Dossiê

Recepción: 06 Septiembre 2020
Aprobación: 07 Diciembre 2020
DOI: https://doi.org/10.20336/rbs.775
Resumo: Analisa-se o processo de disseminação da pandemia do novo coronavírus no Brasil, em Manaus, Fortaleza e São Paulo demonstrando sua ocorrência em áreas de alta vulnerabilidade social. Parte-se da discussão sobre a pobreza, analisam-se os dados quantitativos, presentes nos Boletins Epidemiológicos da pandemia e sua dimensão no Brasil. O eixo analítico é a potência explicativa da discussão do efeito-território para a compreensão de uma faceta da desigualdade social. Discute-se a velocidade da disseminação do vírus, os alertas dos especialistas e cientistas e os equívocos e descasos do governo brasileiro. O resultante são 100.000 mortos até oito de agosto de 2020. É neste quadro de precarização geral da vida que ficam evidentes escolhas políticas e localização geográfica da pandemia.
Palavras-chave: coronavírus, efeito território, pobreza.
Abstract: The dissemination process of the pandemic of the new coronavirus in Brazil, in Manaus, Fortaleza and São Paulo is analyzed, demonstrating its occurrence in areas of high social vulnerability. It starts from the discussion on social inequality, analyzing the quantitative data, present in the Epidemiological Bulletins of the pandemic and its dimension in Brazil. The analytical axis is the explanatory power of the discussion of the territory-effect to understand a facet of social inequality. The speed of the spread of the virus, the alerts of experts and scientists and the misunderstandings and mismatches of the Brazilian government are discussed. The result is 100,000 deaths by August 8, 2020. It is in this context of general precariousness of life that political choices and the geographic location of the pandemic become evident.
Keywords: coronavirus, territory effect, poverty.
No dia 31 de dezembro de 2019, autoridades chinesas emitiram o primeiro alerta à Organização Mundial da Saúde (OMS) sobre uma série de casos de pneumonia de origem desconhecida na cidade de Wuhan. Em 23 de janeiro de 2020, a OMS reconhece a emergência na China, mas considera muito cedo para falar em “emergência de saúde pública de alcance internacional”. Em 27 de janeiro, a organização corrige a avaliação de risco diante do novo coronavírus (Sars-Cov-2), de “moderado” para “alto”. Já com casos confirmados em diversos países, no dia 30 de janeiro, é declarada emergência internacional de saúde pública devido ao novo coronavírus, demandando esforços internacionais para combater a, até então denominada epidemia, que só é alçada ao “status” de pandemia em 11 de março de 2020. Quatro dias depois, o Brasil confirma a primeira morte em decorrência da doença.
De acordo com a OMS, a definição de pandemia não depende de um número específico de casos, nem tampouco de um novo pacote de diretrizes. Considera-se que uma doença infecciosa atingiu esse patamar quando afeta um grande número de pessoas espalhadas pelo mundo, servindo como um alerta para que todos os países, sem exceção, adotem ações para conter a disseminação do vírus e para cuidar dos pacientes adequadamente. “Preparem-se, detectem, protejam, tratem, reduzam o ciclo de transmissão, inovem e aprendam”, recomendou o diretor da OMS, Tedros Adhanom1.
Este é um breve panorama do surgimento de um vírus potencialmente mortal que desacelerou o mundo, penetrou o cotidiano e é responsável por um dos maiores abalos que o neoliberalismo já viveu, maior que a crise de 2008, tendo feito, até o dia oito de agosto de 2020, de acordo com os dados oficiais, 100.000 vítimas fatais em território brasileiro. É neste quadro de morte, desemprego, desalento e precarização geral da vida que refletimos, em meio à pandemia. O marco temporal inicia em fevereiro e segue até oito de agosto, quando se tem cem mil mortos. Portanto, é uma análise de conjuntura, datada e com os possíveis vieses interpretativos do “calor da hora”. Se, seguramente, podemos afirmar que o Estado brasileiro não cumpriu as recomendações da OMS – o que se confirma pelo descaso do governante máximo com a pandemia, seu desprezo pela ciência e suas teses negacionistas sobre o vírus, além do desrespeito ao pacto federativo e à Constituição Federal quanto aos direitos sociais – o que nós, cientistas sociais, aprendemos até agora?
Entre crises e incertezas, buscamos analisar a evolução do novo coronavírus nas três primeiras regiões impactadas pela pandemia – São Paulo, na Região Sudeste, Fortaleza, no Nordeste, e Manaus, da Região Norte, cidades que apresentaram um elevado índice de infecção, proporcional à forte desigualdade social que as caracteriza.
Argumentamos que essa conexão – rapidez e letalidade – deve-se à forte desigualdade social e descompromisso do Estado brasileiro com a crise sanitária. Pressupomos que o desmonte do Estado social, vigente sob a forma de sistemas únicos e universais de seguridade social, já colocava a sociedade brasileira em condições de vulnerabilidade, atingindo pelo menos 50% da população (World Bank, 2020). Ou seja, se a pandemia afeta a todos os brasileiros, não os afeta da mesma maneira. Como bem explanado em editorial da Revista Radis, em parceria com a Fiocruz e o Conselho Nacional de Saúde (CNS), a expansão da pandemia de Covid-19 escancarou a perversa desigualdade social e econômica entre as classes sociais (Rocha, 2020, 3).
Para melhor caracterizar essa desigualdade, tomamos como base o Atlas do Desenvolvimento Humano nas Regiões Metropolitanas Brasileiras (PNUD, IPEA, & FJP, 2014), e, principalmente, o indicador denominado “Índice de Desenvolvimento Humano Municipal” (IDHM), que é uma adaptação do IDH aos indicadores regionais brasileiros. De acordo com a nota técnica divulgada no dia 27 de maio de 2020 pelo Núcleo de Operações e Inteligência em Saúde (NOIS), o IDHM parece ser um fator relevante para o desfecho dos pacientes com Covid-19.
Os três municípios aqui analisados vão de um extremo ao outro. Enquanto São Paulo ocupa o topo da lista das 16 Regiões Metropolitanas2, com um IDHM de 0,794, Fortaleza apresentou um IDHM de 0,732, ocupando a antepenúltima colocação e Manaus, com 0,720 de IDHM, ocupando o final da lista. Se todas as cidades apresentam IDHM alto quando considerados os diversos indicadores, níveis significativos de desigualdade intraurbana se destacam, os quais estão diretamente associados à evolução da doença nos três municípios analisados.
A desigualdade dentro dos municípios ainda é um fator marcante. Os resultados do presente estudo corroboram os achados da pesquisa do NOIS (Batista et al., 2020), uma vez que as regiões/bairros periféricos (com alto índice de vulnerabilidade social) das três cidades apresentaram, durante a evolução da doença, uma proporção maior de óbitos quando comparados com os bairros das regiões centrais (com baixo índice de vulnerabilidade social). Os dados disponíveis sobre a transmissibilidade do vírus e os riscos de adoecimento e morte permitem afirmar que a pandemia se agrava pela vulnerabilidade socioeconômica e acentua as inúmeras formas de desigualdades sociais.
Para dar conta da relação entre desigualdade social, pandemia e seus efeitos no território urbano brasileiro, organizamos este artigo em quatro seções. Na primeira, abordamos a discussão sobre pobreza e sua manifestação no território, que cria um padrão que utilizamos para descrever o “efeito-território”. Em seguida, apresentamos algumas vozes dos especialistas – cientistas sociais e organismos de pesquisa –, cotejando os alertas sobre os efeitos catastróficos que a omissão política e a desqualificação da ciência poderiam provocar. Na terceira seção, apontamos como a pandemia não impacta nem territorial nem socialmente, de forma homogênea, grupos sociais distintos. O que se quer é indicar a potência dos estudos quantitativos e manifestação da pandemia no território, a partir das três capitais que são sedes de aeroportos internacionais de fluxo de pessoas de diversas partes do mundo. Concluímos com breves reflexões sobre a distribuição desigual da pandemia por territórios da desigualdade, com prevalência nas áreas de pobreza.
Pobreza e efeito-território
O novo, aqui, é a situação de pandemia que pegou de surpresa a comunidade científica. A desigualdade social, ao contrário, é objeto recorrente. A sociologia, com longa tradição nos estudos sobre desigualdade social, e autores brasileiros como Fernandes, Salata e Carvalhaes (2017), Scalon e Santos (2010), Arretche (2015), entre outros, apresentaram análises importantes sobre o tema. Sem entrar nas diferentes vertentes analíticas, destacamos que é consenso o entendimento de que a desigualdade social brasileira não pode ser tomada somente a partir dos indicadores de renda, uma vez que ela é multidimensional e geograficamente heterogênea, atinge de forma distinta mulheres, pobres e pretos, impacta grupos sociais tradicionais como os indígenas, quilombolas e ribeirinhos, com maior ou menor nível de escolaridade e renda (Ribeiro, & Carvalhaes, 2020)3.
Mas a discussão sobre desigualdade social traz derivações em outros conceitos conexos como exclusão social e pobreza. Castel (1998) utilizará a denominação de desfiliado e Paugam (1999) a de desqualificado, para indicarem situações de elevação do desemprego, da precarização do trabalho e arrefecimento da proteção social que marcaram a experiência europeia desde o pós-segunda guerra até o final do século XX. Isso significa que a exclusão é resultado da experiência da perda, do ponto de vista econômico, de uma situação anterior de vinculação ao mundo laboral. Pode também incluir as dimensões do direito ao reconhecimento, particularmente, para negros, homossexuais, pessoas com deficiência, além dos favelados, da população em situação de rua, catadores de recicláveis, entre outros.
Já a noção de pobreza estabelece com mais clareza as condições de vida da população brasileira: grande contingente que sempre esteve à margem da sociedade, em processos que atravessaram várias gerações, sem acesso ao emprego formal, vinculando-se ao mundo do trabalho de forma autônoma ou como empregados precários, vivendo em habitações inadequadas, à margem da proteção social. E mais: reduzidos, do ponto de vista da cidadania, à condição de classes perigosas, vitimizados pela ação repressiva do Estado ou a subcidadãos, como diz Kowarick (2009), sintetizando o viver em risco dessas maiorias urbanas, permanentemente vulneráveis. Optamos, neste ensaio, pela dimensão da pobreza.
Na última década, com a publicação do Atlas da Vulnerabilidade Social nos Municípios Brasileiros (IPEA, 2015), já se destacava a necessidade de um esforço para ampliar o entendimento das situações tradicionalmente definidas como de pobreza, buscando exprimir uma perspectiva ampliada, complementar àquela atrelada à questão da insuficiência de renda. De acordo com o estudo, trata-se de noções, antes de tudo, políticas, que introduzem novos recursos interpretativos para os processos de desenvolvimento social, para além de sua dimensão monetária. Nesse sentido, a leitura desses processos, resultante dessa “nova” conceituação, pode dialogar e produzir efeitos sobre as propostas e os desenhos das políticas públicas, alargando seu escopo e colocando em evidência as responsabilidades do Estado, em todos os seus níveis administrativos, na promoção do bem-estar dos cidadãos (IPEA, 2015).
Atualmente, a sociologia analisa diferentes formas de segregação socioespacial que caracterizam as grandes cidades brasileiras. Num plano macro – nos termos de Marques, Scalon e Oliveira (2008) – observa-se a manutenção do padrão centro-periferia, que concentra nas periferias a maioria dos pobres e, nas áreas centrais, os grupos de média e alta rendas. Nesse sentido, as três capitais podem ser analisadas de acordo com esse padrão, em que a segregação é medida em grande escala (centro e periferia). Esse é um tipo de segregação que promove o isolamento das populações residentes nas periferias e se dá em vários aspectos, desde a distância física que separa essas regiões das áreas que concentram os postos de trabalho e serviços – em geral localizados nos bairros da região central – até o distanciamento em relação ao convívio com outros grupos sociais. A distância social, naturalizada pela distância física, acaba por legitimar o lugar de cada grupo, minimizando, dessa forma, o conflito.
Assim, o termo “efeito-território4” investiga, sob diferentes perspectivas, as formas de sociabilidade e as relações institucionais que se desenvolvem em um determinado espaço e suas possíveis relações causais. Além disso, pode ser entendido como os benefícios ou prejuízos socioeconômicos que acometem alguns grupos sociais em função da sua localização no espaço social das cidades. A hipótese sociológica a respeito do efeito-território não pressupõe uma ação determinista do espaço sobre as relações sociais, mas investiga as inter-relações entre as características dos espaços, como infraestrutura urbana, vizinhança, oferta de serviços e as características dos grupos sociais (Andrade, & Silveira, 2013).
Trata-se de um conceito que ajuda a exemplificar como o território é uma variável importante nos estudos sobre a produção e reprodução das desigualdades. Como se procura demonstrar, a pobreza, como uma das dimensões da desigualdade social, é um fator fundamental na disseminação da pandemia do novo coronavírus no Brasil.
A associação entre doenças e pobreza já é um tema clássico dos estudos sobre desigualdade. Muitos são os estudos que buscam identificar padrões de correlação entre as mesmas, dentre os quais podemos citar os trabalhos de Bastos e Szwarcwald (2000), Freitas e Cunha (2014), Benício e Monteiro (2000), que têm em comum a ênfase na vulnerabilidade dos territórios como uma variável explicativa de diversas enfermidades (pauperização da doença). De acordo com Lima (2016), a vulnerabilidade, nessa perspectiva, pode ser entendida como um contexto em que uma sociedade, grupo social ou população está inserida. Situação que a fragiliza diante de um risco, definindo sua capacidade ou não de enfrentar tal risco.
Diferentemente de outras doenças infecciosas e endêmicas associadas à pobreza, a Covid-19 se apresentou, inicialmente, como doença da elite, por ocorrer num contexto de sociedade e mercado globalizado e hiperconectado. A entrada simultânea do vírus em diferentes pontos do território com intenso tráfego internacional de pessoas permitiu sua rápida disseminação pelo país, o que se agravou por uma condição estrutural de baixo grau de informação à população, associada à alta densidade habitacional, mormente nos bairros mais pobres. Somam-se a isso, a dificuldade de acesso ao sistema de saúde, o sucateamento do SUS (embora tenha sido por meio de suas ações capilarizadas que o surto não foi maior), a falta de infraestrutura urbana (rede de água e esgoto e habitação decente) e ausência de política de mobilidade urbana que garantisse o transporte sem aglomerações humanas.
Para melhor caracterizar esta desigualdade, tomamos como base o Atlas do Desenvolvimento Humano nas Regiões Metropolitanas Brasileiras (PNUD, IPEA, & FJP, 2014), cujo banco de dados digital traz 121 indicadores, desagregados por bairros ou regiões ainda menores – Unidades de Desenvolvimento Humano (UDHs5) – relativos a áreas como educação, renda, saúde, habitação, população e saneamento, além do Índice de Desenvolvimento Humano Municipal (IDHM), que é uma adaptação do IDH aos indicadores regionais brasileiros. Este índice é composto por três indicadores principais de desenvolvimento humano: vida longa e saudável (longevidade), acesso ao conhecimento (educação) e padrão de vida (renda), variando de 0 a 1, sendo 0 pior e 1 melhor. Considerando a infecção por Covid-19, a chance de morte num munícipio com baixo ou médio IDH é quase o dobro do que num munícipio com IDHM muito alto, como demonstrado na Figura 1.
Se as três cidades vão, em termos de IDHM, de um extremo ao outro, a desigualdade dentro dos municípios ainda é um fator marcante. Os resultados do presente estudo corroboram com os achados da pesquisa do NOIS (Batista et al., 2020), uma vez que as regiões/bairros periféricos das três cidades aqui analisadas apresentaram, durante a evolução da doença, uma proporção maior de óbitos quando comparados com os bairros das regiões centrais. Ou seja, os dados disponíveis sobre a transmissibilidade do vírus e os riscos de adoecimento e morte permitem afirmar que a pandemia se agrava pela vulnerabilidade socioeconômica.
O giro da roda: de zero a cem mil mortos
No final de 2019, a imprensa chinesa noticia a presença de uma nova doença respiratória; no início de fevereiro de 2020, com a cidade de Wuhan em quarentena, o governo brasileiro rompe o silêncio e, sob forte pressão, retira os brasileiros da cidade chinesa. No dia 26 de fevereiro, é confirmado o primeiro caso em São Paulo6.
Janeiro e fevereiro são meses fundamentais para se preparar a estratégia de enfrentamento da doença no Brasil, quer na modelagem do atendimento de saúde, quer na definição dos mecanismos para informação da população. Os cientistas e pesquisadores entram em ação na busca de medicações, consórcios internacionais são estabelecidos para produção de vacinas, há uma guerra na compra de EPIs, cuja produção está centralizada na China. Instala-se o pânico.
O pouco que se fez como ação do governo federal, aconteceu até abril. Depois disso, houve um “lavar as mãos” através do repasse financeiro e de responsabilidade gerencial para os governos estaduais e municipais. Independentemente das divergências e polêmicas envolvendo o comando do Ministério da Saúde, o governo federal ignorou, desde o princípio, a seletividade das medidas não farmacológicas: “a higienização das mãos, a etiqueta respiratória, o distanciamento social seletivo ou ampliado e até mesmo o bloqueio total (lockdown)” (Brasil, 2020, p. 3).
Isso foi demonstrado por Motta e Feltran (2020, p.1), ao apontarem os alertas da comunidade científica:
As preocupações iam desde a ausência de pesquisas sobre o comportamento do vírus em ambientes como as favelas, ou a falta de modelos estatísticos e epidemiológicos para prever como a pandemia poderia se desenvolver nesses territórios, até o silêncio dos governos sobre planos e estratégias específicos para essas tenha se concentrado em territórios e sujeitos mais ricos, já sabíamos que seus efeitos, com o desenrolar da pandemia, seriam mais intensos e letais entre os mais pobres; que a desigualdade inicial do alastrar do vírus se inverteria.
A Fiocruz, referência nas pesquisas epidemiológicas brasileiras, já alertava sobre o risco de disseminação da Covid 19, após realizar um mapeamento das áreas de alta vulnerabilidade social e com maior proporção de população idosa e transmissão sustentada, em sete centros urbanos: Rio de Janeiro, São Paulo, Belo Horizonte, Porto Alegre, Fortaleza, Brasília e Manaus. O estudo conclui que “a combinação de um alto risco de introdução com alta vulnerabilidade constitui em situação de alerta máximo” (FIOCRUZ, 2020, p.1). Considerando o risco de contaminação, os municípios foram classificados de A (menos vulnerável) a D-E (mais vulnerável). O que esse estudo não mostra é a correlação entre risco e densidade habitacional, que afeta principalmente grandes metrópoles como São Paulo, Rio de Janeiro e Fortaleza.
Ainda em março, o Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional da UFMG (Cedeplar) (Cimini et al., 2020) e o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Moraes, 2020) apresentam os dois primeiros trabalhos indicando os óbices e inações do governo brasileiro para enfrentar a pandemia, cujo percurso fica cada dia mais extenso: entra pelas cidades com aeroportos internacionais de maior fluxo – São Paulo, Rio de Janeiro, Fortaleza e Manaus – é trazida por viajantes de classes alta e média, fixando-se inicialmente em bairros de maior renda nas capitais. Até então, é descrita como “doença dos ricos”.
O Ministério da Saúde divulgou os primeiros boletins epidemiológicos em abril, com os números disponíveis, com interpretação da situação epidemiológica e reflexão sobre as evidências e limitações de cada processo. Apresentou análise mais detalhada sobre o perfil da transmissão no Brasil por Unidade da Federação e Região de Saúde, destacando a construção de “uma nova história na saúde pública”, por se tratar de uma síndrome respiratória que apresentava uma série de questões que ainda não tinham resposta pela ciência, e enfatizando a capacidade de resposta do SUS (Brasil, 2020, p. 2-3).
Da combinação entre o potencial contaminante e uma estrutura social altamente desigual, o Brasil chega rapidamente aos primeiros lugares entre os países, nas taxas de infecção e no número de mortes. Em seis meses, o Brasil apresenta mais de 100 mil mortos, mais de 3 milhões de casos confirmados e, pelo menos, duas a três vezes mais casos de subnotificação. Só perde para os Estados Unidos em número de mortos. Não foi falta de alerta e nem de empenho dos cientistas. Inação pública, pobreza e alta densidade habitacional são fatores que, combinados, fazem da Covid-19 uma doença da pobreza, provocando mortes em massa. Combinar pobreza e território qualifica as formas da desigualdade, os grupos atingidos num território e, ao mesmo tempo, permite localizá-los em relação à distribuição da riqueza e do acesso aos direitos sociais.
Os casos: Manaus, Fortaleza e São Paulo
Escrevemos em plena espiral ascendente de infecções e mortes no Brasil, que figura entre os dez mais ricos do planeta e carrega um dos maiores índices de desigualdade social, que apresenta diferenças regionais seculares e enfrenta a pandemia em meio a uma crise econômica e reformas do Estado que geraram mais de 13 milhões de desempregados. Os dados disponíveis sobre a transmissibilidade do vírus e os riscos de adoecimento e morte permitem afirmar que a pandemia se agrava pela vulnerabilidade socioeconômica e pelo descaso do Estado e acentua as inúmeras formas de desigualdade social. Apresentamos, a seguir, as informações disponíveis para os casos selecionados.
Manaus
O primeiro caso confirmado na cidade de Manaus ocorreu em 13 de março. Segundo a Fundação de Vigilância em Saúde do Amazonas (FVS), no dia 27 de março, Manaus contabilizava 2.738 casos de Covid-19 e 256 óbitos: ou seja, em duas semanas, a crise sanitária estava instalada. O governo do estado, por meio de Nota Técnica nº 6, assim explicava os dados e isso pode ser visualizado no Mapa 2:
[…] os casos confirmados de COVID-19 ocorreram em 56 bairros de Manaus, com percentual de abrangência de 88% em relação ao total de 63 bairros da cidade. Segundo a FVS/AM (2020) ‘o bairro de Adrianópolis, apresentou o maior número de notificações com 39 casos. Seguido dos bairros, Parque 10 de Novembro (25) e Ponta Negra (23)’. Os bairros Adrianópolis e Parque 10 localizam-se na zona Centro-Sul e o bairro Ponta Negra na zona Oeste. Ambos possuem moradias com elevado padrão construtivo, população com elevado nível de renda em parte das áreas e disponibilidade de acesso a serviços de infraestrutura e saneamento (Aleixo, Silva Neto, Almeida, & Pereira, 2020, p. 4).

Ou seja, o governo estadual reconhece a importância do mapeamento da vulnerabilidade social como forma de contenção da doença no município de Manaus.
Um mês depois (30/04), conforme Mapa 3, a doença já se espalhara para todos os bairros da cidade de Manaus, que contabilizava, 3.273 casos confirmados e 312 óbitos (FVS). Chama a atenção o Mapa 4, que apresenta a distribuição dos casos graves da Covid 19 em Manaus e que desenvolveram a forma grave da doença, necessitando de internação hospitalar. Segundo a Nota Técnica, os bairros com elevada quantidade de casos graves da doença são também de vulnerabilidade social muito alta.
Comparando os períodos analisados pode-se evidenciar que as condições de vulnerabilidade social distinta estão espacialmente associadas a gravidade dos casos da COVID-19, sendo que o total de casos confirmados é elevado no bairro Parque 10 e Cidade Nova, que são bairros populosos e com elevada densidade demográfica. O parque 10 também representa elevada quantidade de população idosa. Entretanto, os casos mais graves da COVID-19 demonstram as contradições na produção e reprodução capitalista do espaço urbano, com condições de fragmentação e desigualdades marcantes que acometem a população mais vulnerável, com menor condição para prevenção e tratamento da doença (Aleixo et al., 2020, p. 6).


A divulgação desses dados coincide com o colapso do sistema de saúde de Manaus. Em 27 de abril, fazia uma semana que o município contabilizava uma média de 100 sepultamentos por dia. Um dia antes, o município teve o recorde de 140 óbitos em 24 horas. O cemitério Nossa Senhora Aparecida, no bairro Tarumã, Zona Oeste de Manaus, tornou-se emblemático e símbolo desta tragédia por concentrar a maioria dos sepultamentos desse período, com instalação de contêineres frigoríficos para armazenar corpos e abrir valas comuns para suprir a demanda de enterros.
Manaus é ilustrativa dos níveis significativos de desigualdade intrametropolitana, como destaca o Atlas do Desenvolvimento Humano nas Regiões Metropolitanas Brasileiras (PNUD, IPEA, & FJP, 2014), os quais estão diretamente associados à evolução da doença no município. A região com maior IDH-M da capital amazonense (que apresentava um IDHM de 0,720), comporta os bairros nobres de Nossa Senhora das Graças – Vieirópolis / Adrianópolis – onde a pandemia teve início – que, em 2000, apresentavam IDHM de 0,943, semelhante ao da Noruega (0,942, o maior do mundo na época). Já a Zona Oeste comporta os bairros periféricos Colônia, Terra Nova, Monte das Oliveiras, Santa Etelvina, Jorge Teixeira, e o bairro Tarumã, com IDH-M de 0,658, menor que o do Vietnã (0,688) e pouco maior que o da Bolívia (0,653).
Alheio aos acontecimentos, o prefeito da cidade, Arthur Virgílio (PSDB), em entrevista ao Globo News7, no dia 3 de maio, descartou adotar o lockdown, pois, segundo ele: “daria um quebra-quebra brutal. É uma determinação que ultrapassaria as minhas prerrogativas”. No dia 19 de maio de 2020, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) divulgou levantamento que explica a relação entre desigualdade social e a explosão do número de casos: Manaus possui 53,3% dos domicílios localizados em aglomerados subnormais (favelas, invasões, palafitas e loteamentos), sendo, ainda, a capital com a maior proporção de domicílios nessas condições entre todas as capitais do país (IBGE, 2020). Para essa parcela da população, as medidas de prevenção não farmacológicas, defendidas pelas autoridades sanitárias do país, são incompatíveis com sua realidade de pobreza.
Manaus, assim como o estado do Amazonas, começa a ter declínio nos casos e óbitos a partir da semana epidemiológica 19 (03 a 9/5) – como demonstrado no Gráfico 1.

Entretanto, apesar da diminuição, novos casos seguiam se concentrando nos bairros mais vulneráveis (Figura 2). De acordo com a FVS, na semana epidemiológica 27 (28/06 a 04/07), o bairro Ponta Negra (363 casos/100 mil hab.) e Tarumã (270 casos/100 mil hab.) tiveram a maior taxa de incidência de novos casos.

No dia oito de agosto de 2020, Manaus registrava um total de 37.267 casos confirmados e 2.050 óbitos. Ou seja, enquanto detém 1,04 % da população brasileira, a letalidade da pandemia representava 2,04% dos óbitos do Brasil.
Fortaleza
Em Fortaleza os primeiros casos, ocorreram em 15 de março. De acordo com boletim da Secretaria da Saúde do Ceará, tratava-se de três pessoas que viajaram para o exterior e tiveram a doença confirmada na volta ao Brasil. Este fato contribui para se entender como se deu a formação de “cadeias” de contágio em Fortaleza, que é a capital do Nordeste que mais recebe voos internacionais. Foram quase 50 casos no início de março, pouco depois do registro dos primeiros casos.
Em 19 de março, o município publicou o primeiro decreto de quarentena, influenciado pelo fato de a equipe de vigilância epidemiológica ter verificado um aumento de casos decorrentes de eventos sociais. Tal como verificado em Manaus, na fase inicial da transmissão, predominaram casos importados e seus contatos, com concentração de mortes em bairros de alto e muito alto IDH, para, em seguida ocorrer a dispersão do vírus para as regiões mais vulneráveis.
Para conhecer melhor a relação entre desigualdade social e a transmissibilidade do coronavírus em Fortaleza, a pesquisa “Propensão à epidemia grave de COVID-19 da população residente em bairros do município de Fortaleza” (Braga et al., 2020)8 buscou identificar os bairros potencialmente mais atingidos pela epidemia. Todas as informações aqui apresentadas se assentam nesses resultados. A pesquisa foi baseada na análise de três indicadores: carga de infectividade (casos notificados à Secretaria Municipal de Saúde até o dia 12 de março); carga de infecção (medida a partir da combinação da carga de infectividade e da mobilidade populacional entre os bairros da capital) e índice de vulnerabilidade epidêmica populacional (estabelecido a partir de indicadores sociodemográficos como proporção de população analfabeta, pessoas em extrema pobreza, domicílios sem água e banheiro, proporção de desempregados). O Mapa 5 apresenta os resultados da pesquisa.

Como se pode notar no Mapa 6, da distribuição espacial dos 376 óbitos nas primeiras cinco semanas epidemiológicas, esses casos ocorreram em bairros de alto e muito alto IDH, mas já se observa o início da dispersão do vírus para bairros mais vulneráveis, destacados no mapa anterior.

A partir de então, há um aglomerado contínuo de alta intensidade e com concentração nas regionais mais vulneráveis, a Oeste, e dispersão em bairros centrais. No período de 26/04 a 30/05, Fortaleza se tornou, de acordo com dados do Boletim Epidemiológico do Ministério da Saúde, a região do país com maior mortalidade pela doença. A macrorregião de saúde atingiu um coeficiente de mortalidade de 564,9 pessoas para cada um milhão de habitantes, superando os países que até então apresentavam os maiores índices de mortalidade, como o Reino Unido (com 536,1 mortes a cada milhão de pessoas) e a Itália (com 539,4).
De acordo com Dantas, Costa e Silva (2020, p. 10),
As maiores taxas de mortalidade se concentram nos bairros mais vulneráveis e adensados. Os pontos sensíveis da cidade migram, do aeroporto aos terminais de ônibus e estações de metrô. Gera-se, assim, uma nova comoção nacional, resultante das dificuldades enfrentadas por seus usuários, trabalhadores provenientes dos bairros pobres e a trabalharem nas áreas contaminadas. O isolamento social empreendido no país, deixou espaço aberto ao desenvolvimento de serviços, muito valorizados dentre os habitantes das áreas nobres, a justificarem um contato direto e frequente com os infectados sintomáticos e assintomáticos (empregadas domésticas, diaristas, cuidadoras, porteiros, faxineiros etc.). Manteve-se o direito de acesso a um conjunto de serviçais, expondo-os, assim, a uma contaminação quase certa. São estes trabalhadores, usuários do transporte coletivo, os vetores de um processo de contaminação em trânsito, em deslocamento de seu lugar de habitação ao de trabalho (e vice-versa) e com direito a conexão nos terminais de ônibus municipais, intermunicipais e estações de metrô.
Níveis significativos de desigualdade intraurbana associados à evolução da Covid-19 também se fazem notar em Fortaleza (IDHM de 0,732), uma vez que os bairros de alto e muito alto IDHM – Meireles (I e II), Alphavillle, Eusébio, Praia de Iracema, Varjota, Parque Iracema – com IDHM variando entre 0,915 e 0,945, também foram os que apresentaram os primeiros casos. O número de casos e mortes, no entanto, se estabiliza e diminui nesses bairros e passa a avançar para bairros mais vulneráveis, como Barra do Ceará, Mondubim, Vila Velha e Bom Jardim, cujos IDHM variam entre 0,567 e 0,569.
Em cinco de maio, o governador do Ceará e o prefeito da capital decretam o lockdown na cidade por 14 dias, que foi prorrogado até 31 de maio. Como demonstrado no Mapa 7, a transmissão começa a diminuir drasticamente, a partir de então. De acordo com o Informe Semanal Covid-19 de Fortaleza, houve uma diminuição em 71% das mortes (pessoas com endereço georreferenciado) nas cinco semanas corridas (SE 23-27), em comparação ao período similar anterior, e os casos, antes concentrados, passam a se dispersar por diversas áreas da cidade.

De fato, como demonstrado no Gráfico 2, a primeira fase da epidemia dura até o fim de março, quando a média de casos nos últimos sete dias se aproximou de 150. Outra fase, de maior magnitude, cresce a partir do início de abril até meados de maio, com média móvel de mais de 860 casos, no pico. A partir de então, inicia-se uma consistente tendência de redução do número diário de casos.

De acordo com o boletim, a evolução da doença no período de 05/07 a 03/08, foi o período de menor mortalidade. A distribuição espacial dos 166 óbitos ocorridos nesse período revelou a presença de aglomerados pontuais em diversos pontos da cidade.
No dia oito de agosto de 2020, Fortaleza registrava um total de 43.850 casos confirmados e 3.736 óbitos. No entanto, a média móvel9 de novos óbitos em Fortaleza foi de duas mortes por dia. A capital cearense alcançou, por duas semanas seguidas, menos de 10 óbitos diários em decorrência da Covid-19. Contrário ao argumento do Governo Federal, o lockdown, que se estendeu por todo o mês de maio, demonstrou sua efetividade, evitando mortes.
São Paulo
O primeiro caso do novo coronavírus no Brasil foi confirmado pelo Ministério da Saúde na quarta-feira, dia 26 de fevereiro de 2020, em São Paulo, capital. Em 12 de março de 2020, quando a transmissão se torna comunitária, havia 44 casos confirmados e, até o dia 31 de março, foram confirmados 1.438 casos, cuja localização está representada no Mapa 8.

A análise da distribuição regional dos casos mostra que a Unidade de Vigilância em Saúde Lapa/Pinheiros apresentou o maior número de casos, 284, seguida da Vila Mariana/Jabaquara, com 90. São regiões centrais com elevado padrão socioeconômico, sugerindo que esta incidência de casos estaria relacionada aos casos importados e seus comunicantes.
Ao longo dos meses seguintes, a doença avança para a periferia da cidade. No final de abril a região Sudeste era destaque por concentrar, em números absolutos, a maior quantidade de mortes por Covid-19 no país, embora o total de óbitos/milhão de habitantes fosse maior nas grandes regiões Nordeste e Norte. A cidade de São Paulo era, nesse momento, o epicentro da doença no Brasil.
Em 26 de maio, o município apresentava 51.852 casos, com taxa de letalidade10 de 7,16% (SIVEP-Gripe) e coeficiente de incidência de Covid-19 de 425/100.000 habitantes. É o momento em que ocorre a explosão do número de casos concentrados nas regiões periféricas da cidade. O mesmo ocorre com o número de óbitos, como se pode notar no Mapa 9.

Os Distritos Administrativos de Brasilândia (CRS Norte) e Sapopemba (CRS Sudeste) apresentaram o maior número de óbitos até 27/05/2020, seguidos pelos Distritos Administrativos Grajaú, Capão Redondo, Jardim São Luís e Jardim Ângela (CRS Sul), com 183, 163, 157 e 156 óbitos, respectivamente.
Em 3 de junho, a capital apresentava média de 2.500 novos casos por dia. Após ter registrado uma queda repentina, a média móvel se manteve estável por cinco dias, entre 1.940 a 2.023 casos até o dia 13 de junho. A partir do dia 14, a cidade registra maior número de novos casos, sendo que no dia 16 a média móvel foi de 2.807 novos casos. As mortes mantiveram-se concentradas nos bairros periféricos: Sapopemba, Brasilândia e Grajaú registraram cerca de 400 óbitos cada um.
Assim como em Manaus e Fortaleza, São Paulo também apresenta níveis significativos de desigualdade intrametropolitana associados à evolução da doença. Na capital paulista11 (IDHM de 0,794), o Distrito Administrativo do Morumbi tinha um IDHM de 0,938; já os Distritos Administrativos Brasilândia (0,769) e Sapopemba (0,786) – da periferia – apresentaram os maiores números de óbitos no período analisado.
Conforme o Gráfico 3, apesar da instabilidade, a cidade passa a registrar leves quedas no número total de mortes por Covid-19.

No dia oito de agosto de 2020, a maior metrópole do país registrava um total de 246.650 casos confirmados e 10.172 óbitos.
Retrospectivamente, observa-se que, após ter decretado lockdown por três semanas, Fortaleza vê a curva cair. Manaus, por pressão popular, em função da rápida explosão de casos, faz quarentena restritiva e diminui os casos. Mas parece existirem outros fatores que explicam esta queda rápida. São Paulo, que teve uma política agressiva e de muita informação à população, sofreu os impactos dos discursos divisionistas, não logrando efeito nas tentativas de isolamento social. Maior município em termos de população e riqueza, seu comportamento impacta no do restante do país. O Brasil, ao não conseguir achatar a curva, chega a agosto com um grau de estabilidade alto, sem recuo na curva, derivado do comportamento das metrópoles. Estas, fundamentais para a dinâmica da economia regional e nacional, territorialmente muito adensadas, são espaços de segregação social, naturalizada pela distância social, expressão da convivência contraditória entre riqueza e pobreza.
Reflexões finais
A análise do efeito-território permitiu desnaturalizar a segregação socioespacial e entender que a maior proporção de casos e de mortes ocorre em municípios de alto PIB e IDH. Nesses municípios, há um padrão de desigualdade intraurbana – com uma grande diferença entre o maior e o menor índice dentro de um mesmo município – que, como procuramos demonstrar, fez e ainda faz com que a doença tenha maior incidência junto às regiões mais pobres.
Também, coloca em evidência que questões de infraestrutura urbana – como alta taxa de densidade habitacional, falta de água potável e produtos de higiene etc. – resultam nas bases materiais impeditivas do distanciamento social. Soma-se a isso o não reconhecimento imediato do trabalho acumulado pelos programas como Saúde da Família que, embora com quadros desfalcados de profissionais, é o braço operacional do SUS que chega mais rapidamente a esses territórios vulneráveis.
A recusa do governo federal em reconhecer a centralidade dos especialistas em saúde pública e epidemiologistas exigiu que governos estaduais e municipais criassem suas próprias estratégias, muitas vezes conflitantes entre si, a partir do momento em que a doença já se espalhava.
A epidemia, por último, mostra que todas as áreas de conhecimento foram e devem ser ainda mais mobilizadas para um enfrentamento multidisciplinar: se vivemos o momento dos epidemiologistas e virologistas, suas pesquisas precisam estar assentadas em bons diagnósticos socioeconômicos, que contemplem as diferenças de gênero, raça, espaço territorial e renda, entre outros.
Em crises humanitárias como esta, somente uma gestão coesa, articulada e forte do Estado nacional e seus entes federados, por meio da democratização de bens e serviços de saúde, assistência social e renda mínima, é que pode construir as condições para que os pobres urbanos e rurais consigam atravessar a crise com minimização de danos.
Sob a cartografia da desigualdade, reafirmada por organismos como o Banco Mundial, há que se agir rapidamente, no sentido de construção de agendas propositivas para diminuição da pobreza. Afinal, o que ocorre nas três cidades analisadas é apenas uma das facetas da pandemia “à brasileira”: mitos como Norte pobre e Sul rico foram desmontados, e também se revelou a intransparência da divulgação das informações como mais um dos componentes do quadro da violação dos direitos fundamentais. O epicentro da pandemia e a forma como ela se dissemina no território, mostra uma das piores faces do binômio desigualdade social e pobreza: os territórios da morte, como uma atualização cruel daquilo que Kowarick (2009) denominava de vulnerabilidade socioeconômica e civil.
Referências
Aleixo, Natacha C.R., Silva Neto, João C.A.da, Almeida, Rayane B.de, & Pereira, Ulliane de A. (2020). Vulnerabilidade social e Covid-19 na cidade de Manaus-AM. Nota Técnica Covid-19 n° 006, de 20/05/2020. Manaus: Secretaria Executiva de Ciência, Tecnologia e Inovação (SECTI).
Andrade, Luciana T., & Silveira, Leonardo S. (2013). Efeito-território: explorações em torno de um conceito sociológico. Civitas, 13 (2), 381-402. doi: 10.15448/1984-7289.2013.2.14295
Arretche, Marta. (2015). Trajetórias das desigualdades: como o Brasil mudou nos últimos cinquenta anos. São Paulo: Editora Unesp.
Bastos, Francisco I., & Szwarcwald, Célia L. (2000). AIDS e pauperização: principais conceitos e evidências empíricas. Cad. Saúde Pública, 16 (1) [online], S65-S76. doi: 10.1590/S0102-311X2000000700006
Batista, Amanda et al. (2020). Análise socioeconômica da taxa de letalidade da COVID-19 no Brasil. Nota Técnica 11. Núcleo de Operações e Inteligência em Saúde (NOIS). www.sites.google.com/view/nois-pucrio
Benicio, Maria H. D’A., & Monteiro, Carlos A. (2000). Tendência secular da doença diarréica na infância na cidade de São Paulo (1984-1996). Revista de Saúde Pública, 34 (6) supl., 83-90. doi: 10.1590/S0034-89102000000700011
Braga, José U. et al. (2020). Propensity for Covid-19 severe epidemic among the populations of the neighborhoods of Fortaleza, Brazil, in 2020. BMC Public Health, 20 (1), 1486, 2020. doi: 10.1186/s12889-020-09558-9
Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. (2020) Boletim Epidemiológico Especial COE-COVID-19, n°14, de 26 de abril de 2020. Brasília: Ministério da Saúde.
Castel, Robert. (1998). As metamorfoses da questão social. Uma crônica do salário. Petrópolis: Vozes.
Cimini, Fernanda et al. (2020). Análise das primeiras respostas políticas do Governo Brasileiro para o enfrentamento da COVID-19 disponíveis no Repositório Global Polimap. Nota Técnica n. 1. Belo Horizonte: Cedeplar-UFMG. Disponível em: https://www.cedeplar.ufmg.br/noticias/1242-nota-tecnica-analise-das-primeiras-respostas-politicas-do-governo-brasileiro-para-o-enfrentamento-da-covid-19-disponiveis-no-repositorio-global-polimap
Dantas, Eustogio Wanderley C., Costa, Maria Clelia L., & Silva, Carlos Lucas S. da (2020). Fortaleza, de uma contaminação derivada dos lugares turísticos à transformação dos espaços de moradia em territórios de adoecimento e de morte. Confins - Revue franco-brésilienne de géographie, 45, 2020. doi: 10.4000/confins.29971
Fernandes, Danielle C., Salata, André R., & Carvalhaes, Flavio. (2017). Desigualdades e estratificação: analisando sociedades em mudança. Revista Brasileira de Sociologia, 5 (11), 86-112. doi: 10.20336/rbs.222
FIOCRUZ (Fundação Oswaldo Cruz). (2020). Estimativa de risco de espalhamento da COVID-19 nos estados brasileiros e avaliação da vulnerabilidade socioeconômica nos municípios. Relatório n. 3 preparado por Grupo de Métodos Analíticos de Vigilância Epidemiológica (MAVE) do PROCC/Fiocruz e EMap/FGV.
Freitas, Maria Isabel C., & Cunha, Lucio. (2014). Geotecnologias aplicadas na análise da vulnerabilidade social e ambiental: um estudo piloto em municípios do Estado de São Paulo. In Magda Lombardo, & Maria Isabel Freitas (eds.) Riscos e vulnerabilidades: teoria e prática no contexto luso-brasileiro (p. 109-129). São Paulo: Cultura Acadêmica.
IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). (2020). Aglomerados subnormais 2019: classificação preliminar e informações de saúde para o enfrentamento à covid-19. Rio de Janeiro: IBGE.
IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada). (2015). Atlas da vulnerabilidade social nos municípios brasileiros. Editado por Marco Aurélio Costa, & Bárbara O. Marguti. Brasília: IPEA.
Kowarick, Lucio. (2009). Viver em risco: sobre a vulnerabilidade socioeconômica e civil. São Paulo: Ed. 34.
Lima, Samuel do C. (2016) Território e Promoção da Saúde: perspectivas para a atenção primária à saúde. Jundiaí: Paco Editorial.
Marques, Eduardo, Scalon, Celi, & Oliveira, Maria Aparecida. (2008). Comparando estruturas sociais no Rio de Janeiro e em São Paulo. Dados, 51 (1), 215-38. doi: 10.1590/S0011-52582008000100007
Moraes, Rodrigo F. (2020) COVID-19 e medidas legais de distanciamento social: descentralização das políticas, relação com o número de óbitos e análise do período de 27 de abril a 10 de maio de 2020. Nota Técnica n. 19, maio de 2020. IPEA, Diretoria de Estudos e Relações Econômicas e Políticas Internacionais. Brasília: IPEA.
Motta, Luana; Feltran, Gabriel. (2020). Fazer morrer e deixar morrer: efeitos da Covid-19 e da estupidez nas periferias. Sociologia na Pandemia 9#. Publicações UFSCAR. Disponível em: http://www.ppgs.ufscar.br/sociologia-na-pandemia-9/
Paugam, Serge. (1999). Abordagem sociológica da exclusão. In Véras, Maura P. B. (ed.). O debate com Serge Paugam. Por uma sociologia da exclusão social (p. 50-62). São Paulo: EDUC.
PNUD (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento), IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), FJP (Fundação João Pinheiro). (2014). Atlas do Desenvolvimento Humano nas Regiões Metropolitanas Brasileiras. Brasília: PNUD Brasil, IPEA, FJP.
Ribeiro, Carlos Antonio C., & Carvalhaes, Flávio. (2020). Estratificação e mobilidade social no Brasil: uma revisão da literatura na sociologia de 2000 a 2018. BIB, 92, 46 p. doi:10.17666/bib9207/2020
Rocha, Rogério L. (2020) Editorial: Ficar em que casa? Revisa Radis, 212. 5 maio 2020. Disponível em: https://radis.ensp.fiocruz.br/phocadownload/revista/Radis212_web.pdf
Scalon, Celi, & Santos, José Alcides F. (2010) Desigualdades, Classes e Estratificação Social. In Carlos Benedito Martins (org.). Horizontes das Ciências Sociais no Brasil (Sociologia) (p. 77-105). São Paulo: Anpocs.
World Bank. (2020). Covid-19 no Brasil: impactos e respostas de políticas públicas. The World Bank (site), 10 jul. 2020. Disponível em: http://documents1.worldbank.org/curated/en/106541594362022984/pdf/COVID-19-in-Brazil-Impacts-and-Policy-Responses.pdf
Boletins Epidemiológicos Consultados
Brasil. Ministério da Saúde. Boletins Epidemiológicos Covid-19. Disponível em: https://coronavirus.saude.gov.br/boletins-epidemiologicos
Fortaleza. Secretaria Municipal de Saúde (SMS). (2020). Boletins Epidemiológicos Covid-19. Disponível em: https://coronavirus.fortaleza.ce.gov.br/boletim-epidemiologico.html
FVS (Fundação de Vigilância em Saúde do Amazonas). Secretaria Municipal de Saúde de Manaus. Boletins Epidemiológicos Covid-19. Disponível em: http://www.fvs.am.gov.br/publicacoes
São Paulo. Secretaria Municipal de Saúde (SMS). Boletins Epidemiológicos Covid-19. Disponível em: https://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/saude/vigilancia_em_saude/index.php?p=295572
SIVEP Gripe – Sistema de Informação de Vigilância Epidemiológica da Gripe. Disponível em: https://gitlab.procc.fiocruz.br/mave/repo/tree/master/Boletins%20do%20InfoGripe
Notas