Dossiê

Crise no tempo acelerado e o mundo em descompasso: apresentação da seção especial sobre a Covid-19

Crisis at an accelerated age and the world out of step: presentation of the special section on Covid-19

José Miguel Rasia
Universidade Federal do Paraná, Brasil

Crise no tempo acelerado e o mundo em descompasso: apresentação da seção especial sobre a Covid-19

Revista Brasileira de Sociologia, vol. 9, núm. 21, pp. 10-24, 2021

Sociedade Brasileira de Sociologia

Recepción: 06 Enero 2021

Aprobación: 18 Enero 2021

Resumo: Os quatro artigos que compõem esta Seção Especial da RBS sobre a Pandemia de Covid-19 compreendem a discussão sobre a escala da doença, a política cientifica e tecnológica, o uso da cloroquina e suas injunções políticas e as condições exigidas para o final de uma pandemia. Na busca pela articulação entre os artigos, esta apresentação aborda as questões relacionadas ao tempo acelerado em que ela ocorre e as medidas de isolamento e distância social num mundo também acelerado.

Palavras-chave: pandemia, tempo, aceleração, crise.

Abstract: This Special Section of RBS about the Covid-19 Pandemic comprises four articles that discuss the scale of the disease, the scientific and technological policy surrounding it, the use of chloroquine and its political injunctions, as well as the conditions required for the end of a pandemic. Seeking an articulation between the articles, this presentation reflects on the issues related to the accelerated time in which the pandemic occurs and the measures of isolation and social distance in a world that is also accelerated.

Keywords: pandemic, time, acceleration, crisis.

Introdução: as questões em debate

As epidemias sempre foram objeto de preocupação da sociedade humana, para as quais se buscou as mais diversas explicações. Da antiguidade grega aos dias atuais, sua ocorrência foi motivo de preocupação das diferentes formas de pensamento. Do mito à religião e do senso comum à ciência, as epidemias sempre foram um desafio para a produção de narrativas que as tornassem compreensíveis. Origens, formas de disseminação e efeitos estiveram no centro dessas preocupações com a doença que surge de forma inesperada e atinge grandes conjuntos humanos num curto espaço de tempo. Foi assim com a Peste Negra, com a Gripe Espanhola e assim está sendo com a Covid-19 e tantas outras epidemias.

Os efeitos de uma doença em grande escala, e para a qual não se tem conhecimento que permita cura ou prevenção, produzem uma corrida na busca de meios que contribuam para a compreensão do fenômeno e para mitigar seus efeitos, quando não para debelar o agente patógeno. A gravidade de uma epidemia pode ser medida pela extensão territorial que assume e pelo número de vítimas, mas não só. Seus efeitos também se fazem sentir pela dimensão econômica que assume e que pode ser calculada pelo investimento em busca de conhecimentos, sob a forma de medicamentos, vacinas etc., pelo custo do tratamento e pela desaceleração da atividade econômica. Esses efeitos podem ser observados nas grandes epidemias da história, como a Peste Negra (Sanches, & Rasia, 2020) e a Gripe Espanhola (Schwarcz, & Starling, 2020) que, embora tenham ocorrido em momentos distintos, tiveram como resultado um alto custo em vidas humanas e devastação econômica.

No caso da COVID-19, o quadro que se desenha não é diferente, dada a velocidade de disseminação do Novo Coronavírus, a produção de novas infecções e o número de mortes, acompanhados pela queda do PIB e a paralização da economia dos países atingidos. Neste momento, qualquer dado que se utilize aqui, para dar a dimensão da epidemia e seus efeitos, seria rapidamente obsoleto. Não há como sustentar qualquer tendência que não seja a de agravamento da situação, enquanto não for possível controlar o poder de infecção pelo vírus.

Em que pese o caráter pandêmico da Peste Medieval e da Gripe Espanhola, o Novo Coronavírus teve o contexto da globalização e a circulação intensa de pessoas como um dos fatores responsáveis por sua rápida disseminação. Poderíamos afirmar que a pandemia atual segue o ritmo acelerado da contemporaneidade e das interações. Dessa forma, o tempo de disseminação da doença coincide com tempo dos processos sociais e isto se agrava porque o tempo de resposta que a ciência pode oferecer para uma doença desconhecida é maior do que o tempo de sua multiplicação. A relação entre as medidas de isolamento, distanciamento social e uso de máscaras – eficazes contra a disseminação do vírus – resultam na desaceleração do tempo e das atividades no mundo contemporâneo. Ou seja, como conciliar o mundo acelerado (Rosa, 2019) com a desaceleração produzida pelas medidas de contenção da pandemia?

As observações apresentadas nessa abertura visam contribuir para a discussão do que significa o tempo de prolongado isolamento e distanciamento social que estamos vivendo para um mundo em tudo diferente do mundo da Peste Negra e da Gripe Espanhola. Primeiro, porque pensar o tempo como categoria sociológica à luz de eventos sociais nos permite compreender a duração do evento e seus efeitos objetivos e subjetivos sobre o indivíduo e a sociedade; segundo, porque a emergência do Novo Coronavírus e a pandemia de Covid-19, é um desses eventos cuja duração e efeitos produziram mudanças em nossas rotinas, facilmente observáveis; terceiro, porque vivemos num mundo e num tempo acelerados (Rosa, 2019) em que tudo acontece muito rapidamente, numa velocidade nunca antes experimentada; e quarto, porque, somada à velocidade, experimentamos a simultaneidade no tempo e no espaço de processos e eventos numa dimensão jamais imaginada pela sociedade humana.

O que mais ouvimos são as pessoas dizerem que o tempo é curto para as tarefas que precisam realizar, sejam elas simples ou complexas. A qualidade de uma tarefa não se mede pela natureza das operações que compreendem, nem pela quantidade de tempo que precisamos dispor para sua execução, mas pelo significado que atribuímos a ela e pelas disposições exigidas para sua realização. Assim, a classificação está em estreita relação com a subjetividade de cada um. Diante dessa afirmação, identifico uma inquietação que somente aqueles que vivem no século XXI experimentam. Em que ponto do tempo situamos eventos como a pandemia, que marcam a vida dos indivíduos e da sociedade?

É essa associação que permite manejar tempo e movimento, evento e efeito, como se fossem uma só coisa, ou talvez uma unidade. Isso vale não só para o passado e o presente, mas também para o futuro: “o pico da epidemia no Brasil será em junho e julho... A expectativa de que o país volte à normalidade será setembro...” Todas as referências à temporalidade até aqui mencionadas podem ser redutíveis às medidas que o calendário e o relógio nos oferecem.

Datar um evento é estabelecer uma referência temporal aos movimentos, naturais ou não, que afetam a sociedade, e nos permite situá-lo não só em relação a outros eventos, mas fixando um ponto numa linha imaginária de duração infinita e que compreende a história de todos os eventos que afetam a humanidade, ou então localizá-lo num intervalo dessa mesma linha. A Peste Negra, a Gripe Espanhola e a Covid-19 são exemplos de intervalos duradouros, nessa linha imaginária. Já o nascimento e a morte de um indivíduo são exemplos de intervalos nessa mesma linha, mas cujos efeitos, em geral, pertencem à vida privada de um grupo restrito e só raramente têm interesse social. No caso da Pandemia, a morte individual não perde seu sentido, mas este se transforma, quando consideramos que a Covid-19 tem produzido a morte em massa, principalmente entre os grupos vulneráveis. A esse respeito, o texto “Pandemia e Efeito Território: a desigualdade social como catalizadora da Covid-19”, é exemplo significativo do que afirmamos: a morte individual se inscreve, neste caso, na dimensão da morte coletiva. O estudo de Maria Tarcisa Silva Bega e Marcelo Nogueira de Souza, nesta edição, analisa a disseminação do Novo Coronavírus em três regiões metropolitanas do país: São Paulo, Fortaleza e Manaus, e nos dá a dimensão da Pandemia de 2020 e de como seus efeitos se fazem sentir entre a população pobre dessas regiões. Assim, nos três casos analisados, pobreza, adoecimento e morte são efeitos que se potencializam em curto espaço de tempo.

Quando falamos que a morte, na Pandemia, transcende o caráter individual e assume a dimensão coletiva, é porque a experiência biográfica é sempre o encontro de dois tempos, o individual e o histórico; no caso, o tempo do indivíduo encontra-se com o tempo da Pandemia. A memória e a história pessoal se enlaçam à história e à memória coletiva. Não há vida humana fora desse enlace. O cruzamento dos eventos de uma vida particular com os eventos históricos nos permite pensar que o pressuposto do tempo é sempre histórico, engendrado pela experiência social (Thompson, 1998). A experiência humana do tempo não pode ocorrer se este não for desnaturalizado. Experiências de vida individual só podem ser compreendidas como parte da experiência humana, porque o indivíduo humano transcende o movimento da natureza. A significação dos movimentos da natureza só pode ser compreendida se for tomada de forma relacional com a experiência humana do tempo (Elias, 1998), ou seja, é movimento que pode ser significado de fora – pela consciência – e só então ser compreendido em sua duração. A temporalidade de um vírus e seu movimento natural podem ser apreendidos no texto de Gilberto Hochman para esta seção especial, “Quando e como uma doença desaparece. A varíola e sua erradicação no Brasil (1966-1973)”, que nos aponta o que representa um marcador temporal de um evento. Ele nos diz claramente que o marcador temporal do fim da varíola cruza vários fatores como políticas científicas e sanitárias; que o movimento natural de um vírus não se esgota por si mesmo e que as doenças e as epidemias não são fenômenos estritamente biológicos.

Marcadores temporais só fazem sentido porque podem se referir, ao mesmo tempo, a eventos que afetaram a vida individual e a vida coletiva. A desnaturalização do tempo não pode ser confundida com a criação de artefatos de medida, mas é sim tarefa da ciência e da razão. O poder, por vezes, pode negar a ciência e suas descobertas, mesmo no contexto da modernidade atual. O texto, nesta edição, “O uso político da cloroquina: Covid-19, negacionismo e neoliberalismo”, de Sandra Caponi, Fabíola S. Brzozowski, Fernando Hellmann e Silvia Bittencourt, analisa a relação entre o uso da cloroquina e o contexto neoliberal autoritário vivido pelo Brasil neste momento. O embate entre a ciência e o populismo plutocrático e autoritário (Sluga, 2017) serve para direcionar as medidas que, na modernidade, podem fazer frente a situações como a instaurada pelas doenças emergentes que afetam, como dissemos, grandes conjuntos humanos.

Pensar a política científica na conjuntura atual é o objeto do segundo texto desta seção especial da RBS, “A resposta da política científica e tecnológica à pandemia de Covid-19”, de Fabricio Monteiro Neves e Fernanda Sobral. O texto faz uma análise comparando o que se tem feito no Brasil com o que se faz em outros países, no que diz respeito ao desenvolvimento de políticas de Estado para a ciência e a tecnologia, tendo em vista o combate à Pandemia. Assim, o que é comum e subjaz aos quatro textos que compõem esta seção sobre a Pandemia de 2020 são a temporalidade e a duração da epidemia, a velocidade de disseminação do vírus e o papel da ciência e do Estado na formulação de políticas que sejam capazes de conter o avanço da doença e seus efeitos perversos no contexto da modernidade neoliberal.

Se a modernidade é o momento da história em que ciência e tempo se encontram, devemos considerar as tensões desse encontro. Substrato fundamental para a compreensão da experiência humana ameaçada por uma doença ainda desconhecida. Nesse sentido, valeria a pena buscar reconstituir a história desse encontro.

Tempo e movimento na pandemia de 2020: o vírus e a doença do natural ao social

No filme 2001, Uma Odisseia no Espaço, o pedaço de osso usado pelo macaco na cena de abertura aponta para a metáfora da forma e da função. O macaco, no limite de sua inteligência, vê o osso tomado de empréstimo à natureza como instrumento que pode ser usado para quebrar cocos, agredir, se defender etc. Pois bem, como se vê, o macaco consegue usar o osso imprimindo à forma encontrada uma função. Seu manejo do osso se esgota aí, não cria formas nem artefatos, usa o que a natureza oferece e limita-se apenas a encontrar uma funcionalidade à forma encontrada. Aqui se esgota, também, a participação dos macacos no filme. Imaginar um tempo de supercomputadores e naves espaciais só é possível para quem já inventou o calendário para contar os dias, o relógio etc., já inventou as “máquinas que podem controlar o tempo. Deve estar claro, portanto, que o tempo é criação humana, assim como objetos, forma e função.

Quando penso no filme 2001, Uma Odisseia no Espaço, é impossível não vir à mente outra Odisseia, a de Homero (2014), narrando o retorno de Ulisses a Ítaca, após a Guerra de Troia. O que há de comum entre a viagem no espaço e a viagem de Ulisses pelos mares da Grécia? Nas duas, o tempo é personagem, é no tempo que as peripécias acontecem e se organizam. Sem o tempo, as duas narrativas seriam inviáveis.

Na Odisseia, Homero narra os feitos de Ulisses no tempo da antiguidade grega, cuja compreensão exige que se preste atenção a dois fatos de sua narrativa: o crescimento de Telêmaco e a espera de Penélope, sua esposa. Quando Ulisses parte para a guerra, vinte anos antes, Telêmaco é menino e Penélope está ocupada em tecer um tapete. As vicissitudes por que passa Ulisses duram o tempo de Telêmaco transformar-se em homem. Enquanto isso, Penélope, considerada viúva de guerra, recebe propostas de casamento, sobre as quais decidirá quando o tapete estiver pronto. Aqui temos o tempo que se cumpre pelos desdobramentos dos movimentos da natureza de Telêmaco em relação à idade adulta e em Penélope na atividade de tecer. Se Penélope adia a resposta aos pretendes, desfazendo à noite o que teceu de dia, a natureza, em Telêmaco, não espera e cumpre seus movimentos. Não há como controlar esses movimentos e impedir a constatação de que o tempo passou e Telêmaco é agora um homem feito.

Tecer o tapete obedece ao ritmo determinado por Penélope, a destreza de suas mãos podem acelerar, diminuir, desmanchar ou cessar completamente o movimento. A descoberta dessa possibilidade por Penélope, faz com que ela a transforme em estratégia para adiar o encontro com seus pretendentes. Tecer de dia e desmanchar à noite, tecer-desmanchar-tecer, só não se configura como um movimento eterno, como no mito de Sísifo, porque Penélope tem a paciência exigida pela espera. Assim, podemos tomar Penélope como aquela que sabe que o tempo pode ser controlado e medido em sua duração. De forma oposta, em Telêmaco, a natureza realiza involuntariamente e sem nenhum controle seu movimento.

Este exemplo pode nos ajudar a pensar o controle do tempo como necessidade e desafio para a civilização. Penélope usa a razão para determinar o tempo da resposta aos pretendentes, manipulando a duração de sua atividade. Não sabemos quantos tapetes Penélope poderia ter tecido nos 20 anos que Ulisses esteve perdido no mar, mas o poema nos diz que o tempo pode ser infinito e, ao mesmo tempo, controlado, interrompido. O retorno de Ulisses não tem dia e nem hora, mas vai acontecer. É esta certeza que motiva a espera de Penélope, que alimenta e mantém vivo seu amor por Ulisses.

O tempo da espera e a certeza do desfecho subjazem às condições de fim de uma epidemia. Assim foi com a Peste Negra e a varíola, assim será com a Pandemia de 2020, embora o desfecho não seja efeito do movimento natural do vírus. O texto de Gilberto Hochman aponta as condições para o fim de uma epidemia, tomando o caso da varíola, e nos dá pistas para pensar o fim da epidemia atual.

Se, na antiguidade, se acreditava no tempo da natureza, foi necessário Heráclito retificar essa ideia, mostrando que na natureza não há tempo, só movimento, pois o tempo é produto da consciência e na natureza não há consciência, nem intenção.

O controle dos movimentos da natureza é relativamente tardio na história da civilização e só foi possível com a ciência moderna. Marcar ritmo, velocidade e duração dos eventos e controlar o tempo só nos é possível porque temos a ciência como aliada, o que não foi possível durante as epidemias da antiguidade e a Peste Negra. Num mundo em que o controle do tempo escapava à cogitação pela razão humana, Penélope nos ensinou, com sua estratégia rudimentar, uma maneira de controlar o tempo. Tecer de dia e desmanchar à noite possibilita a ela que o tapete esteja sempre sendo tecido, e com isto, o futuro nunca se transformará em presente ou o presente é sempre futuro? O futuro de uma Pandemia não pode depender simplesmente do movimento da natureza, nem de uma estratégia simples como a de Penélope, mas sim das condições sociais e do tempo da ciência, da atividade no laboratório, cuja duração, muitas vezes, exige conhecimento do tempo do agente patógeno e do experimento voltado para a descoberta de uma substância eficaz.

Fica claro na narrativa de Homero que o tapete interminável é uma atividade necessária à narrativa, porque, no contexto do poema, expressa o tempo da espera. Penélope, usa mãos e dedos como artefatos de controle do tempo. Em algum nó dos fios do tapete, o retorno de Ulisses será anunciado. No outro lado da trama, Ulisses e o filho não se reconhecem, a natureza tornou o menino um homem e envelheceu o pai. O que a natureza tece pode causar estranhamento, mesmo com a regularidade da trama marcada pela repetição de um movimento. Este é o sentido do que afirmei, ao dizer que o menino se transformou em homem e que esta operação se dá num momento no qual os antigos não tinham como intervir. Hoje, a ciência consegue operar sobre a natureza, acelerando ou retardando seus movimentos. Assim, ciência e política podem ser aliadas no contexto de uma pandemia causada por um novo vírus. A atitude negacionista do governo Bolsonaro, no Brasil, e de Trump, nos EUA, retardam esse movimento. Isto é o que nos mostra o artigo sobre o uso político da cloroquina, em que interesses econômicos se sobrepõem à busca de uma solução biomédica para a doença. Na mesma direção caminha o texto de Fabricio M. Neves e Fernanda Sobral, ao discutirem o papel do Estado como responsável pelo desenvolvimento de políticas de ciência e tecnologia para o combate à Covid-19.

Se situo, na narrativa de Homero, a durabilidade do tempo da espera controlado por Penélope e, com Telêmaco, o movimento que não pode esperar, pois não é fruto da ação humana, posso pensar que esses personagens representam os limites entre civilização e natureza. É neste limite que a consciência da história se dá. No mundo acelerado e de práticas rotinizadas, trata-se de fazer, fazer, fazer mais e não desmanchar nunca. Não há tempo de desmanchar, não há tempo para postergar. Aliás, o tempo é só futuro – passado e presente se apagam num devir que está sempre por chegar. A atividade rotinizada faz desaparecer as diferenças possíveis entre ontem, hoje e o amanhã, não há mais Ulisses para chegar. Assim, a civilização se defronta com a angústia do tempo infinito da repetição, o tempo que nos agrega se faz de dia e de noite, e nos torna contemporâneos de nossa modernidade, transforma nossa existência individual em existência coletiva rotinizada e angustiada, de forma que perdemos o controle sobre ela. Repetir é o que nos reserva a vida. O tempo de um automaton nos governa de algum lugar muito escondido, mandando-nos sempre tecer, tecer, tecer...

Se, como vimos, é o tempo cronológico que medimos com os artefatos que criamos, os artefatos nos permitem saber a duração de um evento, numa escala na qual estão compreendidos o hoje, o ontem, o amanhã. É da escala temporal da pandemia que nos fala o texto de Maria Tarcisa Silva Bega e Marcelo N. de Souza, de sua duração, extensão e intensidade. O objeto da discussão compreende o período de tempo decorrido entre a primeira morte pelo vírus, em março de 2020, no Brasil, e oito de agosto, quando atingimos 100.000 óbitos. De lá para cá, os óbitos mais do que dobraram e os casos de infecção já são mais de oito milhões. A duração de um evento no tempo é referida ao momento imediato de seu início e ao ponto na linha em que atinge seu fim. No caso da Covid-19, no Brasil, com início em março de 2020, o fim ainda está em aberto.

Na narrativa de Homero, esses pontos são a partida de Ulisses para a guerra e sua volta para Ítaca. Diferentemente da narrativa grega, na Pandemia, a associação não se dá entre tempo e as vicissitudes do herói nos mares da Grécia, mas entre o tempo e os doentes e os mortos. Há sempre um ponto de início de um evento a ser marcado na linha imaginária de que falamos. Esta linha não pode ser ilustrada por uma régua. A régua pode servir para tomar medidas de tamanho e espessura da matéria inerte, mas não serve para o tempo, porque o tempo não é matéria, nem é inércia. A linha imaginária pode ser ilustrada, talvez, pela duração do barulho do tiro que marca o início numa corrida de atletas olímpicos e dizemos que queimou ao corredor que se antecipou ou se atrasou ao som do tiro. Na Pandemia, o início é marcado pelo diagnóstico que confirma o primeiro caso, e na corrida, pelo som. Isso talvez seja válido também para as notas musicais, cuja escrita representa a duração de cada som e a intensidade a ser produzida pelo instrumento, portanto, a duração.

Pensando dessa forma, podemos admitir que os avanços na medição do tempo podem dispensar artefatos que possuem massa e volume – o relógio, a ampulheta, o cronometro etc. Não podemos, porém, negar que avançamos muito em relação à antiguidade que usava o som do sino, da corneta, o canto dos pássaros, para localizar um ponto em nossa linha imaginária. Lá, a duração do tempo e sua medida exigiam familiaridade com o abstrato do som, com a intensidade da luz solar e a sombra projetada. Assim, o crescimento de Telêmaco e o tapete de Penélope possuem a materialidade que o som do sino, do canto do pássaro, do barulho da queda d’água ou da corneta não possuem. Se Telêmaco e Penélope nos interessam para pensar o movimento da natureza e o tempo cronológico e suas formas, servem também para pensarmos a possibilidade ou não de seu controle pelo homem. Os exemplos da nota musical, do som ou da luz solar projetando sombras fugazes nos mostram que não precisamos da materialidade dos instrumentos para perceber que o tempo passa e é como movimento que ele se projeta sobre nós, empurrando-nos para o passado, marcando o presente ou apontando o futuro. Só assim é possível saber que toda a referência de tempo é um ponto marcado na linha imaginária: ontem, hoje, vinte anos atrás...

Na pandemia, o que chama atenção é como lidamos com essa linha imaginária, enquanto expressão da duração no tempo, sob a ameaça da doença grave e da morte. Essa preocupação está presente nos textos desta seção especial. A Pandemia é uma questão que cabe à ciência responder, se as biociências podem responder sobre o movimento do vírus, a nós sociólogos, antropólogos e historiadores cabe pensar as condições sociais que possibilitam esse movimento. A desigualdade social, a pobreza, o emprego, a escolaridade, a informação e as política científicas e de saúde pública são parte da explicação do evento pandêmico. No contexto de incertezas sobre o futuro da pandemia e na falta de meios terapêuticos eficazes contra a ação do vírus, restam as medidas de proteção individual. Devemos lembrar aqui: a pandemia é um evento que atinge a sociedade e, como tal, de responsabilidade pública; portanto, seu controle é também uma atribuição pública, dos governos e do Estado. Cabe aos governos e ao Estado, ouvindo a ciência, encaminhar uma solução. Transferir a responsabilidade para o âmbito do indivíduo é transformá-la em um problema moral.

Isolar, distanciar, acelerar: o velho no tempo novo

A quarentena e o distanciamento social não são recursos novos – foram utilizados em epidemias passadas, principalmente durante a Peste Medieval, que assolou a Europa Medieval do século XIV ao XVI, e na Gripe Espanhola, no século XX. Se lermos Um Diário do Ano da Peste (Defoe, 2002) e Decameron (Boccacio, 1956) encontraremos em Defoe e Bocaccio relatos do que foi a tragédia medieval que dizimou dois terços da população da Europa. Qual a diferença da quarentena medieval para a quarentena imposta pela Pandemia de 2020? O que era o mundo no tempo da Peste e o que é o mundo no tempo da Covid-19?

Estou falando de dois eventos históricos que afetaram profundamente a civilização e cada indivíduo em particular, de formas distintas: o afastamento do convívio social, ao adoecimento e à morte.

Retomando a pergunta sobre a quarentena: o que ela tem de novo em relação à quarentena dos tempos da Peste Negra ou da Gripe Espanhola? Como nos sentimos diante dela? Por que tantos relutam em aceitá-la? Quais seus efeitos para a vida coletiva fundada na rotinização das tarefas e na racionalização do tempo, na modernidade? O que sabemos sobre a racionalização do tempo, a quarentena e a atividade humana em tempos de Pandemia em pleno século XXI?

A quarentena atual ocorre num momento da história e da civilização com o mundo desencantado, moderno. A física, a astrofísica e a biologia transformaram o mundo centrado no sagrado e no mito em objeto da investigação científica, da razão. A biologia, a física e a química transformaram o homem em massa, volume, sistemas e células. A criação divina cedeu lugar para a evolução e o que nossos sentidos veem, tocam e sentem se transformou em objeto da investigação e da explicação científica. O mistério acabou. Não existe nada que não esteja ao alcance da curiosidade e da investigação científicas. Os artefatos de medida e a aferição de tempo e do movimento comportam não só relógios, ampulhetas ou máquinas, mas também sistemas que executam a tarefa de medir o tempo com muita precisão. Falo aqui da incorporação dos recursos atômicos, absolutamente modernos e complexos, mas por vezes de manuseio simples, dado que estão incorporados em muitos instrumentos do dia a dia, mesmo que muitos de nós não saibamos. A passagem dos instrumentos mecânicos aos instrumentos movidos à energia solar são exemplos do que estou falando. Pode não haver nada aparente e nem mesmo físico que os conecte, no entanto, funcionam como se incorporassem, em seu interior, escondido de nossos olhos, um dispositivo mágico que lhes transmite energia de forma remota. Fazem parte desse grupo todos os instrumentos movidos a radioatividade e ondas eletromagnéticas e que parecem funcionar por si mesmos. Sem isso, não teríamos o que conhecemos hoje por mundo acelerado, produto dessas inovações, herdeiras dos primeiros artefatos criados para medir, acelerar e controlar o tempo, todos filhos da mesma mãe – a razão humana (Thompson, 1998; Elias, 1998).

Quando o tempo, progressivamente, se torna objeto de conquista da razão, seu uso é organizado em função de sua maximização. No mundo neoliberal e do mercado, os ganhos são diretamente proporcionais ao controle racional do tempo e o uso deste último é incorporado à organização das condições de produção da vida. Isso não é novo, está na base da discussão sobre a produção do capital, formulada por Marx e, do século XIX até hoje, só se assentou. Administramos a vida e os afetos, as relações com o outro, como se fôssemos a matéria-prima em uma linha de montagem.

A Pandemia nos obrigou a diminuir a velocidade da “esteira” e gerou a incerteza, por não sabermos como voltar a ela, e nem mesmo se voltaremos; assim como não nos ensinou como enfrentar esse tempo de desaceleração. Diz-se que há um novo normal (Borowy, 2020) em gestação, porém que bebê encantador ou que monstro poderá surgir disso, não sabemos. Desacelerados pela natureza, mas mantida a simultaneidade através da rede mundial de computadores, que nos coloca em contato com tudo e todos, em que lugar e em que tempo estamos? O que temos a dizer sobre nossa interação com esse outro tão distante e tão próximo, tão estranho e familiar ao mesmo tempo?

Talvez, o que possamos dizer é que nos encontramos num mesmo ponto da linha imaginária e que ainda somos indivíduos situados. Imaginária ou real, essa linha é ainda expressão da nossa condição humana e do desenvolvimento da razão, da ciência e da técnica, em suma, da civilização. Essa linha seria, então, o suporte representacional sobre o qual poderíamos ancorar a simultaneidade do tempo presente, embora ele negue as interações face-a-face? O tempo na modernidade atual tem dado conta de nos ajudar a entender essa possibilidade de estarmos aqui e ao mesmo tempo em outro lugar? Quantos espaços pode ocupar um corpo num mesmo tempo? Há que se refazer o princípio de Newton?

A simultaneidade da presença não coloca somente as perguntas sobre os mecanismos da transmissão de uma imagem em tempo real, mas coloca também a pergunta sobre o envolvimento que podemos sentir nessa condição. Assim, tempo virtual e tempo real se confundem, porque o tempo virtual e a simultaneidade que ele inaugura neutralizam o efeito do espaço enquanto distância entre dois pontos: tudo pode ser aqui e agora, embora só seja agora. Desde o momento em que se usou a tecnologia de comunicação via satélite, nossa casa é o mundo, tudo pode ser lá e aqui, aqui e lá, sem nenhum deslocamento no espaço. A Pandemia é aqui e lá, mas é a simultaneidade inaugurada pela rede mundial que a unifica em sua singularidade quando comparada a outras pandemias, e não a distância geográfica ou as fronteiras entre os países. É este sentido que precisamos agregar ao conceito, se quisermos tratar a Pandemia como fato social total. Se a racionalidade foi o ponto de inflexão da modernidade que permitiu a ampliação do controle sobre o tempo, os satélites de comunicação e a rede mundial de computadores nos permitiram elevar o grau desse controle incomensuravelmente, neutralizando a noção de espaço, borrando limites e acelerando sem deslocar, juntando o distante ao aqui. O longe não existe mais. A questão é saber os efeitos dessa operação para a socialização e a subjetividade das gerações que nascem na simultaneidade do tempo. Se não há mais o aqui e o lá, não há mais fronteiras. Embora, não seja isto o que as restrições à circulação impostas pela pandemia nos dizem.

Tomando o novo coronavírus como evento mundial, isolamento e distanciamento sociais representam a tentativa de aprisionamento do tempo e do mundo acelerado e a recriação das fronteiras e suas restrições. É o movimento natural do vírus, e não a razão, que determina a velocidade, o deslocamento e a aceleração, e mesmo os espaços intranacionais. A morte, aqui, age em seu sentido mais verdadeiro, imobilizando a civilização. Desde a Peste Negra e a Gripe Espanhola não se tinha notícia de um efeito tão devastador e tão rápido. Os efeitos, imaginários e reais, do adoecimento pelo novo coronavírus e a incapacidade da ciência em responder no tempo da infecção, a falta de uma profilaxia eficaz para conter o vírus, recuperaram uma prática profilática do mundo medieval. O que nos assusta é que o presente encontra o passado e o passado determina nossos movimentos no presente e nossa expectativa de futuro. O isolamento e a desaceleração do mundo e do tempo escancaram os limites da razão moderna no enfrentamento dos grandes eventos da natureza, as catástrofes. A mesma razão que desencanta e acelera o mundo e o tempo, borrando as estruturas da cronologia em favor da simultaneidade, ordena agora que o mundo desacelere. Nunca foi tão verdadeiro o dito popular, “parem o mundo, que eu quero descer!”. Se pudéssemos, desceríamos todos, mas, como no poema de Drummond, “Minas não há mais, e agora José?”. A metáfora acionada aqui transforma o mundo em um não lugar, para utilizar uma expressão da moda. O mundo como lugar que conhecíamos não há mais.

O movimento da natureza se impôs sobre o mundo e o tempo racionalizados. Faliram as engrenagens de um e de outro e mergulhamos todos na angústia de Penélope à espera de Ulisses. Até quando? Sabemos que Ulisses retorna, é do mito e do herói cumprir um destino, mas não sabemos a duração da espera. Se a angústia de Penélope comporta ausência e espera, diferentemente dela, não temos um tapete para tecer e desmanchar. Não há o que nos distraia.

As ameaças do vírus, o medo de adoecer e morrer, a vulnerabilidade da vida urbana instauram a angústia da convivência restrita e de um tempo que se apresenta interminável, uma espera sem fim. Quantos de nós tivemos que voltar a desenvolver atividades que já tínhamos esquecido ou que nunca nos foram ensinadas? Todos tivemos que compactuar com a desaceleração e desmanchar todos os tapetes da casa. Nem todos, porém, conseguiremos refazê-los, até porque poucos sabem tecer. Nossa subjetividade por demais marcada pela aceleração do tempo e do mundo, agora se ajusta a um repouso que cansa, e como cansa!

Referências

Boccaccio, Giovanni. (1956). O Decamerão. São Paulo: Martins Fontes.

Borowy, Iris. (2020). Covid 19: o que é o novo normal? Ou o que deveria ser. In Dominichi Miranda de Sá, Gisele Sanglard, Gilberto Hochman, Kaori Kodama (orgs.) Diário da Pandemia (p. 185-200). São Paulo: Hucitec.

Defoe, Daniel. (2002). Um diário do ano da Peste. Porto Alegre: Artes e Ofícios.

Elias, Norbert. (1998). Sobre o Tempo. Rio de Janeiro: Zahar.

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Rosa, Hartmut. (2019). Aceleração: a transformação das estruturas temporais na modernidade. São Paulo: UNESP.

Sanches, Leide da C., & Rasia, José Miguel. (2020). As Representações Sociais das Epidemias. Curitiba: Editora CRV.

Schwarcz, Lilia M., & Starling, Eloisa M. (2020). A Bailarina da Morte: a gripe espanhola no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras.

Sluga, Hans. (2017). Donald Trump: between populist rhetoric and plutocratic rule. A talk delivered at a Workshop of the Program in Critical Theory at UC Berkeley, March 2017.

Thompson, Edward P. (1998). Costumes em Comum. São Paulo: Companhia das Letras.

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