelamento dos interesses mesquinhos e instrumentais por trás da fachada generosa – por exemplo no Balzac de Ilusões perdidas (Lukács, 1981) – no Machado de Assis atento àqueles ‘dinamismos da sociedade brasileira’, “o cálculo do lucro era… uma desculpa. Assim, a busca da vantagem econômica dá cobertura ao desejo de reconhecimento pessoal, e não vice-versa” (Schwarz, 1987, p. 117). Ao contrário do modelo tradicional, então, Schwarz interpreta o romance naturalista no Brasil a partir de seus elementos internos, porém indicando, como enfatiza Modesto Carone, a “ordenação inesperada de causas” (2007, p. 113, grifo no original; cf. Schwarz, 1987, p. 118). Nesse sentido, ao invés de uma síntese entre as contradições internas à sociedade, contradições que oporiam filantropia e lucro, o estudo de Schwarz indica, na presença de um narrador volúvel, exatamente a solução oposta, a subordinação da atividade prática à “satisfação de amor-próprio para o narrador. Esta tem a ver com o desejo de atenção e reconhecimento […] desejo decisivo para o nosso raciocínio” (Schwarz, 1987, p. 119). Assim, por meio da transformação do imperativo do lucro em motivo menor, a relação entre virtude pessoal e pressão social logo é deslocada pelo ordenamento que prioriza a forma do reconhecimento como amor-próprio e atenção. Isso significa, afinal, que a disposição social ao julgamento de outros deixa de se dever às contribuições de cada uma e cada um e apela ao puro egoísmo, cuja condição dada às classes dirigentes, como se verá, em última instância lhes propicia a conduta arbitrária2.
Mas mesmo esse deslocamento não se faz sozinho, como Schwarz aponta na conclusão do ensaio. Segundo ele, a “situação ideológica e moral” à qual estava submetida a camada burguesa de que Brás Cubas participa é a contraparte, enquanto realidade social, do artifício narrativo que Machado de Assis se viu compelido a utilizar: “obrigados por seu papel de representação externa, esses dirigentes liberais de um país de economia escrava diariamente tinham de pedir para sua pátria e a si mesmos o reconhecimento do ‘mundo civilizado’, cujos princípios elementares, entretanto, dada a realidade social, eles tinham de infringir com igual constância” (Schwarz, 1987, p. 124). Ao situar socialmente o capricho de um tipo como Brás Cubas, a volubilidade é exposta em relação ao plano miúdo e caricato das preocupações reais do narrador, das quais o emplastro é tão somente o ápice. Todavia, esse capricho não é de todo arbitrário, posto que preside a ação das personagens e as permite reivindicar exatamente aquela forma de reconhecimento que tomam por possível dentro das circunstâncias nacionais que, não custa lembrar, eram conduzidas no plano ideológico por princípios internacionais. Dito de outro modo: devido à necessidade de inserção do país em uma ordem mundial, as camadas dirigentes eram conduzidas a se portar com “espírito” liberal, mas não podiam, de fato, conduzir-se praticamente como liberais e abolir a escravidão. A questão aqui é menos a de parecer uma elite interessante, que vai de par com o mundo mais amplo, e mais a de estabelecer uma relação social na qual o exercício da liberdade de um lado não seria criticamente avaliado pelo outro e, ainda assim, sustentaria uma forma de “coexistência estabilizada” (Schwarz, 2000, p. 18). Esta, a segunda parte da trama que se inicia com a possibilidade da conduta arbitrária.
Que fique claro: no ensaio em questão, Schwarz se debruça sobre a composição narrativa. Assim, ao vaivém da prosa corresponde o “vaivém ideológico da classe dirigente brasileira, articulada com o mercado e o progresso internacionais, bem como com a escravidão e o clientelismo locais” (Schwarz, 1987, p. 124-5). Essa circunstância, porém, como se apressa a assinalar o autor, não é uma idiossincrasia nacional, mas justamente decorre da posição do Brasil na ordem burguesa. Ocorre que, voltando ao tema do ensaio, a genialidade de Machado de Assis se expressa exatamente como um artifício narrativo que é capaz de acentuar como característica da vida burguesa no Brasil de fins do século XIX “a fenomenal expansão do arbitrário pessoal, que nesse romance ataca e sujeita todas as dimensões da vida, mas sem perder a conotação de inconsequência e marginalidade que lhe deu a civilização burguesa do século XIX” (Schwarz, 1987, p. 123-4). Ou seja, em que pese a situação histórica da qual devia participar a camada estudada – por Machado de Assis e por Schwarz, como mostra Carone (2007, p. 114) – é sua dupla adesão a princípios normativos que marca o romance. Lembremo-nos, contudo, que os princípios normativos, já desde o início do ensaio – e do romance –, são explicitamente apresentados como um mecanismo a serviço do amor-próprio, de modo que, afinal “repositórios do valor da vida moderna, aparecem somente enquanto objetos do capricho, o que é dizer que sua lógica está subordinada às necessidades sempre momentâneas do amor-próprio do herói” (Schwarz, 1987, 122)3. É central, então, notar que não se trata de uma substituição ou de uma inversão, mas de uma subordinação, isto é, de um procedimento por meio do qual o valor original de uma norma é colocado a serviço de outra forma desse mesmo princípio. É assim que a mencionada busca da vantagem pessoal, o fio condutor da individualidade capitalista, se subordina ao desejo de reconhecimento pessoal como a tal dualidade de critério: “o critério de realidade que preside à caraterização é um, e o que comanda a ação é outro, sendo que num caso a norma é juiz, e no outro, como vimos, objeto de capricho” (Schwarz, 1987, p. 123). Dito de outra forma, o arbítrio pessoal revelado pelo uso do conceito de reconhecimento – inadvertidamente por Brás Cubas, como denúncia da dissonância social por Machado de Assis e sociologicamente por Schwarz – expõe a subordinação de um princípio organizador da vida social à sua forma cotidiana. Mais adiante, isso será um tomado como um tema da crítica social.
Na seção anterior, foi mencionada a hipótese de que, com a inversão do esquema do romance realista tradicional, aquele da denúncia-(eventual)reconciliação-síntese, Machado de Assis apontaria para um deslocamento de causalidades que seria típico das circunstâncias brasileiras. Esse deslocamento, por sua vez, é interpretado por Schwarz como uma subordinação dos princípios e valores da vida moderna à expansão do arbítrio, resultando em uma espécie de caracterização alternativa das orientações para a ação prática entre as camadas dirigentes do Brasil de finais do século XIX. A expansão do arbítrio, entretanto, marca não apenas as camadas dominantes, mas as relações sociais entre essa camada e a das pessoas livres, na medida em que opera tanto no nível imediato das práticas sociais, quanto no nível das justificações ideológicas – ou, como afirmou Schwarz no ensaio “Complexo, moderno, nacional e negativo”, a dualidade de critérios diz respeito, enquanto capricho, ao nível da ação e, enquanto norma, ao nível da caracterização. Nesse sentido, a subordinação dos ideais às circunstâncias é o que faz com que Machado de Assis revele que Brás Cubas prefere o reconhecimento como ato de indulgência a seu amor-próprio do que como resultado efetivo de sua contribuição à sociedade, ainda que mascarando o interesse financeiro. Assim, como ressalta Carone (2007, p. 115), o feito narrativo celebrado por Schwarz, é a capacidade descritiva de Machado de Assis no que diz respeito à posição vexatória das camadas dirigentes do Brasil no século XIX, que são levadas a esposar um sistema de princípios que lhes é externo.
Nesse sistema, então, o processo econômico se justifica pela condição de cada indivíduo como livre e igual membro da sociedade, resultando em sua possibilidade de obter reconhecimento por seus méritos e contribuições, mais do que por sua honra (como nas sociedade tradicionais) ou por sua posição social (Taylor, 1994; Mattos, 2006). O princípio de reconhecimento, na modernidade, é transformado no critério de avaliação recíproca de méritos, que estava à disposição de todos os indivíduos, mas, ao mesmo tempo, implicava um momento de contraprestação: o reconhecimento é recíproco e socialmente mediado, ou seja, demandado e obtido por meio da mobilização de um substrato de valores universalizados. Como visto até o momento, é o contrário dessa forma de reconhecimento social que é mobilizado e está à disposição de Brás Cubas, o que implica na feliz coincidência – do ponto de vista da camada dominante – de que é possível aderir ao ideário da realização individual por meio do reconhecimento, caso esse se submeta ao arbítrio.
Aqui parecem começar a vir à tona alguns pontos de interesse na hipótese da subordinação, que, por sua vez, talvez condensem algumas outras intuições a respeito do processo social brasileiro. Em primeiro lugar, a subordinação de princípios identificada por Schwarz aponta para a prevalência das intenções privadas frente às públicas, mas essa inversão da relevância social dos vícios públicos e privados ainda revelaria dois modos de adesão à lógica do reconhecimento social, embora ambos revertam a norma de reciprocidade. Isso significa que, mesmo afastando-se cada vez mais do princípio de contraprestação universal, a apropriação do reconhecimento social mobilizada pelas camadas dominantes se faz ao custo da reciprocidade, e não da autoafirmação de si e de suas posições. Em segundo lugar, essa adesão particularista a qualquer uma das lógicas do reconhecimento social não prescinde do acobertamento fornecido por princípios ideológicos – no caso, os princípios do liberalismo – mas, para isso, mobiliza apenas a dimensão do autointeresse e não a da universalidade, que também está presente no corolário político liberal. De modo interessante, porém, não é aquela falta de virtude social que se convencionou chamar de egoísmo privado que preside o processo, mas a privatização da norma de justificação social, ou seja, a busca pelo reconhecimento do amor-próprio é que engendra a prevalência dos vícios privados sobre os públicos. Em terceiro lugar, essa inversão gera uma relação não óbvia entre ambas as lógicas de adesão ao reconhecimento social, isto é, entre a lógica pública da adequação ao sistema de valores coletivos e a lógica privada da maximização do autointeresse; segundo essa lógica, o reconhecimento social não se deve aos méritos pessoais, mas à adequação – pública ou privada, genuína ou dissimulada – das e dos participantes àquele sistema de regras que orienta o relevo social, considerado aqui em toda a sua dimensão de contradições e tensões. O que se quer dizer com isso, na prática, é que Brás Cubas se vale do princípio do reconhecimento atribuído à pessoa individual, mas o faz ao demandar que se reconheça sua intenção capitalista, que é, afinal a mesma das pessoas que efetivamente merecem o reconhecimento público, sem que ele, efetivamente, precise agir como um capitalista, já que pode mobilizar ao bel-prazer o ideário da participação ativa nas esferas da vida burguesa, como a educação em Coimbra, o amor de uma jovem virgem, as tentativas de escrever sonetos, as divagações filosóficas, a presença jornalística, a realização filantrópica e assim por diante (Schwarz, 1987, p. 122). Desses três pontos de interesse – a dupla lógica do reconhecimento, a orientação por princípios implícitos e o mérito na adequação aos princípios – decorre, por fim, que o reconhecimento social é apresentado como uma expressão da participação apropriada do indivíduo nas regras da sociedade a que ela ou ele pertence sem que seus méritos individuais sejam considerados. Se isso estiver correto, o caso de Brás Cubas, exposto por Machado de Assis, revelaria que a adequação a um sistema fetichizado se sobrepõe à avaliação recíproca e à necessidade de prestações e contraprestações, e isso se expressaria no feito de construção narrativa. Mas, seguindo Carone (2007, p. 113), o autor também é desmascarado pelo sociólogo, pois este último também admite que tentou expor o problema do vexame a que são submetidas as camadas dominantes a partir da análise das ideias – e não apenas da forma narrativa. As consequências da despotencialização da prestação e da contraprestação, porém, são primeiro entendidas no nível social, ou melhor, como “reconstrução sociológica” (Schwarz, 1987, p. 122).
Essa amarração das coisas tem sua formulação mais famosa no ensaio de Schwarz sobre “As ideias fora do lugar”, onde a solução proposta pelo autor à “impropriedade do nosso pensamento” (Schwarz, 2000, p. 13) é explicar a ordem do favor como um mecanismo social que se transforma em “elemento interno e ativo da cultura” (p. 29). Para que isso ocorra, dentro dessa ordem, o reconhecimento se torna conivência maquiada no vocabulário burguês da igualdade, do mérito e do trabalho (p. 20), de modo que, para parcela significativa da sociedade brasileira, o princípio do reconhecimento recíproco ocuparia o duplo papel de princípio orientador e mistificação. Não se trata, porém, de falso reconhecimento ou de mero desacerto ideológico, mas sim de um caráter tipicamente brasileiro da relação entre autorrealização, ausência de reciprocidade e normatividade – entre intenção individual, orientação valorativa e legitimação social, para colocar os temas em outro vocabulário. Isso porque, na apresentação de Schwarz, as práticas sociais se encontram em pé de igualdade com os princípios teóricos. Assim, por um lado, a “acochambração” do reconhecimento com que nos deparamos aqui é tão somente o resultado de sua própria adequação, isto é, da adequação de seu uso enquanto princípio, a um certo dinamismo expresso na importação de ideias liberais para uma ordem tributária do liberalismo à europeia, mas que, por um lado, o subordina às práticas sociais e, por outro, nunca deixa de tomá-lo como um princípio de justiça nas relações interpessoais4.
Parece-me que é a esse estado de coisas que Schwarz alude ao citar o trecho das Memórias mencionado anteriormente. Mais precisamente, a busca por reconhecimento que gera a volubilidade do narrador do romance se expressa sempre no nível individual, mas como personagem adequada às regras e disposições coletivas da sua posição de classe naquela sociedade, e esse movimento de adequação faz com que o reconhecimento ambicionado sempre apareça um passo atrás dos princípios que fundamentam o sistema de práticas sociais – ou seja, o princípio acaba por assumir o caráter fantasmagórico de uma realidade dada, quando, na verdade, a essência mesma de sua legitimidade é o sistema de prestações e contraprestações expresso na reciprocidade. No argumento de “As ideias fora do lugar”, então, Schwarz (2000) notara que o liberalismo na Europa foi o resultado de lutas históricas e da consequente postulação de princípios, a seu tempo, emancipatórios, enquanto, no Brasil, ele precisou se combinar com a própria posição do país frente à Europa. Assim, se lá o princípio de justificação da ação e a norma de legitimação social andam junto com as práticas – e possuem um efeito, até segunda ordem, emancipatório sobre estas últimas – aqui as normas e as práticas andam juntas, e possuem o efeito de subordinar o princípio do reconhecimento recíproco às necessidades de legitimação assim surgidas5. Daí que o reconhecimento passa a ser uma forma de “compensação simbólica” (p. 18) utilizada no “momento da prestação e da contraprestação (p. 20) e que serve à normalização das relações sociais. O ensaio “Complexo, moderno, nacional e negativo” é a exposição de uma das “continuidades sociais” (Schwarz, 2000, p. 20) às quais Schwarz alude em “As ideias fora do lugar”, pois trata da situação da classe burguesa e de suas volubilidades. Todavia, é a universalidade da prestação e da contraprestação que chama a atenção enquanto objeto da reconstrução sociológica a que ele alude, justamente devido ao fato de seu resultado, o favor, ser “nossa mediação quase universal” (Schwarz, 2000, p. 16, grifo no original). Pois, na amarração daquele tripé formado pelo duplo caráter do reconhecimento, por sua remissão a princípios implícitos e por sua valorização da adequação, o processo social de reconhecimento passa a ser subordinado às ambições prévias dos envolvidos. De modo direto: o princípio de reconhecimento recíproco não é mais motor de um processo de estabelecimento de normas, mas pendão da negação das normas de reciprocidade e, afinal, da possibilidade mesma de igualdade.
Nesse contexto, seria de se esperar que o tema fizesse parte do cânone da sociologia brasileira, mas esse não é exatamente o caso. A conexão entre reconhecimento e desigualdade no Brasil ganhou relevância relativamente tardia, segundo Josué Pereira da Silva, pois a emergência desse conceito como uma categoria das lutas sociais coincidiu com os anos de ditadura militar e, passado o criminoso período, não era de se estranhar que durante os primeiros anos de redemocratização os movimentos sociais se dedicassem à reconstrução da cidadania política, mais do que à conquista dos chamados direitos sociais (Silva, 2019, p. 135-6)6. Desse modo, a ênfase de teorias sociológicas que tratam do reconhecimento no Brasil, acabou mediada pelas questões da desigualdade básica e da cidadania política – ou melhor, da ausência dessa última (Silva, 2019, p. 148-9). Considerada sob essa luz, a partir da década de 1990, uma série de trabalhos procuraram articular desigualdade e falta de cidadania. Dentre esses trabalhos, cabe destacar, com Vera da Silva Telles (2000, p. 20), que a pobreza nunca deixou de ser uma questão central da sociedade brasileira, muito embora nunca tenha sido tratada no horizonte da cidadania, mas sim despojada das dimensões éticas que permitiriam a construção de um princípio de reciprocidade. Assim, no Brasil, uma significativa parcela da população se vê impedida de participar do que Telles chama de um “código de igualdade”, que é o mecanismo pelo qual “indivíduos se reconhecem e são reconhecidos no seu igual direito de pôr em questão modos de ser em sociedade” (Telles, 2000, p. 29). Segundo Ângela Randolpho Paiva (2018, p. 268), isso se deve ao fato de que, na articulação entre cidadania e direitos, não se tratou de ideia fora do lugar, mas sim de aceitar um registro meramente formal dos direitos de dignidade individual, sem que, com isso, a necessária inclusão de certos grupos sociais fosse buscada, resultando, na prática, em uma “exclusividade de uso” dos direitos sociais a certas camadas da população. Assim, no que diz respeito ao usufruto dos direitos sociais formalmente universalizados, os limites da articulação exposta demonstram o estabelecimento de uma rede de relações que estruturalmente posiciona os mais desfavorecidos em uma situação que os impede de pleitear a participação nas redes de reciprocidade.
De um outro ponto de vista, aquele da teoria da modernidade periférica, isso é o que Jessé Souza chamou de “subcidadania”, e de “naturalização da desigualdade” (Souza, 2006). Para Souza, porém, os efeitos da sociabilidade precária a que eram submetidos os grupos mais desfavorecidos eram uma situação que se permitia descrever como “um preconceito que se refere a certo tipo de ‘personalidade’, julgada como improdutiva e disruptiva para a sociedade como um todo” (p. 159). A intenção de Souza, que é falar da fundação do “habitus precário” (p. 158) como base de uma disposição da modernidade periférica para a constituição de uma “ralé estrutural” (p. 181), porém, não interessa, do ponto de vista das relações de reconhecimento, exatamente porque enfatiza a atribuição de uma posição social a uma camada da população7. Para o caso de uma teoria do reconhecimento que leve em consideração seus princípios normativos, parece-me mais adequado afirmar que o contrário do reconhecimento social propagado como uso exclusivo de certos direitos sociais se dá por meio da ruptura do princípio de reciprocidade e de sua subordinação às disposições das camadas dominantes. Seria possível dizer que as camadas populares, nesses casos, são desreconhecidas.
Como visto, porém, o problema da subordinação dos princípios não gera efeitos apenas sobre as camadas populares, mas sobre o sistema institucional como um todo. A bem da verdade, como mostra Rodrigo Bordignon (2016, p. 45), a própria disputa pela ‘origem’ e pelo significado do regime republicano que se estabelece no Brasil em finais do século XIX se organiza ao redor da interpretação possível de um regime de concorrência igualitária, que aos olhos dos monarquistas revogara a proteção benevolente com a qual a monarquia protegera a multidão. Contrapondo-se a isso, diz Bordignon, a crítica fundamental dos republicanos ao Império recaia na incapacidade desse último de abrir-se ao recrutamento daqueles indivíduos desprovidos das distinções arbitrárias que marcavam a sociedade brasileira e, desse modo, possibilitar a multiplicação dos níveis de inserção social. Nesse sentido, já na década de 1870, o Partido Republicano se insurge contra a reprodução de uma ordem de privilégios que, no imediato pós-Proclamação da República, um de seus defensores, Felício Buarque, associará à necessidade que o então Imperador D. Pedro II via no “servilhismo”8, representando esta relação a extensão em que consideram a política imperial um exercício pessoal de Pedro II (Bordignon, 2016, p. 246). Se esse trecho invoca a volubilidade que o afortunado Brás Cubas tinha à sua disposição, a vitória política dos republicanos não traria a corporificação desses ideais, mas uma intenção de favorecer os poderosos no nível local, em oposição ao governo central, alterando assim o balanço de forças na distribuição de recursos. Mais importante, porém, essa mudança pôde “deixar que os conflitos se resolvessem pela força social de seus postulantes” (p. 249), neutralizando o arbítrio por meio de naturalização das posições previamente dadas para o exercício do poder. Ocorre que, assim como no caso da volubilidade que estava à disposição de Brás Cubas para agir com “desfaçatez de classe” (Helayel & Brasil Jr., 2019, p. 114), a posição prévia de poder era estruturante não apenas da política e da economia, mas da própria constituição de relações sociais de reciprocidade.
Essa tendência ao uso do poder de mando como uma dádiva à qual as classes dominantes têm o direito (de usufruto e de distribuição) aparece novamente no capítulo de Schwarz dedicado ao Machado de Assis jovem e a seu romance Iaiá Garcia, onde o crítico nota que “o arbítrio dos ricos implica em descontinuidades na vida e no propósito dos seus dependentes” (Schwarz, 2000, p. 193). Essas descontinuidades, porém, “são, além de imposições sofridas, serviços prestados, quer dizer, elementos de ligação, e não de antagonismo” (p. 193). Em nenhum lugar isso é mais visível do que na constituição de uma rede de favores, lealdades e violências, que estabelece as tensões típicas da modernização brasileira, temas do livro de Maria Sylvia de Carvalho Franco, Homens livres na ordem escravocrata (1997). Evidentemente, em seu trabalho, há também atenção aos efeitos das normas de reciprocidade (ou da ausência delas) sobre as camadas mais desfavorecidas, como mostra sua constatação da “escravidão como instituição”, isto é, como parte de um sistema social que resulta justamente na impossibilidade de os escravos serem reconhecidos como um outro (Franco, 1997, p. 13). No entanto, o interesse da autora está na “formação sui generis de homens livres e expropriados, que não foram integrados à produção mercantil” (p. 14). Ainda que esse interesse seja exposto em conexão com a organização econômica, é nos seus resultados para as relações entre os indivíduos que fica mais explícito que se trata, também aqui, de uma relação de reconhecimento, pois os homens livres, para livrarem-se da condição de “dispensáveis, desvinculados dos processos essenciais à sociedade” (p.14) precisam recorrer ao “reconhecimento da ‘igualdade do outro’, semi-explícito para o fazendeiro no processo de dominação pessoal” (p. 16). Assim, ao longo do capítulo em que trata da dominação pessoal e das possibilidades e limites que se colocam à abertura desse sistema, Franco reconstitui a forma como as relações de reconhecimento social e de reciprocidade mediavam o contato entre os homens livres pobres e os proprietários de terras.
Feita a ressalva de que o livro de Franco trata de um local e um período muito específicos, sua investigação desempenhou papel central na elaboração da tese de Schwarz, de que o favor seria uma mediação generalizada (Helayel & Brasil Jr, 2019, p. 101-2)9. E isso só é possível, evidentemente, porque, ao longo da investigação, é destrinchado um tipo de relação que apela justamente a um núcleo de universalidade identificado no tratamento igualitário entre os indivíduos, ou ao menos num tratamento que era percebido como tal. Assim, o compadrio era uma relação de reconhecimento recíproco, mas também uma forma de dominação entre os semelhantes, pois, ao mesmo tempo em que implica o ‘reconhecimento recíproco daqueles que une como portadores dos mesmos atributos de humanidade” (Franco, 1997, p. 86), reproduz uma forma de dominação entre semelhantes, suposta em um modo indeterminado de diferenciação social. O que a autora mostra, então, é que os sitiantes eram reconhecidos como pessoas, e enquanto tal poderiam demandar tratamento igualitário, chegando mesmo a confrontar abertamente as posições de poder, o que evidenciava momentos de fluidez nas relações de arbítrio pessoal à disposição dos poderosos, arbítrio esse que podia ser contraposto exatamente pelo recurso a uma dívida de reciprocidade ou a condutas de solidariedade (p. 78, 102). Entretanto, não se tratava de uma potencial operacionalização em forma de resistência, mas antes de uma adequação possível de interesses.
Na medida em que o indivíduo em posição privilegiada reconhecia o homem livre pobre como pessoa, afinal, ele agia como uma pessoa que reconhece uma outra pessoa enquanto seu igual, mas como pessoa “igual” que poderia servir ao fazendeiro e a seu interesse e à qual ele deveria prestar uma contraparte servindo para algo. É por isso que Franco (1997, p. 93) afirma que na relação entre ambos estavam mobilizados os atributos de uma “associação moral”. Essa, porém, se sustentava ao sujeitar o dependente “a comportamentos automáticos, de onde o critério, o arbítrio e o juízo estavam completamente excluídos”, resultando que, na relação de reconhecimento, se “trazia inerente a negação dessa mesma humanidade” (p. 93-4). O esquema do reconhecimento recíproco entre ambas as partes, então, se estrutura como um modo desigual de reciprocidade: a contraprestação se expressa como identificação com os interesses dos mais poderosos, ao que se paga com o dever de proteção do beneficiário. Esse é um compromisso de “favores recíprocos” para os quais o tratamento “igualitário” não é propriamente igualitário (p. 77). Não por outro motivo, a associação moral se sustentava por uma série de códigos de conduta cujo resultado era, efetivamente, a manutenção da dominação pessoal.
É assim que a “continuidade da proteção” (Schwarz, 2000, p. 194), ainda que negligenciável pelas camadas dominantes, não é indispensável, e se transforma em um mecanismo por meio do qual a manutenção da própria dominação é exercida de modo eficaz e consequente. Isso se deve, afinal, ao pressuposto do sistema de prestações e contraprestações, que Franco (1997, p. 92-3) chama de “consciência da indiferenciação”, graças à qual, finalmente, o senhor de terras pode consolidar sua posição enquanto categoria social e, ao mesmo tempo, reconhecer no seu outro uma pessoa cujas chances de realização se sustentam a partir da diligência e perseverança individuais. Assim, para Franco, a categoria ‘senhor’ participa de uma relação de indiferenciação com o ‘homem livre pobre’, mas, nessa relação de igualdade, a força social dos postulantes mencionada por Bordignon a respeito de nossos republicanos se expressa com a naturalidade de que alguns mereceriam estar onde estavam e o ciclo que começa com o reconhecimento do amor-próprio se fecha com o reconhecimento da própria posição social.
Na relação assim estabelecida, do reconhecimento como pendão do personalismo, encontra-se a duplicidade do desejo de reconhecimento pessoal, desde que mantidas as regras de um sistema social orientado pela reciprocidade, e também se encontra a valorização nominal da adequação aos valores desse sistema de normas recíprocas. Não encontramos mais, porém, a reciprocidade da relação interpessoal como princípio do sistema, uma vez que este último já é tido como dado, como se fora uma coisa com vida própria. Afinal, mesmo no cálculo do lucro, a que alude Schwarz em “As ideias fora do lugar” (2000, p. 13), era preciso que o capitalista encontrasse mais do que mera liberdade: era preciso encontrar uma força produtiva, se não duplamente livre, pelo menos livre o bastante para cuidar de si mesmo – o que, aliás, dá a dimensão da indigência liberal de antigos e novos defensores do liberalismo no Brasil, para quem, no século XIX como no ano 2019, uma boa proposta para cuidar da mão de obra capitalista é o acerto individual entre patrões e funcionários. Como, porém, a economia não dependia propriamente dessa descoberta feita por nossos burgueses, a contraparte da exploração econômica deveria ser construída como privilégios ideologicamente justificados. O reconhecimento como penhor da desigualdade aceita pelo sistema opera justamente isso: nega o movimento de afirmação pessoal recíproca ao reforçar a desigualdade dos papéis dessa relação e, consequentemente, das possibilidades de reconhecer e ser reconhecido10, pois o trabalho produtivo está em um lugar e a meritocracia em outro. Consequentemente, aquilo que poderia demandar reconhecimento não está mediado pela reciprocidade e o que está não é digno de mérito, de modo que o reconhecimento deve ser dado e demandado a outra coisa. Guardadas as diferenças, de violência inclusive, entre a ordem do favor, a volubilidade das elites e a própria retribuição obrigatória de que fala Franco, em todas elas, aquele movimento de esconder a intenção individual de obtenção de proeminência por meio do consentimento com normas universais e universalmente tidas como legítimas está presente, mas as normas com as quais se consente são sempre reforçadas e nunca examinadas criticamente, como passíveis de uma ampliação por meio da inclusão e democratização de sujeitos a serem reconhecidos.
Mas, então, por que não denunciar o próprio reconhecimento? Ou melhor: por que não denunciar a incapacidade de um princípio de reconhecimento recíproco corrigir a dissonância vexatória de que falava Schwarz? Justamente porque, em primeiro lugar, é a dissonância que é constitutiva da modernidade brasileira. Sua dimensão econômica decorre da participação em um sistema universal que demanda essa organização predatória e suas atualizações11. A alternativa, evidentemente, seria abrir mão dos princípios do liberalismo, mas a livre produção de mercadorias dificilmente convergiria para algo melhor. Em oposição a isso, um princípio de reconhecimento pode agir como um impulso à crítica social, e particularmente a uma crítica social que é feita de dentro de um sistema de normas e valores, mas com a intenção de ampliar os sujeitos aos quais essas normas e valores dizem respeito. Esse mecanismo possui dois grandes pilares. No plano teórico, é uma espécie de crítica interna com intenção externa – a tradicional imanência e transcendência dos conflitos sociais; no plano prático, permite entender as motivações dos conflitos sociais como algo que transforma princípios implícitos de legitimação em um impulso nas mãos das envolvidas e dos envolvidos nos conflitos sociais. Ou seja, a crítica social é uma tentativa de reconstruir a realidade social a partir das associações morais colocadas ao alcance daqueles que criticam essa realidade. Evidentemente, grande parte da sociologia política brasileira nunca abandonou essa intenção (cf., exemplarmente, Silva, 2019, cap. 9 e Fausto, 2017, cap. 1). No entanto, no momento da escrita desse texto, entre o final do ano de 2019 e o início do ano de 2020, quando o “neoatraso bolsonarista” (Schwarz, 2019) exerce o poder, é preciso estar atento aos riscos de uma excessiva autocelebração da disciplina12. Ao invés disso, com o exame da presença do conceito de reconhecimento na tradição da sociologia política brasileira, talvez fique claro que temos menos a celebrar e mais criticar.