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Re-esclarecimento
Re-Enlightenment
Revista Brasileira de Sociologia, vol. 9, núm. 21, pp. 233-247, 2021
Sociedade Brasileira de Sociologia
Editado por: Elisa Reis

Sociologies in dialogue

É com muito prazer que compartilho com os leitores brasileiros o quase-manifesto por um novo Iluminismo de Gudmund Hernes. Li o texto em primeira mão, quando participávamos ambos de um encontro de cientistas e, desde então, só vi crescer a urgência de sua conclamação. Atuando com igual sucesso no mundo acadêmico e no mundo da política pública, Gudmund conhece como poucos os recursos e os limites de ambos. Igualmente notável é a intimidade com que estabelece diálogos esclarecedores entre ciências sociais e naturais.

Para ilustrar o percurso extenso, intenso e diversificado de Gudmund Hernes, ressalto algumas de suas atividades. Ele foi professor nas Universidades de Bergen e de Oslo, professor visitante na Universidade de Harvard e pesquisador associado ao Center for Advanced Study in the Behavioral Sciences, da Universidade de Stanford. Quanto à sua participação na vida pública da Noruega, Hernes foi Ministro de Educação e Pesquisa, Ministro de Religião e Cultura, e Ministro de Saúde e Assuntos Sociais. Foi também Presidente do International Social Science Council, e Diretor do International Institute of Educational Planning da UNESCO, em Paris. Segue ativo na FAFO Foundation e na Norwegian Business School. Além disso, colabora regularmente com jornais e revistas de ampla circulação discutindo temas de interesse geral como se espera de um intelectual público comprometido com os ideais do re-esclarecimento.

Elisa Reis

***

Se é verdade que as tecnologias que usamos em nosso cotidiano são, em grande medida, desdobramentos de ideias das ciências naturais, os arranjos sociopolíticos e econômicos que tornaram possível o desenvolvimento nacional e global são, em grande medida, desdobramentos de ideias extraídas das ciências sociais.

O mundo moderno tal como o conhecemos é produto da ciência em suas diversas formas. Neste novo século, porém, a ciência se encontra em situação paradoxal. Por um lado, ela é a grande força de transformação social − as mudanças geradas são tão diretas e intencionais quanto indiretas e involuntárias. Por outro lado, seus resultados são frequentemente ignorados; suas descobertas, negadas; e suas normas, transgredidas. Neste breve texto, discuto o papel das ciências naturais e sociais na formação do mundo moderno, em particular sua expansão durante o período que chamamos de Esclarecimento (ou Iluminismo).1 Analiso, então, as ameaças e os desafios à ciência e ao discurso racional neste novo século, e reivindico que um Re-esclarecimento é imperativo e urgente para confrontar os atuais dilemas da humanidade.

Contribuições de todos os continentes e culturas

Descobertas, invenções e tecnologias científicas foram feitas e desenvolvidas em todos os continentes, com contribuições de todas as culturas. Os chineses produziram grandes avanços na matemática, na medicina e na engenharia. Da Índia nos veio o conceito de zero, e o sistema numérico hindu foi enriquecido pelos árabes. O Antigo Egito não só construiu as pirâmides, mas também nos forneceu o primeiro sistema decimal. Encontrado numa cordilheira entre Essuatíni e a África do Sul, e datando de cerca de 37.000 anos, o osso dos Montes Libombos talvez seja o instrumento matemático mais antigo do mundo. A geometria fractal é encontrada na arte africana. Os japoneses aprimoraram a cerâmica e as técnicas de impressão. Os gregos desenvolveram a geometria, a filosofia e a ciência política. Povos nativos americanos domesticaram, cultivaram e posteriormente deram ao mundo muitas plantas úteis como alimento e medicamento. O bumerangue, que, como brinquedo, intriga as crianças, foi inventado por aborígenes australianos como arma. As habilidades de navegação dos polinésios, que lhes permitiram navegar milhares de milhas em alto-mar, baseavam-se não só em observações sistemáticas dos corpos celestes, mas também em observações de longa duração das correntes marítimas, transmitidas oralmente de geração para geração.

Sociedades modernas moldadas pela ciência natural

As ciências nos deram vacinas e aviões, lâmpadas e lasers, motores de pistão e computadores. A ciência e a tecnologia são capacitadoras, civilizadoras e inspiradoras. Capacitadoras porque tornam possível aproveitar as forças da natureza para propósitos humanos. Civilizadoras porque liberam tempo dos afazeres e da luta pela subsistência para o lazer e a cultura. Inspiradoras porque promovem a criatividade e a compaixão para nutrir e curar, para facilitar e prolongar a vida. Conquistas científicas e tecnológicas marcam inclusive as grandes épocas da história humana, da Idade da Pedra à era da internet. Em grande medida a ciência empoderou os humanos para substituírem o acaso e a incerteza pelo cálculo e pela previsibilidade, da construção de calendários à previsão do tempo e das mudanças climáticas.

Por isso o avanço da ciência melhorou enormemente as condições das sociedades humanas. Progressos em campos tão diversos quanto agricultura, saúde e comunicação − e nas disciplinas em que elas se apoiam, como a biologia, a física, a medicina e a engenharia – compreendem, na verdade, a essência do que denominamos modernidade. As sociedades modernas, as pensemos quer em termos de vidas mais longevas e em melhores condições, quer em termos do fluxo contínuo de novas tecnologias que conectam e integram a comunidade global, são em grande medida os subprodutos da pesquisa e da criatividade científicas. Os artefatos da ciência moldaram as relações sociais.

As ciências sociais fornecendo modelos de e para a organização social

De modo similar, as instituições que caracterizam as sociedades modernas são em grande parte construtos derivados de ideias das ciências sociais, sejam elas os princípios do direito natural, a divisão de poderes encarnada nas constituições, a gestão macroeconômica de mercados ou os métodos do cuidado psiquiátrico. As teorias sociais tiveram enorme impacto na construção do mundo moderno – no modo como as nações foram edificadas, as instituições moldadas, os cidadãos empoderados, as moedas estabelecidas, o comércio organizado, a educação provida e as identidades forjadas. Hoje a pesquisa em ciências sociais é amplamente usada para fornecer suporte a decisões em todos os campos, da redução da pobreza à melhoria das relações de gênero, da construção de cidades sustentáveis ao combate ao HIV/Aids.

A importância das ciências sociais foi intensificada proporcionalmente ao impacto crescente das ações humanas em condições globais na presente era do Antropoceno − notavelmente com relação à inesperada produção humana da mudança climática. As ciências sociais contribuem para a forma como as decisões políticas são formuladas e implementadas. Os tomadores de decisão, públicos e privados, em todos os países e todas as áreas, recorrem aos resultados da pesquisa em ciências sociais.

Um desenvolvimento de dois gumes

A contrapartida dessa trama é uma história de ignorância, superstição e preconceito, e de guerra e conflito. O desenvolvimento tecnológico teve dois gumes: não só foi usado com propósitos construtivos, mas também aumentou nossa capacidade destrutiva. Quando a ciência e a tecnologia não são controladas − ou quando seu uso é equivocado −, podem causar sofrimento generalizado, esgotar os recursos da Terra e até mesmo destruir as condições para a existência das gerações futuras.

Por isso a ciência e suas aplicações levantam recorrentes questões éticas.

O Esclarecimento

A evolução e a expansão da ciência e de sua manifestação em tecnologias, instrumentos, instituições e práticas sociais constituíram uma longa aventura para a humanidade.

Esse processo, porém, foi muito acelerado durante o período da história que chamamos de Iluminismo − aproximadamente de 1600 a 1800. Ele foi desencadeado por grandes debates sobre Deus, religião, razão, natureza, assim como sobre os funcionamentos e os princípios da organização social, política e econômica. Novas correntes de pensamento de diversas fontes aos poucos se misturaram e fundiram em uma mentalidade iluminista mais ampla. Foi um período de conquistas nas ciências naturais e sociais.

Novas áreas da matemática tornaram possível o mapeamento e o cálculo das órbitas e dos movimentos dos corpos celestes. Ocorreu uma mudança de paradigma do modelo ptolomaico dos céus para a versão copernicana.

Uma mudança de paradigma, lentamente, também se estabeleceu na esfera social. De instituída por obra divina, a estrutura social passou a ser vista como um contrato social. Uma nova visão de mundo humanista na filosofia e no pensamento político atribuiu aos indivíduos direitos inalienáveis e os designou como a fonte do poder político. Derivaram daí noções de liberdade de expressão, estado de direito e governo constitucional com freios e contrapesos. Novas ideias foram concebidas acerca da natureza das relações econômicas e da riqueza das nações.

No núcleo do Iluminismo estava o que veio a ser denominado revolução científica, uma revolução em câmera lenta ao longo dos séculos. As leis da natureza − da matéria e das forças, assim como a origem das espécies − foram reconceitualizadas. Relações reais e possíveis entre humanos também o foram, bem como as interações entre os humanos e o mundo natural. Gradualmente, todos os campos de estudo se transformaram − da matemática à biologia, da geografia à física, da botânica à medicina, da engenharia à economia.

Modificaram-se também os modos de fazer ciência. A química introduziu uma gama de técnicas para amalgamar e transformar substâncias, de cerâmicas a cervejas e ligas. A alquimia envolvia realizar e registrar experimentos, mas os químicos do Iluminismo começaram a usar o método científico, observações e medições, resultando, então, a tabela periódica e a invenção de novos compostos e substâncias. Os modos de fazer pesquisa foram sistematizados: estabelecer conjeturas sobre conexões, examiná-las conceitualmente, extrair inferências e chegar a vereditos por meio do raciocínio, do registro sistemático de resultados e de experiências. A busca da verdade foi codificada por normas de argumentação, debate, evidência, demonstração e revisão por pares.

A ciência aprimorou e inventou novos instrumentos de pesquisa, como o telescópio e o microscópio, o termômetro e o sistema métrico. A exploração científica se expandiu por meio de experimentos e expedições. A Terra foi mapeada e mensurada; as populações, contadas; e seus modos de vida, descritos.

Novas instituições em prol do esforço científico também foram construídas: sociedades científicas, academias, novas universidades e museus, laboratórios e bibliotecas, bem como canais de comunicação científica: livros impressos, jornais, periódicos e enciclopédias. E estudantes e cientistas passaram a viajar cada vez mais.

Assim, o Esclarecimento (ou Iluminismo) encapsulou um conjunto de ideias e práticas que mutuamente se reforçavam. Esses desenvolvimentos tomados em conjunto não apenas contam uma história convincente; eles conferiram novos poderes à ação humana.

Incorporado em instituições

A história, porém, não acaba aí: o que aconteceu com a ciência foi incorporado em arranjos sociais mais amplos que eram parte integral daquela visão de mundo. O Iluminismo, de muitos modos, é um período em que o fatalismo foi suplantado pelo otimismo: a crença de que os humanos, armados com o conhecimento, poderiam moldar seu próprio destino. A razão, a dúvida e o questionamento poderiam reduzir a ignorância e aprimorar o conhecimento. A ideia da história como progresso no bem-estar humano mediante avanços na ciência, na tecnologia e na organização social tomou conta da cena.

Isso, entretanto, exigiu a oportunidade, na verdade a missão, de investigar, de explorar e de desafiar o saber convencional, a ortodoxia e as ordens estabelecidas. Certamente, houve ambivalência; de fato foram frequentes a resistência e a animosidade por parte de regimes e de autoridades governantes, até mesmo entre aqueles que apoiavam diversos tipos de investigação científica. Para ter êxito, contudo, os pesquisadores tiveram que estar aptos a seguir suas intuições, dar suas opiniões, financiar seus estudos e comunicar seus resultados. Por isso o reconhecimento político do direito de, livremente, escolher tópicos de pesquisa e métodos de investigação, publicar resultados, os debater e discutir com os pares pouco a pouco se tornou fundamental para a pesquisa científica. A força do argumento, e não o poder da posição social, deveria solucionar o problema. A resolução das controvérsias não seria decidida pelo dogma, mas pelos dados.

A fim de tornar possível o progresso científico e social, a pesquisa científica careceu do apoio de leis que garantissem a liberdade de expressão e de imprensa. As normas de investigação científica precisaram permear o debate público mais amplo, isto é, respeito pelos fatos, rejeição do preconceito, veracidade dos argumentos e consideração de contra-argumentos, e abertura em relação aos oponentes. De fato, essa é uma contribuição decisiva da ciência tanto para a racionalidade do discurso público quanto para uma esclarecida e tolerante sociedade democrática.

Aspecto importante de um novo sistema social foi a ampla disseminação dos resultados científicos, em parte por meio de salões e sociedades de debates, mas também pelo papel expandido da palavra impressa e da extensão da alfabetização. Governos e outras instituições assumiram novas iniciativas para difundir ativamente o conhecimento, as descobertas e as invenções, com frequência propostos por figuras públicas, como sacerdotes, médicos e agrônomos. A aplicação dos resultados científicos difundiu-se mais, indo da vacinação contra a varíola e dos cronômetros à navegação e à construção de arados criados a partir de experimentos sistemáticos. A educação não mais restrita às elites se tornou um veículo de transformação social, e a popularização significou a gradual conversão da ciência em assunto de interesse de pessoas de todas as camadas sociais.

Desafios para a ciência do século XXI

No século XX a ciência avançou a passos largos. Nunca antes na história da ciência tanto foi alcançado em termos de novas teorias, descobertas e aplicações. Foi um século de crescimento e expansão: contam-se agora cientistas aos milhões, e muitos milhares são treinados a cada ano.

As ciências, tanto as naturais quanto as sociais, tornaram-se verdadeiramente globais, no sentido de que são ensinadas em quase toda parte, sendo os resultados de suas pesquisas amplamente disseminados.

Cientistas trabalham como especialistas em universidades e institutos de pesquisa, mas não só; são também crescentemente incorporados como pesquisadores em instituições públicas e empresas privadas. O conhecimento científico especializado tem alta demanda por parte dos formuladores de políticas públicas, da mídia e do público.

E não menos importante: conceitos científicos como “aceleração”, “frente fria”, “pressão sanguínea”, “profecia que se autocumpre” e “PIB” entraram na linguagem cotidiana e nas mentes dos cidadãos comuns.

Os cientistas nunca foram tão numerosos, nem sua influência tão grande como é hoje em questões tão diversas quanto comunicação móvel, epidemias, previsão do tempo, gestão macroeconômica e aprendizado de máquina.

O gênio fora da garrafa

Simultaneamente, um gênio foi libertado da garrafa: os poderes que a ciência natural e social deu aos humanos, por seu uso descuidado – ou por insidioso uso instrumental – também ameaçam causar grandes danos à humanidade. Isso oferece uma importante lição sobre o vínculo entre os objetos das ciências natural e social.

Um exemplo disso está nos relatórios publicados pelo Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) das Nações Unidas. A Mãe Natureza está enviando uma mensagem altitonante, forte e clara sobre o que está acontecendo ao nosso planeta. Os cientistas nos dizem que as temperaturas estão aumentando, as calotas polares derretendo, o nível dos oceanos aumentando, e o clima se tornando mais violento e imprevisível. Esses efeitos são inescapáveis, implacáveis; são o nosso destino comum – um desafio a todos os humanos – e não há saída.

O Painel sobre Mudanças Climáticas nos deu mais uma informação: o que vemos não são as forças da natureza trabalhando autonomamente, como os movimentos planetários. Os processos que observamos são certamente geofísicos, químicos, meteorológicos. E eles se traduzem em processos que são ecológicos e biológicos – todas as espécies serão afetadas.

O que, entretanto, colocou em movimento as forças da natureza foi a ação humana. As causas fundamentais da mudança climática são sobretudo sociais. E para a espécie humana as graves consequências também serão sociais. As terras para a agricultura serão destruídas por inundações e secas. Propriedades serão arruinadas. A pobreza aumentará. Água e alimentos terão oferta reduzida. Doenças se espalharão. As desigualdades sociais se tornarão agudas. A migração se ampliará com os refugiados das mudanças climáticas. Crises sociais podem se multiplicar, e conflitos podem ser provocados.

Em resumo: todos os problemas sociais que enfrentamos serão potencializados, e nossos impasses comuns serão exacerbados. Os pobres sofrerão mais; aqueles com menos recursos se defrontarão com os impactos mais graves, mas ninguém estará completamente a salvo.

O termo Antropoceno encapsula esse vínculo entre natureza e sociedade – a era que começou quando as atividades humanas pela primeira vez impactaram decisivamente os ecossistemas da Terra.

Ao mesmo tempo, a ciência colocou um potente conhecimento nas mãos de organizações públicas e privadas. A internet é uma enorme fonte de conhecimento – embora signifique também um enorme poder para o controle e a manipulação sociais por parte de atores públicos e privados. Ela permite que o Grande Irmão [Big Brother] o observe – ele e muitos outros Irmãos Menores também. “Trolagem” e “fake news” são exemplos de neologismos que procuram descrever e dar conta dessa nova realidade.

A ciência sob ataque

A prática da ciência e a política científica variam marcadamente ao redor do mundo – diferentes países e regimes adotam diferentes políticas, possuem diferentes instituições e estão incorporados em diferentes estruturas legais – e são constantemente redesenhadas e modificadas.

Em muitos lugares, porém, podemos agora observar mudanças desconcertantes nas atitudes, nas políticas e no financiamento em prol da ciência, pois, junto com os muitos êxitos e o difundido e crescente uso da ciência, vieram as críticas.

Os cientistas algumas vezes sofreram pesados questionamentos por sua falta de visão de futuro, fosse sua falha em antecipar os impactos do aerossol na camada de ozônio ou em prever a crise financeira global de 2008. Na verdade, a ciência é uma obra em progresso.

Os cientistas são também, às vezes, criticados por dar conselhos contraditórios, por representar e articular escolas diferentes de pensamento ou por promover as perspectivas unilaterais e os interesses particulares de seus financiadores privados. Alguns cientistas foram repreendidos por desonestidade em relação a conflitos de interesse, outros até mesmo por cometer fraude acadêmica.

Produtos desenvolvidos a partir de pesquisas foram impulsionados com consequências devastadoras – a crise dos opioides é exemplo disso.

Há, porém, mais ataques insidiosos, que podem ser resumidos como golpes contra os próprios ideais e normas que emergiram pela primeira vez durante o Iluminismo, e cujos protagonistas foram os cientistas.

Uma investida consiste na rejeição das descobertas científicas e no completo desprezo pelo consenso científico. A negação das mudanças climáticas é o melhor exemplo; mas há outros, tais como as tentativas de fundamentalistas de reduzir a teoria evolucionista ao status de mera opinião.

Ilustração mais prática é a proibição do uso de conceitos consolidados nos relatórios de agências governamentais ou de empresas privadas. Os cientistas nelas empregados podem ser proibidos de fornecer evidências de pesquisas científicas ou não ter permissão para falar publicamente sobre questões científicas. De fato, a censura científica pode ser imposta toda vez que fatos científicos contrariarem a crença ou a conveniência política – ou a contabilidade das grandes empresas.

Em outros casos, lobistas da indústria podem protelar regulações para restrição dos efeitos de substâncias nocivas, ou seja, produtos químicos perigosos ou mesmo drogas farmacêuticas, documentados pela pesquisa.

Outro possível resultado concreto é a redução do financiamento para agências científicas vitais, o que se faz particularmente prejudicial a estudos plurianuais, mas também o corte ou o congelamento da nomeação de pessoal, às vezes mascarado como “reorganização”.

O bordão para isso é “sociedade pós-fato”: a ciência é minada pela desconsideração deliberada de fatos, notícias equilibradas e até mesmo da verdade. Também podem ser criados jornais pseudoacadêmicos que permitam apresentações errôneas de coleta e fabricação de dados, citações incorretas, revisão por pares manipulada e outros tipos de fraudes de publicação, abordados pelo Comitê de Ética de Publicação (Cope).

Mas a ciência e a pesquisa também podem ser subvertidas a partir de dentro da comunidade científica, por meio da falsificação de resultados, da fabricação de dados, do plágio de trabalhos alheios, dos conflitos de interesse não declarados e de outras condutas científicas inapropriadas. De fato, manter e proteger a integridade da ciência e do registro científico se tornou mais desafiador e mais importante.

Sob ataque estão também as normas do Iluminismo para o discurso racional, isto é, a prática do ceticismo para averiguar afirmações, questionar fontes, verificar evidências e expor noções e explicações falsas.

Não apenas os fatos são negados e distorcidos. A comunicação científica pode ser manipulada e corrompida. Explicações falsas e fake news são lançadas e divulgadas, frequentemente com grande alcance e eficiência agora, graças à fácil disseminação pela internet e pelas novas mídias sociais.

Além do mais, mentiras descaradas assim como a onda de fundamentalismo e fanatismo neste novo século se opõem aos valores do Iluminismo. O resultado do obscurecimento não raramente é a confusão e a perda de confiança nas instituições da ciência como produtoras de bens públicos. As teorias da conspiração são exemplo disso.

Re-esclarecimento

Dados esses novos desafios ao empreendimento científico, uma defesa vigorosa se faz necessária – na verdade uma tarefa decisiva para o recém-estabelecido Conselho Internacional de Ciência (International Science Council).

A noção iluminista de progresso repousa na visão de que as ideias não só devem ser comunicadas, mas também desafiadas. A colaboração científica implica argumentos, críticas e discordâncias organizadas entre colegas e pares. O avanço científico necessita que hipóteses sejam validadas, e teorias descartadas, ainda que controvérsias acaloradas possam ocorrer com abertura e curiosidade nas trocas profissionais, bem como com tolerância e civilidade nas relações interpessoais. O objetivo não deve ser vencer uma disputa, mas alcançar novos insights compartilhados. Da mesma forma, as decisões devem, na medida do possível, estar fundamentadas em evidências. O ideal seria a alteração das opiniões diante da mudança dos fatos ou quando novos argumentos se tornassem convincentes, embora, como argumentou Thomas Kuhn, as comunidades de cientistas possam ser altamente resistentes a mudanças em face de novas evidências.

O letramento científico envolve encontrar o difícil equilíbrio entre o respeito ao conhecimento estabelecido e a atitude crítica necessária ao desenvolvimento de novas aprendizagens e à organização da informação em novas formas. O treinamento na ciência, portanto, deve incutir a consciência das limitações do corpo atual de conhecimentos e o entendimento de que as doutrinas predominantes podem bloquear novas ideias.

A mensagem do Painel de Mudanças Climáticas é a de que o próprio planeta pode estar em risco, isto é, que as forças liberadas pelo uso de energia ou pela poluição, se não forem enfrentadas imediata, inteligente e energicamente, podem causar danos irreversíveis ao nosso ambiente global comum.

Quando digo “imediata, inteligente e energicamente”, não estou mais falando em fenômenos naturais, mas em respostas humanas, em conhecimento das ciências sociais e em formulação de políticas com base em evidências. Mais do que isso: implícito nesses termos está um apelo em prol não só da colaboração interdisciplinar entre as ciências naturais e sociais, mas da pesquisa integrada. Uma parte crescente do conhecimento que buscamos e precisamos reunir para responder eficientemente às mudanças que os humanos provocaram na natureza deve ser pesquisa integrada, ou seja, pesquisa que em suas próprias concepção, execução, aplicação e apresentação reúna as ciências naturais e sociais em projetos conjuntos.

A complementaridade da informação, das ideias novas e do conhecimento especializado que as ciências naturais e sociais podem oferecer em conjunto – apoiada em sólido conhecimento disciplinar – pode mostrar aos tomadores de decisão de que modo as urgentes questões com que eles se confrontam podem ser esclarecidas pelos resultados e pelas orientações de pesquisas integradas que abordem as complexidades que eles enfrentam. O todo será mais que a soma das partes. E, a partir disso, os especialistas também poderão aprender a trabalhar melhor juntos.

Tal pesquisa é necessária; na verdade, é urgente. E por estranho que possa parecer: há oportunidade na crise. A mudança climática nos impõe a realidade de que existe um único planeta. Quando ele está em perigo, impõem-se a nós a possibilidade e o dever de transcender “as duas culturas”. A comunidade de cientistas e especialistas só pode ajudar o mundo a se organizar melhor organizando-se melhor ela própria.

O éthos da pesquisa científica

O aumento do conhecimento e as perturbações dele decorrentes provocam problemas não só intelectuais, mas também sociais e emocionais. Após a Guerra Fria, novos tempos de turbulência se sucederam com a mobilidade geográfica e social, com novas pressões econômicas e conflitos sociais. Muitos se sentem crescentemente inseguros e veem seu futuro cada vez mais incerto e precário. O desemprego e a migração criam tensões étnicas, nacionais e religiosas que vêm resultando na reemergência do extremismo político e do racismo, o que constitui potencial ameaça à estabilidade política, à participação e à democracia representativa.

Por isso, uma palavra que é também um clichê político ganha importância: entendimento. Essa é uma ideia que está nas raízes do movimento europeu do Iluminismo. Conhecer é ser capaz de ver o outro lado de um argumento, de reconhecer o mérito das visões de seu oponente, de criar empatia com aqueles de quem se discorda.

Então, embora o aumento do conhecimento indiretamente crie turbulência pelas perturbações sociais devidas a deslocamentos ambientais, econômicos e políticos, o crescimento do conhecimento pode ser diretamente uma força humanizadora – tanto individualmente como entre grupos.

Uma questão importante, portanto, é fortalecer a cultura do argumento racional e da democracia para manter sociedades abertas. Isso significa que devemos colaborar cruzando fronteiras e ao mesmo tempo fortalecer a influência dos cidadãos sobre suas instituições – influência sobre suas próprias vidas e sobre seu futuro.

Os resultados da ação humana com base em pesquisa, entretanto, não são apenas mais abrangentes. São também mais entrelaçados. Os efeitos das ações se revelam por meio de ligações cada vez mais complexas e costumam se manifestar demasiadamente tarde para que possam se tornar premissas das decisões que os desencadearam.

A questão é que somos forçados a perceber que o conhecimento é parcial. Podemos liberar forças que não somos capazes de controlar. Mais do que isso. Podemos incitar efeitos que não prevíamos ou reconhecíamos. Nesse sentido, portanto, o conhecimento que já possuímos exige mais conhecimento, e um conhecimento mais holístico, se quisermos aplicá-lo com racionalidade.

A conclusão é: novos conhecimentos oferecem mais alternativas para escolhas, e, assim, para decisões que devem ser orientadas por valores. As opções abertas vão da engenharia genética e da liberação de organismos geneticamente modificados na natureza até a inteligência artificial. Há também o crescimento dos sistemas de vigilância total e de armazenamento de big data que permite a manipulação e o controle social.

A consequência normativa, portanto, é que aplicações sem clara orientação dos resultados científicos levam a políticas tecnocráticas. Por isso o letramento científico deve ressaltar e discutir as questões éticas levantadas pela própria ciência, assim como os juízos morais que são exigidos quando novos conhecimentos criam possibilidades de novas escolhas e ações. O pensamento humano que transcende os limites do que é possível deve ser testado à luz da tradição humanística que estabelece os limites do que é permissível.

Não podemos mudar o modo como as forças da natureza funcionam. O conhecimento e o juízo, porém, podem mudar os modos como os humanos agem. É por isso que as ciências naturais e sociais são tão cruciais para o destino do nosso planeta, ao identificar as causas sociais da mudança climática e outros desafios globais, mapear seus impactos humanos, calcular custos e aconselhar medidas políticas. As ciências naturais e sociais devem ajudar a medir, interpretar, avaliar, negociar e organizar – e, claro, também ajudar a preservar – a diversidade humana e a cultura.

O Iluminismo não foi uma Idade de Ouro imaculada – algumas vezes foi um despotismo esclarecido; em outras, a luz só era visível porque havia também vasta escuridão. A ciência e a pesquisa, porém, estão entre as coisas mais fantásticas que os humanos aprenderam a fazer juntos – ideias são desenvolvidas e transmitidas ao longo de todas as gerações, e conceitos são trocados cruzando todas as fronteiras. Para assegurar suas contribuições ininterruptas, um re-esclarecimento é necessário, ou seja, a crença nos procedimentos universais de produção e transmissão do conhecimento, e uma ética universal para sua aquisição e aplicação. Uma voz global pela ciência deve esclarecer o público, avaliar eticamente como o conhecimento pode ser obtido, publicado e aplicado – e falar a verdade ao poder.

Agradecimentos

Este texto foi escrito durante a reunião conjunta do International Council for Science (ICSU) e do International Social Science Council (ISSC) em Taipei, em 25 e 26 de outubro de 2017, onde se decidiu fundi-los no International Science Council em 2018. Agradeço a Thomas Reuter pelos comentários construtivos. (Mimeo: The Fafo Foundation and The Department of Law, The Norwegian Business School).

Notas

1 Optamos por manter as duas formas de tradução mais correntes da expressão Aufklärung, aqui empregada ora para referir o período histórico mais conhecido como Iluminismo, ora, no sentido da expressão familiar da língua alemã, para referir o processo histórico-cultural de Esclarecimento, por meio do qual uma pessoa vence as trevas da ignorância e do preconceito em questões de ordem prática (religiosas, políticas, sexuais etc.). [N.T.]


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