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A Sociologia como afirmação1
Florestan Fernandes
Florestan Fernandes
A Sociologia como afirmação1
Revista Brasileira de Sociologia, vol. 9, núm. 21, pp. 260-293, 2021
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A Sociologia como afirmação1

Florestan Fernandes
Revista Brasileira de Sociologia, vol. 9, núm. 21, pp. 260-293, 2021
Sociedade Brasileira de Sociologia

Este artigo, ora republicado pela Revista Brasileira de Sociologia, saiu originalmente na Revista Brasileira de Ciências Sociais da Faculdade de Ciências Econômicas (FaFi) da Universidade Federal de Minas Gerais, no volume II, nº 1 de março de 1962. Trata-se do discurso de abertura do II Congresso Brasileiro de Sociologia, realizado em Belo Horizonte no dia 12 de março, pelo seu presidente, Florestan Fernandes.

O II congresso da SBS estava programado para se realizar em 1956, mas por questões de cunho político e institucional, só conseguiu se efetivar oito anos após o primeiro. A diretoria eleita em 1962 foi atropelada pelo golpe civil-militar de 1964 que desarticulou a SBS.

O III congresso, de reorganização, realizou-se apenas 25 anos depois, em 1987, num contexto de redemocratização e expansão institucional da formação e da pesquisa no país. Em sua abertura, Gabriel Cohn retomou o texto de Florestan, destacando os novos desafios da disciplina em “A Sociologia como interrogação”, agora com os novos desafios colocados numa sociedade que se modernizou rapidamente sem mexer, contudo, na estrutura das desigualdades sociais que, ao invés de diminuírem, aumentaram.

Apesar das grandes mudanças na sociedade brasileira nestes últimos 58 anos, o texto de Florestan apresenta uma atualidade desconcertante. Argumenta que a adoção dos critérios de cientificidade na produção do conhecimento não estão dissociados de um determinado padrão de civilização e destaca um horizonte cultural sufocante e um forte irracionalismo “ligados à herança cultural pré-científica, ou de complexo jogo dos interesses sociais que limitam o aproveitamento dos dados e das descobertas da ciência às conveniências de manipulação do poder pelas camadas sociais dominantes, sejam elas quais forem”. As sociedades humanas não passam por um processo evolutivo, linear. A expansão da racionalidade e do conhecimento científico estão sujeitos de forma permanente a tensões e conflitos com fatores irracionais e retrógrados presentes na sociedade e o avanço da ciência depende da consolidação da ordem social democrática. Sociologia é o conhecimento crítico dos fenômenos sociais e, sem liberdade, esse conhecimento não prospera. O ano era 1962, mas em 2021, nosso horizonte está marcado pelas sombras do obscurantismo, do reacionarismo político, social e cultural. Os tempos sombrios estão de volta.

Ao lado dessa percepção preocupante do contexto vivido, outras questões são explanadas no texto vinculadas à formação, ao ensino e à atuação do sociólogo, evidenciando uma disciplina então em processo de afirmação, mas indicando desafios ainda a serem enfrentados. A maior parte delas, ainda está presentes nos debates da sociologia brasileira, exigindo sua releitura para melhor qualificar esses debates. Um texto se torna clássico pela perenidade das questões que sugere. Este texto evidencia essa condição.

Jacob Carlos Lima

Presidente da Sociedade Brasileira de Sociologia

***

Reunimo-nos aqui para debater os resultados e as perspectivas do desenvolvimento da sociologia no Brasil. Embora ainda seja modesto o caminho percorrido, são várias e complexas as tarefas e as obrigações com que nos defrontamos. Para enfrentá-las com êxito, espírito construtivo e responsabilidade científica, impõe-se que façamos um esforço de reflexão e que definamos, com a clareza possível, os nossos compromissos perante o futuro. Eis porque me propus o dever de discutir certas questões de caráter geral, sobre as quais teremos de nos entender, se quisermos dar à sociologia a posição que lhe compete, no quadro de uma civilização baseada na ciência e na tecnologia científica.

Ciência e civilização

O trabalho do cientista, qualquer que seja o ramo de investigações a que se dedique, requer certas condições especiais. Algumas dessas condições afetam, diretamente, a pessoa, o modo de ser e o comportamento do cientista, pelo menos no que diga respeito à realização do seu métier. Outras condições relacionam-se com a situação do ambiente cultural e às possibilidades que ele abre à investigação científica, às aplicações das descobertas da ciência na vida prática ou na educação e ao desenvolvimento persistente de concepções racionais, calcadas nos requisitos e nos dados de saber científico. Daí decorre que não se pode conceber o “progresso da ciência” como um processo intelectual autônomo, isolado e autossuficiente. Certos procedimentos científicos são exploráveis em qualquer contexto sociocultural, especialmente enquanto se tome em consideração a habilidade necessária à reprodução de certos experimentos ou à aplicação correta das normas da explicação científica a determinados fatos. No entanto, a partir do momento em que se pretenda explorar sistematicamente os critérios do conhecimento científico na produção do saber original, na modernização da tecnologia e na educação, torna-se impossível dissociar a ciência de determinado padrão de civilização.

Vendo-se as coisas desse ângulo, parece evidente que precisamos efetuar radicais alterações na orientação que vem sendo seguida, na transplantação e na assimilação do saber científico. O nosso esforço se concentrou, até o presente, em alvos nitidamente imediatistas e estreitos. Os especialistas nos vários campos da ciência, individual ou coletivamente, preocuparam-se, de maneira absorvente ou exclusiva, com dois objetivos centrais: 1º) a formação de condições por assim dizer materiais e profissionais de trabalho, que assegurassem a expansão de “suas” disciplinas; 2º) a criação e o fortalecimento, segundo móveis unilaterais (e por vezes agressivos), de instituições que pareciam facilitar a consecução desse fim. Em consequência, o progresso das investigações científicas se deu de forma desordenada, em prejuízo para o equilíbrio do sistema das ciências, para o aproveitamento racional dos recursos financeiros ou humanos investidos no processo e para a influência dos cientistas na transformação do ambiente cultural. Por incrível que pareça, poucas figuras, entre os “grandes cientistas brasileiros”, deram a devida importância aos influxos negativos do atraso cultural do País, verdadeira fonte de estrangulamento do crescimento da investigação científica em nosso meio; e muitos poucos perceberam os inconvenientes de um progresso desigual dos vários ramos da ciência. Cabe aos cientistas sociais sugerir novos pontos de vista, quando menos em nome dos dados da experiência cotidiana. Ninguém ignora mais, depois da fundação de escolas superiores isoladas e de universidades, em regiões econômica, social e culturalmente distintas, que as condições do ambiente interferem negativamente na esfera de trabalho do cientista, na avaliação produtiva da importância da ciência no mundo moderno e no uso socialmente construtivo de suas contribuições teóricas ou práticas. O horizonte cultural predominante é sufocante, não contendo um mínimo de noções que permitam estabelecer um intercâmbio ativo entre o leigo e o cientista. Ao contrário, o grau de secularização das concepções dominantes revela-se incapaz sequer para harmonizar os dois universos, permitindo a emergência contínua de confusões, mal-entendidos e conflitos que dificultam seriamente os avanços reais da pesquisa científica, da educação fundada na ciência e da modernização tecnológica.

Ora, tudo isso recomenda que encaremos o desenvolvimento da sociologia à luz do padrão de civilização que fez da ciência, da tecnologia científica e da educação baseada na ciência os fulcros da filosofia social do homem moderno. Em primeiro lugar, é preciso dar o devido valor a um certo grau uniforme de expansão de todas as ciências, que conseguimos integrar ao nosso sistema institucional. Isso pressupõe que seja pouco relevante um forte progresso isolado de certo setor, desacompanhado de êxitos equivalentes na reorganização do sistema educacional, de modo a dar-se um mínimo de preparação geral congruente com a mentalidade científica, e na expansão das demais ciências, que devem, idealmente, tender para um ritmo relativamente balanceado de crescimento. Em segundo lugar, é preciso não ignorarmos que todos os agentes humanos participam dos processos pelos quais a herança social se modifica e se enriquece. A ideia de que a “contribuição básica” do cientista deve ser medida somente através de suas descobertas científicas possui nítido caráter falacioso. Os papéis intelectuais dos cientistas obrigam-nos a fazer contínuas opções práticas em sua esfera de trabalho, as quais ligam sua capacidade inventiva ao fluxo de inovação institucional. A própria modificação dos padrões de trabalho, observados pelos investigadores, forçam-nos a inventar novos modelos de organização institucional das atividades associadas à pesquisa, à interpretação dos dados, à verificação e à comunicação das conclusões. Doutro lado, as repercussões das descobertas da ciência na vida prática são variáveis. O planejamento de instituições de ciência aplicada e o envolvimento institucional dos cientistas em programas de reforma educacional, planos de saúde pública, projetos de reconstrução econômica etc., dependem naturalmente de oportunidades oferecidas pelo meio social ambiente. Os cientistas precisam estar alertas diante de todas essas ocorrências, para pôr suas energias intelectuais e morais a serviço da ciência e da civilização que retira dela as forças que promovem o seu aperfeiçoamento contínuo.

Portanto, o sociólogo brasileiro de nossos dias defronta-se com exigências intelectuais que transcendem os limites confinados de sua especialidade. Como e enquanto sociólogo, cabe-lhe precípua e especificamente contribuir para o avanço da pesquisa sociológica no Brasil. Se quiser enfrentar essa obrigação com espírito íntegro, imaginativo e criador, porém, terá de compreender que a sociologia não pode medrar onde a ciência é repelida, como forma de explicação das coisas, do homem e da vida; e que a ciência só pode expandir-se, efetivamente, entre os povos cuja civilização liberte a inteligência e a consciência do jugo do obscurantismo. Com isso, o que passa a ser essencial, numa certa fase de suas obrigações perante a ciência e a sociedade, vem a ser a conquista e a defesa de condições materiais e morais do trabalho científico. O combate ao atraso cultural inscreve-se entre seus papéis intelectuais, como e enquanto cientista (e não simplesmente como e enquanto cidadão), porque seu ponto de partida exige dele que atue como agente de inovação institucional, ao mesmo tempo que proceda como produtor de uma modalidade do saber científico.

Não obstante, cumpre não ignorar as implicações e natureza do pensamento científico. Como agente humano da inovação cultural, o cientista carrega consigo um marco especial de avaliação das ocorrências e das probabilidades. Sem ignorar as obrigações decorrentes de suas responsabilidades cívicas e morais, como “cidadão” e como “homem”, compete-lhe discernir, no cenário histórico, o que convém e o que não convém ao progresso real da ciência e do padrão correspondente de civilização. Os motivos e os fins do cientista devem relacionar-se tanto em termos de consideração imediatistas quanto em função de objetivos remotos, com a emergência e a consolidação do horizonte cultural inerente à concepção científica do mundo. Atrás de qualquer opção que possa fazer conscientemente, sempre deve estar o mesmo alvo ideal: o nível de integração da civilização fundada na ciência e na tecnologia científica. Por isso, ele precisa possuir suficiente audácia e integridade intelectuais para repelir as pressões sociais que resultem ou do influxo de fatores irracionais, ligados à herança cultural pré-científica, ou de complexo jogo de interesses sociais que limitam o aproveitamento dos dados e das descobertas da ciência às conveniências de manipulação do poder pelas camadas sociais dominantes, sejam elas quais forem. Num mundo instável como o nosso, com frequência é possível associar os interesses sociais dos cientistas com os interesses sociais de outros círculos humanos. Em sociedades econômica e socialmente subdesenvolvidas, essa associação atinge limites extremos. Contudo, muitas vezes ocorre que as coincidências de centros de interesses homogêneos apresentem fronteiras limitadas. Tome-se, como exemplo, os requisitos essenciais à expansão da ciência no Brasil: a consolidação da ordem social democrática e o uso do planejamento como fator de orientação ou aceleração da mudança social. Para certos círculos sociais, esses alvos ideais definem, por si mesmos, o desfecho final do processo histórico-social; para os cientistas, eles constituem meras condições (ou meios) para atingir outros fins, aparecendo, portanto, como o início de um processo histórico social mais amplo.

É deveras importante que o cientista se proponha os alvos ideais que persegue, em termos do padrão de integração da civilização baseada na ciência e na tecnologia científica, porque de outro modo ele fica desarmado perante as iniciativas dos grupos que manipulem o poder e orientem o uso que se venha a fazer dos dados ou das descobertas da ciência. Em nossos dias, proliferam acusações ao cientista, à ciência e à tecnologia científica – que desmoralizam o saber científico e o seu agente humano –, mas que deviam ser endereçadas a outros agentes sociais e a diversos tipos de saber, variavelmente extra e anticientíficos. Graças à circunstância de os cientistas se omitirem diante de utilizações irracionais e destrutivas dos dados e das descobertas da ciência, e ao fato de eles não terem meios para alterar uma situação que lhes retira o controle das decisões políticas a respeito do modo de utilizar o conhecimento científico, muitas questões essenciais para o crescimento presente e futuro da civilização baseada na ciência e na tecnologia científica foram tomadas segundo critérios irracionais, ditados por interesses sociais egoísticos, por inclinações conservantistas e por agentes humanos que odeiam visceralmente o espírito científico. Em países subdesenvolvidos, os cientistas encontram certa receptividade, em virtude da propensão geral para a valorização dos frutos da prosperidade econômica, do progresso cultural e do desenvolvimento social. Ainda assim, os alvos ideais legitimamente fundados na expansão da civilização baseada na ciência e na tecnologia científica colidem, abertamente, com os motivos e os fins de círculos sociais que desejam a mudança rápida e intensa, mas só dentro dos limites dos seus interesses sociais. Se o cientista não quiser converter-se em mero instrumento de grupos sociais poderosos, ele precisa ver claro onde os propósitos extracientíficos ameaçam e interrompem a marcha da civilização moderna.

Essas reflexões delineiam o quadro geral de avaliações e opções que devem presidir à produção científica e aos ajustamentos intelectuais do sociólogo no mundo em que vivemos. Houve uma época em que os cientistas sociais ignoravam, olimpicamente, as implicações morais de sua condição de cientista: hoje, não podemos manter esse alheamento. De um lado, porque nada justifica a convicção otimista do cientista da era liberal, segundo a qual a evolução progressiva do gênero humano se faria, fatalmente, na direção da racionalidade. O uso das técnicas culturais depende estreitamente da maneira pela qual os grupos localizados nas posições dominantes da estrutura de poder encaram suas responsabilidades e procuram servir a seus interesses egoísticos. Até a energia atômica chegou a ser aplicada destrutivamente contra comunidades humanas; e vários exemplos demonstram como técnicas ainda mais perigosas, de manipulação da vontade humana, são empregadas imoderadamente, pelas “democracias liberais” e pelas “democracias socialistas”. O próprio cientista tem de impor-se uma ética da responsabilidade científica e agir através de deliberações que ela pressuponha, mesmo à custa de um aumento potencial de conflitos com grupos empenhados na exploração egoística da ciência ou da tecnologia científica. De outro lado, porque atingimos um ponto crucial de expansão da ciência num mundo sujeito a contradições e a tensões vinculadas a fatores irracionais. Parece provável que os obstáculos à livre expansão do conhecimento científico tenderão a aumentar de intensidade, na medida em que se tornar cada vez mais claro qual será a alternativa: formas de saber obsoletas, herdadas do passado tradicionalista e pré-científico são condenadas ao abandono, convertendo-se em relíquias sem função. Daí, o antagonismo contra a ciência e a tecnologia científica propaga-se e acirra-se, paradoxalmente, onde ambas estão dando contribuições mais eficazes à reconstrução de ambiente pelo homem. Os cientistas sociais precisam preparar-se para opor-se, objetivamente, à recrudescência das “críticas espiritualistas” ou dos “ataques materialistas” aos papéis intelectuais que terão de desempenhar, nas sociedades que conseguirem adotar técnicas racionais de controle dos problemas sociais.

Na situação cultural do Brasil, essas reflexões possuem uma significação prática evidente. O que nos deve atrair, na experiência dos outros povos do mesmo círculo civilizatório, não são os processos históricos transcorridos, mas os processos potenciais, que não chegaram a transformar-se em “história”. Ou seja, em palavras diferentes, o Brasil (como as demais nações subdesenvolvidas) não deve propor-se, como ideal, reproduzir no presente o passado de outros povos, por mais opulento e fascinante que ele possa parecer. O que nos devemos propor a explorar, pois, são as potencialidades de desenvolvimento, em sua maioria apenas parcialmente alcançadas pelas “nações plenamente desenvolvidas”, do círculo civilizatório em cuja periferia está inserida a sociedade brasileira. Bem sabemos o quanto essas potencialidades de desenvolvimento dependem da expansão da ciência e da tecnologia científica; e o que representam, nesse quadro, o invento e a utilização de novas técnicas sociais, a serem forjadas com base nos dados e nas descobertas das ciências sociais. Para estarem preparados para os papéis intelectuais que serão chamados a cumprir, os cientistas sociais brasileiros não devem circunscrever sua imaginação científica e sua contribuição criadora às possibilidades incertas do momento atual. Eles precisam saber projetar essas possibilidades em diferentes níveis de reintegração da ordem econômica e social, igualmente realizáveis pelo homem através de comportamentos coletivos organizados. Se lhes é vedado escolher e predeterminar o rumo da história, nada impede que eles contribuam, positivamente para que as opções socialmente triunfantes logrem um mínimo de eficácia em um influxo dinâmico máximo na conformação do sistema civilizatório.

Ensino e pesquisa na Sociologia

É justamente nas áreas do ensino e da pesquisa que são maiores as oportunidades de inovação institucional. Há elementos perturbadores na situação em que nos encontramos, por causa da penúria de meios financeiros, pedagógicos e humanos. Mas os obstáculos não são insuperáveis e muitas condições ou fatores de ambiente são passíveis de mobilização positiva. Quando ingressei na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo, como aluno da seção de ciências sociais, em 1941, encontrei um ensino universitário de alto nível acadêmico. Para falar com franqueza, de nível excessivamente alto para as possibilidades intelectuais médias do aluno brasileiro, recém-egresso de um ensino médio assaz medíocre. Precisei fazer ingentes esforços para conquistar resultados precaríssimos e só lentamente consegui converter a presença física nas salas de aula em interação responsável. Não obstante, aquele ensino universitário, de padrão tão elevado e excepcional, não consultava nem as nossas ânsias de aprendizagem nem correspondia às nossas necessidades socioculturais. Ele visava, ao estilo europeu, formar o scholar típico, ou seja, uma figura que jamais encontraria clima de sobrevivência no Brasil, um tanto extravagante num meio que solicitava uma intelectualidade militante. A grave lacuna era visível até aos principiantes. Aquele ensino não preparava o estudante para nenhuma carreira e muito menos para a carreira científica. Mais tarde, no início de 1945, estreei precocemente e sem a necessária bagagem científica, nas atividades docentes. Então, tive meios para aquilatar as falhas oriundas do ensino recebido e para perceber que as coisas iam bem pior no setor da pesquisa. Nenhum recurso financeiro; nenhum estímulo e nenhuma orientação para o trabalho organizado; nenhuma possibilidade de pesquisa em equipe. O padrão de pesquisa explorado consistia na aventura pessoal. Alguém mais arrojado lançava-se a uma investigação, sem contar com nada além do tempo que dispusesse do próprio lazer e de algumas sobras do próprio salário. Raramente caía do céu uma oportunidade promissora, como aconteceu com a pesquisa sobre relações entre negros e brancos, suscitada pela UNESCO. Pois bem, nos anos subsequentes, assisti à paulatina correção parcial dessas dificuldades. Graças a arranjos entre o pessoal docente, o ensino tornou-se mais formativo, concentrando-se na transmissão de conhecimentos básicos e promovendo a iniciação gradual dos alunos no estudo e depois no uso das técnicas sociológicas de investigações. E embora ainda estejamos longe de ter as condições ideais de trabalho, dispomos junto à nossa cadeira de um grupo de pesquisadores e auxiliares de pesquisa, de algum equipamento para realizar investigações e um centro de pesquisas. Tudo isso representa o começo da superação definitiva do antigo padrão de pesquisa, que confinava pesadamente o alcance empírico e teórico de nossas investigações.

Esse simples exemplo revela o lado bom e o lado ruim da situação brasileira. A nossa herança intelectual é desfavorável e limitativa: o padrão brasileiro de ensino superior resiste tenazmente à modernização das técnicas pedagógicas, à utilização da pesquisa como recurso sistemático de aprendizagem e à incentivação de atitudes críticas entre os alunos. Mal preparadas para o ensino de cunho científico, as nossas escolas superiores também estavam desaparelhadas para a pesquisa científica original. Destruir o ponto morto existente nos dois níveis, do ensino e da pesquisa equivale a romper as barreiras institucionais que continham ou sufocavam toda e qualquer inovação. Mas, convém que se reconheça, iniciado o processo de renovação, tudo depende da tenacidade e da diligência dos que nele estejam envolvidos. As esperanças depositadas no ensino e na ciência são tão grandes, que as resistências cedem lugar a facilidades perigosas, que podem se voltar contra os inovadores como o feitiço contra o aprendiz de feiticeiro. Isso ilustra de maneira conclusiva a hipótese sociológica de que, em todas as situações culturais, operam simultaneamente forças adversas e forças favoráveis à mudança. Como, no caso, as forças favoráveis atuam num contexto institucional onde nossa liberdade de ação é máxima, parece claro que dispomos pelo menos de algumas condições essenciais para estabelecer e pôr em prática as inovações requeridas pelos alvos de trabalho escolhidos.

O fundamental vem a ser, portanto, a fixação desses alvos. Tomando ao pé da letra o paralelismo com os países plenamente desenvolvidos, alguns cientistas sociais pensam que deveríamos cultivar um padrão de ensino simplificado e estimular somente investigações sobre a situação histórico-social global, como se nos competisse acumular explicações comparáveis às que o conhecimento do senso comum produziu na Europa, no período de desintegração da sociedade feudal e de constituição da sociedade de classes. Segundo suponho, nada seria mais errado e perigoso. O conhecimento científico não possui dois padrões: um adaptável às sociedades desenvolvidas; outro acessível às sociedades subdesenvolvidas. Temos de preparar especialistas que sejam capazes de explorar, normalmente, os modelos de observação, análise e explicação da realidade, fornecidos pela ciência. Ninguém pode ignorar que é no setor do pensamento científico e tecnológico que o progresso das nações desenvolvidas se mostra mais rápido. Se quisermos atenuar ou superar a distância que nos separa dessas nações, o caminho é um só – conquistar pleno domínio das técnicas sociais modernas, entre as quais se incluem o pensamento científico e a tecnologia fundada na ciência. É possível atingir esse fim de vários modos. O que se afigura impraticável é romper o atraso econômico, social e cultural de outra maneira. Temos de formar especialistas de real competência em seus campos de trabalho, que suportem o confronto com colegas estrangeiros através dos critérios universais de avaliações da capacidade científica. Doutro lado, porém, parece irrefutável que precisamos formar tais especialistas segundo certa escala de grandeza. Não basta formar “um” ou “alguns” cientistas, mas um número relativamente grande de especialistas de alta qualidade. Um cálculo grosseiro mostrou-me que formamos, na Universidade de São Paulo, aproximadamente dez sociólogos num período de quinze anos. Esse número é irrisório! Teríamos de multiplicá-lo por cinco, no mesmo lapso de tempo, para podermos atender às necessidades mínimas que estão surgindo de pessoal qualificado para trabalhar em nosso campo, seja no ensino, seja na pesquisa, seja em ocupações de teor técnico.

Esse rápido bosquejo acentua que os problemas de ensino e da pesquisa, em termos das exigências de formação do pessoal altamente especializado, envolvem duas faces: uma qualitativa, outra quantitativa. O sistema educacional brasileiro dificulta a solução desse problema sob os dois aspectos. Só por acaso, jovens aptos para a carreira científica na sociologia chegam aos cursos de ciências sociais e os concluem. E, o que é pior, só por acaso eles são aproveitados produtivamente, ao terminarem os cursos. Seria preciso dispor-se de recursos especiais para a criação de um complexo sistema de bolsas e subvenções aos alunos promissores, que permitisse atrair maior número de candidatos bem dotados, mantê-los durante maior lapso de tempo em regime de treinamento supervisionado intensivo e retê-los em ocupações intelectuais em que suas energias pudessem ser aproveitadas de forma reprodutiva para a coletividade. Há quem tema semelhante política, alegando que ela fomentaria o aparecimento em massa de intelectuais condenados ao desemprego crônico e ao desajustamento. Tal risco parece ser discutível. Está claro que nem todos os candidatos bem sucedidos iriam devotar-se à pesquisa sociológica fundamental. O crescimento econômico tende a provocar a diferenciação e a intensificação da procura de jovens com formação científica básica em vários tipos de ocupações administrativas, técnicas e científicas. Aumentar a qualidade e a quantidade de especialistas nas ciências sociais seria uma condição crucial para se corresponder, ao mesmo tempo, às exigências de expansão da ciência pura e às necessidades de mão de obra altamente qualificada da economia.

O que se torna difícil é organizar o ensino da sociologia de modo a atender, simultaneamente, aos dois requisitos. Os recursos postos à disposição dos centros de formação de sociólogos têm se revelado insuficientes, forçando que se sacrifique o número à qualidade, ou vice-versa. Contudo, a questão não se resolveria pela simples multiplicação dos recursos financeiros, educacionais e humanos. No momento, antes de mais nada, temos de conseguir maior êxito e eficácia na utilização dos fatores mobilizados. Em outras palavras, primeiro seria preciso introduzir racionalidade no aproveitamento desses fatores; em seguida, poder-se-ia cogitar das formas de incrementá-los e de combiná-los segundo esquemas novos. O que caracteriza a situação brasileira, do ponto de vista da utilização dos recursos invertidos no ensino e na pesquisa, inclusive no campo das ciências sociais, não é só escassez, mas a escassez combinada ao desperdício. Não temos procurado ajustar a organização das instituições em que operamos para produzir o rendimento máximo possível, em regime de escassez permanente de recursos. O resultado fatal é óbvio: todo aumento de recursos se faz acompanhar de maior desperdício e, às vezes, até de sintomas de desorganização institucional. Para que isso não ocorra, antes de cuidar-se do aumento de recursos deve-se tratar do aproveitamento racional dos fatores mobilizados, o que redundaria em elevar a potencialidade de aproveitamento positivo limite dos recursos e energias absorvidas e proporcionaria um mecanismo para reduzir os efeitos negativos da penúria crônica de meios essenciais.

Deixando de lado outras questões, conviria ventilar dois temas gerais. Primeiro, o que diz respeito à orientação a seguir-se na organização do ensino básico a ser ministrado àqueles que pretendam devotar-se à pesquisa sociológica. Segundo, o que se refere ao modo pelo qual devemos colaborar, direta e ativamente, na expansão da pesquisa sociológica no Brasil.

Quanto ao primeiro tema, parece que temos trilhado um caminho impróprio, dando pouca atenção às necessidades peculiares de formação do cientista social propriamente dito. Procedemos como se o cientista devesse ser o produto ocasional de experiências intelectuais coordenadas externamente, no tempo e no espaço. O amadurecimento gradativo, associado inicialmente à escolarização, deveria ser o motor das opções dos jovens que sentissem o apelo da pesquisa sociológica e a ela pretendessem dedicar-se. Nada mais precário! Esse modelo de organização do ensino superior tem sido severamente criticado, mesmo em países onde as circunstâncias favorecem o seu aproveitamento eficaz, como sucede na França. O nível intelectual médio, o grau de isolamento dos intelectuais, a ausência de tradições universitária e científica, a falta de padrões de cooperação e de competição intelectuais firmemente estabelecidos e respeitados etc., reduzem drasticamente a eficácia daquele modelo de ensino superior no meio social brasileiro. Se não quisermos pura e simplesmente substituir o nosso antigo autodidata por um espécime indigesto de “erudito”, precisamos cortar o mal pela raiz, ajustando a preparação do aluno àquilo que ele deve aprender de fato, para tornar-se um pesquisador e um cientista.

Isso pressupõe a remodelação radical de nosso ensino das ciências sociais. É urgente dar maior amplitude, plasticidade e objetividade à formação teórica básica. Há certos conhecimentos fundamentais da psicologia, da sociologia, da economia, da antropologia, da geografia, da ciência política e da história que todos precisamos possuir. Mas, além de alterar as bases do ensino teórico elementar, temos de modificar também a orientação dada ao ensino em conjunto. Os candidatos que aspiram a converter-se em pesquisadores e cientistas sociais precisam adquirir familiaridade e habilidade no uso das técnicas de investigações, análise e interpretação. Isso requer um tipo complexo de aprendizagem, que promova sua iniciação no conhecimento do método científico, dos procedimentos teóricos e lógicos da investigação sociológica e, especialmente, das áreas em que se está processando o crescimento teórico da sociologia no presente. A aprendizagem organizada somente fornece o ponto de partida. Cumpre, no entanto, que o empuxão inicial seja seguro, colocando os aprendizes de sociólogo pelo menos em rotas certas. A experiência que amealhei, ao longo de dezessete anos de trabalho, com alunos de diferentes níveis e ambições intelectuais, levou-me à convicção de que devemos organizar estritamente a formação do pesquisador, embora respeitando e incentivando, naturalmente, suas propensões e capacidade criadora. No período incipiente da aprendizagem, não se deve ir além dos conhecimentos gerais básicos e do adestramento direto em técnicas de uso universal, como a entrevista, o questionário etc. A fase verdadeiramente crucial da preparação do pesquisador deve coincidir com o acesso aos cursos pós-graduados. Aí, convém estimular, nos dois primeiros anos, a complementação e o aperfeiçoamento no uso das técnicas de investigação e envolver o candidato num projeto completo de pesquisas, que ele possa conceber e levar a cabo, sob supervisão discreta ou insistente do orientador, conforme as circunstâncias. O estudo de comunidades ou de pequenos grupos parece ser o melhor expediente para levar o aluno a refletir sociologicamente, a aprender o respeito pelos dados de fato, a compreender e a praticar a objetividade, a descobrir a utilidade dos conceitos e teorias sociológicas, a perceber o valor das hipóteses e dos critérios pelos quais elas podem ser submetidas à prova, a adquirir habilidades na identificação, classificação e tratamento analítico das evidências relevantes para a descrição e a interpretação dos fenômenos considerados, a capacitar-se para lidar com totalidades e a construir tipos etc. Depois disso é que se poderia recomendar voos mais altos, em etapas mais avançadas de especialização, voltadas para a obtenção de graus acadêmicos. Se concedêssemos uns três anos a esse objetivo, ao todo lograríamos lançar as bases de uma carreira científica séria e iniciar o processo de formação da personalidade do cientista em cinco anos.

Quanto ao segundo tema, releva considerar que as perspectivas da pesquisa científica constituem uma função da valorização e do uso da ciência pela sociedade. Ficamos muito tempo presos a avaliações extracientíficas da sociologia, o que redundou em subestimação da pesquisa sociológica e na deformação do modo de concebê-la. As primeiras tentativas de coordenação de informações para análise assistemática ocorreram no último quartel do século XIX, como se infere das obras de autores como Tavares Bastos, Perdigão Malheiros, Nabuco ou Sílvio Romero. De lá para cá, passando-se pelas contribuições de Euclides da Cunha, Alberto Torres, Oliveira Viana, Gilberto Freyre, Caio Prado Júnior e tantos outros, ocorreram progressos sensíveis no uso e crítica de fontes, na elaboração interpretativa dos dados e na construção de explicações gerais. Contudo, só recentemente surgiu o afã de superar as limitações inerentes à pesquisa histórico-sociográfica, de explorar criadoramente a pesquisa de campo e de projetar as conclusões em contextos teóricos sociologicamente relevantes. Esse alargamento das possibilidades de trabalho foi terrivelmente mutilado nas primeiras tentativas, em virtude das condições em que as pesquisas eram projetadas e realizadas, pelo esforço de um investigador isolado e desamparado. Ainda assim, como atestam as contribuições pioneiras de Emílio Willems, aí se acha a fonte da revolução empírica e teórica por que passou a sociologia entre nós, nos últimos vinte e cinco anos. O passo que se impunha dar em seguida vem sendo ensaiado em alguns centros de investigação, com a evolução, para planos de pesquisas cuja execução depende de grupos de investigadores. Na medida em que tivermos êxito nesses desenvolvimentos, teremos também superado as limitações empíricas e teóricas da pesquisa baseada na capacidade do investigador isolado. Na verdade, mau grado sua importância há alguns anos atrás, este tipo de pesquisa ergueu-se como uma espécie de barreira ao progresso da investigação sociológica na direção de problemas teóricos mais amplos.

Esse breve resumo sugere que estamos em vias de atingir uma etapa de plena maturidade científica, no que concerne à pesquisa sociológica. Por isso convém fazer-se algumas ponderações, que nos ponham ao abrigo de medidas apressadas. Primeiro, não devemos, de maneira alguma, abolir o padrão individualista de pesquisa. Ele é muito útil, como recurso didático (no treinamento de alunos em cursos de especialização), devendo ser explorado inteligentemente na fase formativa de preparação do sociólogo. Doutro lado, na situação brasileira, ele pode ser usado frutiferamente, por vários tipos de cultores da sociologia, quer os resultados das investigações sejam ou não aproveitados na obtenção de graus acadêmicos. Por fim, não são poucos os problemas sociológicos que podem ser conhecidos empiricamente e esclarecidos teoricamente através do esforço pessoal do investigador isolado. Essas razões demonstram que não se deve considerar com argumentos simplistas a importância de tal padrão de pesquisa empírica sistemática. Segundo, a pesquisa em equipe pode tornar-se muito cara e haveria motivos ponderáveis para não incrementarmos, por enquanto, algumas de suas modalidades. Todo sociólogo deve ter a ambição de contribuir para o desenvolvimento teórico da sociologia. Mas, existem vários meios para atingir esse desiderato. Segundo suponho, na escolha dos objetos das pesquisas sociológicas devemos dar prioridade aos assuntos que são mais relevantes para o conhecimento da sociedade brasileira, ao controle dos problemas sociais com que nos defrontamos etc. Operando nessas áreas, poderemos pôr à prova muitas explicações clássicas na sociologia e fazer descobertas de real alcance teórico. O que se torna essencial é evitar o fascínio por certos tipos de trabalho, que só podem ser desenvolvidos por centros dotados de vastos recursos, e a inclusão precoce do sociólogo brasileiro na competição irrestrita com os sociólogos estrangeiros. A pesquisa quantitativa e sociométrica, por exemplo está na moda nos Estados Unidos. É provável que ela nos ajude a introduzir maior rigor na formulação das teorias sociológicas, graças à notação matemática ou logística. Muitos especialistas jovens, movidos pela ambição de converterem-se em Newtons da sociologia, lançam-se ardorosamente a esses campos de investigação. Nem por isso devemos nos precipitar. Pode muito bem ocorrer que a matemática não seja tão importante para a integração dos conhecimentos teóricos, como se deduz via Darwin. Acresce que não dispomos de recursos materiais e humanos para explorar, consequentemente, semelhantes alternativas de pesquisa em grupo. E, o que é deveras mais importante, parece evidente que elas não nos esclareceriam mais e melhor a respeito dos aspectos da sociedade brasileira, que temos empenho de conhecer com urgência.

Essas conclusões sublinham um ponto de vista pessoal e retificável. Atrevo-me a expô-las com franqueza porque acredito que devemos ser, a um tempo, ambiciosos, realistas e modestos. Temos de ser ambiciosos, para concentrarmos os nossos esforços, no setor do ensino ou no da pesquisa, ou em ambos, simultaneamente, em alvos significativos para o crescimento da sociologia como ciência. Temos de ser realistas, para sabermos aproveitar, construtivamente, as oportunidades de trabalho existentes, bem como para melhorá-las e ampliá-las. Temos de ser modestos, para não invertermos a ordem natural das coisas, querendo começar pelo fim, numa área em que a acumulação progressiva de experiências é essencial. Não precisamos reproduzir os penosos avanços e recuos que marcam o desenvolvimento da sociologia na Europa e nos Estados Unidos. Mas, também, seria imprudente aspirarmos confrontos com outros centros de investigação, que resolveram, há tempo, dificuldades análogas às que enfrentamos. Quando atitudes desse teor não são ditadas pelo culto ferrenho à mediania, elas conduzem a decisões equilibradas e com frequência mais justas.

Os alvos centrais da explicação sociológica

A discussão precedente insinua que, na situação de trabalho dos sociólogos brasileiros, certos alvos teóricos merecem ser cultivados sistematicamente. Agora seria o momento de debater melhor esse ponto de vista. Em termos das exigências ideais da carreira científica, as escolhas dos campos de investigação deveriam ser governadas pela importância que eles tivessem para o desenvolvimento teórico da sociologia e pelas disposições de sujeito-investigador de devotar suas energias às tarefas intelectuais decorrentes. Contudo, outros fatores interferem na eleição dos campos de pesquisas pelos sociólogos, fazendo com que a estratégia geral do trabalho seja profundamente afetada pela situação cultural ambiente. O volume dos recursos destinados à sociologia, o grau de desenvolvimento das instituições consagradas à investigação sociológica, o tipo de valorização e de aproveitamento extracientíficos dos resultados das pesquisas sociológicas etc., determinam, de maneira profunda, a orientação seguida nas escolhas. É essencial estabelecer-se que essas influências raramente são reconhecidas, como se o cientista social quisesse ostentar uma condição de liberdade total, que não possui e que não existe em nenhum domínio da ciência. Doutro lado, mesmo quando tais influências assumem certas proporções (seja em consequência do estabelecimento de uma “tradição de trabalho”, em determinadas instituições de ensino ou de pesquisa, seja em consequência de mecanismos formais de controle, como acontece em sociedades planificadas), nem sempre elas são prejudiciais ao crescimento da teoria sociológica. Elas só se tornam verdadeiramente negativas e perigosas quando subvertem a natureza do conhecimento científico, o que já se verificou durante a experiência nazista na Alemanha, a qual não poupou a nossa disciplina. Nesse caso, motivos e razões ultracientíficas acabam prevalecendo sobre o que deveria ser relevante para o progresso da pesquisa fundamental e da elaboração teórica. Enquanto essa alternativa não se realiza, e ela só se realiza raramente por haver pouco interesse prático em estimular desenvolvimentos irrelevantes na ciência, os influxos mencionados atuam construtivamente, incentivando o crescimento do suporte financeiro das investigações e maior interesse por elas, nos círculos científicos e leigos.

No fundo, portanto, sempre existe alguma espécie de condicionamento cultural e de interferência extracientífica sobre os desenvolvimentos da ciência. Cabe aos cientistas promover as decisões que ajustem as potencialidades favoráveis do ambiente cultural às exigências da expansão teórica do conhecimento científico. Nada impede que, feitas as escolhas estrategicamente recomendáveis, em função das disponibilidades de recursos materiais e humanos, as investigações conduzam a resultados de sólida significação empírica e teórica. A partir de certo momento, supondo-se que seja constante o afluxo de recursos materiais e humanos, o êxito das investigações passa a depender, estritamente, da capacidade de trabalho, da imaginação criadora e da persistência dos investigadores, neutralizando-se a interferência dos fatores extracientíficos. Esse mecanismo recebe uma explicação simples: as investigações, para atingir os fins visados, que são a descoberta, a verificação e a generalização de certos conhecimentos positivos originais, têm de submeter-se, inapelavelmente, aos cânones e procedimentos do método científico. Isso faz com que exista grande plasticidade nas relações de crescimento da ciência com a organização da sociedade, até em condições relativamente pouco estimulantes. Em segundo lugar, confere ao cientista um mínimo de autonomia para concentrar-se de certa forma na realização de seus intentos de pesquisas, empíricas e teóricas, associando diretamente os seus esforços à obtenção de conhecimentos originais.

Ao aplicar essas ideias gerais à sociologia no cenário brasileiro, é preciso ter em conta outros elementos, que são por assim dizer peculiares às ciências sociais, por causa dos problemas científicos com que elas lidam. Acima de tudo, convém não ignorar que o desenvolvimento teórico alcançado pelas ciências sociais não é de molde a reduzir severamente a importância positiva de contribuições mais ou menos modestas, em vista dos alvos teóricos focalizados ou dos recursos materiais e humanos acessíveis. Às vezes, trabalhos aparentemente singelos, podem adquirir enorme significado teórico. O exemplo clássico, a esse respeito, é o estudo de Max Weber sobre as relações da ética protestante com a emergência do capitalismo. As proporções empíricas da investigação, as fontes dos dados utilizados, o tratamento analítico dispensado aos dados, a maneira de ordenar os resultados escolhidos para exposição e comunicação, tudo podia caber nos limites de uma iniciativa altamente modesta de um investigador. Todavia, graças ao contexto geral da problemática construída por Weber, os resultados da investigação foram projetados na direção do esclarecimento de questões complexas e de enorme significação para a teoria sociológica. Esse exemplo ilustra, cabalmente, a situação existente em ciências novas, nas quais os investigadores, dependendo de seu talento e fecundidade intelectual, podem dar contribuições originais do ponto de vista teórico, escolhendo caminhos pouco complicados. Mas, também seria recomendável lembrar que os cientistas sociais operam com “sistemas abertos” e “descontínuos”, por hipótese inexauríveis, tanto empírica quanto teoricamente, pelo conhecimento exclusivo de algumas alternativas. Mau grado as explicações acumuladas pela investigação do capitalismo na Europa e nos Estados Unidos, por exemplo, para entender-se o desenvolvimento do capitalismo na Ásia, na África, na Oceania ou na América Latina é preciso realizar-se investigações especiais sobre cada uma dessas áreas e, especificamente, sobre cada uma das comunidades nacionais em processo de ocidentalização ou de assimilação dos padrões capitalistas de organização do comportamento econômico. Por aí se vê que circunstâncias variáveis adquirem importância especial nas ciências sociais, exigindo e atribuindo enorme significação teórica e desdobramentos da observação e da interpretação dos sistemas sociais em que elas podem ser descritas objetivamente. Os sociólogos que vivem nos chamados países subdesenvolvidos desfrutam, assim, de oportunidades ideais para observar e explicar processo sociais que seriam ignorados ou mal conhecidos de outra maneira. Independentemente disso, como o objeto da sociologia é a investigação de comportamento social organizado, diante deles abrem-se as mesmas perspectivas do trabalho científico com que contam os demais colegas. As diferenças flagrantes e notáveis dizem respeito, portanto, à disponibilidade de recursos materiais e humanos, à consistência dos incentivos que motivem adequadamente os investigadores e às possibilidades do crescimento das instituições de pesquisa sociológica. Ainda assim, os efeitos negativos que emergem nesses planos podem ser largamente compensados, se os cientistas sociais procurarem explorar de forma mais eficaz as condições e os fatores favoráveis à pesquisa científica na situação cultural ambiente.

Duas questões aguardam, não obstante, análise especial. Primeiro, se seria desejável ou produtivo equacionar as ambições e os alvos teóricos proporcionalmente às disponibilidades de recursos materiais e humanos, reguladas institucionalmente. Segundo, qual seria a amplitude ideal de contenção da variedade dos centros de interesses teóricos, a serem animados formalmente. A respeito de ambas, surgiram controvérsias vinculadas a opções estreitas e, sob vários aspectos, inúteis para a ciência e improdutivas para os propósitos práticos explicitados. Na verdade, o conhecimento sociológico desempenha, nas nações subdesenvolvidas, a função de equivalente do conhecimento de senso comum, no que tange à tomada de consciência da natureza dos problemas sociais provocados pela desintegração do antigo regime, pela formação da sociedade de classes e pela expansão do capitalismo. Onde a transição para a era industrial se fez sob maior equilíbrio estrutural e dinâmico, o horizonte cultural dominante foi alterado ao mesmo tempo em que se transformavam as condições materiais e morais da existência humana. Noções de procedência extracientífica, produzidas por formas pré-científicas de saber, de percepção da realidade e de comunicação simbólica, mas altamente secularizada e racionais como mostram as análises de Marx, Tönnies, Max Weber, Sombart e outros sociólogos, deram ao homem a possibilidade de tomar consciência do que ocorria no meio ambiente e de aplicar sua capacidade de comportamento inteligente na modificação da herança social. Ora, os processos de secularização da cultura e de racionalização dos modos de compreender o mundo não progrediram nem operaram de maneira análoga nas sociedades capitalistas subdesenvolvidas. Em consequência, os homens de ação e os círculos mais ativos na estrutura de poder dessas sociedades voltaram-se para os cientistas sociais, na ânsia de obter conhecimentos que permitissem ajustar sua percepção e intervenção na realidade às exigências da situação. Segundo penso, há aqui duas coisas distintas a considerar. Uma, é a de saber se o cientista social deve corresponder à semelhante expectativa, que o compele a realizar sondagens ou contribuições de reduzido alcance teórico; outra, é a de determinar se esse incentivo não poderia ser aproveitado de forma mais construtiva para o desenvolvimento da teoria sociológica. Em suma, parece-me que o cientista social deve atender às expectativas que o inserem nos processos de autoconsciência da realidade social. Mas, ao fazê-lo, não pode negligenciar outras obrigações a que está sujeito e que decorrem da própria natureza do conhecimento científico, bem como da qualidade dos papéis intelectuais que tem de desempenhar socialmente. Em particular, jamais poderá admitir que essa circunstância transitória e aleatória acabe instaurando a degradação do conhecimento científico, pela via de sua identificação pura e simples com modalidades mais ou menos elaboradas do conhecimento de senso comum.

Quanto ao primeiro ponto, parece evidente que as decisões recomendáveis devem conduzir a uma estratégia do trabalho que permita selecionar as melhores oportunidades de expansão da pesquisa fundamental e da produção teórica, em regime crônico de escassez de recursos materiais e humanos. Em outras palavras, o sociólogo tem de decidir como aplicar recursos escassos da maneira mais produtiva para o desenvolvimento da teoria sociológica em seu ambiente cultural. Isso não equivale a decidir que lhe estejam vedadas as possibilidades de contribuir, produtivamente, para o progresso da sociologia como ciência de observação. Estaríamos diante de algo como uma quase-especialização na esfera das grandes tarefas teóricas, regulável por contingências combatíveis e elimináveis. Em todo campo científico, existem projetos de investigação mais “caros” e mais “baratos”, que envolvam maior ou menor número de investigadores, que cuidem de problemas mais ou menos acessíveis etc. O que decide de sua importância para a ciência não é essa circunstância exterior, porém, o modo pelo qual os investigadores aproveitam a oportunidade para promover o avanço de dado conjunto de explicações teóricas. A linha de ação que devemos pôr em prática consiste em fazer escolhas que atinjam melhor esse objetivo na situação econômica, social e cultural em que nos achamos. Por isso, certos campos da sociologia convertem-se, inevitavelmente, em campos ideais de trabalho, pelo menos enquanto perdurar a referida situação. De um lado, a imperiosa necessidade de conhecer os mecanismos de integração e de diferenciação da sociedade brasileira valoriza extraordinariamente as contribuições que caem no domínio da sociologia descritiva. Ao contrário do que se pensou no passado, os modelos sociográficos de descrição e interpretação da realidade trazem importantes contribuições teóricas para o esclarecimento de problemas relacionados com o nível de integração, o padrão de equilíbrio e o funcionamento de sistemas sociais globais. E parece fora de dúvida que os conhecimentos teóricos resultantes possuem inegável interesse prático. A questão está em não interromper a análise e as interpretações na fase da reconstrução pura e simples do sistema social global considerado, como se tem feito em muitos estudos antropológicos e sociológicos de comunidades, da empresa industrial, da escola etc. Explorados convenientemente, os mencionados modelos abrem sólidas perspectivas à acumulação de conhecimentos sobre as várias facetas do Brasil arcaico e do Brasil moderno, de patente importância teórica para a explicação dos processos que operam nos diversos níveis de integração da sociedade brasileira, e de previsível importância prática para aqueles que se ocupam com a aceleração da mudança social visando a maiores índices de homogeneização da sociedade brasileira. Outros campos teóricos que merecem atenção especial relacionam-se com a sociologia diferencial (ou histórica), a sociologia comparada e a sociologia aplicada. Aqui, alvos teóricos e motivos práticos também se misturam e se confundem amplamente. Temos necessidade urgente de saber, positivamente, como certos processos universais nas sociedades de classes operam, de fato, na sociedade brasileira e por que isso sucede. A análise, nesse plano, atinge maior complexidade, requerendo a construção e a manipulação interpretativa de tipos esquemáticos, usualmente empregados pelos sociólogos especializados nos problemas da sociologia diferencial e da sociologia comparada. Os conhecimentos que precisamos acumular sobre os problemas sociais brasileiros, por sua vez, são de tal ordem que exigem não só que atribuamos grande importância às investigações pertinentes à sociologia aplicada, mas obrigam-nos a dar novo rumo empírico, teórico e pragmático a essas investigações, de maneira a se considerar a intervenção na realidade como um processo de curso social cognoscível, previsível e variavelmente sujeito a influências deliberadas por parte dos manipuladores informados. Essas seriam, presumivelmente, as áreas nas quais poderíamos lograr contribuições marcantes à teoria sociológica e todas elas são claramente favorecidas pela situação de existência e pelas condições de trabalho em que estamos mergulhados.

Quanto ao segundo ponto, decorre da discussão precedente, que não seria conveniente estimular, atualmente pelo menos, a expansão simultânea dos vários campos a sociologia. Seria ideal, naturalmente, pôr em prática tal objetivo, deixando-se aos especialistas e aos institutos de investigação sociológica plena liberdade de escolha dos alvos teóricos de trabalho regular. Entretanto, parece mais aconselhável manter, por tempo indeterminado, uma política de contenção voluntária e deliberada da variedade dos centros de interesses teóricos das investigações sociológicas. Os riscos decorrentes dessa quase-especialização forçada podem ser evitados, principalmente se soubermos tomar a posição vantajosa de comensais atentos e críticos dos avanços teóricos da pesquisa sociológica em outras partes do mundo. A rigor, o sacrifício maior se daria, predominantemente, no campo de investigações da sociologia sistemática, com as perspectivas que ela abre à observação experimental, à quantificação e à colaboração interdisciplinar. Os danos teóricos consequentes não carecem ser ponderados; ainda assim, eles são menos sensíveis do que ocorreria na economia, se os economistas brasileiros decidissem incrementar a análise macroeconômica em detrimento da análise microeconômica. O grau de integração e de especialidade das teorias sociológicas não concorreriam para provocar consequências dessa envergadura. Os efeitos limitativos mais drásticos proviriam do fato de a sociologia sistemática constituir uma espécie de arsenal de conceitos abstratos, de hipóteses concernentes ao comportamento de fatores em dadas condições de organização e de integração do sistema social, e de explicações gerais sobre elementos ou processos dotados de certa universalidade. Tais prejuízos teriam de ser contornados em dois níveis. Primeiro, no plano da formação do sociólogo. Dando-se à sociologia sistemática a posição que ela deve ter na conformação do horizonte intelectual do sociólogo, em qualquer circunstância ele saberá mobilizar os recursos interpretativos que ela fornece. Segundo, no plano da interação com os centros sociológicos estrangeiros, por ventura voltados para as pesquisas microssociológicas. Sob essas duas condições, em qualquer momento seria possível, surgindo oportunidades efetivas e aconselháveis, expandir a pesquisa sociológica fundamental no campo da sociologia sistemática.

Os argumentos expendidos reforçam a mesma convicção básica: a sociologia pode oferecer ao investigador, em um país subdesenvolvido, meios para ajustar-se, como e enquanto cientista, às suas obrigações intelectuais, advindo daí um regulador espontâneo da qualidade e da consistência de suas contribuições teóricas. Nos últimos anos, a propagação de instituições de pesquisa sociológica pelo mundo ajudou a evidenciar que existem notórias diferenças na consideração e na explicação de fenômenos sociais análogos por especialistas pertencentes a sociedades distintas. Seria inútil discutir, agora, a questão geral do saber se diferentes ambientes culturais podem influenciar variavelmente a pesquisa sociológica. Os dados da experiência salientam que sim, comprovando descobertas feitas na sociologia do conhecimento sobre outras aplicações da ciência. Mas, restaria outra possibilidade, que tem atraído a atenção principalmente dos sociólogos dos países subdesenvolvidos. Simplificando-se os argumentos, a constatação que se vem fazendo leva a uma increpação: os sociólogos dos países desenvolvidos descrevem os aspectos estruturais e dinâmicos da sociedade de classes sob condições que não são universais, negligenciando esse fato na construção das teorias. Sem subestimar o alcance e a validade da restrição implícita, tenho para mim que é impróprio imputar à sociologia e às técnicas de interpretação sociológica os efeitos de uma equação pessoal. Além disso, a descoberta de lacunas teóricas desse gênero não nos deve impedir de aproveitar, devidamente, a parte positiva das contribuições daqueles sociólogos, impondo-se que vejamos nas limitações das teorias existentes um incentivo para tentarmos retificá-las e completá-las mediante esforços apropriados. Antes de mais nada, aí se acha uma demonstração insofismável de que a integração teórica, nas ciências sociais, depende da colaboração supranacional dos especialistas, e de que as diferenças de situação cultural são em certo sentido relevantes para o alargamento da própria perspectiva científica. Se a sociologia fosse uma disciplina na qual a sistematização teórica tivesse superado certas ambiguidades, provavelmente isso não ocorreria. Seria mais fácil incluir nas explicações gerais as diferentes alternativas relacionadas com o nível de integração dos sistemas sociais que tendessem para um mesmo tipo. O que me parece improdutivo, independentemente de qualquer explicação que se queira aventar, são as atitudes aberta ou disfarçadamente preconceituosas. As distorções eventuais da teoria sociológica não podem ser concebidas como frutos invariáveis do “conformismo”, do “colonialismo” ou do “imperialismo”. Precisamos compreender objetivamente esse fato, para aproveitarmos, efetivamente os resultados positivos da experiência alheia e para nos associarmos, produtivamente, aos centros estrangeiros de investigação sociológica.

Os papéis intelectuais do sociólogo

À luz da tradição científica da era liberal, seria descabido analisar e discutir os papéis intelectuais de sociólogos como e enquanto cientista. Eles estariam ligados às obrigações decorrentes dos cânones da investigação científica. Contudo, à medida que os dados e as descobertas da ciência foram assimilados pela vida prática, alterou-se o padrão fundamental de relação do cientista com a sociedade e surgiram novos papéis sociais que regulam o aproveitamento das energias intelectuais do cientista pela coletividade. Doutro lado, nas nações subdesenvolvidas o atraso cultural força ajustamentos peculiares, graças aos quais os cientistas acabam sendo absorvidos em vários ramos de atividades variavelmente extracientíficas. Os sociólogos se viram envolvidos nesses processos em escala atenuada, quando se compara sua situação com o que está ocorrendo com os economistas e os psicólogos. Ainda assim, as obrigações intelectuais com que se defrontam, institucionalmente ou apenas de forma potencial, põem diante de nossos olhos um complexo quadro, em que se misturam os papéis clássicos do cientista-investigador e os papéis recentes de “técnico” e de “reformador social”.

Na presente exposição, terei de restringir o escopo da discussão. O que gostaria de salientar, fundamentalmente, é a inconveniência de obedecermos a paradigmas anacrônicos. Muitos cientistas brasileiros comprazem-se em raciocinar como se vivêssemos no século XIX europeu e na era em que os influxos da ciência sobre a vida eram tão superficiais, que os leigos podiam enfrentar e resolver sozinhos os problemas resultantes da aplicação dos conhecimentos científicos. Em relação aos sociólogos, por sua vez, não seria demais ressaltar que os nossos colegas europeus e norte-americanos, quase sempre tomados como modelos, foram persistentemente segregados dos debates e das tentativas de solução dos problemas práticos. Só se lhes deu acesso a essas questões pela via teórica. No momento em que as decisões convertiam as explicações em fonte de alteração da realidade, eles nunca tiveram um papel a desempenhar, e não se reconhecia, explicitamente, a legitimidade de qualquer alternativa em que outro procedimento fosse aventado. O próprio cientista assimilou esse padrão de ajustamento, elevando à norma ideal e moral a convicção de que sua contribuição deveria ser confinada ao plano teórico.

O avesso disso passou a ocorrer onde os cientistas se viram solicitados por ocupações técnicas, em virtude da complicação da pesquisa na física nuclear e campos correlatos, da expansão gradual do planejamento em escala social e do uso crescente de conhecimentos científicos na solução de problemas práticos que não podem mais, por sua complexidade, ser resolvidos pelos leigos. Houve oposição a esse processo nos meios acadêmicos, aparecendo quem acreditasse que ele conduz a uma degradação do cientista. Uma das poucas vantagens da nossa situação cultural consiste em que ela não nos cria dilemas dessa espécie. Podemos encetar nossas reflexões sobre as funções da ciência em um nível muito mais produtivo e admitir, consequentemente, o envolvimento progressivo do cientista em atividades do mundo prático. Não só não pesam sobre nós “tradições” seculares, que proscrevem tal envolvimento, como estamos livres para adotar novos padrões de avaliação mais conformes ao estado atual de assimilação da ciência e da tecnologia científica pela sociedade.

Mesmo assim, porém, o fato de pensar cientificamente pressupõe critérios específicos de opção e de ação. O sociólogo não está menos preso à sociedade que os seus semelhantes. Mas, na medida em que se coloque os problemas práticos de uma perspectiva científica, a sua contribuição deve corresponder, nos limites do possível, aos caracteres intrínsecos do pensamento científico. Essa condição acarreta dificuldades de monta. Cada círculo social se dispõe a “aprovar” os dados e as descobertas da sociologia em função da compatibilidade que parecer existir entre eles e suas concepções do mundo. Por isso, surgem sérias resistências à explicação científica até no terreno teórico. Ilustrações de semelhantes eventualidades são corriqueiras, pois as explicações sociológicas da natureza humana, dos processos sociais e da evolução das civilizações têm recebido as mais curiosas e contraditórias impugnações. Ao passar-se ao terreno da aplicação as resistências assumem maior violência, por entrarem diretamente em jogo interesses e valores sociais, com frequência ameaçados por mudanças fundadas em técnicas racionais de controle. Mesmo que o sociólogo revele propósitos conformistas e tolerantes, sua forma de argumentar e o estilo de intervenção na realidade que ele recomenda acabam sofrendo alguma sorte de oposição etnocêntrica. A correção de semelhante situação só pode ser concebida a longo termo, presumindo-se que o progressivo desenvolvimento da civilização baseada na ciência e na tecnologia científica promoverá uma alteração radical no horizonte cultural dos homens e de sua faculdade de pensar e agir racionalmente. Enquanto isso não se der, os cientistas sociais não são menos obrigados, no entanto, a proceder em consonância com as normas ou os requisitos do pensamento científico, inclusive em assuntos práticos já compreendidos no âmbito das explicações científicas. Daí resulta que precisam estar dispostos a resguardar, firmemente, as condições de liberdade e de independência que são essenciais para que tais assuntos sejam encarados e resolvidos de acordo com os dados ou as descobertas da própria ciência.

Os sociólogos europeus e norte-americanos tomaram duas orientações extremas, visando a superar os embates ideológicos que poderiam refletir-se no grau de sua autonomia intelectual. A mais frequente consistiu em voltar as costas para os problemas práticos, concentrando suas energias em objetivos teóricos e esperando que as consequências práticas do conhecimento teórico acumulado se evidenciassem e fossem aproveitadas espontaneamente. Outra orientação seguida foi a do ego-envolvimento em alternativas ideológicas reconhecidas socialmente como legítimas, o que permitia considerar os problemas práticos sob uma inextricável mistura de argumentos científicos e extracientíficos. A sociologia adquiriu, através dessas conciliações, o caráter de uma disciplina apologética, principalmente da ordem social existente, mas também de concepções societárias utópicas. Segundo penso, ambos os procedimentos são inadequados e insatisfatórios, impondo-se que procuremos vias mais complexas e íntegras de introdução do espírito científico na solução dos problemas práticos de nosso tempo. A primeira orientação conduziu o sociólogo ao alheamento diante dos dilemas materiais e morais da vida humana. A segunda, transformou o sociólogo em adepto disfarçado ou ostensivo de ideologias que deveriam ser tomadas como elementos dinâmicos da situação, com a sobrecarga negativa das preferências que favorecem, naturalmente, soluções anacrônicas, voltadas para a preservação do status quo.

É certo que o sociólogo não pode nem deve escapar à sina de todo ser humano, envolvendo-se ideologicamente nas lutas por interesses e valores sociais que regulam a dinâmica das sociedades. Doutro lado, onde e como isso ocorrer, é indubitavelmente melhor que os “parâmetros ideológicos” sejam explicitamente evidenciados. Todavia, nada disso é propriamente essencial, do ponto de vista científico. Em se tratando da aplicação da perspectiva sociológica à consideração e à manipulação dos problemas práticos, o essencial seria submeter tais problemas aos critérios de análise científica, sem nenhuma restrição exterior. Por hipótese, só numa sociedade democrática e planificada essa condição poderia realizar-se plenamente, graças à eliminação dos focos de interferência irracional na mudança social programada. Embora essa condição não se dê, compete inegavelmente ao sociólogo buscar formas de ajustamento intelectual que resguardem sua responsabilidade moral. Numa sociedade de classe, tal alternativa não é fácil de concretizar-se. A variedade de interesses e de concepções do mundo em entrechoque oferecem, porém, algumas possibilidades. Em regra, as soluções alvitradas em termos do conhecimento sociológico pressupõem a reintegração do padrão estrutural e dinâmico do sistema social que se considere. São, em outras palavras, soluções que correspondem ao “sentido do processo histórico”. Independentemente do seu grau de radicalismo, elas podem receber apoio mais ou menos decidido de várias correntes sociais, tudo dependendo do modo empregado para difundir conhecimentos sobre sua existência, viabilidade e consequências. O drama está em que os meios conspícuos de comunicação, adotados pelos cientistas sociais, confinam a divulgação dos conhecimentos sociológicos ao público orgânico, constituído pelos especialistas, e a auditórios mais ou menos ralos, formados pelos setores intelectualmente refinados do público leigo. Os movimentos sociais carecem de poder para corrigir essa situação definitivamente, porque não podem praticar senão seleções nitidamente ideológicas no estoque de conhecimentos científicos disponíveis ou acessíveis em dado momento. Isso significa que os sociólogos têm de resolver, simultaneamente, três dificuldades graves: 1º) o que recomendar, tendo em vista as possibilidades de intervenção consciente e inteligente em determinadas situações-problemas; 2º) como atrair a atenção e os interesses dos círculos sociais potencialmente empenhados em conhecê-las; 3º) como propagar e difundir os conhecimentos teóricos e práticos, requeridos para a formação de novas atitudes e disposições sociais diante das referidas situações-problemas.

A barreira estaria, aparentemente, apenas nos padrões de comunicação do cientista social com o grande público. Se fosse possível quebrar o isolamento, seria também possível orientar o comportamento coletivo organizado em novas direções. Entretanto, as coisas não são tão simples. As dificuldades de comunicação transcendem ao grau de difusão dos conhecimentos sociológicos e ao nível de complexidade da linguagem científica. Mesmo depois de “tornar as coisas claras”, adotando a linguagem acessível às audiências leigas, o sociólogo ainda se defronta com as limitações decorrentes do horizonte cultural predominante e com outro obstáculo pior, que é a inexistência de canais sociais que regulem automaticamente o aproveitamento de sua colaboração. O leigo acompanha e entende, muitas vezes, o diagnóstico da situação-problema; nem sempre, porém, revela-se disposto a aceitar as técnicas de intervenção recomendadas. Além disso, a rede de instituições de nossa sociedade ainda não se adaptou totalmente à exploração conveniente e completa dos conhecimentos científicos e das técnicas sociais racionais a que eles dão margem. Em conjunto, essas indicações esboçam a complicada teia de tarefas que o sociólogo tem pela frente, onde e quando ele se propõe participar ativamente do processo de expansão da civilização baseada na ciência e na tecnologia científica. Precisa estar atento a várias alterações, que estão ocorrendo no mundo em que vivemos, e, ao mesmo tempo, demonstrar disposições práticas diante das maneiras pelas quais elas poderão ser aproveitadas, em benefício da criação, aplicação e refinamento de técnicas sociais novas. De um lado, tem de tomar posição em face do desafio representado pela educação do homem para a era do pensamento científico. De outro, tem de procurar respostas para a necessidade premente de ajustarem-se a natureza humana, as instituições sociais e a organização da sociedade a mecanismos democráticos e racionais de controle dos problemas sociais pelo homem.

Encarado à luz da situação cultural brasileira, esse conjunto de dilemas entremostra-se bem mais complexo e difícil. Não só as ciências sociais estão pouco desenvolvidas; as próprias bases dinâmicas de comportamento coletivo são por demais movediças e inconsistentes, para suportarem inovações drásticas substanciais. Embora as exigências da situação histórico-social sejam dramáticas e as aspirações coletivas de desenvolvimento sejam grandiosas, os mecanismos psicossociais e socioculturais mobilizáveis no controle racional dos problemas práticos não comportam sequer um mínimo de estabilidade e de eficácia. Em consequência, a assimilação de técnicas sociais racionais sofre oscilações perturbadoras, enquanto os influxos conservantistas operam desordenadamente contra a modernização, aumentando a lentidão das mudanças e, por conseguinte, os efeitos desintegradores que delas resultam. E chega a ser penosa a posição dos cientistas sociais que assumem riscos calculados de debate ou na solução dos problemas práticos, tal o volume e a quantidade das pressões organizadas ou difusas que se desencadeiam contra suas opções ou suas ações. Resguardar a autonomia intelectual e persistir numa linha de conduta responsável perante os assuntos práticos da coletividade convertem-se, assim, em tarefas ingratas e devastadoras. Vários de nossos colegas, mesmo alguns que se acreditam socialistas, omitem-se ou resguardam-se por temer o sacrifício inútil de energias e de tempo, que poderiam ser empregados produtivamente em outras realizações. Ora, na medida em que dispomos de elementos para tomar consciência mais clara da situação e para saber que as coisas não podem se passar de outro modo, cabe-nos evitar com denodo esse estado de espírito. Quanto maiores forem as dificuldades, mais complexas e imperativas serão as nossas obrigações intelectuais e morais. Sucumbir à passividade representa uma convivência com o status quo, para não dizer que seria uma adesão farisaica às correntes que advogam a neutralidade e o alheamento dos cientistas sociais perante os problemas da vida.

Daí resulta que precisamos robustecer a nossa fé na ciência e na capacidade do homem comum de elevar-se até ela, forjando no Brasil uma nova civilização. A parte que devemos tomar nesse processo define-se, de forma objetiva e inequívoca, nas obrigações que assumimos tacitamente, ao nos tornarmos cientistas sociais, de preparar a sociedade brasileira para uma era na qual os problemas sociais e humanos podem ser largamente submetidos a controle racional. Todas as oportunidades que auxiliem efetivamente, a alargar o horizonte cultural dominante ou a aumentar a confiança dos leigos no pensamento científico devem ser aproveitadas construtivamente. Ao contrário dos cientistas sociais de outros países, temos de aceitar um ponto de partida obscuro e arriscado nas cogitações concernentes aos problemas práticos. Não podemos aguardar que as oportunidades se constituam. Temos de fomentá-las, para tirar delas o proveito possível.

Em suma, se aos papéis do sociólogo é inerente algum elemento político irredutível, na cena histórica brasileira é inevitável que esse elemento ganhe nítida preponderância nas reflexões de cunho abertamente pragmático. Para que a ciência, a tecnologia científica e a educação fundada em ambas possam exercer influências construtivas no crescimento econômico, no desenvolvimento social e no progresso cultural do Brasil, cumpre modificar primeiro o arcabouço estrutural e o sistema organizatório da sociedade brasileira. Sem margem de ambiguidades, isso significa que o sociólogo precisa empenhar-se diretamente, como e enquanto cientista, nos processos em curso de mudança sociocultural, com o objetivo imediato de cooperar na instauração de um novo padrão civilizatório na sociedade brasileira e com o objetivo remoto de suscitar o aparecimento de papéis sociais congruentes com as responsabilidades intelectuais do cientista no mundo moderno.

Desse ângulo, as obrigações práticas do sociólogo distinguem-se apenas em grau e em magnitude das obrigações que pesam sobre os demais cidadãos brasileiros. Porque é capaz de “enxergar melhor certas coisas”, cabe-lhe incentivar o interesse, o apreço e a lealdade por comportamentos sociais que respondem produtivamente às exigências da situação. O sociólogo aparece, assim, como uma espécie de elemento de vanguarda na consciência dos problemas sociais, não podendo elidir-se dos pesados encargos decorrentes, mesmo sob o preço do sacrifício de alguns projetos de estudo pessoalmente importantes. Com o correr do tempo, o ônus resultante de tais sacrifícios se distribuirá por número crescente de especialistas e o seu impacto negativo sobre o desenvolvimento da sociologia será quase nulo. Acresce que as experiências colhidas pelo sociólogo por essa via não são menos relevantes, para o conhecimento dos mecanismos sociais da sociedade brasileira, que outras experiências realizadas no âmbito do ensino ou na esfera da pesquisa.

Acredito que exista ampla margem de opiniões divergentes, no que concerne à valorização sociológica dos focos centrais de mudança da situação histórico-social. Ainda assim, mais para completar a presente discussão, gostaria de enumerar três áreas que, no meu entender, encerram potencialidades dinâmicas que não devem ser negligenciadas nas reflexões práticas dos cientistas sociais brasileiros. Refiro-me à expansão da ordem social democrática, às funções sociais construtivas do Estado e às opções espontâneas que decidirão, socialmente, como iremos participar da “civilização da era industrial e tecnológica” no Brasil.

A expansão da ordem social democrática constitui o requisito sinequa non de qualquer alteração estrutural ou organizatória da sociedade brasileira. Se não conseguirmos fortalecer a ordem social democrática, eliminando os principais fatores de suas inconsistências econômicas, morais e políticas, não conquistaremos nenhum êxito apreciável no crescimento econômico, no desenvolvimento social e no progresso cultural. Estaremos, como agora, camuflando pura e simplesmente uma realidade triste, que faz da insegurança social, da miséria material e da degradação moral o estado normal de existência de três quintos, aproximadamente, da população brasileira. Da democratização da riqueza, do poder e da cultura dependem, de forma literal: 1º) a desagregação final dos resíduos do antigo regime, que recobre geográfica, demograficamente e mentalmente a maior extensão da sociedade brasileira, e a consolidação do regime de classes; 2º) a emergência de novos controles sociais, a que se subordinam a continuidade e o aperfeiçoamento do estilo de vida social democrático no País. Em consequência, lutar pela democracia vem a ser muito mais importante que aumentar o excedente econômico e aplicá-lo produtivamente. A própria economia continuará sufocada se não nos revelarmos capazes de alterar o arcabouço social que a aprisiona, retendo ou comprimindo o impacto do crescimento econômico sobre o progresso social e cultural. Além disso, releva considerar que haveria pouco interesse social em substituir o antigo regime por um simples sucedâneo, que apenas modificasse a categoria econômica dos entes privilegiados. Para que a democracia desencadeie efeitos seculares, é necessário que ela adquira vitalidade indestrutível, um ímpeto irrepresável de desenvolvimento e capacidade de aperfeiçoamento contínuo. Em um País que ainda não conseguiu sequer envolver os cidadãos, os partidos e o aparelho estatal na prática coerente dos princípios democráticos elementares, aí se acha um tremendo desafio histórico.

As funções construtivas do Estado têm sido constantemente abaladas nos últimos anos, apesar das aparências em contrário. Parte da perda de eficácia na contribuição estatal deriva do aparato obsoleto dos serviços públicos, controlados direta ou indiretamente pelo Estado brasileiro. Mal preparado para responder às necessidades do passado, ele sucumbe diante das complexas exigências do presente. Mas é preciso que se reconheça, parte bem maior das deficiências provém do fato de o Estado continuar a suster sobre seus ombros um colossal peso morto, na melhor tradição do antigo regime, resultante do parasitismo exercido por largos setores das camadas dominantes sobre os recursos e as realizações do poder público. O pior é que esse parasitismo não “consome”, apenas; ele corrói as energias e paralisa a ação do Estado, impedindo por todos os meios a sua democratização política e a sua modernização técnica. Mantém-no, em síntese, prisioneiro de interesses sociais estreitos, que não correspondem aos interesses da Nação como um todo. Na fase em que nos encontramos, isso representa uma terrível barreira ao crescimento econômico, tanto quanto ao combate à injustiça social e ao atraso cultural. A gigantesca tarefa de criar condições para a prosperidade da livre empresa, a ampliação do mercado interno ou a diferenciação do sistema de produção não encontra agência social que a realize, o mesmo ocorrendo nos demais níveis em que a mobilização de fatores naturais ou humanos se subordinem à intervenção construtiva e persistente do Estado. Isso faz com que tenhamos de atentar cuidadosamente para os modelos de organização e de atuação do Estado. Pouco nos adiantaria ressuscitar, em nossos dias, os procedimentos adotados pela intervenção estatal na Europa, nos Estados Unidos ou no Japão, nas fases do arranco da economia capitalista. Em um país de recursos tão escassos seria importante preservar alguns frutos pelo menos, da intervenção estatal, em benefício da coletividade como um todo, e manter nas mãos do Estado os vários serviços públicos que poderiam contribuir para acelerar os processos de democratização do poder, da riqueza e da cultura.

Por fim, nenhum sociólogo ignora que os sistemas sociais se perpetuam ou se alteram através do comportamento social consciente e grupalmente organizado dos homens. Só os problemas práticos que se elevam à esfera de consciência social e são encarados de forma inconformista acabam submetidos a controle societário. Fatores econômicos, psicossociais e socioculturais restringiram no passado e continuam a restringir no presente o número de pessoas empenhadas diretamente nesse processo dentro da sociedade brasileira. Isso engendra uma grave anomalia, pois os assuntos de interesse para a coletividade como um todo são vistos e decididos à luz das concepções, dos interesses e das iniciativas de ralas minorias, ansiosas sobretudo em manter sua estabilidade na estrutura de poder. Por altruístas que fossem, tais minorias nunca poderiam levar em conta a variedade e o alcance das inovações possíveis. Entre os vários caminhos para “acelerar o crescimento econômico” e “intensificar o progresso social” elas preferem, naturalmente, as soluções que consultam à preservação dissimulada do status quo. Em termos de potencialidades, para não se falar em equidade social, esse estado de coisas representa a destruição sistemática das principais vias de consolidação do padrão civilizatório que pretendemos transplantar para o Brasil. Do liberalismo ao socialismo, passamos por várias experiências doutrinárias e históricas, que colocam os povos modernos diante de várias alternativas para atingir esse objetivo. O monopólio das opções por certas minorias sociais impede que essas alternativas se equacionem em confrontos democráticos de opiniões e se convertam em forças propulsoras da história. Quaisquer que sejam nossas preferências ideológicas, algo parece indubitável. É urgente que se prepare o homem comum brasileiro para atender, desejar e praticar essas opções, de modo que o Povo deixe de ser uma vítima passiva e o parceiro mudo nos acontecimentos que abalam, frequentemente, a vida da Nação.

Essa breve digressão sobre os três tópicos levou-me a considerações inadequadamente superficiais. Espero que me concedam alguma indulgência, porém, já que não me propus senão mencionar os temas que desafiam, de forma mais aguda, a curiosidade intelectual e a responsabilidade moral dos cientistas sociais brasileiros. Somente quis sugerir que o sociólogo, como homem da sociedade de seu tempo, não pode omitir-se diante do dever de pôr os conhecimentos sociológicos a serviço das tendências de reconstrução social. Numa fase de desintegração e de mudança, não nos compete, apenas, produzir conhecimentos sobre a situação histórica-social. Impõe-se que digamos, também, como utilizaríamos tais conhecimentos, se nos fosse dado tomar parte ativa na construção de nosso mundo de amanhã.

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Notas
Notas
1 Discurso presidencial, proferido por ocasião da abertura do II Congresso Brasileiro de Sociologia, em 12 de março de 1962, na Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade de Minas Gerais.
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