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Imagens de estudantes na publicidade do ensino superior privado: marcadores sociais da diferença em articulação
Student images in private higher education advertising: social markers of the difference in articulation
Revista Brasileira de Sociologia, vol. 9, núm. 21, pp. 181-205, 2021
Sociedade Brasileira de Sociologia

Artigos


Recepción: 21 Febrero 2020

Aprobación: 27 Abril 2020

DOI: https://doi.org/10.20336/rbs.629

Resumo: Neste artigo, a partir de pesquisa de campo realizada entre 2015 e 2018 na cidade de São Paulo e em meio digital, analiso as relações entre mercado de ensino superior privado, publicidade e marcadores sociais da diferença (classe, raça e gênero, em especial). Se, historicamente, a publicidade brasileira privilegiou corpos brancos e estilos de vida associados à classe média, no período recente algumas transformações foram visíveis, incorporando perfis mais diversos de estudantes, incluindo várias peças publicitárias com protagonismo de jovens mulheres negras. Minha hipótese neste artigo é a de que tais transformações se relacionam, de um lado, com o fenômeno de maior acesso da “classe C” (conforme a linguagem do mercado) no ensino superior privado a partir de meados dos anos 2000. De outro lado, tais publicidades passaram a incorporar algumas das demandas de maior representatividade realizadas pelos movimentos negros e feministas. A incorporação de tais transformações visou tornar as peças publicitárias mais atrativas para um novo público consumidor de diplomas universitários no Brasil.

Palavras-chave: ensino superior privado, publicidade, marcadores sociais da diferença.

Abstract: In this article, based on field research carried out between 2015 and 2018 in the city of São Paulo and digitally, I analyze the relationships between the private higher education market, advertising and social markers of difference (class, race and gender, in particular). If, historically, Brazilian advertising has favored white bodies and lifestyles associated with the middle class, in the recent period some transformations have been visible, incorporating more diverse student profiles, including several advertisements featuring young black women. My hypothesis in this article is that such transformations are related, on the one hand, to the phenomenon of greater access of the “class C” (according to the language of the market) in Brazilian private higher education since the mid-2000s. On the other hand, such advertisements started to incorporate some of the demands made by black and feminist movements. The incorporation of such transformations aimed at making advertising pieces more attractive to a new consumer of university degrees in Brazil.

Keywords: private higher education, advertising, social markers of the difference.

Introdução1

“Aqui, seu futuro vale ouro” é uma chamada, entre tantas outras presentes nos folhetos publicitários, que coletei ao longo da pesquisa realizada sobre estudantes e ensino superior privado, entre 2015 e 2018. “Seu sonho por R$49,90”, “Seja o seu melhor” ou “Seu esforço será recompensado: estude já” são outros exemplos de um discurso motivador estampado em propagandas impressas ou online, além de anúncios em pontos de ônibus e estações de metrô, dispersos pela cidade de São Paulo (SP). Nas feiras voltadas ao mercado de ensino superior que visitei no período da pesquisa, além dos grandes anúncios nos estandes e corredores, eu voltava para casa carregada de folders, catálogos, brindes e sacolas promocionais de diversos tamanhos e modelos, oferecidas por diferentes grupos educacionais. Também no universo online, acompanhar as notícias e informações sobre ensino superior privado no Brasil implicou visualizar centenas de propagandas sobre o setor, em redes sociais ou por e-mail.


Imagens 1 e 2
Destaque para grandes anúncios nos corredores da Feira do Guia do Estudante (Pavilhão Anhembi/SP, set./2018).
Fonte: Fotografias da autora.

Nas imagens acima, com os dizeres “Bia, a gente acredita em você”, ou “[hashtag] # mudar a sua história só depende de você”, ambas publicidades expostas na Feira do Guia do Estudante realizada em setembro de 2018 no Pavilhão do Anhembi, em São Paulo, ficava evidente o discurso direto e incisivo mobilizado por algumas dessas peças publicitárias. Respectivamente dos grupos Anhanguera/Kroton e Unip, tais publicidades apostavam no diálogo direto com o receptor e estudante potencial – “você” – para persuadi-lo a tomar essa importante decisão de ingresso no ensino superior, a qual dependeria de confiança e crença no potencial da estudante (“Bia, a gente acredita em você”) e resultaria em uma experiência transformadora (“mudar a sua história só depende de você”). Nesses dois casos, as imagens de mulheres jovens e sorridentes selecionadas para os anúncios – uma modelo branca de cabelos lisos e uma modelo negra de cabelos crespos – buscavam gerar uma identificação direta com tais consumidoras potenciais, possivelmente frequentadoras da Feira, ainda indecisas sobre a instituição ideal, a passear pelos corredores do pavilhão de exposições.

Neste artigo, a partir de pesquisa realizada entre 2015 e 2018 em diferentes campos presenciais e online, analiso as relações entre mercado de ensino superior, publicidade e marcadores sociais da diferença (classe, raça e gênero, em especial). Trata-se de questionar como gênero, raça e classe se produzem simultaneamente (McClintock, 2010; Davis, 2011) em tais anúncios na busca por consumidores-estudantes potenciais.

Vale lembrar que, embora os anúncios do ensino superior privado atualmente pululem em diferentes mídias pela cidade de São Paulo, a relação entre mercado de ensino superior e publicidade no Brasil é relativamente recente2. Conforme demonstrou Helena Sampaio (2000), foi nos anos 1990 que as propagandas dos estabelecimentos privados de ensino superior passaram a ganhar as ruas das grandes cidades, por meio de outdoors, cartazes e folders, além de ocupar páginas de jornais e revistas semanais de grande circulação no país. Tal fenômeno revelava a diversificação crescente do ensino superior brasileiro, por um lado, e o “enraizamento de uma cultura promocional na sociedade brasileira”, por outro (Sampaio, 2000, p. 320). Nessa análise, Sampaio também percebia como uma das principais características do material publicitário dos anos 1990 “o reconhecimento da heterogeneidade da clientela do ensino superior” (2000, p. 348), identificando desde mensagens publicitárias claramente voltadas para estudantes de elite, até aquelas voltadas para uma classe média mais ampla e de estilos de vida variados.

O material publicitário sobre ensino superior que recolhi para esta pesquisa entre 2015 e 2018, de modo similar ao analisado por Sampaio (2000), também está voltado para um público bastante heterogêneo de consumidores. Para além de clivagens socioeconômicas, estilos de vida relacionados a diferentes perfis de público universitário e de carreiras também são diferencialmente mobilizados por tais imagens e textos.

Ainda assim, neste artigo, quero destacar o apelo publicitário a um novo público consumidor de diplomas de ensino superior, relacionado à mobilidade social ocorrida entre meados dos anos 2000 e 2010 no Brasil. A partir de um conjunto de reportagens e documentos publicados no período, especialmente entre 2015 e 2018 – quando a pesquisa de campo foi realizada –, analiso a constituição de múltiplos discursos sobre o mercado de ensino superior privado, a captação do consumidor da “classe C” e as propagandas publicitárias possivelmente voltadas para tal segmento.

1. Pesquisa de campo e perspectivas teórico-metodológicas

A pesquisa apresentada neste artigo reúne fontes diversas. Durante o período entre 2015 e 2018, para além da pesquisa etnográfica com estudantes universitários matriculados em diferentes cursos e instituições do setor privado na cidade de São Paulo – aspecto que não será aprofundado neste artigo3 –, fiz o levantamento de diversas peças publicitárias dessas instituições, divulgadas em ambiente digital ou dispersas pela cidade de São Paulo. Por meio de ferramentas de busca do site Google, pude acessar ainda reportagens e documentos de diferentes portais de notícias (Folha de São Paulo, Estadão, Portal da Globo – G1, entre outros). Também analisei periodicamente publicações, relatórios de pesquisa de mercado e notícias lançadas por algumas das principais entidades mantenedoras do ensino superior privado, com destaque para a SEMESP (Sindicato das Entidades Mantenedoras de Estabelecimentos de Ensino Superior no Estado de São Paulo), ABMES (Associação Brasileira de Mantenedoras de Ensino Superior), FÓRUM (Fórum das Entidades Representativas do Ensino Superior Particular) e ANUP (Associação Nacional das Universidades Particulares). Por fim, também participei de algumas feiras promovidas por diferentes instituições ligadas à educação superior, como a Feira do Guia do Estudante e a Feira do Estudante do Centro de Integração Empresa-Escola (Expo CIEE). O objetivo dessa parte da pesquisa foi perceber as circularidades entre pesquisa de mercado, elaboração publicitária e recepção dessa publicidade no cotidiano de estudantes ou potenciais estudantes universitários na cidade de São Paulo, levando em conta a articulação de marcadores sociais da diferença como classe social, gênero, raça e geração.

Nesse sentido, torna-se fundamental esclarecer a perspectiva dos marcadores sociais da diferença em articulação, aqui mobilizada. Mais do que constatar a importância constitutiva de marcadores sociais como gênero, classe social ou raça, trata-se de compreender essas categorias como estando sempre imbricadas (Crenshaw, 2004; McClintock, 2010; Moutinho, 2014). Assim, podemos definir marcadores sociais como “uma maneira de designar como diferenças são socialmente instituídas e podem conter implicações em termos de hierarquia, assimetria, discriminação e desigualdade” (Saggese, Marini, Lorenzo, Simões & Cancela, 2018, p.19). No entanto, mais do que trabalhar com categorias prontas, trata-se da aposta teórico-metodológica de apreender no cotidiano como tais categorias são produzidas e negociadas (Brah & Phoenix, 2004).

2. “A classe C com diploma”: mercado de ensino superior e estratificação social

Os chamados universitários da classe C trabalham para pagar os estudos e demoram anos para iniciar o curso depois de concluir o ensino médio. [...] O novo universitário brasileiro chamou a atenção da opinião pública na esteira do caso de Geisy Arruda, aluna de Turismo que virou celebridade após ter sido hostilizada, em 22 de outubro, pelos colegas do campus da Uniban em São Bernardo, ABC, por conta de seu vestido curto. O episódio provocou debates sobre os prós e contras da popularização do ensino superior. (Stanisic, Oliveira & Saldaña, 2009, grifo meu).

Conforme trecho acima, “A classe C com diploma” foi o título de uma reportagem do Estadão publicada em 24/11/2009. Em meio ao intenso debate sobre mobilidade social que se realizava no período no Brasil, anunciava-se a entrada massiva de um novo perfil de estudante no ensino superior. Segundo dados trazidos pela reportagem, esse novo “universitário da classe C” possuía renda familiar entre 1 e 5 salários-mínimos e passava a representar 31,4% dos estudantes de graduação do país em 2009, quase o dobro dos estudantes dessa mesma faixa de renda contabilizados em 2002 (16,2%) (Stanisic et al., 2009). No diálogo com o leitor típico do tradicional jornal paulista, imaginado como o de maior poder econômico, é importante sublinhar a articulação entre classe social e gênero então realizada no seguinte caso: o de Geisy Arruda, que foi apresentada como representativa do novo perfil de “estudante da classe C”; justamente ela que foi expulsa da faculdade (antiga Uniban, posteriormente comprada pela Anhanguera/Kroton) após um episódio em que foi assediada por centenas de colegas nos corredores da instituição ao vestir um vestido cor-de-rosa curto, considerado “inapropriado” para assistir a um curso noturno, em mais um caso de assédio e violência de gênero no ensino superior. Na época, a cena da ação violenta contra a estudante foi filmada e divulgada na internet, gerando intensos debates sobre o “novo” ensino superior brasileiro, cada vez mais popular.

Compreender o fenômeno da “popularização do ensino superior” nos anos 2000, conforme texto dessa reportagem do Estadão, implica discutir simultaneamente os processos tanto de expansão do setor, quanto do aumento da escolarização e da mobilidade social das classes baixas e médias brasileiras, ambos ocorridos nos anos 2000. Implica, também, refletir sobre como outros marcadores sociais da diferença se articularam à classe social.

Nesse contexto, é importante retomar como, em meados dos anos 2000, surgiram importantes iniciativas, especialmente voltadas a “descobrir” um novo Brasil consumidor, marcadamente da “classe C” ou da “nova classe média”, conforme a linguagem de mercado4. Na ânsia de mensuração, classificação e análise desse processo de mobilidade social, análises divergentes e conflitantes marcaram o período. O economista Marcelo Neri, do Centro de Políticas Sociais da Fundação Getúlio Vargas (CPS/FGV), teve protagonismo nesse debate, passando a ser conhecido como “o pai da nova classe média”. Segundo Neri, em análise publicada em 2010, o estrato C corresponderia a cerca de 35% da população em 2003, passando para 50,45% em 2009, resultando na ascensão de 29 milhões de brasileiros (Neri, 2010, p. 31). Em seu livro, intitulado A nova classe média: o lado brilhante dos pobres, Neri então defendia que a “classe econômica C”, ao corresponder ao segmento médio da população, poderia ser entendida como a “nova classe média” brasileira. O otimismo de Neri e de seu grupo na FGV rapidamente contaminou a mídia nacional, e o que já era pauta para centenas de reportagens nos anos 2008, 2009 e 2010 – como a matéria do Estadão sobre a “classe C com diploma” trazida acima –, passou a ser chancelado pela expressão “nova classe média”.

Em oposição a essa argumentação otimista sobre um novo Brasil consumidor, diversas foram as vozes que passaram a questionar a existência de uma “nova classe média” no país (Souza, 2010; Pochmann, 2012; Scalon & Salata, 2012). Apesar das polêmicas classificatórias, e ainda que o processo de mobilidade social verificado no período não tenha sido capaz de alterar significativamente a estrutura social do país, foi inegável o aumento do poder de consumo na base da pirâmide econômica nos anos 2000 e início dos anos 2010. Nesse sentido, a posse de eletrônicos como microcomputadores e celulares aumentou substancialmente (Scalon & Salata, 2012; Macedo, 2016; Spyer, 2018). De maneira similar, o setor de serviços se expandiu e se democratizou, ainda que predominantemente marcado pela criação de ocupações de baixa remuneração (Pochmann, 2012).

Recentemente, no livro O Brasil mudou mais do que pensa: um novo olhar sobre as transformações nas classes CDE (Gonzalez, Prado & Deak, 2018), realizado enquanto pesquisa coletiva na Fundação Getúlio Vargas, pesquisadores apresentaram novos dados sobre o período, mensurados a partir de renda domiciliar per capita, buscando comprovar que “novos patamares foram alcançados pelas classes CDE” nos anos 2000 (2018, p.7). Com destaque para o setor educacional, e tomando novamente a “classe C” como eixo de análise, segundo tais dados, se apenas 1% dos jovens entre 18 e 24 anos frequentavam o ensino superior em 1995, esse índice saltou para 19,4% em 2015. Considero igualmente significativos os seguintes dados trazidos nesse estudo: em 1995, apenas 87 mil pessoas de domicílios das classes CDE frequentavam o ensino superior; em 2015, eram 2,1 milhões (Gonzalez et al., 2018, p. 17-18). Se classe se constitui como marcador central de análise para esse mercado, é importante também analisarmos esses dados a partir de critérios raciais. Conforme analisam Amélia Artes e Arlene Ricoldi (2015), em pesquisa sobre estudantes negros no ensino superior, em 2000 apenas 19% dos estudantes de graduação no Brasil eram negros, fatia que passou para 35% em 2010. Quando se integram as variáveis gênero e cor/raça, foram as mulheres negras que apresentaram as maiores taxas de crescimento na graduação: 294,9%, seguidas de homens negros, com 284,9% de expansão (2015, p. 869). Nesse debate, é imprescindível lembrar que o programa de cotas, sancionado por meio de Lei em 2012 para todas as universidades federais, contribuiu ainda mais para a democratização do ensino superior brasileiro. Vejamos, agora, como o setor privado usufruiu da constituição desse novo público para o ensino superior brasileiro.

3. Mercado de ensino superior privado: estratégias de captação de alunos na expansão e na crise

Se grupos educacionais privados estiveram historicamente inseridos no mercado nacional como uma importante alternativa de qualificação para as classes média e alta, com o processo de mobilidade social descrito acima ocorreu uma mudança de seu público-alvo. Vale lembrar que foi após a Reforma Universitária de 1968 que surgiu, no Brasil, uma nova modalidade de ensino superior privado, marcada pelo ethos empresarial (Martins & Neves, 2016). Já no final dos anos 1990, por meio da Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), de 1996, e de alguns decretos5, o governo federal autorizou o funcionamento de IES particulares que se declaravam com fins de lucros, garantindo mais uma abertura inédita ao mercado. Especialmente a partir de 2005, diante dos incentivos vultuosos oferecidos pelo governo federal – por meio de políticas públicas como o Programa Universidade para Todos (ProUni), implementado em 20056, e o Fundo de Financiamento Estudantil (FIES), reformulado em 20077 –, tais empresas educacionais passaram a focar, cada vez mais, também nos estudantes de “baixa renda”, especialmente da “classe C”, conforme notado no período por diversas pesquisas sobre o ensino superior privado brasileiro (Sampaio, 2011; Almeida, 2014).

Assim, em meados dos anos 2000, por meio de investimentos na captação dessa nova clientela, verificou-se um crescimento sem precedentes desse mercado. Em 2018, segundo dados do censo de ensino superior, 75% das matrículas foram realizadas no setor privado, com ou sem fins de lucros (Brasil, 2018). Tal processo foi marcado pela ascensão de grandes grupos educacionais com características empresariais, tendo como prioridade o lucro por meio da “gestão eficiente”. Conforme apontaram alguns pesquisadores desse cenário (Chaves, 2010; Almeida, 2014; Sguissardi, 2015), verificou-se, no período, um processo de “oligopolização do mercado educacional”. Nesse contexto, além das frequentes fusões, que formaram empresas cada vez maiores, alguns grupos abriram o capital na bolsa de valores e incluíram capital estrangeiro, destacando-se no mercado de ações (Chaves, 2010). Empresas como Kroton Educacional, Estácio, Unip, Laureate, Uninove e Ser Educacional passaram a dominar o mercado de ensino superior privado no Brasil. Marcados por grande capilaridade, espalhando-se pelo interior do país, inclusive nas regiões Norte e Nordeste, tais grupos apostaram num público amplo de consumidores-estudantes, buscando então alcançar todas as classes, com grande atenção às classes B e C. Na análise de Christian Laval (2019, p. 13) sobre a “nova ordem educacional mundial”, o autor constata que o Brasil se tornou “um caso único no mundo” no que se refere à neoliberalização do ensino superior.

A pesquisa de campo realizada entre 2015 e 2018, cujos resultados são apresentados neste artigo, deu-se num período de fortes inversões em relação às expectativas de mobilidade social e de expansão do ensino superior criadas no período precedente. Se, em 2015, o lema do segundo governo de Dilma Rousseff – “Brasil, Pátria Educadora” – parecia mobilizar mais empenho e recursos para o sistema educacional, a subsequente crise política e econômica que levou ao impeachment presidencial em 2016 teve forte impacto no setor. Conforme avaliação de Kopper e Damo (2018), desde então, a própria concepção de “nova classe média” passou a ser amplamente questionada, levando a uma “evanescência” da categoria. De modo geral, abalada pela crise que marcou o período, a comemorada “ascensão da classe C” passou a ser redimensionada. Tal fração de classe teve seu potencial de consumo novamente reduzido, atingida pelo crescente desemprego e pelo progressivo endividamento das famílias. Nesse sentido, contrapondo-se à reportagem de 2009 do Estadão, que noticiava “a ascensão da classe C” e sua entrada no ensino superior, em 2016 nova reportagem do jornal paulista, registrava o processo inverso, evidenciado na manchete “Classe C, ascensão e queda”. Entre outros perfis diretamente afetados pela crise, analisava-se novamente a situação dos ‘novos’ universitários:

Eles começaram a ter acesso a produtos e serviços que antes não cabiam no seu bolso, como plano de saúde, ensino superior e carro zero. Mas, afetadas pelo aumento do desemprego e da inflação dos últimos anos, essas famílias começaram a fazer o caminho de volta (Mayrink, 2016, grifo meu).

Foi já nessa circunstância de crise que a pesquisa trazida neste artigo se desenrolou. Evidenciada em conversa com estudantes e professores, nos discursos publicitários e na mídia hegemônica, a pauta da crise8 se tornou, assim, central.

A fim de analisar a conexão entre mercado de ensino superior, publicidade e estratégias para captação de novos alunos no período, examino brevemente o relatório de pesquisa de mercado intitulado “As aspirações da classe C em relação ao Ensino Superior”, encomendado pelo Fórum das Entidades Representativas do Ensino Superior Particular (Fórum) e publicado em seu site em dezembro de 20169. O relatório analisa dados sobre “a classe C no ensino superior” entre 1996 e 2016 com base na pesquisa do Instituto Data Popular e do Sindicato das Entidades Mantenedoras de Estabelecimentos de Ensino Superior no Estado de SP (SEMESP) – pesquisa que foi realizada com 800 estudantes da “classe C” (definida a partir da renda per capita e familiar)10 que haviam concluído o ensino médio e tinham a expectativa de ingressar na faculdade. Segundo o relatório, embora os estímulos públicos para o ingresso no ensino superior privado tivessem diminuído no período, a universidade pública ainda não aparecia como principal alternativa para esses estudantes. Segundo a pesquisa revelava, dois terços dos entrevistados “não acreditam que a universidade pública seja acessível para eles” (Fórum, 2016, p.3). O ensino privado, nesse caso, aparecia como primeira alternativa, principalmente para aqueles com mais de 24 anos. Ainda assim, apenas 37% dos jovens entrevistados com menos de 24 anos planejava ingressar nessa fase de ensino no ano seguinte.

A crise do Fies também era destacada pelo relatório. Se, entre 2010 e 2014, as verbas para o financiamento estudantil cresceram exponencialmente – o que foi chamado na mídia de “o boom do Fies” –, a partir de 2016, em função do “ajuste fiscal” realizado pelo governo Dilma Rousseff, as verbas voltaram a cair, reduzindo-se ainda mais durante o governo de Michel Temer, em 201711.

Diante desse cenário, o relatório de pesquisa do Fórum listava algumas ações possíveis “para instituições privadas continuarem oferecendo oportunidades de acesso para os alunos de baixa renda – mais especificamente da classe C” (Fórum, 2016, p. 9), apesar da crise econômica do país e da redução do FIES. Entre essas estratégias, foram listadas: crédito educativo próprio, “esclarecimento sobre a qualidade”, “seguro educacional” e “guerra de preços”. Tais estratégias deveriam vir à tona em campanhas publicitárias de grande impacto nacional ou regional.

Assim, em consonância com os efeitos negativos da crise e orientadas pelos aconselhamentos periodicamente promovidos por tais entidades mantenedoras, as empresas do setor privado de caráter lucrativo passaram a investir ainda mais em publicidade no período entre 2015 e 2018, enchendo a cidade de São Paulo de propagandas em estações de metrô, pontos de ônibus, além de anúncios que pipocavam nos principais portais de notícias online e nas redes sociais, muitos deles evidenciando os “preços combativos” de matrícula ou mensalidade em tempos de “guerra”, conforme expressão do relatório de mercado analisado acima (ver imagem 3).


Imagem 3
A “guerra de preços”, conforme proposta em relatório do Fórum. Fotografia realizada na Feira do Guia do Estudante (Pavilhão Anhembi, 2017).
Fonte: fotografia da autora.

4. Discurso publicitário e ensino superior: raça, classe e gênero em articulação

No trabalho precursor de Maria Arminda Arruda (2015, p. 56), ao final dos anos 1970 a publicidade já era entendida como “o componente mais importante da estratégia de vendas” para as empresas brasileiras. Tornando-se um setor cada vez mais autônomo, a publicidade, progressivamente, passou a concentrar recursos importantes no Brasil, mobilizados ano a ano no esforço de persuadir consumidores à compra de mercadorias, sejam elas bens ou serviços. Em pesquisa realizada no final dos anos 1980, também a antropóloga Lucia Müller (1989) demonstrava a centralidade da produção simbólica pela publicidade na sociedade brasileira, revelando como sofisticavam-se cada vez mais as pesquisas de mercado que visavam compreender os “códigos de consumo” a serem destacados pelas peças publicitárias. Com a multiplicação de produtos similares, o trabalho dos publicitários passou a se orientar na direção inversa: “em vez de partir do produto para definir os possíveis consumidores, passam a definir o grupo consumidor, para, a partir deles, estabelecer quais conteúdos distintivos serão atribuídos ao produto” (1989, p. 198). De modo similar, é por meio de pesquisas de mercado cada vez mais minuciosas sobre os consumidores/estudantes potenciais que tais campanhas publicitárias ainda hoje são delineadas.

Em pesquisa sobre o marketing educacional do ensino superior privado nos anos 1990, Helena Sampaio (2000) analisou catálogos, outdoors e folders, entre outros materiais, constatando como as propagandas privilegiavam alguns elementos no início daquela década: imagens de jovens (fotografias ou ilustrações), fotos de instalações internas (bibliotecas, salas, auditórios etc.) e fotos externas dos campi universitários ou das fachadas dos prédios. De modo geral, Sampaio constatava como, entre 1992 e 1996, três categorias se destacavam em tais publicidades: juventude, técnica e sucesso, delineando imagens “de jovens sorridentes, descontraídos, esportivos, integrados ao mercado de consumo” (2000, p.352).

Passo agora a analisar algumas campanhas publicitárias veiculadas por diferentes instituições privadas de ensino superior da cidade de São Paulo, entre 2015 e 2018. Em outro texto (Macedo, 2019), focalizei o destaque dado por tal discurso publicitário em relação à facilidade de acesso na cidade (proximidade de terminais de ônibus e estações de metrô) e à facilidade de acesso financeiro (por meio dos destaques sobre promoções, bolsas e preços baixos, estimuladas pela crise econômica vigente no período). Neste artigo, quero destacar as imagens de jovens selecionados para compor tais campanhas publicitárias, em reflexão a partir da articulação de marcadores sociais da diferença, tendo gênero, raça e classe como eixos de análise.

***

Historicamente, a indústria cultural no Brasil privilegiou corpos brancos em diferentes produtos imagéticos, como telenovelas e propagandas, conforme demonstrou Joel Zito Araújo (2004), entre outras pesquisas sobre a invisibilidade histórica dos negros na mídia brasileira. Em especial na publicidade, comumente se deu “a valorização dos corpos claros, jovens e longilíneos” (Beleli, 2007, p. 202).

No que se refere às propagandas do mercado privado de ensino superior paulista e brasileiro, por mim observadas na cidade de São Paulo e na internet entre 2015 e 2018, esse padrão persistiu apenas parcialmente. Conforme exemplo trazido na imagem 4, em propaganda da Universidade Paulista (UNIP), comumente mulheres e homens jovens e brancos são pensados como representativos dos estudantes/consumidores potenciais, em geral vestidos com roupas sociais, típicas do jovem em ascensão, localizados em fundo neutro ou em algum ambiente de trabalho que requer elegância e distinção.


Imagem 4
peça publicitária do grupo Unip para 2017.
Fonte: site da UNIP, abril de 2017.

No entanto, para além do privilégio de corpos brancos – revelando o racismo institucional entranhado nas propagandas brasileiras –, chamou minha atenção no período o destaque dado às jovens modelos negras e de cabelos crespos em diversas campanhas publicitárias do setor. A campanha publicitária lançada em 2016 pela Estácio é emblemática nesse sentido (ver imagem 5). Empresa reconhecida no mercado por sua captação de consumidores homens e mulheres das classes B e C12, essa campanha retratou trabalhadores-estudantes potenciais que utilizariam o décimo terceiro para se matricular na instituição, por meios dos dizeres “aproveite seu décimo terceiro para iniciar uma graduação!”. Na imagem, aparecem três jovens: à frente, a mulher negra de cabelos crespos; em segundo plano, a mulher branca de cabelos ondulados, seguida por um homem branco de cabelos alourados. Mensagem próxima pode ser lida nas imagens da campanha, também de 2016, do grupo Uninove (imagem 6): três modelos, sendo à frente uma jovem negra, em segundo plano uma jovem branca e, já quase desfocado, um homem branco de cabelos curtos. E, entre as chamadas presentes na peça publicitária, o destaque está nos dizeres “Bolsas de até 80%”, com o detalhamento ao lado: “Não é financiamento. É bolsa”. Em ambas as campanhas, para além da ênfase nas oportunidades de se ingressar no ensino superior, verificamos a recorrência de critérios de gênero e raciais em relação aos modelos selecionados para protagonizar os anúncios. Certamente, tal similaridade não é casual. Já na peça publicitária apresentada na imagem 7, observam-se paralelos, ainda que com uma inversão: três modelos vestindo os trajes de formatura, sendo à frente o homem negro, no meio a mulher branca e, novamente, em último lugar na fila, o homem branco.


Imagem 5
peça publicitária do grupo Estácio para matrícula no ano letivo de 2017.
Fonte: site da instituição no final de 2016.


Imagem 6
peça publicitária do grupo Uninove para matrícula no ano letivo de 2017.
Fonte: site da instituição no final de 2016.


Imagem 7
peça publicitária do grupo Uninove para matrícula no ano letivo de 2017.
Fonte: site da instituição no final de 2016.

Em propaganda da FMU, por sua vez, assim como em outras que registrei no período, todo o protagonismo da peça publicitária é dado a uma jovem mulher negra de cabelos crespos (imagem 8). Vestida com blusa rosa sem estampas, portando sorriso simpático e discreto, a modelo aparece sob fundo cinza, ao lado da mensagem “10 mil bolsas de até 100%”. Novamente, o programa de bolsas é a mensagem a ser enfatizada na sintética comunicação escrita da peça publicitária.


Imagem 8
peça publicitária do grupo FMU/Laureate divulgando bolsas para 2017.
Fonte: site da IES no final de 2016.

Assim, nessa publicidade, vemos como a mulher negra, jovem e de cabelos crespos também se tornou uma personagem central, protagonista de inúmeras campanhas de grandes grupos do ensino superior privado brasileiro, conforme registrei no período. Minha interpretação é a de que tal perfil se tornou representativo da consumidora potencial da “classe C”.

Nesse sentido, vale sublinhar que, em publicações sobre a “classe C” voltadas para o mercado de ensino superior, como o relatório de 2016 do Fórum, analisado acima, destacava-se como a maioria desses estudantes da “classe C” é jovem, é mulher e é oriundo de escola pública. Entretanto, essas publicações – assim como outras que acompanhei no período – não se detinham, em nenhum momento, sobre a temática racial, restringindo-se à análise de “classe”, marcador que se evidenciou como um operador central no período, estruturando o mercado privado de ensino superior. Neste artigo, quero sugerir que o marcador “classe” foi estruturante desse mercado, sem deixar de expressar-se na interconexão com gênero, raça e geração.

Não por acaso, ao analisarem o fenômeno recente de mobilidade social no Brasil, Kopper e Damo (2018, p. 367) constatam que as “populações alvo no interior da “nova classe média” foram “os negros, os jovens, as mulheres”. Nesses casos, retomando o argumento de Angela Davis (2011, p. 1), mais uma vez, torna-se preciso compreender que “classe informa raça. Mas raça também informa classe. E gênero também informa a classe” revelando que “entre essas categorias existem relações que são mútuas e outras que são cruzadas”.

Em um último exemplo a ser analisado neste artigo, retirado do site da faculdade Uninove em um mesmo dia de abril de 2018, entretanto, fica evidente que esse relativo protagonismo da mulher negra nas peças publicitárias analisadas no período, muitas vezes, não se deu de maneira similar para todos os cursos.


Imagens 9 e 10
propagandas voltadas ao público amplo e aos estudantes de medicina.
Fonte: site da Uninove em abril de 2018.

Nessas imagens, torna-se nítido que a “estratificação horizontal do ensino superior”, conforme definem Ribeiro e Schlegel (2015) – que posiciona medicina no topo da hierarquia dos cursos superiores –, além do marcador classe, é também marcada racialmente. Enquanto, na primeira imagem, dirigida a um público amplo de consumidores-estudantes em busca de ofertas e descontos nos mais variados cursos, elege-se uma jovem mulher negra de cabelos crespos como modelo – seguindo essa nova tendência do mercado –, já a publicidade dirigida ao vestibular do curso de medicina apresenta uma mulher e um homem, também jovens, ambos brancos, de cabelos lisos, vestindo seus jalecos brancos tão característicos da profissão.

Através dessa análise, cumpre destacar como o debate sobre representatividade negra na publicidade tem sido importante no Brasil. Torna-se, assim, central refletir sobre quais corpos são exibidos pelo mercado e pela publicidade na construção de imaginários sobre consumidores. Em um dos textos precursores no tema na publicidade brasileira, nos anos 1980, Carlos Hasenbalg (1982) apontava para a condição de invisibilidade do negro na historiografia da nação, assim como na publicidade. Retomando a argumentação de Lélia Gonzalez sobre as representações do negro no Brasil, estereotipada entre dois polos – trabalhador desqualificado ou artista –, Hasenbalg complementava tal argumentação, iluminando as ausências constatadas na publicidade: “ao negar outras características, a estereotipia nega o negro que não encaixa nesses dois polos: o operário qualificado, o empregado de escritório, o bancário, o universitário” (1982, p. 107, grifo meu). A ênfase dada à não representação do universitário como negro, neste caso, dialoga com a análise aqui apresentada. Naquele momento, nos anos 1980, ser universitário era pensado como uma condição social típica de classe média, e até então retratada pela publicidade brasileira como um perfil social caracterizado pela branquitude. Naquela pesquisa, ao analisar campanhas publicitárias brasileiras do final dos anos 1970, Hasenbalg contabilizou 203 anúncios em revistas e na televisão; desses, em apenas nove havia a presença de negros (e, desses nove, três eram propagandas de governo). Análise do autor: “desta acentuada desproporção pode-se derivar a conclusão de que no raciocínio do publicitário o negro quase que inexiste como consumidor” (Hasenbalg, 1982, p. 108).

Já no final dos anos 1990, Heloisa Buarque de Almeida (2003) também fez contagem de anúncios, constatando a baixíssima presença de negros nas campanhas publicitárias do horário nobre da Globo13. Diante de mudanças econômicas e sociais no final dos anos 1990 e início dos anos 2000, houve progressivamente uma mudança em relação à percepção do consumidor negro, transformação identificada por Almeida (2003) e por Peter Fry (2005)14, que constatavam a relativa maior presença de negros na publicidade brasileira já no final dos anos 1990 e início dos anos 2000.

Nesse debate, progressivamente, a questão dos cabelos cacheados e crespos teve destaque, relacionada com demandas do crescente feminismo negro brasileiro e internacional. O resultado que vimos nas peças publicitárias trazidas acima – exibindo jovens mulheres de cabelos crespos – não é, assim, casual. Conforme pontuam Dailza Lopes e Ângela Figueiredo (2018), o crescimento da politização do cabelo crespo ou cacheado deve ser relacionado com as novas formas de ativismo no Brasil, especialmente ligados aos debates na internet. Assim, especialmente a partir dos anos 2010, diversos feminismos negros passam a defender o cabelo crespo como “ferramenta de luta”. Apesar do longo histórico do tema nos debates políticos sobre negritude, especialmente por meio do movimento black power (Hooks, 2014)15, vale destacar como “na perspectiva do início deste século, o cabelo ressurge como categoria de análise”, e deve ser pautado de um ponto de vista político (Lopes & Figueiredo, 2018, p. 8)16.

A partir da análise realizada neste artigo, nota-se como também a publicidade do mercado de ensino superior incorporou parte das demandas dos movimentos sociais e, de maneira ambígua (Boltanski & Chiapello, 2009; Fraser, 2009), passou a contribuir com a afirmação política do cabelo crespo e cacheado, conforme peças publicitárias destacadas neste item. No entanto, além da incorporação de demandas políticas por representatividade, trata-se de apontar, simultaneamente, as estratégias de mercado para atrair “novos consumidores de diplomas”.

Ao analisar tais campanhas publicitárias do ensino superior privado, se, por um lado, parece ser possível afirmar uma mudança mais abrangente em relação ao protagonismo da mulher negra na publicidade, por outro, é necessário cautela para analisar tais dados. Pesquisas quantitativas recentes sobre o mercado publicitário apontam para transformações importantes, mas ainda insuficientes, em relação à visibilidade de negros na publicidade brasileira: segundo a pesquisa “Todxs – uma análise da representatividade na publicidade brasileira”, em 2015, apenas 1% das mulheres em comerciais eram negras; em 2016, eram 13%, e em 2017, eram 21%17. Assim, quando se analisa a publicidade brasileira como um todo, o predomínio segue sendo de protagonistas homens e mulheres brancos, não refletindo a diversidade racial da população brasileira.

Considerações finais

Neste artigo, por meio da análise da relação entre discurso publicitário, mercado de ensino superior e marcadores sociais da diferença, busquei demonstrar como também a publicidade tem contribuído para a formação de um novo imaginário sobre ensino superior no Brasil, cada vez mais próximo dos brasileiros de baixa renda ou, pela linguagem de mercado, da “classe C”. Nessa construção imagética, jovens modelos brancos e negros, homens e mulheres, são apresentados, constituindo um novo imaginário, permeado por maior diversidade de perfis do que o apresentado no passado. Conforme reflexão de Arjun Appadurai (1996), no mundo contemporâneo globalizado, a construção de novos projetos de vida seria cada vez mais atravessada por imaginários constituídos cotidianamente por diferentes mídias, processo similar ao apresentado neste artigo. Aqui, embora nos relatórios de pesquisa de mercado mobilizados por tais segmentos pouco se discuta a questão das categorias raciais, diversas publicidades passaram a dar um protagonismo inédito a novos perfis sociais, com destaque para mulheres negras, jovens, de cabelos crespos. Assim, ao analisar algumas peças publicitárias veiculadas entre 2015 e 2018, sugiro que se deu um destaque inédito à mulher negra nesse setor.

“A publicidade, sabe-se, trabalha com um discurso positivo” (Sampaio, 2000, p.351). Conforme pontuou Helena Sampaio ao analisar as publicidades do ensino superior privado nos anos 1990, “o jovem para quem a propaganda se dirige é um aspirante ao sucesso, o que significa, sem remorsos, competir e vencer no mercado de trabalho, afirmar-se como consumidor realizado” (p. 351). Assim, em propaganda do início dos anos 1990, a Universidade São Judas anunciava que “a porta do futuro só você pode abrir” (p.352). Apostando na escolha individual, o discurso publicitário voltado para uma classe média tradicional, ainda que heterogênea em seus estilos de vida, e provavelmente imaginada como branca, tratava a educação superior como a alternativa mais eficaz para a ascensão social.

Nos anos 2010, em contexto social bastante diverso, o discurso voltado para a mobilidade social revela aproximações importantes com aquele registrado por Sampaio. No entanto, conforme busquei demonstrar neste artigo, entre a década de 1990 e a década de 2010, verificou-se uma mudança fundamental em relação aos consumidores de diplomas, abrindo esse mercado para novos estudantes. Assim, frases motivacionais como “mudar a sua história só depende de você”, apresentada no início deste artigo, ganharam novo sentido, ao deslocar-se para a expectativa de mobilidade social de novos perfis sociais. Ainda que marcada pelas ambiguidades constitutivas do meio publicitário em sociedades capitalistas, trata-se de mudança imagética relevante e notável. Resta-nos, no entanto, um longo caminho a percorrer até se ter, no Brasil, uma publicidade que realmente expresse a diversidade de sua sociedade e um ensino superior verdadeiramente democrático.

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Notas

1 O presente artigo é parte de pesquisa de doutorado realizado junto ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade de São Paulo (PPGAS-USP), sob a orientação da profa Heloisa Buarque de Almeida e com financiamento da CAPES
2 Nesse sentido, o caso brasileiro se diferencia dos Estados Unidos e Inglaterra, onde, segundo Helena Sampaio (2000, p. 319), “o marketing educacional sempre foi uma estratégia importante para o prestígio e o financiamento de suas universidades”.
3 A pesquisa etnográfica com estudantes universitários – não analisada neste artigo – pode ser conferida em Macedo (2019; 2020).
4 Entre as categorias utilizadas para mensurar a estratificação social, existem as chamadas “classes socioeconômicas” – amplamente utilizadas pelo mercado –, que podem ser definidas a partir de critérios como renda domiciliar, renda per capita e potencial de consumo. Em diversas dessas classificações, convencionou-se nomear os estratos por letras, iniciando o topo da pirâmide social na letra A – os mais ricos – e finalizando na letra E – os mais pobres. Conferir Almeida e Macedo (2015).
5 Como registra Helena Sampaio, o decreto nº 2.306 de 1997 pode ser considerado um marco na constituição do ensino superior privado com fins de lucros, ao permitir que as entidades mantenedoras passassem a assumir finalidade lucrativa (Sampaio, 2000, p. 144).
6 O Prouni consiste no oferecimento de bolsas de estudos integrais e parciais em IES privadas, com ou sem fins lucrativos, para estudantes vindos de escolas públicas (ou como bolsistas integrais em particulares) e que comprovem “baixa renda” (renda familiar per capita de até três salários-mínimos para bolsas parciais e até um salário-mínimo e meio para bolsas integrais) (Almeida, 2014). Em contrapartida, as universidades que recebem tais estudantes têm isenção de alguns tributos.
7 Em 2007, o Fies (Fundo de Financiamento Estudantil) ganhou força, impulsionando ainda mais a expansão do setor privado, embora já existente desde os anos 1970 com o nome de Crédito Educativo. Na reformulação de 2007, por meio da Lei 11.552/2007, o Fies passou a financiar até 100% da mensalidade, expandindo o programa (antes, o limite era 70%) (Almeida, 2014).
8 A temática da crise pode se constituir como um momento propício para reflexões e análises multidimensionais, apreendendo “os complexos encontros e as justaposições entre variáveis econômicas, políticas e sociais”, conforme aponta Rosana Pinheiro-Machado (2016, p.25).
9 Parte do documento acha-se atualmente disponível em: <https://abmes.org.br/arquivos/pesquisas/aspiracoes_classe_c.pdf>. Acesso em: 30/04/2020.
10 Segundo relatório, a pesquisa foi realizada com entrevistados da classe C, isto é, com renda per capita entre R$388,81 e 1.361,93. O próprio documento alterna o uso das categorias “classe C”, “baixa renda” e “classe média” para se referir ao mesmo estrato de renda.
11 Ver, por exemplo, a reportagem “Governo anuncia redução de 29% nos investimentos do FIES”, publicada em 06/02/2017 no portal UOL. Disponível em:<https://educacao.uol.com.br/noticias/agencia-estado/2017/02/06/governo-anuncia-reducao-de-29-nos-investimentos-do-fies.htm>. Acesso em: 12/12/2018.
12 Conforme noticiado em diversas reportagens do mercado de negócios, o foco recente da Estácio tem sido a “classe C”. Ver, por exemplo, reportagem da revista Exame disponível em:<https://exame.abril.com.br/revista-exame/festa-de-fim-de-ano-da-estacio-diz-muito-sobre-sua-fase-dificil/>. Acesso em: 30/04/2020.
13 Segundo a pesquisa realizada por Heloisa Almeida (2003), analisando todos os anúncios do horário nobre de um dia de maio de 1997, entre os personagens centrais ou apresentadores, 128 eram brancos e apenas 7 eram negros. Já em um dia de maio de 1998, entre os personagens centrais ou apresentadores, 164 eram brancos e apenas 5 eram negros.
14 Em especial, Fry (2005) analisou o sucesso da revista Raça Brasil (atualmente revista Raça) - publicação voltada para a beleza e cultura negra que, no seu lançamento em 1996, vendeu cerca de 300 mil exemplares.
15 Em pungente relato sobre sua própria juventude, Bell Hooks (2014) analisa a simbologia de “alisar os cabelos” para as jovens mulheres negras, perversamente marcado pela oposição entre cabelo crespo e “cabelo bom”. Hooks destaca como, especialmente a partir dos anos 1960, os cabelos naturais estilo “black” passaram a ser compreendidos como um ato de resistência política. No entanto, a prática do alisamento permaneceu um debate importante, ainda mais quando pesquisas estadunidenses constavam que ter cabelos alisados aumentava a chance de obter bons empregos. Nesse debate, Hooks defende que, seja qual for a escolha, as “questões de raça e beleza” devem ser pautadas “de um ponto de vista político” (2014, p.6).
16 Também Marcella Betti (2018) refletiu sobre o movimento contemporâneo do reconhecimento do cabelo “natural”, cacheado ou crespo, enquanto questão política, trazendo novos elementos para uma discussão mais antiga sobre “representatividade” e combate ao racismo.
17 Informações disponíveis na reportagem “Participação da mulher negra na publicidade brasileira aumentou em 2017, mas ainda com destaque para celebridades”, de 5/01/2018. Disponível em:<https://www.b9.com.br/84190/participacao-da-mulher-negra-na-publicidade-brasileira-aumentou-em-2017-mas-ainda-com-destaque-para-celebridades/>. Acesso em: 02/02/2020.


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