Futuros Passados

Este texto, que a Revista Brasileira de Sociologia agora publica, foi escrito como notas de aula por Antônio Luiz Paixão em 1981. Além do interesse pelo conteúdo (lições de metodologia com exemplos da sociologia do crime e do desvio), ele é um documento da prática da sociologia: da reflexão e da elaboração que precedem uma aula. Numa época em que a publicação é supervalorizada, é bom lembrar desse importante espaço de formação onde se desperta (ou não) o gosto por uma profissão.
Durante a pandemia, em que tivemos que ficar mais em casa, encontrei-o junto a outras notas do Paixão, escritas em papel almaço, sobre a minha dissertação. Ambos trazem a marca de uma época e de um estilo de orientar e de dar aula, mas também do estilo peculiar do Paixão de ensinar, sempre se valendo de exemplos de outras pesquisas, mas também da vida cotidiana e dos acontecimentos da vida pública. Na sala não eram todos os alunos que gostavam do seu estilo, alguns tinham dificuldades de acompanhá-lo dada a rapidez da sua fala que apenas seguia o ritmo do seu pensamento, além das piadas, que exigiam uma sintonia com o tempo presente.
Não foi uma pessoa comum, e talvez por isso mesmo, despertou em muita gente o prazer por uma aula, o envolvimento com a pesquisa e também com a sociologia que se fazia fora dos ambientes institucionais. Se guardei por tantos anos este texto foi porque com ele aprendi certas coisas que até hoje me inspiram, avaliação corroborada pela revista ao decidir publicá-lo.
Luciana Teixeira de Andrade
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O que pretendo dizer aqui tem pouco a ver com o lado tecnocrático da montagem do projeto de pesquisa. Digo tecnocrático porque, em grande parte, montar um projeto de pesquisa é seguir as determinações de algum pacote – temos o do CNPq, o da FINEP, o da FUNDEP etc. e tal, e o que temos que fazer é cumprir o ritual que nos é exigido – distinguir, por exemplo, como se isso fizesse sentido, objetivo de relevância ou teoria de método, ou objeto de objetivo. Acho, como pesquisador, que estas distinções são feitas no ato de montar o projeto e não devem, de forma alguma, tomar o tempo do pesquisador.
Este deve ser melhor empregado na discussão de algumas questões substantivas que afetam a natureza e não a forma do projeto de pesquisa. Há vários anos atrás, um grande sociólogo, Max Weber, atribuiu ao conhecimento científico à tarefa de desencantar o mundo. Isso significava para ele – e para nós – que, a partir da atividade prática da pesquisa sobre o real, não se fazia mais necessário apelar para meios mágicos de pacificação dos espíritos para que pudéssemos alcançar resultados esperados. Bastava aplicar uma técnica – a ciência – a um objeto e alcançaríamos a previsão – algum cálculo de probabilidade de – dadas tais ou quais condições – alcançarmos algum resultado esperado.
O que eu quero hoje é discutir com vocês alguns problemas que afetam o desencantamento do mundo social. O primeiro deles tem a ver com a tessitura deste mundo, com o que, nos livros-textos de metodologia aparece como o objeto de pesquisa. O segundo refere-se às estratégias de abordagem ou de geração de conhecimento sobre este mundo – trata-se, é claro, da questão do método. O terceiro, um pouco mais complicado, diz respeito às relações entre produto do conhecimento e constituição do mundo social – e aqui volto a um outro tema weberiano, a ideia da eterna juventude das ciências sociais.
I - Problemas de construção do objeto
Acho que ninguém discorda da ideia de que o processo de pesquisa se inicia com algumas perguntas sobre alguma “realidade” – eleitores de classes sociais diferentes votam diferente? O crime das grandes cidades é diferente do crime rural? Por que será que pessoas da mesma classe social tendem a andar juntas?
O problema é que estas perguntas não ocorrem apenas ao sociólogo – pessoas comuns, leigos, também lidam com esses problemas. Um excelente ponto de partida para um projeto de pesquisa tem sido indagar sobre educação como condição para mobilidade social – indivíduos procuram a universidade porque esta é, entre outras coisas, uma avenida para ampliação de status, renda e prestígio. Ora, o garçom do meu botequim justifica os diferenciais de status, renda e prestígio entre a ocupação dele e a minha ocupação por educação. Ele sabe também que apenas nas novelas de televisão – ou em casos excepcionais – garçons se casam com filhas de proprietários – ele sabe, por experiência própria, que classes sociais são quase-castas. O que estou dizendo, em outras palavras, é que o cientista social compartilha com o leigo um mesmo estoque de conhecimentos sobre o mundo real. Daí a pergunta: mas para que perder tempo descobrindo o que todo o mundo já sabe? Ou daí, para que eu encontre justificativas para os altos – em termos relativos – investimentos que a sociedade faz em nossa profissão, é necessário que eu prove a esta sociedade que as coisas sociais não são como ela pensa que são – o sociólogo empírico deve ser contraintuitivo.
Dou um exemplo da minha própria pesquisa. Sociólogos, leigos e policiais acreditam que marginalidade social e criminalidade são fenômenos que mantém entre si relações causais. Se eu examino as estatísticas sobre crimes e criminosos, eu comprovo esta relação – marginais sociais e marginais policiais são os mesmos. Entretanto, uma outra pergunta me ocorre – até que ponto estatísticas oficiais refletem a magnitude e a distribuição do fenômeno criminoso na sociedade? Eu sei que vítimas muitas vezes não se queixam, que criminosos não são identificados, que certos tipos de fraudes e trambiques – tieppagens,1 por exemplo, ou loteadores clandestinos – dificilmente chegam ao noticiário policial. Tudo isso cai fora de minha variável dependente – entretanto, os dados são nítidos: há uma elevada correlação entre marginalidade social e criminalidade.
Mas há outras maneiras de abordar o problema. Uma delas é voltar atrás e indagar, ingenuamente: mas o que é esta atividade social chamada crime? Crimes são atos antissociais, mas nem todos os atos antissociais constituem crimes (por exemplo, colar em provas é reparável, mas não chamamos a polícia para isso) ou há considerável disputa em sua classificação – se o código Penal atribui este caráter a atos como fumar maconha ou abortar ou fazer sexo na menoridade, públicos consideráveis tendem a considerar tais atos normais, até mesmo rotineiros. E não é inteiramente fora de propósito incluir na classificação de crimes coisas como poluir o ambiente, envenenar as pessoas com produtos químicos, deteriorar a qualidade de vida urbana, expor pessoas a perigos desnecessários através da utilização de veículos que escapam a regras mínimas de segurança etc., que não estão, definitivamente, catalogadas no Código Penal. O que estou dizendo é que há várias definições sociais de crime e não o crime, ou melhor, que o Código Penal é uma definição social do crime – atos reconhecidos como antissociais pela autoridade pública, pelo Estado. Assim, há que corrigir nossa proposição: há uma nítida correlação entre marginalidade social e o crime oficialmente definido e detectado. E mais: se a definição oficial de crime incluísse poluição, tieppagem etc., esta correlação não seria tão nítida, forte e positiva.
Ora, esta pluralidade de definições sociais de crime me permite algumas indagações sobre o que constitui o objeto de minha investigação. Se os dados existentes – estatísticas sobre crimes e criminosos – são dados sobre uma definição social do crime e não sobre o crime, na verdade, o que eu estou estudando? Eu suspeito que estou estudando uma interpretação do crime – aquela que me é transmitida pelo Código Penal e pelas organizações que cuidam de sua implementação prática – a polícia e os tribunais. Acho que eu posso dizer que aquelas estatísticas são o produto de processos sociais de filtragem – identificação e processamento de possíveis autores de crimes em amostras previamente selecionadas da população – e posso ir em frente estudando esses processos.
Vou procurar explorar minha conclusão – que estou investigando uma interpretação de um fato e não o fato, como pensava fazer. O que isto quer dizer? Em primeiro lugar, que investigar o fato consiste na possibilidade de trabalhar com uma descrição literal do fato – ou seja, eu devo supor que o significado do fato é estável e independe das circunstâncias de sua produção. Isto, naturalmente, torna possível a intersubjetividade que valida o conhecimento científico. O que acontece com descrições de crime?
elas variam temporal e contextualmente e também socialmente;
elas refletem posições ideológicas dos definidores etc.
Logo, o que temos são interpretações sociais sobre a correta categorização de atos sociais ao longo de um contínuo – do normal ao patológico, do legal ao ilegal etc. O que constitui o objeto da investigação, portanto, não é o crime, mas (a) os processos interpretativos que tornam possível a categorização de atos como criminosos; e (b) as consequências da categorização desses atos e dos indivíduos que os praticam – hierarquias de credibilidade, exercício de poder etc.
Isso não quer dizer que não existiam atos “criminosos” como furto, roubo ou homicídio e atores que cometem estes atos – simplesmente, nessas categorias há uma intersecção entre critérios de senso-comum e critérios legais do Estado. Nem estou sugerindo que pessoas são vítimas de definições sociais ou interpretações: facas, garruchas e escopetas são tão reais quanto os atos e suas interpretações pelos membros da sociedade. Retomando os diversos temas, o que eu quis sugerir nesta breve discussão foi: (a) que o pesquisador divide, com os demais membros da sociedade, um estoque de conhecimento de senso-comum sobre esta própria sociedade – tanto o teórico das classes sociais quanto o migrante bem-sucedido e o aristocrata decadente devem saber bastante sobre a estrutura de classes e os canais de mobilidade ou precipitação sociais existentes na sociedade; (b) que, para escapar das suspeitas de trivialidade (a “compra” teórica de explicações práticas dos membros), o pesquisador deve, fundamentalmente, analisar os métodos que membros usam na construção de interpretações de fatos.
Vou explorar mais este último ponto, voltando ao exemplo de minha pesquisa sobre criminalidade e violência. Tenho as estatísticas policiais – ocorrências registradas, crimes cometidos e prisões efetuadas. Como estes dados são reunidos? De duas formas: (a) Vítima + Ocorrência + Investigação; e (b) Observação do Policial + Ocorrência + Detenção. Minhas estatísticas resultam de um processo de interação entre vítimas, policiais e suspeitos e/ou autores de crimes. Desse processo resulta um fenômeno substantivo – a implementação da justiça – e um recurso metodológico – dados sociológicos. Especular sobre o significado do dado é também explicar um fenômeno – a distribuição da justiça na sociedade brasileira (e, incidentalmente, comparar meus dados com dados argentinos ou norte-americanos é explicar a distribuição da justiça em sociedades classistas). Isto porque dado e fenômeno resultam da mediação entre ações e situações que merecem investigação e conclusões sobre o status legal dessas ações e situações exercidas pelas interpretações policiais de umas e outras. E estas interpretações implicam no uso de categorias legais (transformação de ações em artigos do Código Penal) e no uso – nem um pouco surpreendente – de teorias sociológicas (motivações da ação). Mas a explicação dessas interpretações nos leva diretamente à questão do método.
II - As várias lógicas de explicação e da descoberta
Livros de metodologia e técnica da investigação nos ensinam várias coisas interessantes. Geralmente, eles começam com uma discussão epistemológica que consiste em: (a) discussões de concepções da ciência (conhecimento acumulado, arma de transformação social) e (b) lógica da investigação - Teoria + Hipóteses + Teste + Refutação/Aceitação. A partir daí, não há muita diferença entre um livro de métodos e técnicas e um livro de receitas de cozinha: como testar hipóteses, como elaborar questionários, como entrevistar pessoas. Entretanto, tudo isto aparece para mim como a indicação tempero à vontade ou sal a gosto numa receita de comida para quem nunca cozinhou. Não se trata, como poderíamos supor, do fato de livros de metodologia geralmente serem escritos por velhos pesquisadores experientes, que passam a mão na cabeça de nossos problemas de jovens pesquisadores inexperientes e dizem – “Meninos, eu vi”. É que eles nos transmitem uma interpretação charmosa de nós mesmos – nós nos vemos neles com aprovação de uma ciência “normal” (Kuhn), que avança seja nos ombros dos gigantes, seja pela antevisão da superação das contradições da realidade. E parte deste avanço é a codificação dos métodos e técnicas de pesquisa: qualquer problema evoca uma teoria (empírica ou exploratória) que contém as hipóteses que o solucionam. Esta hipótese por sua vez, contém em si as técnicas que a relacionam com o concreto – conceitos, variáveis e instrumentos. Entretanto, qualquer pesquisador sabe que esta lógica não é a lógica que ele aplica em sua pesquisa – embora seja esta a lógica que transparece em seu relatório de pesquisa – ou em seu projeto de pesquisa.
Não se trata de má-fé. Vou me explicar voltando ao meu problema de pesquisa de polícia e bandido. Uma situação bastante típica em delegacias é uma vítima chegar lá e dizer – “arrombaram minha casa”. O investigador pergunta onde, quando e como. Onde = “quem são os vagabundos que geralmente circulam por ali”; quando = “quais deles estão soltos ou possivelmente em ação naquela semana”; como = “quem, dentre eles, arromba naquele estilo”. Resulta daí um suspeito – e o próximo passo é sua localização: se é o X, ele deve estar na casa de fulana, pois faz parte de seus hábitos transar com mulher de vagabundo preso e o marido dela dançou em São Paulo. Se o X está na casa de fulana, ele é detectado e, através de uma conversa, o caso é ou não é esclarecido. Chegando na Delegacia, esta investigação é transformada em inquérito: Ocorrência + Inquirição das Testemunhas + Laudos Técnicos + Depoimento do Suspeito + Apresentação das Evidências de Culpa + Enquadramento do Culpado nos Artigos correspondentes aos delitos do Código Penal. O que estou dizendo é que a lógica dos livros de metodologia é exatamente igual à lógica do inquérito – formalizada, decomposta em passos necessários que vão da escolha do marco teórico à decisão quanto à refutação ou aceitação da hipótese. Esta é a lógica reconstruída do projeto, do relatório final e da idealização do livro-texto. Como a lógica do inquérito, ela encobre e mascara a lógica-em-uso do investigador (policial ou científico), ou seja, o conjunto de meias teorias, intuições, introspecção, talento e sorte que configuram o quotidiano e a rotina da investigação científica. Mais do que a aplicação criteriosa de passos e etapas necessárias ao conhecimento, a atividade prática de pesquisa assemelha-se a uma pescaria, onde a regra central é fisgar o peixe – seja de que modo for.
Assim, dificilmente a receita do bom questionário resulta na construção do bom questionário – porque a receita supõe que já foi resolvido o problema do significado, da linguagem e do consenso entre a amostra e o pesquisador (estou me referindo à mensuração de atitudes – para variáveis de base – públicas e permanentes, tudo bem). Da mesma forma, a entrevista. E a observação.
Chegamos a uma abordagem do método que permite a descrição de alguns dos dilemas com que se defronta a ciência “normal” da realidade social: (a) a ortodoxia metodológica (expressa na lógica reconstruída dos artigos e dos manuais) supõe o cientista armado de teorias que definem as categorias codificadas de resposta dos objetos – e o produto da prática desta ortodoxia é a esterilidade que caracteriza tantas áreas da nossa ciência; e (b) a incapacidade desta ciência “normal” de agregar resultados de pesquisas de natureza mais descritiva. Isso porque a pretensão da ciência “normal” implica em teorizar em cima de dados insuficientes e a consequência é a busca, pelo pesquisador, de dados que se ajustem àquela teoria. Até o ponto em que começam a surgir evidências de que as coisas não são tão claras assim – aparecem fatos que não se encaixam na teoria, casos que negam a teoria, correlações inesperadas e inexplicáveis etc. etc.
Assim, eu acho que é necessário investir em outra perspectiva para a discussão dos problemas da descoberta e da explicação em nossa ciência. Para colocá-la em termos tentativos:
deixar de lado pretensões prematuras de ciência normal – precisamos de melhores dados para podermos teorizar melhor;
o “modelo” de investigação talvez seja este:
Uma objeção imediata a esta proposta vem, evidentemente, de tradição quantitativa – este programa se adaptaria às orientações de natureza etnográfica. Tudo bem – mas a mesma sensibilidade ao esgotamento de um modo institucional de fazer ciência aparece nas tentativas de compatibilização de técnicas de construção de modelos causais com proposições teóricas enfatizando a abertura, complexidade e indeterminação nos sistemas sociais, que tem levado à convergência entre “quantitativos” e marxistas como Wallerstein, por exemplo.
III - De volta ao mundo
Para dizer numa frase, o que estou propondo é que respeitemos, a nível da metodologia, a natureza do fenômeno da produção de conhecimento – para, inclusive, não perdermos tempo, energia e dinheiro na solução de quebra-cabeças já resolvidos ou na busca de saídas em becos-sem-saídas. Entretanto – e este é um ponto fundamental, mesmo para fechar nossa conversa – não acredito que a saída que vislumbrei leve ao desencantamento do mundo social (no sentido de incremento na previsibilidade de eventos e comportamentos). Isto por causa de algumas outras propriedades do mundo social e de seus habitantes (inclusive nós, que indagamos sobre suas astúcias) como, por exemplo, (a) a realidade social é aberta, ao contrário do que assumem positivistas ingênuos e marxistas populares; e (b) a lógica de explicação de seu sistema de causalidades está contaminada pela subjetividade dos agentes sociais. Assim, este mundo institucionaliza invenções e as subverte. Nesse sentido ele é sempre novo e a ciência que se ocupa de explicá-lo recebeu “o dom da eterna juventude” (Max Weber).
Notas