Resumo: O presente artigo analisa o exílio político como um tipo específico de ativismo transnacional. Reivindica uma sociologia política do exílio sintonizada com as teorias dos movimentos sociais e argumenta que o exílio político promove amplas transformações na rotina militante do exilado e se produz a partir de padrões diferenciados. O principal objetivo é discutir perfis dos exilados, suas modalidades de ação política, e as características e as dinâmicas das redes transnacionais construídas. Para tal fim, dois casos são analisados: o dos “exilados de elite” pela ditadura militar brasileira no Uruguai e o dos “exilados populares” de camponeses paraguaios no Brasil. O fenômeno busca ser apreendido, assim, a partir de ângulos distintos, tanto no tocante ao tipo de exilado como à direcionalidade do fluxo. Metodologicamente, a análise se baseia principalmente em documentação histórica, fontes secundárias e entrevistas a militantes.
Palavras-chave:exílioexílio,ativismo transnacionalativismo transnacional,sociologia políticasociologia política,redes militantesredes militantes,América LatinaAmérica Latina.
Abstract: This article analyzes political exile as a specific type of international emigration and transnational activism. It claims for a political sociology of exile in dialogue with social movement studies and argues that political exile promotes wide transformations in the activist routine and is produced from different patterns. The main aim is to discuss profiles of exiles, their modalities of political action, and the characteristics and dynamics of their transnational networks. To this end, two cases are analyzed: that of “elite exiles” by the Brazilian military dictatorship in Uruguay and that of “popular exiles” of Paraguayan peasants in Brazil. Thus, this phenomenon seeks to be apprehended, through different angles, both with regard to the type of exile and the directionality of the flow. Methodologically, the analysis is based mainly on historical documentation, secondary sources and interviews with activists.
Keywords: exile, transnational activism, political sociology, activist networks, Latin America.
Artigos
Sociologia política do exílio: ativismo transnacional, redes militantes e perfis de exilados
Political sociology of exile: transnational activism, networks, and exile profiles

Recepción: 29 Enero 2022
Aprobación: 29 Agosto 2022
Desde as guerras de independência, a América Latina constituiu-se enquanto geradora de processos de migração forçada por motivos políticos, mormente pelo exílio. Marcado por sua complexidade, esse fenômeno variou consideravelmente no tempo e no espaço. Com o objetivo de servir como um mecanismo de exclusão política que diminuísse internamente os custos do combate a opositores, os dirigentes autoritários que assumiram o controle dos Estados na região usaram largamente esse recurso, transformando-o em um mecanismo institucionalizado de “exclusão do outro” por meio de emigração forçada (Roniger, 2010). Contudo, se no início tal mecanismo era destinado aos membros das elites políticas derrotados por golpes de Estado ou bruscos processos de transformação de regimes, com os regimes ditatoriais que se estenderam na região a partir da década de 1960, militantes políticos de base e ativistas territoriais também passaram a ser afetados. Assim, na segunda metade do século XX, o exílio político deixou de ser um mecanismo de exclusão política destinado exclusivamente às elites e passou a expulsar seus cidadãos de forma massiva (Sznajder & Roniger, 2009).
No século XXI, o fenômeno voltou a ser parte do complexo cenário político latino-americano. Basta observar a forte relação entre a política e o fenômeno migratório hoje na Bolívia, Colômbia, Venezuela ou Nicarágua, dentre outros. No caso brasileiro, chega-se a afirmar que há uma “nova geração de exilados” (Phillips, 2019), em virtude das dinâmicas recentes de perseguição, ódio e violência. Entre os “exilados” atuais mais conhecidos podemos citar a professora universitária Débora Diniz, estudiosa e ativista em favor da legalização do aborto; Márcia Tiburi, filósofa, opositora do discurso conservador; ou o ex-deputado do PSOL Jean Wyllys, que se autodeclarou exilado em 2019. Por sua vez, quanto aos casos oriundos de outros países da região, merece destaque o caso do ex-presidente da Bolívia, Evo Morales, exilado na Argentina por quase um ano.
No entanto, para além desses casos mais visíveis, a dinâmica de crescente criminalização, repressão e violência estatal e paraestatal a jornalistas engajados, ativistas meio-ambientais ou defensores dos direitos humanos e da diversidade sexual tem motivado um número importante, embora dificilmente mensurável, de saídas por exílio. A despeito do trabalho de uma série de coletivos e organizações internacionais que buscam construir redes de proteção, são casos menos conhecidos da opinião pública e da sociedade como um todo. Convivem não somente com o anonimato, mas também com situações de clandestinidade e semiclandestinidade em regimes políticos que formalmente são definidos como “democracias”.
Todavia, é importante diferenciar entre o exílio como categoria específica de migração forçada e o autoexílio como um processo relativamente “voluntário”, no qual intervêm, de forma ampla, tanto os fatores objetivos e “externos” vinculados ao conflito político, como também aqueles elementos de carácter subjetivo. As fronteiras são sempre tênues e, em termos de ativismo, este último pode ser visto também, muitas vezes, como uma forma de protesto diante da situação econômica, política ou social do país de origem (Roniger, 2011).
O exílio político é, portanto, um tema que, longe de estar somente associado às ditaduras do século XX, volta a ganhar centralidade na última década, na região e em todo o mundo, a partir da expansão de diferentes tipos de autoritarismo social e político (Cervelló & Tapia, 2016). A ação política no exílio, por sua vez, está marcada por particularidades perante outras formas de militância que transformam esse fenômeno em um dos maiores desafios para os estudos sobre as migrações internacionais, os movimentos sociais e o confronto político (Bringel, 2011a).
Neste artigo, buscamos analisar o exílio político como um tipo específico de ativismo transnacional. Reivindicando uma sociologia política do exílio sintonizada com as teorias dos movimentos sociais, argumentamos que o exílio político promove amplas transformações na rotina militante do exilado e se produz a partir de padrões diferenciados. Para compreender tais transformações, faz-se necessária uma análise atenta tanto ao contexto político e econômico, quanto às dimensões sociais e individuais da ação política no exílio, isto é, as redes de ativismo político. O principal objetivo é discutir perfis dos exilados, suas modalidades de ação política, e as características e as dinâmicas das redes transnacionais construídas.
Mobilizamos, para tal fim, dois casos distintos, porém complementares: o dos “exilados de elite” pela ditadura militar brasileira no Uruguai e o dos “exilados populares” camponeses paraguaios no Brasil. O fenômeno busca ser apreendido, assim, a partir de ângulos distintos, tanto no tocante ao tipo de exilado como à direcionalidade do fluxo. Isso se dá em um momento histórico prévio ao início de fluxos emigratórios protagonizados por brasileiros, que passaram a ocorrer a partir da década de 1980, em virtude da crise econômica, e que foram vistos como “descontinuidade histórica” (Cavalcanti & Oliveira, 2018, p. 99), tendo em vista a imagem anterior do Brasil como “terra de oportunidades para estrangeiros”.
No tratamento de ambos os casos, parte-se da análise qualitativa de fontes de índole diversa. As principais fontes da pesquisa são quatro entrevistas em profundidade realizadas por nós a militantes-chave, bem como fontes secundárias, tais como obras de memória. As entrevistas e os livros de memória permitiram compreender as dinâmicas das redes nas quais os exilados se inseriram após a saída do país e as janelas de oportunidades e restrições políticas que se abrem com o exílio. Valemo-nos, ainda, de alguns documentos históricos, dentre os quais merece destaque parte da documentação diplomática disponível para pesquisa e matérias de periódicos, fundamentais para compreender a dimensão política e econômica associada ao exílio2.
O texto está dividido em três partes, além desta introdução. Em primeiro lugar, discutimos alguns dos principais olhares, contribuições e limites da literatura especializada sobre o exílio político e delineamos, como alternativa, as configurações de uma sociologia política do exílio. A partir das possibilidades abertas, a segunda parte do artigo realiza uma proposta conceitual sobre o ativismo político no/do exílio, destacando sua dimensão transnacional, as redes e os diversos padrões de ação política. Finalmente, apresentam-se na última parte os dois casos antes mencionados, como uma concretude empírica do debate mais geral. Embora os casos em tela refiram-se aos anos 1960 e 1970, o artigo discute, a modo de conclusão, como eles podem contribuir a compreender o exílio político no atual momento histórico de transformações profundas das formas de ativismo e de retorno de posturas autoritárias e de ameaças a militantes com perfis e atuações diversas.
A despeito do carácter eminentemente político do exílio e das suas fortes implicações em termos de questionamento das relações de classe e de dominação, e de reconfiguração das dinâmicas de poder, de autoridade e de solidariedade social, a questão tardou a ser tratada como objeto de estudo pela sociologia e pela ciência política. Durante décadas, foi analisada sobretudo do ponto de vista cultural, psicológico, linguístico e legal.
Os estudos que se situam nessas áreas se enquadram, em geral, de acordo com Roniger (2011, p.3-7), em duas grandes perspectivas de análise. A primeira linha se dedica à análise dos termos empregados com o objetivo de compreender “o universo semiótico do exílio”, enquanto a segunda se concentra em compreender “a especificidade do exílio e dos exilados em forma de categorias”. No primeiro caso, talvez a principal contribuição tenha sido promover uma interface entre os estudos linguísticos e culturais e a história. Isso se plasma, por exemplo, em trabalhos que definem o “exílio” como experiência de separação da terra natal (Simpson, 1995) ou em pesquisas que aproximam o exílio do nomadismo (Kaminsky, 1999). Já no segundo caso, prima a classificação do militante exilado para além das fronteiras nacionais, a partir de uma perspectiva cultural. Entre as contribuições mais conhecidas nesse sentido, estão as de Edward Said, que parte de sua própria experiência para diferenciar noções afins, porém distintas, como os exilados, os refugiados, os expatriados e os emigrantes (Said, 2003, p.59).
Cabe destacar também os estudos psicológicos que versam sobre os impactos cognitivos e subjetivos nas experiências individuais dos exilados (Miller, Worthington, Muzurovic, Tipping & Goldman, 2002). Destacam-se ainda os estudos que se baseiam na análise dos principais instrumentos internacionais e regionais relativos aos refugiados e partem de perspectivas assumidas pelas Relações Internacionais e pelo Direito Internacional; ou, também, aqueles que se dedicaram à análise de políticas de recepção e integração ofertadas pelos Estados de acolhida aos grandes fluxos causados pelos conflitos armados (Jubilut, 2007; Silva, 2015; Moreira, 2010).
Muito embora as pesquisas destacadas possuam o mérito de trazer importantes contribuições sobre várias dimensões do exílio, não se debruçaram explicitamente sobre o caráter essencialmente político do exílio e, consequentemente, o papel político-militante desempenhado pelos exilados. Segundo Shain (1989, p. 6), “os estudos sobre o comportamento político e a política internacional, assim como a teoria política negligenciaram quase totalmente o significado da atividade política no exílio”. No entanto, nas últimas duas décadas surgiu uma série de estudos sobre o ativismo dos exilados, em boa medida devido ao maior interesse pelos processos migratórios recentes, pelo deslocamento em massa e pela complexificação das dinâmicas transnacionais contemporâneas.
O caráter político do exílio foi abordado primeiramente pelos historiadores, com foco em descrições e em análises de casos dos exilados latino-americanos. No Brasil, a obra pioneira de Denise Rollemberg (1999) sobre os exilados brasileiros pela ditadura militar ainda é emblemática nesse sentido3. A despeito da riqueza dessas análises historiográficas sobre o exílio, concordamos com Stéphane Dufoix (2002, p. 32) quando afirma que, em geral, essas “oscilam entre a biografia e o estudo teórico sem encontrar um ponto de equilíbrio entre os dois níveis”. Como consequência, tais estudos não abrangem a complexidade do exílio como uma arena política transnacional, marcada pela triangulação de atores diversos – estatais, não estatais e organizações – cujas relações variam ao longo do tempo (Tarrow, 2005).
É justamente diante dessa lacuna que se encontra uma das principais possibilidades de contribuição da sociologia política para a análise do exílio. A sociologia política tem o mérito de combinar variáveis sociais, econômicas e institucionais para compreender fenômenos políticos (Botelho, 2019), problematizando de maneira dinâmica as relações de poder e contestação que perpassam o Estado e a sociedade (Nash, 2010). Ao mesmo tempo, questões “macro” como a definição dos regimes políticos, as mudanças institucionais ou a abertura/fechamento de oportunidades políticas no interior dos Estados-nação combinam-se com elementos mais “micro”, tais como como a construção de redes transnacionais que conectam o exilado com seu lugar de origem, as solidariedades, as identidades e os diversos padrões de ação coletiva forjados no/pelo exilio (Carballo; Echart; Villarreal, 2019).
De fato, o caráter político e multidimensional do exílio contemporâneo impõe novos desafios aos pesquisadores e evidencia ainda mais a validade do desafio multiterritorial e “pluri-identitário” proposto pela sociologia política (Della Porta, 2005; Scherer-Warren, 2015). Além da destacada inserção em diferentes culturas, idiomas e códigos sociais, as construções de redes de confiança, de incidência política e as bruscas mudanças de regimes políticos também fazem parte do exílio político. Dessa forma, para além dos incentivos políticos para a migração, tal como destacado em diversos estudos sobre a “construção da identidade migrante” enquanto um incentivo para a mobilização (Simèant, 2008), a sociologia política do exílio interessar-se-ia também, e fundamentalmente, no papel político desempenhado pelos exilados, nas relações de poder e resistência e nas forças sociais subjacentes que moldam o exílio como um tipo de ativismo transnacional.
Embora tais estudos ainda sejam relativamente escassos, principalmente no Brasil, é possível destacar alguns trabalhos pioneiros. Shain (1989), por exemplo, analisa como a atribuição da definição de exilado exige a atuação política no país de acolhida, que geralmente é voltada contra o regime político do país de origem ou contra o sistema político de forma geral com o objetivo de criar condições para o seu retorno. Seus estudos serviram como base para Dufoix (2002, p. 28), que buscou definir o exílio como um campo político marcado por particularidades causadas pela migração, o exopolítico, que “se caracteriza pela falta de regulamentação”. Embora concordemos que o exílio constitui um campo político marcado pelas mudanças causadas pela migração, não consideramos que este espaço possa ser caracterizado pela ausência de regras e tampouco pelo princípio de continuidade. Ao contrário, a diferença entre o exílio e a principal escala de ação política da modernidade (a nacional) se encontra na dependência das atividades dos exilados à legislação internacional, além das legislações locais dos países de acolhida, que tornam a relação entre o exilado e a militância mais complexa e dinâmica.
Diante disso, torna-se fundamental compreender o exílio dentro de uma dinâmica transnacional. A partir da análise da atuação política dos curdos na Europa, Grojean (2015) trouxe contribuições relevantes para a relação entre construção de identidades e engajamento transnacional. Se as identidades constituem uma forma de capital específica no exílio, com diversos impactos nos repertórios dos exilados, torna-se fundamental analisar os contextos institucionais e culturais, sem perder de vista a questão da espacialidade e da temporalidade. Isso se reflete tanto na multidimensionalidade do jogo político e das disputas entre atores, espaços e dinâmicas (Sznajder & Roniger, 2009), como na diversidade de contextos e na sobreposição de escalas e redes de atuação política dos exilados no mundo contemporâneo.
O exílio promove amplas transformações na rotina militante do exilado. Em primeiro lugar, há uma mudança dos incentivos e das restrições institucionais, uma vez que o exílio ocorre em outro regime político. A mudança de regime político é clara não apenas em função do jogo político existente durante o exílio, que incentiva o exilado a migrar para um país mais receptivo às suas convicções políticas e, por isso, naturalmente diferente do regime do país que o expulsou, mas inclusive porque “os regimes variam entre um país e outro” (Tilly & Tarrow, 2008, p. 101).
Em segundo lugar, a migração forçada insere, de forma brusca, o exilado em uma nova sociedade, com uma história distinta, e um novo contexto geocultural. Além disso, o exilado passa a portar, muitas vezes, um novo status civil de “não-cidadão” que lhe é imposto para garantir o direito a asilo ou refúgio (Siméant, 1998, p. 22). Dentro das múltiplas possibilidades de configurações possíveis, cabe lembrar que nem sempre os exilados – dependendo de seus perfis e formas de atuação – querem ser reconhecidos como refugiados justamente para poder continuar atuando, a partir de fora, em seu contexto político de origem.
Todas essas transformações, somadas ao isolamento inicial geralmente promovido pela migração, ao afastar o exilado de todas as redes cotidianas de sociabilidade nas quais estava inserido em seu país de origem – profissionais, sociais, familiares e boa parte da rede militante –, além de afetar as identidades, conferem nova importância para as dimensões que ajudam a compreender o ativismo político.
Dessa forma, consideramos que o processo que promove evoluções de repertórios no caso dos exilados é distinto ao dos demais militantes que atuam no interior das fronteiras nacionais. Se, para os cidadãos nacionais, as mudanças de repertórios podem se transformar em função de um processo lento e progressivo – que promove discretas transformações de elementos estruturais – ou em função de “transformações em turbilhão” – por sua vez, causadas por eventos raros, tais como as revoluções e golpes de Estado (Tilly & Tarrow, 2008, p. 49-50) –, os exilados são expostos a uma metamorforse total (Marques, 2017). Nela, várias dimensões do confronto político se transformam de um só “golpe”: as redes, o espaço e as identidades.
Além disso, essas dimensões conquistam um lugar central na vida do exilado, em virtude dos rompimentos provocados pela migração e das restrições adicionais impostas à sua atuação política. Todavia, o exílio apresenta um caráter transitório que pode fazer com que tais transformações sejam efêmeras ou duradoras. Seja como for, é possível verificar que, em geral, elas podem assumir duas formas: transformações adaptadas, quando as mesmas reivindicações são apresentadas por meio de novos discursos e repertórios; ou transformações profundas, quando as reivindicações também se transformam de forma radical (Marques, 2017).
Ao mesmo tempo, o exílio político difere também de outros tipos de ativismo transnacional, embora possa dialogar e se apoiar neles. Em comparação com os movimentos transnacionais de advocacy,cuja mediação é feita por terceiros para incidir nacionalmente a partir de atores e cenários supranacionais; ou com o movimento antiglobalização que já surge como ator global, heterogêneo e descentralizado (Bringel; Echart, 2010; Bringel, 2015), o exílio político está marcado pela construção de um espaço social transnacional sui generis. Nele, as marcas da coerção, dos contextos múltiplos e das bases sociais de origem impactam consideravelmente as trajetórias, dinâmicas e desenlaces da militância política.
A despeito das especificidades do exílio, há uma convivência em termos de ativismo político com atividades mais amplas desenvolvidas pelos migrantes e refugiados no âmbito transnacional. Isso é notório, por exemplo, no ativismo transnacional das diásporas, em geral híbridas, formadas por muitos exilados (Heindl, 2012) e amplamente analisadas pela literatura há décadas (Armstrong, 1976; Sheffer, 1986). Também é o caso, de forma mais geral, de muitos ativismos migrantes transnacionais contemporâneos (Chávez, 2018).
Nesse sentido, a compreensão do carácter e das dinâmicas das redes transnacionais se torna fundamental para analisar as formas assumidas pelas transformações vividas pelos exilados. A importância das redes para a compreensão das mais variadas formas de ativismo político (transnacional ou não) é um consenso na literatura especializada sobre movimentos sociais (McAdam & Paulsen, 1993; Fillieule, 2001). Essas pesquisas apontam que as redes são eficazes na transposição das barreiras impostas ao ativismo, sejam elas institucionais ou sociais. No entanto, no caso do exílio, seu papel enquanto formadoras de identidades coletivas e mobilizadoras de recursos é potencializado. Isso se dá em virtude do papel central por elas assumido no exílio, mas também em virtude da espacialidade própria do deslocamento forçado e da possibilidade de serem as únicas redes nas quais os militantes estão inseridos.
Para compreender esse papel central assumido pelas redes no exílio, é fundamental compreender sua natureza. As redes funcionam como condutoras de valores culturais, informações e recursos, servindo como suportes para as ligações sociais e culturais indispensáveis à construção da solidariedade e das ações coletivas (Mische, 2003). Portanto, há também uma base cultural, econômica e social que perpassa o processo de construção das redes militantes e permite visualizar assimetrias de perfis e possiblidades de ação política.
Para os migrantes em geral, a classe social condiciona diversas fases do processo migratório, incluindo o contexto de saída, os contatos estabelecidos, a possibilidade de escolher destinos, as estratégias construídas, as formas de inserção na sociedade de destino, dentre outros fatores (Bonjour; Chauvin, 2018). No caso dos exilados políticos isso é notório e ajuda a determinar quais redes estão à sua disposição e podem ser mobilizadas. Por isso, torna-se importante decifrar de que forma “a história pregressa, a origem de classe ou os valores culturais dos agentes políticos/sociais” (Perissinotto; Codato, 2009, p.250) interferiram na relação dos atores políticos com as oportunidades políticas disponíveis.
Após a massificação do exílio, na segunda metade do século XX, observamos a coexistência de dois perfis distintos de exilados: um primeiro perfil de “elite”, composto mormente por intelectuais e militantes políticos com carreira e trajetória consolidada em seu país e muitas vezes com reputação internacional; e um segundo perfil correspondente a uma origem “popular”, composto principalmente por militantes e ativistas políticos de base, com pouca visibilidade em seu país de origem e/ou no exterior.
O primeiro perfil pode ser considerado uma “elite” pois são indivíduos que, seja qual for o seu campo de atividade, estão localizados em uma posição hierárquica superior, com certa autonomia de decisão política e capacidade econômica que permite que ocupem um papel destacado – inclusive de direção – diante de seus pares e da opinião pública. Sua prisão ou seu assassinato possuem um “custo” muito alto para os seus oponentes, motivo pelo qual o exílio foi usado com frequência nesses casos. Intelectuais, políticos cassados ou perseguidos e lideranças de movimentos políticos exilados podem ser entendidos como exilados de elite. A posição dominante que ocupam no exercício de suas atividades em seu campo específico garante uma quantidade determinada de recursos ou “capitais” (Bourdieu, 1989) que não são totalmente perdidos com a condição de exílio.
Diferentemente dos migrantes econômicos, refugiados de conflitos bélicos ou da maioria dos militantes de base exilados, os exilados de elite carregam consigo um “capital político” e “simbólico” (Bourdieu, 1989). Para além de sua classe social e de suas trajetórias, costumam representar um projeto ou um espectro político mais amplo, que possui forte ressonância. Sendo assim, suas rotas de fuga são mais diversificadas e a oferta de solidariedade a eles pode apresentar um caráter estratégico, uma vez que a acolhida de um fluxo de exilados ou mesmo de um único exilado pode vir acompanhada também de “benefícios” políticos.
Na era global, fluxos transnacionais de exilados “anônimos” também passaram a carregar consigo certo capital simbólico. À medida que a sociedade entrou na arena política internacional, eles também passaram a fazer parte do jogo que assumiu uma estrutura quádrupla, sendo composta por eles, pelo Estado expulsor, pelo lugar de acolhida e pela sociedade internacional (Roniger, 2010). Essa nova estrutura do exílio permitiu vincular os exilados mais “invisíveis” a movimentos sociais de base e a alianças e redes informais. A recepção de um exilado de base em uma sociedade de acolhida não se dá por um cálculo de custo-benefício e tampouco por seu prestígio, currículo ou características pessoais, mas pela empatia com o motivo do exílio, a sintonia com projetos políticos, a solidariedade internacionalista e, também, por uma forte convicção humanista.
A partir de um contraste entre a literatura especializada e nossas pesquisas empíricas, é possível sugerir que os exilados de elite tendem a promover apenas transformações adaptadas em seu repertório. Isso deve-se a dois motivos principais: (i) há um ganho político para o exilado em defender a posição política que lhe impôs o exílio, pois isso atribui coerência à sua trajetória e pode significar um capital político a ser utilizado após o retorno; (ii) para a rede que o acolhe, há um ganho público em “capitalizar” sua imagem a seu favor, por isso, em muitas ocasiões parece ser importante não criticar de forma profunda a história política desse ator.
Os exilados de base, por sua vez, costumam encarar transformações profundas em seu repertório de ação. Isso deve-se principalmente a: (i) serem atores mais “invisíveis” e muitas vezes sem carreiras políticas estabelecidas ou publicamente conhecidas, que não necessariamente vislumbram “ganhos políticos” no retorno. Daí, uma menor necessidade em garantir coerência pública à sua trajetória política, estando mais preocupados com a contribuição a processos políticos locais e territorializados, seja em sua sociedade de origem como na de destino; (ii) diferentemente dos exilados de elite, o exilados de base são desprovidos de bens ou os possuem em menor quantidade do que os exilados de elite, de forma que estão mais sujeitos aos constrangimentos impostos pelas redes que os acolhem para se adaptarem à nova estrutura de oportunidades impostas. Obviamente, isso não significa minimizar a capacidade de agência deste perfil de exilado, mas sim chamar a atenção para a configuração de contornos diferenciados.
Esses dois padrões de ação política vinculados ao exílio estão relacionados, por sua vez, não somente a diferentes tipos de mudanças nos repertórios de ação e de relações com os contextos de origem e de destino, mas também a perfis específicos de ativistas. Podem ser tanto cosmopolitas enraizados, isto é, enraizados em contextos nacionais específicos, mas imersos em atividades políticas de contestação que os insere em redes transnacionais de contatos e ações coletivas de diferentes tipos (Tarrow, 2005); ou também ativistas diaspóricos, ou seja, aquele militante que possui uma luta localizada e territorializada e/ou não se encontra totalmente enraizado em um contexto nacional específico (pois é mais passível de desterritorialização), nem tampouco possui redes, bagagem e influência externa forte ao ponto de ser considerado “cosmopolita” (Bringel, 2011b). Se, no primeiro caso, o perfil encaixaria mais com os exilados de elite, no segundo, poderia estar mais próximo aos exilados de base.
Esses diferentes perfis de ativistas possuem também práticas de contestação diversas. Para além dos repertórios tradicionais do ativismo político (por exemplo, greves, protestos públicos, manifestações ou ocupações), o exílio político adota diferentes práticas de contestação que exigem uma leitura abrangente do fenômeno, sensível a modalidades diversas de desobediência, resiliência, solidariedades e expressões do conflito. Delineadas essas características mais gerais, vejamos doravante dois casos que exemplificam ambos os padrões e perfis de exílio político.
Uma das primeiras medidas tomadas pelo regime militar que se instalou no Brasil por meio de um golpe de Estado, em 1964, foi o estabelecimento da chamada “Operação Limpeza” que cassou os políticos ligados ao governo deposto. Leonel Brizola, João Goulart, Miguel Arraes e Luís Carlos Prestes foram citados na primeira lista de cassados que, no total, apresentava 102 nomes (Brasil, 1964).
A “Operação Limpeza” gerou a primeira geração de exilados pela ditadura brasileira. Em comum, possuíam a vinculação direta ou indireta com o governo deposto e as ações por meio dos canais democráticos de participação política. Assim, ações modulares, tais como as greves e as manifestações políticas de rua compunham o repertório de ação da esquerda atingida pelo AI-1. A maioria se identificava com o projeto democrático, muito embora defendesse reformas, e era, geral, ligada a sindicatos ou partidos políticos legais (Rollemberg, 1999, p. 50-51).
Pode-se afirmar que o Uruguai foi o primeiro grande refúgio para os perseguidos da ditadura brasileira, devido sobretudo à tradição do país de garantir asilo a perseguidos políticos e às liberdades democráticas (Tavares, 1979, p.175-176). Além disso, o exército era excluído das decisões do governo e muitos membros da elite política uruguaia – assim como grande parte de sua população –, demonstravam simpatia ao projeto de esquerda e a líderes como Goulart e Brizola (Marques, 2006). Líderes uruguaios como Ariel Collazo, do Movimiento Revolucionário Oriental (MRO), viam políticos como Brizola como um potencial líder para o sucesso da revolução socialista na América Latina (entrevista, Ariel Collazo, 2006).
Dessa forma, embora os brasileiros tenham chegado em um momento de crise, lá puderam encontrar um ambiente receptivo que rapidamente se mobilizou ao seu favor. Porém, o Estado uruguaio sofria pressões do Brasil (um importante parceiro econômico para um país com a economia tão limitada quanto o Uruguai), para manter rígido controle sobre os exilados. Em documento enviado à chancelaria uruguaia, o governo ditatorial brasileiro deixou claro o seu descontentamento com a liberdade dos exilados brasileiros, especialmente Brizola: “o governo brasileiro não pode compreender como se permite que o senhor Leonel Brizola (...) continue atacando, denegrindo e distorcendo o sentido do movimento brasileiro de 31 de março” (Embaixada dos Estados Unidos do Brasil, 1964). Embora o Uruguai resistisse a tais pressões, o Brasil representava um importante parceiro econômico para o país, gerando uma crise inédita entre os dois países (MREOU, 1964). Tal crise levou o Uruguai a isolar Brizola em Atlântida, apesar da resistência de setores políticos uruguaios que apoiavam Brizola (Sanin, 1964, p.2).
A pressão da diplomacia brasileira indica a complexidade do contexto da atuação política no exílio para membros de elite, como Leonel Brizola. A articulação multiescalar entre processos macro e micro, tal como apontado anteriormente, torna-se evidente ao se verificar o papel das relações bilaterais na construção da janela de oportunidades políticas de exilados. Todavia, cada exilado conta com uma história pregressa distinta e parte para o exílio em diferentes condições sociais e econômicas.
Diferentemente da maioria dos exilados de base, os membros da elite contam com o diferencial de já contar com uma rede política no país de acolhida, em virtude dos contatos internacionais de carácter interpessoal, da atuação política em nível estatal prévia e do capital político que carregam consigo ao deixar seu país de origem. Foi o caso de Leonel Brizola, político gaúcho vinculado ao Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) e à tradição Trabalhista. Segundo Ferreira (2016, p.25), sua atuação por meio de canais democráticos e sua capacidade de unir setores populares em torno de um projeto reformista lhe garantiram um importante papel na esquerda brasileira. Consciente da sua força, que já tinha ficado evidente com a Campanha da Legalidade, em 1961, partiu para o exílio no Uruguai com o interesse em transformá-lo em um breve recuo para retornar ao jogo político no Brasil. Com o objetivo de desmascarar os militares brasileiros e retomar o controle do Estado, Leonel Brizola representou uma peça-chave para uma forma de organização que não teve paralelo registrado em nenhum outro país no período.
Todavia, a inserção nesse jogo político a partir do exílio o obrigou a repensar estratégias, de acordo com Avelino Capitani, um líder dos marinheiros que se rebelaram contra as forças armadas, que se exilou no Uruguai. Visando manter a imagem de defensor da democracia que lhe garantia tamanha inserção nacional, Brizola demorou, por exemplo, em aceitar a aliança com os uruguaios e cubanos (entrevista, Avelino Capitani, 2006). Apenas os fracassos das tentativas de efetivar a retomada do controle do Estado por meio da quartelada (também conhecida como “estratégia da batata”) e a limitação de recursos fizeram com que Brizola compreendesse as limitações da ação política a partir do exílio, mesmo para um membro da elite. O fracasso da “guerrilha de Três Passos”, embora esta nunca tenha sido assumida por Brizola, evidenciou a limitação das redes que permaneceram no Brasil diante da teia de informações da qual dispunham os militares (Coojornal, 1978, p. 21-22).
Ariel Collazo (entrevista, 2016) afirmou ter sido designado por Fidel para convencer Brizola a aderir à estratégia cubana. Em troca, Cuba garantiu acesso a recursos – inclusive financeiros – que possibilitaram que os exilados efetivassem um foco em Minas Gerais, no Brasil, em 1967. A “guerrilha do Caparaó”, que contou com Capitani entre os militantes, foi duramente reprimida pelo regime militar. Logo após a sua derrocada, Brizola se reclusou no Uruguai, também em virtude das pressões que o governo brasileiro exercia sob o governo uruguaio.
A guerrilha evidenciou uma mudança de posicionamento assumida por Brizola, ainda que para Flávio Tavares, ex-banido pelo regime, tenha tido uma transformação superficial, interessada em retornar à política legal (Tavares, 1999). De fato, Brizola, durante anos, evitou falar sobre a guerrilha do Caparaó, preocupado com a possibilidade de que acusações de recurso à violência pudessem manchar sua trajetória marcada pela defesa da democracia. Quando falava sobre o assunto, ficava clara a preocupação em “justificar” a participação na efetivação dessa frente de combate: “no caso da Guerrilha do Caparaó [...], conspiramos porque [...] tínhamos o direito de o fazer, pois fomos tocados de nossas casas com violência por um regime reacionário que se voltou contra um povo desarmado e indefeso” (citado em Rebello, 1980, p.62 e 65).
A análise da documentação diplomática e dos jornais indica que a restrição de canais de participação imposta pelo contexto ditatorial ultrapassa as fronteiras, por meio das relações econômicas entre países. As entrevistas e livros de memória, por sua vez, evidenciam que os custos políticos para transformação profunda dos repertórios e reivindicações é maior para os membros das elites políticas. Por outro lado, o contato direto com os membros da elite política do país de acolhida permite que a elite exilada amplie o acesso a recursos e possibilidades de ação e, ao mesmo tempo, que tais recursos influenciem os seus repertórios. As redes formais permitem mediações diretas, públicas e visíveis e o grau de conhecimento sobre os lugares de origem, de destino e suas interações possibilita interpretações abrangentes sobre a realidade social e política e o seu próprio engajamento militante.
Entre os anos 1960 e 1980, as ditaduras latino-americanas provocaram uma onda de exílios na região. Rollemberg (1999) mostra como, diferentemente da Argentina ou do Chile, o exílio brasileiro nunca foi massivo e afetou principalmente elites políticas e uma classe média-alta escolarizada que havia participado nos movimentos sociais anteriores ao golpe militar de 1964 ou nas mobilizações de 1968. Isso se refletiu nos casos de exilados mais conhecidos na sociedade brasileira e nos próprios atores daquele momento, que se converteram, posteriormente, também em autores de memórias e autobiografias. Além do mencionado caso de Brizola, vale lembrar, entre muitos outros, também o de Fernando Gabeira, cujas memórias da ditadura e do exílio se converteram em um best-seller no país, e que fundou, depois, o Partido Verde, além de ter sido eleito deputado federal em várias ocasiões. O caminho da política institucional também foi seguido por muitos dos exilados de elite, sendo o caso de Fernando Henrique Cardoso, um dos mais conhecidos por alcançar a presidência do país.
No entanto, além desse perfil de exílio, também houve um considerável número de exilados de base, vinculados ao campo popular, sejam operários, sindicalistas ou líderes camponeses. Boa parte dos líderes das Ligas Camponesas, o principal movimento rural de massas nas zonas rurais brasileiras de meados do século XX, extinto com o golpe de 1964, acabou no exílio. Muitos deles, como Alípio de Freitas, foram ao México e logo a Cuba, onde fizeram intensos cursos de formação de guerrilhas para preparar a volta ao Brasil. Ademais, o Brasil dos militares também recebeu exilados, já que, ao contrário do que possa parecer, os países autoritários também constituíram lugares de residência e asilo para pessoas que tomaram a rota do exílio de seus países de origem.
Com o golpe de Estado no Chile, que acabara com o governo de Allende em 1973, o início da ditadura militar argentina em 1976 e picos de repressão da longa ditadura do general Stroessner no Paraguai – como o que aconteceu em 1974 – contra articulações de movimentos populares, vários militantes de base se exilaram no Brasil no final da década de 1970. O ambiente de “abertura política” e a intensificação das greves e lutas democráticas contra a ditadura a partir de 1978 também contribuiu para isso.
Entre esses exilados do Cone Sul que vieram ao Brasil, encontram-se alguns líderes camponeses vinculados a lutas populares de base. Este foi o caso, dentre outros, de Magui Balbuena – liderança e uma das fundadoras da Confederação Nacional de Mulheres Rurais e Indígenas (CONAMURI), naquele momento uma jovem militante das lutas rurais no Paraguai –, que se exiliou em Foz do Iguaçu, em meados dos anos 1970, período em que houve uma expulsão massiva de camponeses de suas terras devido à construção da Represa Hidroelétrica Binacional de Itaipu. Segundo Morissawa (2001, p. 121), até 12 mil famílias de oito municípios foram desapropriadas de suas terras para permitir a construção da maior central hidroelétrica do mundo. Em abril de 1973, o Brasil e o Paraguai assinam o Tratado de Itaipu, que serviu como instrumento legal para colocar em funcionamento o faraônico projeto, cujas obras começaram dois anos depois. No mesmo ano, o governo brasileiro prometeu uma indenização às famílias afetadas, mas somente poucas receberam o pagamento e, mesmo assim, com um valor muito inferior ao acordado. A solução proposta pelo governo militar não foi outra que incentivar que os camponeses se mudassem para a Amazônia, onde havia muita terra livre.
Nesse contexto de dupla migração forçada (pela violência da desterritorialização e pela ameaça militar), Magui Balbuena relata sua vinda do Paraguai ao Brasil: “entre 1975 e 1977 me exilei com meu companheiro em Foz do Iguaçu no Brasil e tivemos relações com sindicatos como a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (CONTAG) e, em menor medida, com alguns camponeses e com as pastorais da terra” (entrevista, Magui Balbuena, 2009). Em seu caso, o Brasil serviu como refúgio devido à proximidade geográfica e à existência de laços e experiências pessoais prévias. À diferença do caso de Brizola, não se tratava, aqui, da primeira geração de exilados paraguaios, o que permite que gerações anteriores compartilhem suas narrativas, histórias, representações e, em muitos casos, inclusive seus contatos. A mediação, nesse caso, não foi feita por elites políticas, mas por cidadãos comuns e por organizações populares que atuam nos mesmos eixos de conflito que a militância de origem de Magui Balbuena. O escopo de atuação também é diferente: não está dirigido para o Estado e para as instituições, mas, principalmente, para a sociedade e para a construção de organização coletiva nos territórios.
De acordo com a militante, sua experiência do exílio foi um marco fundamental em sua trajetória ativista, já que lhe permitiu viver de perto algumas experiências de luta dos camponeses brasileiros, como a ocorrida nos anos de 1970 com o conflito de Itaipu, e estreitar laços afetivos e de luta com outras lideranças e organizações brasileiras. Ao mesmo tempo, a luta camponesa no Sul do Brasil também serviu como incentivo para que camponeses paraguaios fundassem, em 1980, o Movimento Campesino Paraguaio (MCP), do qual Magui participou ativamente antes da criação de CONAMURI, retornando ao Brasil em algumas ocasiões durante a década de 1980 para participar, por exemplo, em atos e manifestações contra a dívida externa.
Outro dado relevante é que, no marco dos laços informais e pessoais tecidos durante essa política do exílio latino-americano, criou-se em 1985 a Coordenadora de Organizações Campesinas do Cone Sul, da qual o MCP participou. Apesar de ser uma articulação bastante informal e de duração efêmera (diluiu-se poucos anos depois), pode ser considerada como um antecedente da articulação camponesa no âmbito (sub)regional, o qual costuma ser esquecido e/ou desconsiderado quando se reconstrói o processo contemporâneo de convergência entre os movimentos camponeses latino-americanos, a partir de redes formais e mais estabelecidas, como é o caso hoje da Via Campesina, organização internacional de camponeses formada por movimentos populares e organizações de todos os continentes. Fundada formalmente em 1993, vários militantes populares da Via Campesina passaram por experiências similares às de Magui, de migrações e exílios (Edelman, 2017).
Desse modo, o caso de Magui Balbuena pode ser lido como uma pequena amostra de uma gama muito mais ampla de exilados de base que transitaram pela região, servindo como um importante momento de articulação internacionalista e de precedente do ativismo transnacional rural contemporâneo. As histórias de vida, as trajetórias dos movimentos e as redes informais criadas no exílio político dos anos 1970 foram profundamente marcadas pelas articulações supranacionais e subjetividades derivadas de dita vivência, permanecendo até hoje, quando pensamos a base das articulações entre organizações camponesas de diversos países (entrevista, Magui Balbuena, 2009).
A análise dos dois casos permitiu verificar dois padrões distintos de transformações do ativismo no exílio. Se, no primeiro, o trabalhismo foi adaptado aos diferentes contextos e momentos do exílio, com dificuldades em reconhecer sua experiência revolucionária no Uruguai e sua vinculação com Cuba, a experiência de Balbuena e de outros exilados de base demonstra, em geral, uma maior abertura e predisposição para promover transformações profundas. A “mão-dupla” do internacionalismo torna-se, assim, mais fluida: o exilado de base tende a viver a socialização política e a experiência de luta social cotidiana no lugar de destino, abrindo-se mais à aprendizagem e às relações de médio-longo prazo, ao mesmo tempo em que “ensina” e compartilha sua própria vivência sobre o lugar de origem de maneira mais direta e relacional com outros militantes locais que atuam em temas e conflitos semelhantes (entrevista a Egídio Brunetto, 2008).
Mais semelhanças e diferenças entre os dois padrões de exílio político poderiam ser destacadas e outras pesquisas empíricas também contribuiriam a problematizar questões que escapam ao escopo deste artigo, mas que são centrais para o aprofundamento da agenda de pesquisa ora proposta. Por exemplo, poder-se-ia questionar se não haveria também uma espécie de “ativismo de elite” dentro do “exílio de base”. Em outras palavras, não seria importante analisar a composição social, de classe e política no interior de cada padrão? Mesmo dentro dos movimentos populares, há determinados militantes de base que possuem maiores conexões externas que outros, principalmente aqueles que ocupam posições de articulação política.
Outra questão relevante está associada a como a tendência à maior individualização das sociedades contemporâneas, unida à profunda transformação tecnológica, afeta esses dois tipos de exilados em nosso atual momento histórico. A experiência do exílio na sociedade da informação é, decerto, distinta aos exílios dos anos 1960 a 1980 e isso mereceria maior investigação empírica para analisar os impactos e desdobramentos dessa nova realidade. O debate sobre o anonimato e a invisibilidade se reconfigurou e as mídias digitais, embora permitam que o exilado possa estar “mais presente” – amplificando também as formas de ativismo digital e de solidariedade –, também possibilitam uma maior coerção e formas mais sofisticadas de controle social.
Finalmente, cabe mencionar que é importante contemplar com maior atenção as especificidades de gênero, etnia e orientação sexual nos exílios. Outrossim, também é fundamental diferenciar entre trajetórias de ativistas de base que não possuem uma organização ou movimento popular articulado por trás e aqueles que têm o respaldo político e institucional de uma coletividade mais articulada, como foi o caso aqui analisado de Balbuena e do movimento camponês. Nas periferias das grandes cidades e nos múltiplos tipos de conflitos rurais são ainda muitos os defensores de direitos humanos e militantes comprometidos com a justiça social que podem, talvez, ser destinatários da solidariedade internacionalista quando ameaçados, mas que não estão respaldados por movimentos, organizações locais ou redes densas. Essas múltiplas possibilidades de articulação entre escalas, redes e territórios abrem diversos cenários para provocar novos debates e afiançar o olhar distintivo da sociologia política sobre a temática do exílio político a partir de construções teórico-metodológicas mais multidimensionais.