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Arquitetura de mercados como processo social: trazendo o direito para a sociologia econômica institucionalista
Architecture of markets as a social process: bringing law into institutionalist economic sociology
Revista Brasileira de Sociologia, vol. 9, núm. 22, pp. 111-144, 2021
Sociedade Brasileira de Sociologia

Dossiê


Recepción: 24 Abril 2021

Aprobación: 20 Julio 2021

DOI: https://doi.org/10.20336/rbs.833

Resumo: Abordagens institucionalistas da sociologia econômica mostram que Estados arquitetam mercados e revelam, assim, a variedade de configurações institucionais da relação Estados-mercados em diferentes países. Menos atenção tem sido dada, contudo, aos processos pelos quais Estados, em meio a dinâmicas políticas, constroem, estruturam e regulam tais mercados. Neste artigo, argumentamos que uma razão subjacente a isso é o fato de que o direito, embora por vezes referido, é insuficientemente considerado nesses estudos. O argumento é desenvolvido a partir de um diálogo com os trabalhos de Dobbin, Fligstein e Vogel. Defendemos que tomar o fenômeno jurídico (i) como constitutivo de mercados e da ação estatal; (ii) como parte da disputa social em torno da institucionalidade; e (iii) como mecanismo estruturante das relações entre os planos doméstico e internacional, contribui, do ponto de vista analítico, para melhor compreender o processo social que subjaz à arquitetura de mercados.

Palavras-chave: institucionalismo, sociologia econômica, mercados, direito, recursividade.

Abstract: Institutional approaches in economic sociology shed light on how states create and shape markets, thus revealing the variety of institutional configurations of state-market relationships in different countries. However, little attention has been paid to the processes through which, amidst political dynamics, states effectively build, structure, and regulate such markets. The article argues that an underlying reason for this is that, while law is occasionally referred to, it is still insufficiently considered. The argument is advanced in a dialogue with the works of Dobbin, Fligstein, and Vogel. We argue that taking the legal phenomenon (i) as constitutive of markets and state action; (ii) as part of the social struggle over institutions design; and (iii) as a structuring mechanism in the domestic-international interface may contribute, from the analytical viewpoint, to better understand the social process that underly the architecture of markets.

Keywords: institutionalism, economic sociology, markets, law, recursivity.

Introdução

Mercados são construções institucionais e Estados são seus arquitetos. Essa é a conclusão mais geral de estudos institucionalistas da sociologia econômica, segundo os quais, ao longo da história, Estados usaram seu poder e sua maquinaria para forjá-los e institucionalizá-los.1 Ao reconhecer que mercados não são fenômenos espontâneos, homogêneos ou dissociados de contextos históricos, tais estudos se contrapõem a explicações do mainstream econômico, que naturalizam a organização da economia e trivializam o papel do Estado (Hirsch et al., 1987). Revelam, ainda, que mercados, em diferentes países, são estruturados a partir de uma variedade de arranjos e soluções institucionais, com forte participação de Estados e adaptados aos contextos políticos, culturais e institucionais existentes (Dobbin, 2004).2

Além do ganho analítico para a compreensão dos mercados, o esforço de mapear a diversidade institucional na conformação desses contribui para desmistificar o debate simplificado pela dicotomia que opõe “mercados livres” a “intervencionismo estatal” (Vogel, 2018). Opondo-se à maior parte das análises sobre as “reformas neoliberais”, desde os anos 1980, estudos da sociologia econômica institucionalista explicam que Estados não foram meros observadores da expansão dos mercados, mas seus principais promotores.3 Não se tratou, enfim, de “liberalizar mercados”, mas de fabricá-los política e institucionalmente (Monteiro, 2009).

Ao iluminar o fato de que mercados são contextual e institucionalmente organizados a partir da ação dos Estados, a sociologia econômica tem oferecido uma poderosa crítica às noções one-size-fits-all. Contudo, menos atenção tem sido dada à análise dos processos específicos por meio dos quais Estados efetivamente arquitetam, estruturam e regulam mercados. Isto é, encontram-se menos desenvolvidas nessa literatura as lentes para explorar os processos pelos quais Estados e mercados se conectam e nos quais mercados são conformados e alterados cotidianamente. Isso traduz um “ponto cego” não desprezível. Por isso, investigar as dinâmicas concretas de fabricação institucional de um mercado a partir da mobilização do arcabouço jurídico pelos atores pode contribuir para certos ganhos analíticos quanto aos limites da variedade institucional alcançada em determinado país, em cada mercado ou setor.

Assim, o argumento central desenvolvido neste artigo é que uma das razões para que os processos de arquitetura institucional de mercados por Estados sejam menos explorados por estudos institucionalistas da sociologia econômica está no fato de o direito, embora onipresente, ser insuficientemente considerado.4 O trabalho procura desenvolver o argumento a partir do diálogo com três autores influentes na sociologia econômica institucionalista – Frank Dobbin, Neil Fligstein e Steven Vogel. Descreve-se como cada abordagem interpreta a arquitetura institucional dos mercados e delineia a relação entre Estados e mercados, para evidenciar que embora mencionado de forma incidental por meio da referência a regras, por exemplo, não há qualquer aprofundamento sobre o direito por parte de tais autores.

Sugerimos, por fim, que incorporar o fenômeno jurídico pode, com ganhos relevantes, iluminar dimensões centrais dos processos de arquitetura de mercados. Por meio de uma fertilização cruzada de ideias e abordagens, o diálogo pode fortalecer tanto a sociologia econômica institucionalista através insights e ferramental analítico ainda pouco utilizados, quanto dela aproximar o pensamento jurídico, o que enriquece a agenda de pesquisa sociojurídica.

Estados e mercados na nova sociologia econômica

A nova sociologia econômica tem, há décadas, explorado as dimensões sociais, políticas e institucionais subjacentes ao funcionamento de mercados. Situando-se no campo dos estudos das organizações, com importante diálogo com a economia política, trabalhos institucionalistas desse campo, como de Dobbin (1993, 1994, 2004) Dobbin, Simons e Garret (2007, 2008), Gershenson e Dobin (2014), Fligstein (1996, 2001), Fligstein e McAdam (2012), Scoville e Fligstein (2020) e Vogel (1996, 2018), mostram a atuação de Estados como construtores de mercados, enfatizando que, desse ângulo, também expressam escolhas e arranjos políticos, culturais e institucionais. Como dito, apesar de suas abordagens apontarem caminhos para se analisar o papel do Estado na conformação institucional de mercados, deixam, por razões compreensíveis ligadas à formação desses autores, de considerar o fenômeno jurídico, o que obsta a compreensão de uma parte importante dos processos contínuos pelos quais Estados arquitetam mercados.

Frank Dobbin: tradições nacionais na economia

Dobbin (1993, 1994) formula uma abordagem centrada nas tradições culturais locais para explicar os padrões de organização econômica em diferentes países. Sua leitura busca se contrapor radicalmente às visões economicistas que previam a tendência de convergência institucional. Segundo elas, países tenderiam a convergir a um modelo mais eficiente de organização econômica e de política pública. Atores racionais do Estado e a ação de mercados internacionais, assim, explicariam um padrão de construção institucional tendente à homogeneização.

Em oposição a isso, Dobbin argumenta que o policy-making de cada contexto nacional é moldado por tradições culturais, de modo que suas organizações econômica e industrial serão sempre diversas entre si. A dimensão cultural seria central, nos termos do autor, pois constituiria a compreensão coletiva de ordem social e a racionalidade instrumental em cada país. Em Forging industrial policy (1994), Dobbin faz uma pesquisa histórica sobre as políticas de transporte ferroviário nos Estados Unidos, França e Inglaterra, entre 1825 e 1900, apontando as razões para a divergência institucional, ao verificar paralelos entre as instituições que organizaram a vida econômica desses países e aquelas que regeram sua dinâmica política.

Dobbin sugere que instituições estatais, moldadas por tradições culturais, dariam origem a diferentes concepções de eficiência industrial (1994, pp. 20-25). Nesse sentido, influenciariam visões e estratégias econômicas de governos e empresas: primeiro, determinando quais seriam os problemas a serem enfrentados; segundo, estabelecendo os “princípios de causalidade” usados para a solução de tais problemas. Diante disso, cada país elegeria, a partir de suas tradições culturais, as questões econômicas a serem endereçadas, bem como os mecanismos de predileção para solucioná-las. Mesmo os novos problemas econômicos ou industriais, o autor conclui, tenderiam a ser enfrentados com as tradicionais concepções e estratégias retóricas fornecidas pela cultura local, o que explica a existência e permanência de distintos padrões de organização econômica entre países.5

A explicação de Dobbin indica que os mesmos princípios utilizados na construção da ordem política organizariam a economia doméstica. Além disso, sugere que não apenas a pressão de grupos de interesse ou das forças de mercado, mas a “lógica da ação estatal” é um elemento definidor da continuidade das políticas de um país. Nesse sentido, mercados seriam moldados, em cada país, a partir de suas tradições e correspondentes “estilos regulatórios” (1994, p. 26).

Por outro lado, sua explicação está mais apta a explicar a permanência do que as mudanças das políticas econômicas. Em períodos de normalidade, a lógica institucional existente, construída por consensos culturais, seria continuamente aplicada. Em trabalho anterior, ao tratar das mudanças nas políticas voltadas à indústria nos Estados Unidos, Reino Unido e França, durante a Grande Depressão dos anos 1930, Dobbin (1993) argumenta que, em momentos de crise, políticas públicas poderiam gerar consequências não pretendidas e indesejadas, desmentindo os pressupostos de causa e efeito que lhes subjaziam. Somente em crises, novas estratégias de policies seriam desenvolvidas.

Vale dizer que mesmo as estratégias emergentes de política pública seriam definidas a partir da cultura política de cada país: em períodos de crise, novos tipos de política passariam a ser (culturalmente) percebidos como eficazes e poderiam perdurar, a depender de seus resultados. Contudo, fica ausente da análise, o papel central do próprio processo de construção da política pública na construção da lógica institucional. Em Dobbin, não há alteração institucional capaz de alterar a compreensão dos atores sobre seus interesses ou sobre o desenho mais eficaz de uma política pública. Isso porque as transformações substantivas de instituições se dariam, como visto, de modo externo a elas próprias, isto é, através da cultura – compreendida estaticamente – e em momentos de crise.

Ademais, pode-se dizer que a abordagem das tradições nacionais de Dobbin sugere uma relação externa e unilateral entre Estado e mercado. Políticas econômicas apenas transpõem para o mercado um conjunto de princípios e relações de causa e efeito consolidados no Estado pela tradição política e cultural do país. Não há, nesse sentido, interações e influências dinâmicas e recíprocas entre Estado e mercado, apenas uma linha direcional que vai da cultura ao Estado e das políticas públicas ao mercado – nunca o contrário.6

Recentemente, o autor procurou enfrentar alguns desses pontos. Gershenson e Dobbin (2014) argumentam que o atual desafio da sociologia econômica é, nesse sentido, explicar as causas e os padrões de mudança nos sistemas econômicos ao longo do tempo (2014, p. 7). Apresentam algumas explicações concorrentes em voga e situam trabalhos mais recentes de Dobbin entre os estudos que analisam “mudança institucional como um produto da difusão de instituições regulatórias entre fronteiras nacionais”. De fato, Dobbin e co-autores (Dobbin, Simmons & Garret, 2007, 2008) procuram compreender não a regularidade institucional de mercados em cada país, mas os fatores que explicam difusão de instituições regulatórias entre países.

Tendo como pano de fundo o fenômeno da liberalização econômica vivenciado concomitantemente por diversos países, os autores identificam quatro fatores que impulsionam difusão institucional internacionalmente: coerção, competição, aprendizado e emulação (2007, pp. 450-462; 2008, pp. 10-41). Para cada fator, os autores apontam atores e justificativas mobilizadas para, ao cabo, remodelar a relação entre Estados e mercados. Em contraste com trabalhos anteriores, Dobbin, Simmons & Garret (2008, p. 360) relativizam a ideia de que tradições culturais domésticas são elementos definidores dos padrões institucionais de cada país e abrem caminho para a análise de como Estados são centrais para a arquitetura de mercados, embora não o façam premidos ou influenciados por fatores que extrapolam fronteiras nacionais.

Apesar de lidarem mais diretamente com o tema da mudança institucional, esses trabalhos recentes de Dobbin e coautores não avançam na compreensão da relação entre Estados e mercados, que permanecem descritos por uma relação de exterioridade – atores estatais estabelecem políticas públicas (seja qual for a justificativa, entre as quatro mapeadas) que alteram mercado. Uma das razões para isso é que, apesar de mapearem “os mecanismos de difusão” regulatória, não exploram a fundo o que está sendo difundido: para além das justificativas, como se dão as dinâmicas de criação e alteração de normas, princípios e conceitos regulatórios por atores domésticos e internacionais? Como o processo de difusão institucional internacional se articula com dinâmicas políticas domésticas? São algumas questões que podem ser mais bem exploradas trazendo, como aqui propomos, o direito, para a análise.

Neil Fligstein: mercado como política

Fligstein (1996, 2001), por sua vez, desenvolve uma abordagem político-cultural da arquitetura institucional de mercados. Também se opondo à visão de que estruturas da “sociedade de mercado” seriam o resultado natural do desenvolvimento tecnológico e da competição de indivíduos e empresas autointeressados, Fligstein (2001) elabora uma teoria sociológica sobre a estruturação de mercados. Seu argumento central é que tanto as mudanças tecnológicas, quanto a competição seriam socialmente construídas e que a conformação de um mercado seria compreendida apenas em referência às relações entre empresas e Estado.

Para o autor, instituições de mercado resultariam da busca por mitigar a incerteza derivada da livre competição entre empresas, de modo a rotinizá-la e estabilizá-la. Redução de incertezas produzidas pela competição – e não a maximização de lucros – guiaria as ações de empresas, grupos e do próprio Estado. Sendo assim, instituições consistiriam em estruturas sociais que viabilizam a reprodução, no tempo, de trocas, definiriam papéis sociais, limites e possibilidades dos mercados, que variariam historicamente e entre diferentes sociedades. Nesse sentido, a construção institucional da estabilidade de mercado seria um projeto essencialmente político-cultural, sintetizado por sua metáfora de markets as politics (Fligstein, 1996).

Ações sociais se dariam em “campos” específicos arranjados em diferentes “culturas locais”, que definiriam as relações sociais entre atores. Os mais beneficiados por tais arranjos se denominariam incumbentes e os menos beneficiados, desafiantes. Nesses campos, as instituições vigentes seriam empregadas de modo a reproduzir os poderes sociais dos incumbentes, ao passo que os desafiantes tenderiam a questioná-las. Essa dinâmica, mais uma vez, tornaria a ação nos campos inerentemente política. A perspectiva de Fligstein implica ao menos três características dos mercados: (i) eles contêm princípios balizadores das ações de empresas; (ii) conformam-se a partir de rotinas e práticas que atores performam diariamente e (iii) congregam relações sociais hierárquicas (2001, p. 29).

Para o autor, empresas e Estados, ao reconhecerem problemas para estabilizar a competição em mercado – e, assim, reduzir incertezas –, teriam forjado historicamente estruturas sociais em mercado. Essas instituições – derivadas de leis, práticas ou costumes sociais, nos termos do sociólogo – se conformam em quatro principais tipos: direitos de propriedade, estruturas de governança, regras de troca e concepções de controle (2001, pp. 32-36). Em torno delas, atores organizam suas ações, competem e cooperam, estabelecem trocas de modo estável e regular. A partir desse esquema geral, o autor enuncia uma série de hipóteses sobre a arquitetura de mercados, a serem dedutivamente testadas por trabalhos futuros. São particularmente reveladoras aquelas que indicam a compreensão de Fligstein sobre (i) a relação entre Estados e mercados e (ii) os mecanismos de mudança institucional em mercado.

Na abordagem de Fligstein (2001, pp. 39-41), o market-building acontece simultaneamente ao state-building. Estados, apesar de serem um conjunto de campos – campos do direito, de política públicas e outros – distintos dos mercados, moldam e são moldados por eles. A atuação reguladora do Estado surge como demanda por parte das empresas pela mitigação de incertezas, sobretudo, segundo o autor, em momentos de crise. Por parte dos Estados, a estabilização de mercados também interessa, uma vez que parte relevante do exercício e da legitimidade de seu poder se relaciona à conformação de suas economias nacionais. Argumenta, citando Dobbin (1994) – apesar do argumento causal distinto –, que instituições estatais determinam padrões específicos de intervenção na economia, que tendem a persistir no tempo. Tais padrões constituem as instituições que, por sua vez, moldam os mercados.

Estados interferem nas práticas e regras que balizam a dinâmica entre incumbentes e desafiantes e sua ação é – até certo ponto – desejada pelos incumbentes, pois estabiliza a reprodução do mercado. Ao mesmo tempo, visto que a instabilidade em mercado afeta o exercício do poder estatal, Estados também têm boas razões para construir instituições estabilizadoras. Apesar da constatação de influência recíproca entre Estado e mercado, há, na análise de Fligstein, uma dimensão de exterioridade entre as atividades do mercado e as políticas públicas ou estruturas jurídicas do Estado. Para o autor, são campos distintos da ação de indivíduos e grupos, com interesses e dinâmicas próprias. E, ao derivar os interesses de atores de uma concepção teórica sobre “tendência à estabilidade” institucional, a abordagem confere um papel menor para a verificação empírica das relações entre Estado e mercado em cada contexto (2001, pp. 45 e ss.).

O autor propõe o que chama de “teoria exógena da transformação de mercado” (1996, p. 669), que confere reduzido espaço para análise minuciosa das mudanças de instituições. Como já visto, Fligstein (1996, 2001) argumenta que mercados tendem a reproduzir suas relações hierárquicas por inércia e apenas em situações excepcionais ocorreriam mudanças. Nas palavras do autor, “transformações de mercados existentes resultam de forças exógenas: invasão, crise econômica ou intervenção política por Estados” (2001, p. 84). Uma vez que a dinâmica institucional tende à conservação, pontuada por breves períodos de transformação, as mudanças deixam de ser analisadas como um processo avançado pelos próprios atores que as estabelecem.

Em trabalhos mais recentes, Fligstein e co-autores (Fligstein & McAdam, 2012; Scoville & Fligstein, 2020) procuram superar alguns desses pontos. Incorporam contribuições de outras abordagens institucionalistas para delinear uma “teoria dos campos de ação estratégica”. Embora não se restrinja à sociologia econômica, a teoria apresenta uma visão de como mercados são construídos e alterados em sua relação com Estados – que ilumina trabalhos anteriores de Fligstein. Segundo os autores, campos de ação estratégica são ordens sociais de nível intermediário (meso-level) a que atores se adaptam e nos quais interagem entre si a partir de entendimentos compartilhados – sobre o propósito do campo, os papéis sociais dentro do campo, sua relação com outros campos, e as “regras que governam a ação legítima no campo” (Fligstein & McAdam, 2012). Ao considerar a agência dos atores (coletivos ou individuais) um de seus pontos centrais, a teoria dos campos se mostra mais porosa aos processos pelos quais instituições (de mercado, entre outras) são criadas, se reproduzem e se alteram.

Campos se organizam a partir de incumbentes, desafiantes e unidades de governança. Essas últimas seriam responsáveis por garantir a aplicação de regras e a reprodução do campo, e, nesse sentido, também contribuiriam para manutenção das vantagens de incumbentes sobre desafiantes. Tais regras do campo são descritas como parte dos “entendimentos compartilhados” pelos atores, que serviriam para reforçar o status quo. Por outro lado, incorporando insights do institucionalismo histórico (em especial de Mahoney & Thelen, 2010) argumentam que campos de ação estratégica não são estáticos. A estabilidade de um campo é sempre relativa e alcançada como resultado do trabalho árduo de atores para reproduzi-lo (Fligstein & McAdam, 2012).

Mesmo em um campo estável, atores sociais habilidosos ou empreendedores institucionais realizam constantes ajustes que introduzem pequenas mudanças incrementais nesse campo. Tais atores buscam constantemente aprimorar sua posição no campo e assegurar cooperação de outros atores estratégicos. Na verdade, atores estratégicos habilidosos atuam em diferentes momentos da arquitetura de campos, mobilizando recursos, coalizões e regras para criá-los, reproduzi-los e transformá-los. Estados emergem como elemento importante para a estruturação de campos, em razão de “sua habilidade de prover[-lhes] legitimidade e estabilidade”. Mas Estados não constroem campos isoladamente – inclusive porque não são descritos como atores monolíticos, mas como um conjunto de campos. Antes disso, estabelecem constrangimentos e oportunidades para atores em campos não-estatais se moverem e formatarem-no (Scoville & Fligstein, 2020, pp. 83-84; 87-88). Para os autores, a relação entre atores do Estado e fora dele é, contudo, complexa, de influência e dependência recíprocas. Pensando na interação entre Estados e mercados, os autores oferecem uma abordagem mais atenta à dinâmica conflitiva e perene pela qual Estados e mercados se alteram ao longo da construção institucional.

De fato, nesses trabalhos, Fligstein e co-autores jogam luz ao papel contínuo dos atores sociais na arquitetura de um campo, e, por exemplo, iluminam que a estrutura institucional de um mercado se encontra em contínua mobilização e alteração. Por outro lado, a versão mais sutil sobre mudança institucional a partir dos atores não impede que os autores continuem adotando uma separação entre momentos de mudanças paulatinas (piecemeal) (menores) e de mudanças “dramáticas” (substantivas).7 Além disso, ao longo do texto, seguem analisando a estruturação e a alteração de campos a partir de hipóteses dedutivas sobre os interesses e os tipos de ações mais prováveis para atores em diferentes posições sociais e em diferentes fases do campo.8

Ademais, não exploram a fundo como as referidas regras que conformam o campo são criadas e implementadas pelos atores. Escapa-lhes que, nessa dinâmica, instituições não apenas garantem a estabilidade do campo mas propulsionam transformações substantivas ao longo de sua implementação , em razão de sua própria natureza.9 Uma análise mais acurada do fenômeno jurídico – que corporifica, ao menos parcialmente, essas instituições – pode revelar que a dinâmica política de definição de um mercado acontece por meio da implementação contínua das instituições que o conformam, o que possibilita mudanças substantivas mesmo endogenamente. Uma visão instrumental e de exterioridade entre o direito e os mercados (entendidos como campos) ainda permanece presente na análise de Fligstein e pode ser debatida e aprimorada por um diálogo com abordagens jurídicas sobre a arquitetura de mercados.

Steven Vogel: o artesanato de mercados

Em trabalho publicado recentemente, Steven Vogel (2018) apresenta uma abordagem institucionalista própria – ainda que em explícito diálogo com os autores acima referidos – sobre “como governos fazem mercados funcionar”, a partir do conceito de marketcraft. Também elegendo o senso comum liberal e sua defesa de “livres mercados” como adversários, Vogel argumenta que, do ponto de vista da atuação do Estado em mercados, a questão não seria se mercados devem ou não ser governados, mas como devem sê-lo.

Isso porque mercados não precisariam de instituições apenas para corrigir suas falhas, mas para tornar sua própria existência possível. A partir disso, Vogel considera necessário reformular a linguagem dos debates econômicos, frequentemente centrados na oposição entre “intervenção” e “liberdade” de mercados. Propõe uma abordagem voltada à desmistificação do “mercado ideal” e à correção das recomendações de política pública prevalentes no discurso público. Duas ideias inscritas nas proposições são particularmente relevantes: que mercados são ativamente criados e reformados, o que implica construir instituições e não somente eliminar barreiras ou reduzir incertezas e custos; e que Estados não se tornam menos relevantes em economias “liberais” de mercado, uma vez que são demandados a participar de novas formas de governança.

O conceito de marketcraft sintetiza a ideia de que mercados são artesanalmente construídos, o que implica dizer que não são espontâneos e que, tampouco, haja um modelo único para construí-los. Estabelecer um novo mercado ou expandir o raio de atuação de mercados existentes são, diz Vogel (2018, p. 4), empreendimentos construtivos, não destrutivos. Há sempre mais de uma forma de organizar institucionalmente um mercado, uma vez que os mecanismos de governança de mercado variam de contexto a contexto.

A noção de “governança” aqui, segundo o autor, substitui a de “governar”. “Governança” expressaria o compartilhamento de responsabilidades do processo entre atores do Estado e atores privados. Nesse sentido, Vogel argumenta que, para compreender a conformação de um mercado, é necessário examinar o papel do setor privado e do governo, bem como a interação entre os dois na governança de um mercado. Além da diversidade de atores, Vogel aponta ainda para três formas pelas quais uma governança se desenvolve. A primeira forma seria por leis e regulamentos; a segunda, por práticas e padrões; a terceira, por normas e crenças. Enquanto leis e regulamentos possuiriam como característica central serem vinculantes, formais e terem sua aplicação garantida pelo Estado, práticas e padrões teriam como característica central serem informais e predominantemente privados (2018, pp. 12-13). Normas e crenças, por sua vez, teriam características mais amplas: normas abrangeriam valores sociais, crenças envolveriam ideologias políticas – nas quais o autor inclui, curiosamente, as doutrinas jurídicas.10

Em reformas “orientadas ao mercado”, como resposta a “desafios de governança”, haveria a recombinação – e não a eliminação – das formas de governança e dos papéis dos atores. Nesse sentido, a ideia de que reformas de mercado se resumam a “liberar” forças privadas perderia a dimensão de que as condições para o funcionamento de mercados são fabricadas e não naturais. A passagem não seria de “mercados protegidos” para “mercados livres”, mas de “mercados menos desenvolvidos” para “mercados mais desenvolvidos”. A própria linguagem de “desregulação”, neste caso, revelaria um equívoco. Ao aumentar a competição de mercado, a regulação pública não se retraiu, mas aumentou. Aqui o autor retoma ideias de um de seus mais influentes trabalhos (Vogel, 1996), em que provocativamente argumenta que mercados mais livres, implicam em mais regras.

Vogel (1996) argumenta que, na verdade, como identificou em diversos casos analisados por sua pesquisa, foram os governos que capitanearam as reformas liberais de mercado11 – ao invés de se verem pressionados a fazê-lo por forças internacionais – ao expandir suas capacidades e força nesse processo – e não se retirando do setor econômico em reforma. A expansão da competição em mercado, também chamada de liberalização, não foi acompanhada de eliminação ou redução de regulações governamentais, isto é, de desregulação. Na verdade, a reorganização do controle privado nesses países indicaria a re-regulação de diferentes setores. Nesse sentido, apesar de reconhecer que pressões internacionais foram decisivas para os processos de liberalização, Vogel argumenta que cada país avançou esse processo de modo específico, a partir das políticas estatais.

Sua abordagem pressupõe que Estados possuam uma dupla condição: constituem estruturas em que atores se movimentam e são, eles próprios, atores. Isto é, de um lado, Estados avançam suas preferências e agendas próprias, de outro, organizam a institucionalidade das reformas. Nesse sentido, Vogel (1996, p. 19) argumenta ser necessário olhar tanto para as ideias, quanto para as instituições forjadas a partir do Estado. Chama de “regime regulatório” o entrelaçamento entre as ideias avançadas por atores estatais e as instituições estabelecidas por eles. Há, aqui, alguma sobreposição conceitual com o que chamaria depois de formas de governança (2018), mas, se combinadas as abordagens, é possível dizer que cada regime regulatório é, ao menos do ponto de vista do Estado, a junção das formas de governança vigentes (leis, regulações, práticas, padrões, normas e crenças).

Há, contudo, uma mudança do primeiro (1996) para o segundo (2018) trabalho, no que diz respeito à mudança institucional. No segundo, Vogel apresenta uma versão funcionalista de mudança institucional, embora seja pouco desenvolvida teoricamente. Para o autor, instituições seriam criadas e reformadas como “soluções” a “desafios de governança de mercado”, e, nesse sentido, sua capacidade de resolver determinado problema explicaria sua existência. A invenção dessas instituições, em outras palavras, atenderia à demanda de fazer mercados bancários funcionarem. Nesse sentido, Vogel analisa a criação ou reforma das instituições a partir dos problemas que almejam solucionar, tendo como pano de fundo geral viabilizar ou não o “florescimento dos mercados” (2018, p. 42).

No trabalho de 1996, contudo, o autor oferecia uma abordagem distinta: mudanças aconteceriam a partir de uma tensão entre instituições e ideias. Regimes regulatórios, de modo geral, seriam propensos à estabilidade, de modo que mudanças de regimes aconteceriam apenas em momentos específicos, de defasagem entre objetivos estabelecidos pelo Estado (ideias) e capacidades estatais (instituições) – quanto maior a defasagem, maior a mudança (1996, pp. 23-24). Enquanto ideias tenderiam a se alterar mais gradualmente, instituições “tende[ria]m a evolver em um padrão de ‘equilíbrio pontuado’, no qual longos períodos de estase são interrompidos por breves períodos de rápida mudança”.

Em tempos normais, ideias e instituições se aproximariam: capacidades estatais refletiriam objetivos do Estado e os objetivos se conformariam às capacidades – caminhando ambas “ao equilíbrio no longo prazo”, diz o autor. Em momentos de crise, contudo, a fissura entre essas dimensões motivaria governos a criar novas capacidades ou deslegitimaria os objetivos prevalentes. Nos anos 1980, diz Vogel (1996, pp. 30-37), diversos países teriam experimentado esse tipo de crise e iniciado processos semelhantes de reformas liberais. Contudo, cada processo nacional esteve ligado às políticas públicas e agendas domésticas, o que explica a variedade de formas de re-regulação (1996, p. 41).

De modo semelhante ao trabalho anterior (1996), Vogel (2018) argumenta que em novas economias liberais de mercado, que passaram por re-regulação, o Estado permanece exercendo um papel importante, apenas com uma nova combinação entre formas de governança. O desenho final da governança, segundo o autor, é o que explica se mercados puderam florescer ou não em determinada experiência nacional. E, independentemente da combinação de formas de governança alcançada em cada caso nacional, conclui o autor, o Estado tem sido central no desenvolvimento de mercados. Pretende, assim, afastar-se de um juízo normativo nessa conclusão. Mercados são descritos “como meios, não fins”. “Podemos construí-los (craft) para alcançar quaisquer propósitos que queiramos” (2018, p. 11, tradução nossa). Fortalecer o Estado, nesse caso, seria uma forma igualmente neutra de promover objetivos sociais – através do desenvolvimento dos mercados –, quaisquer que sejam eles.

A abordagem de Vogel ilumina muitos pontos. Ela evidencia que a arquitetura de mercados implica sempre uma tarefa de construir (e não destruir) instituições, e que isso é feito a partir de vários atores, incluindo o Estado, e por meio de diversos mecanismos. Marketcrafting e não “eliminação de restrições ao mercado” seria um conceito mais apropriado. A análise, por outro lado, apresenta limitações importantes. Primeiro, por apresentar duas noções, contraditórias entre si, sobre mudança institucional. Por um lado, o autor (1996) adere à noção de que instituições se alteram apenas em períodos de crise e o descompasso entre ideias e instituições seria o motor da mudança. Aqui, mais uma vez, a agência dos atores se daria em momentos específicos, visto que atores estariam, na maior parte do tempo, constrangidos pelas estruturas que o cercam.

Por outro lado, o mesmo Vogel (2018) apresenta uma visão que não deixa de ser funcionalista de mudança institucional, como se reforma ou criação de instituições apenas traduzisse uma solução pensada para um desafio de governança. Instituições seriam estabelecidas para que mercados funcionem. Há, neste caso, uma correspondência imediata entre agendas dos reformadores ou criadores das instituições e seu desenho final.

Ambas as versões de mudança institucional conferem pouco espaço para análise do processo político envolvido no andamento da arquitetura institucional de mercados. Em uma versão, atores são capazes de criar/reformar instituições apenas em curtos períodos, permanecendo constrangidos por instituições prévias a maior parte do tempo; em outra versão, atores disputam previamente à criação/reforma de instituições e estabelecem a solução vencedora para um desafio de governança. No entanto, a ideia de que atores constroem e alteram cotidianamente as instituições ao longo de seu processo de implementação foge às duas versões. Apesar de fazer referência ao direito – entre as formas de governança – o autor não se aprofunda na análise de como regras, princípios e categorias jurídicas são formulados e implementados continuamente, em processos que arquitetam e alteram instituições de mercado.

Além disso, no intuito de desmistificar o papel do Estado no artesanato de mercados – em especial, aquilo que está por trás da retórica liberal das reformas de mercado –, Vogel termina por situar as forças privadas de mercado como um mero pano de fundo do fenômeno a ser estudado, de modo que os interesses, as disputas e os constrangimentos que emergem dos mercados se perdem na análise (Krippner, 2007). Dito de outra forma, ao tomar os mercados como meios, sem conteúdo político ou efeito distributivo em si, o autor torna invisível a conformação política embutida na institucionalidade do mercado ao longo de sua construção ou mudança.12

No limite, as referidas reformas diriam respeito apenas à decisão (governamental) de desenvolver mais ou menos mercados, sem uma consequência política intrínseca ao processo. Mudanças de formas de governança aparecem como mudanças apenas do desenho da ação estatal e não do próprio desenho político da relação Estado-mercado. O Estado permanece o mesmo, apenas em outro formato. Por essa razão, a noção de que as mudanças são mais bem definidas como re-regulação dos respectivos mercados deveria ser o ponto de partida – e não a conclusão – de pesquisas, de modo a iluminar o processo de arquitetura de mercados.

Olhando para o processo: o direito e seu papel na análise institucional

Apesar de evidenciar que Estados são centrais na arquitetura de mercados, as análises institucionalistas apresentadas conferem menor atenção aos processos cotidianos pelos quais isso acontece. Assim, as abordagens apresentadas, apesar de avanços recentes, demandam aprimoramento para a melhor compreensão da atuação do Estado na construção de mercados como processo contínuo e conflituoso, realizado a partir da interação entre diferentes atores.

Pardi (2014), nesse sentido, argumenta que abordagens institucionalistas na sociologia econômica têm, de modo geral, falhado em sua análise da arquitetura de mercados como processo social. Tais abordagens tratam, segundo Pardi, as interações entre Estados e empresas na construção de instituições como uma “caixa-preta”, isto é, um fenômeno opaco ao público externo. Além disso, descrevem Estados como forças externas aos mercados, que lhes impõem uma institucionalidade de fora para dentro (Pardi, 2014, p. 7). Com poucas exceções, transformações em mercado são interpretadas por meio do cotejamento ex-post das mudanças institucionais, valendo-se, para tanto, com frequência, de idealismos ou funcionalismos. Crises ou choques exógenos aparecem, como deus ex machina, como gatilhos ou motores de mudanças institucionais e precluem uma análise mais detida dos processos de mudança, a partir dos atores.

Ao invés de se pensar no “mercado como política”, a partir de hipóteses dedutivas, como em Fligstein; ou na lógica institucional derivada estaticamente da cultura, como parece ser a abordagem de Dobbin, ou ainda no artesanato de mercados como mera escolha por mercados mais ou menos desenvolvidos, como em Vogel (2018), Pardi (2014) propõe investigar indutivamente a política do mercado como um processo social perene subjacente à sua institucionalização. Pardi (2014) argumenta que, para verificar os mecanismos e processos pelos quais Estados, efetivamente, constroem mercados, seria necessário trazer o policymaking para a análise, a partir de métodos mais empíricos de pesquisa (2014, pp. 8-9).

Avançando no argumento de Pardi (2014), sugerimos que a baixa capacidade dos estudos apresentados acima em analisar os meandros do processo social de construção institucional de mercados está ligada, entre outras razões, à menor atenção conferida não apenas às mudanças institucionais cotidianas em mercado a partir das ações de atores estatais e privados – a que Pardi busca analisar pela incorporação do policymking à análise –, mas ao fenômeno jurídico como um todo. O primeiro ponto já foi aprofundado por estudos do institucionalismo histórico (Thelen, 2004; Streeck & Thelen, 2005; Mahoney & Thelen, 2010) e construtivista (Blyth, 2002; Widmaier et al., 2007; Hay, 1999; 2008; 2016; Schmidt, 2010). Como visto, Fligstein e McAdam (2012) incorporam achados de alguns desses trabalhos e procuram indicar a importância de mudanças incrementais dos campos de ação estratégica – o que, de fato, representa um avanço. O segundo ponto ainda precisa ser mais bem explorado. A incorporação do direito à análise do papel do Estado na construção institucional de mercados é central demais para ser negligenciada.

Estado e mercados: a dimensão constitutiva do direito

Um componente central desse diálogo é o reconhecimento da dimensão constitutiva do direito – isto é, em acepção larga, regras, princípios, categorias formais e doutrinárias, interpretações e decisões jurídicas – nos fenômenos da política e da economia (Swedberg, 2003; Edelman & Stryker, 2004; Perry-Kessaris, 2015). A ação do Estado, por exemplo, pode ser de muitas formas explorada a partir de sua dimensão jurídica. Sobre este ponto, Coutinho (2013; 2015) argumenta que o direito é um elemento central da realização de políticas públicas e que, de diferentes formas – fornecendo instrumentos, estabelecendo objetivos, desenhando arranjos institucionais, ou viabilizando participação social –, o direito permeia intensamente as políticas públicas em todas as suas fases ou ciclos (2013, p. 193). Isso quer dizer que não basta a vontade política para que o Estado possa agir. Regras jurídicas desenham instrumentos de ação, criam horizontes normativos a serem alcançados, definem competências, estabelecem limites, e, por essa razão, não podem ser desconsiderados por gestores públicos (2013, pp. 194-197).

A ação do Estado na conformação do mercado é intensamente definida pelo direito. Se, de um lado, o direito não define completamente a ação estatal, pois ele próprio é passível de interpretação e disputas, de outro lado, ele estabelece um conjunto de diretrizes, instrumentos e procedimentos a partir do qual gestores públicos balizarão sua atuação. Mesmo nos casos em que o direito é modificado para viabilizar um novo tipo de política pública, a própria mudança jurídica é mediada pelo direito, que impõe procedimentos de validação e deveres de justificação pública. Enfim, ainda que políticas públicas não se esgotem no direito – envolvam ideologias, interesses, recursos financeiros, definição de agendas, apoio político, e assim por diante –, ele tem parte fundamental em sua estruturação e funcionamento.

Também por isso, o direito é um elemento central da atuação estatal na economia e, portanto, da própria economia política (Prado, 2009). Como argumentam Coutinho e Schapiro (2013), economia política refere-se “às formas de organização política e ao modo como elas atendem às necessidades econômicas das sociedades”, na qual o Estado “figura como protagonista de análise, na medida em que estabelece as conexões entre as preferências políticas e as demandas econômicas”. O direito, por sua vez, especificamente o direito econômico, seria a correia de transmissão que “traduz normativamente os objetivos de política econômica do Estado”.13 Em outras palavras, objetivos políticos formulados a partir do Estado convertem-se “em medidas e iniciativas concretas de política pública” por meio do arcabouço jurídico. Também por essa razão, os autores concluem que “oscilações da economia política” podem ser verificadas também pelas mudanças no direito.

A dimensão constitutiva do direito na economia não se resume, contudo, às ações do Estado como artífice da organização institucional dos mercados.14 Referindo-se ao mercado financeiro, Carruthers (2015) argumenta que o funcionamento de mercados se baseia em pré-condições ou fundações institucionais. Essas pré-condições são definidas juridicamente, mas têm como pano de fundo a economia política internacional: (i) direitos de propriedade que estabeleçam os objetos a serem negociados; (ii) regras que padronizem informações entre participantes e reguladores; (iii) regulação que balize a atuação privada – implemente regras de funcionamento, restrinja entrada e saída em mercado, defina alguns preços, e assim por diante; (iv) regras e mecanismos que ordenem o mercado em caso de falha de algum participante. Carruthers evidencia como a transformação dessas fundações, desde os anos 1980, foi parte substantiva do processo de reconstrução dos mercados financeiros conhecido como “financeirização” do capitalismo. O autor, nesse sentido, sugere que, embora a expansão dos mercados financeiros tenha sido um processo internacional e construído politicamente, pode ser compreendida em toda sua complexidade apenas quando considerado o fenômeno jurídico, que de fato a estruturou.

Política como processo no “direito em ação”

A definição do direito é sempre uma atividade política. A centralidade política do direito, em parte, deriva da legitimidade social que o fenômeno jurídico atribui às ações do Estado e aos mercados (Pistor, 2019, pp. 8; 15-18).15 Contudo, sua legitimidade não é uma condição estática. Ao constituir regras, atendendo a determinados interesses e não a outros, e produzindo implicações distributivas – originando “ganhadores” e “perdedores” –, o arcabouço jurídico figura no centro das disputas entre atores e grupos sociais.16 Isso fica evidente no processo e nos efeitos produzidos por leis, emendas constitucionais, decretos, portarias e regulamentos diversos. Vale dizer: grupos e atores buscam influenciar o processo decisório prévio à criação de normas jurídicas que definem as fundações institucionais de mercado.

A política do direito, contudo, não se limita ao momento anterior à sua formalização. Como estudos sociojurídicos exploram há décadas, o direito deve ser compreendido também pelo modo como normas formais são aplicadas em situações concretas. O problema do enforcement do direito, nesse sentido, é fundamental para a análise de sua relação com a política. Isso porque as diferenças entre “direito em ação” (law in action) – isto é, como o direito é efetivamente aplicado na prática – e “direito nos livros” (law on the books) – isto é, como aparece em normas formais – expressam que o ato de definir o direito vai além de sua promulgação (Halperin, 2017). Normas jurídicas podem ser interpretadas de diversas maneiras, de modo que a determinação de seu sentido é sempre uma atividade criativa, passível de disputa. Em poucas palavras, analisando sua criação e implementação, é possível acessar o processo político da arquitetura de mercados por Estados.

Como argumentam Miola e Picciotto (2021, pp. 17-18), as disputas interpretativas do direito não acontecem necessariamente pela falta de clareza ou má redação de textos legais. Essa dinâmica é parte da indeterminação inerente ao direito, em razão de ao menos três características.17 Primeiro, visto que o sentido do texto jurídico depende sempre das práticas sociais e do contexto a que se refere, um mesmo dispositivo pode ter mais de um sentido a depender do contexto de aplicação ou das práticas da “comunidade de especialistas” que o aplica. Segundo, conceitos jurídicos possuem variados graus de abstração e generalidade, o que garante razoável espaço para se interpretar como devem ser aplicados em situações específicas. Terceiro, uma vez que regras jurídicas são normativas, sua aplicação é necessariamente teleológica. Sendo assim, “avançar uma interpretação de uma regra jurídica é propor a conveniência (desirability) de uma norma ao invés de outra” (2021, p. 18, tradução nossa), de modo que diferentes agendas políticas culminariam em diferentes interpretações do direito.

A política do direito acontece nas sucessivas interações entre a criação e a implementação de normas jurídicas, o que se poderia chamar de “produção do direito”. Ao longo da produção do direito, normas jurídicas são elaboradas, alteradas, manipuladas ou ignoradas continuamente pelos atores sociais (Suchman & Edelman, 1996, p. 907), moldando, neste processo – como visto acima – a ação do Estado e a organização de mercados. Nesse sentido, a legitimidade atrelada ao direito também deve ser percebida como processo social, sendo produzida e disputada ao longo da própria definição do sentido de normas, regras, categorias, decisões jurídicas (Stryker, 2000, p. 192).

Por um lado, a legitimidade conferida à ação estatal ou à estrutura institucional de um mercado pode derivar da capacidade de o direito conferir a certas categorias a condição de taken-for-granted (tomadas como um dado, em tradução livre). Isto é, emprestando do direito seu alcance vinculante e disseminado nas relações sociais, a existência e o significado de certas categorias tornam-se pressupostos. Suchman e Edelman (1996, p. 937, tradução nossa) dizem que, por meio desse processo, a ordem jurídica – por exemplo, estruturando o funcionamento das relações entre Estado e mercado – ajuda a “reificar e naturalizar sua existência, sua relevância e seu conteúdo principal”. Já Edelman e Stryker (2004) argumentam que tomar categorias “como um dado” envolve a aceitação e a observância, por parte de atores, de construções particulares do direito, o que explica a sedimentação e naturalização de certas instituições.

Por outro lado, o processo social de construção de legitimidade de instituições pode derivar da disputa – essencialmente política – em que regras, conceitos, normas jurídicas são mobilizados como recursos (Stryker, 2003). Nesse caso, o direito é mais um elemento – com seu jargão e tecnicalidade própria – a ser utilizado por grupos e atores para avançar suas agendas políticas. Ao invés de naturalizar certas construções institucionais específicas, o direito pode moldar sua definição a partir da mobilização de diferentes interpretações. Regras, princípios e categorias jurídicas podem ser utilizadas como elementos de interpretação do contexto, como diretrizes normativas sobre o que deve ser realizado e como instrumentos para avançar agendas (2003, pp. 348-349). Em outras palavras, ao longo do complexo e disputado processo de interpretação do direito, atores o mobilizam como parte de sua compreensão de seu entorno, como valor a ser perseguido e como meio para alcançar um objetivo imediato (2003, p. 351).

Ou seja, o direito não é um elemento externo à política, visto que frequentemente a integra. Primeiro, a interpretação pelos atores de seu contexto e de suas possibilidades de ação é feita, frequentemente, também pela mobilização do direito. Isto é, os atores atribuem sentido à sua ação também a partir do modo como compreendem certas regras, princípios e categorias jurídicas. Segundo, o direito também estabelece fins sociais vistos como legítimos que servem para justificar ações dos atores. Nesse sentido, objetivos de sua ação não derivam apenas de valores individuais, mas são construídos com referência ao direito. Terceiro, o direito também fornece meios de ação, com formas e consequências próprias, que moldam as relações sociais. Cada tipo de instrumento jurídico utilizado, por exemplo, na fabricação de um acordo entre atores privados, de uma parceria público-privada, ou de uma política pública acarretará desenhos específicos de relação social.18

O reconhecimento da endogeneização do direito em relação à política pode ser um passo fundamental para uma análise da “política do mercado”, como referido acima. Sendo assim, as “formas de governança” de um mercado, no sentido descrito por Vogel (2018), implicam formas específicas de conformações políticas desses mercados, ao empoderar certos grupos e certas interpretações sobre o contexto, viabilizar certos objetivos e estabelecer meios específicos de ação. As disputas políticas em torno do mercado não apenas definem as formas de governança, mas acontecem a partir delas – e uma análise mais refinada do direito por parte da sociologia econômica das instituições pode jogar luz auspiciosa sobre essas questões.

Esse processo de mobilização contínua torna o próprio valor do direito como recurso da disputa política um “alvo em movimento”. Como sugere Stryker (2003, p. 351), o peso de cada regra, categoria, norma como recurso político não deriva automaticamente de sua qualidade formal. Antes disso, é construído discursivamente pelo próprio processo social de interpretação (e disputa) do direito. Contudo, como argumentam Halliday e Carruthers (2007, p. 1143), a forma jurídica não é irrelevante. O fato de o direito ser primeiramente estabelecido como dispositivo constitucional, como lei, como regulamento, como inovação jurisprudencial, ou qualquer outra forma determina como será compreendido, quais agentes serão competentes para mobilizá-lo, qual seu alcance, e assim por diante. Em suma, o direito é construído e mobilizado como recurso de poder político, tornando-se tanto o meio quanto o resultado do embate político (Edelman & Stryker, 2004, p. 533).

Em um processo complexo e não necessariamente coerente, o direito contribui para a construção de sentidos, identidades, papéis, normas, hierarquias de poder que conformam (institucionalmente) a relação entre Estados e mercados.19 Nesse sentido, para analisar os processos pelos quais Estados constroem mercados é chave explorar como o direito é transformado nas sucessivas interações entre direito dos livros (direito formalmente compreendido) e direito em ação (direito em suas manifestações concretas). Funk e Hirschman (2012) e Ravid e Schneider (2020) propõem uma classificação semelhante sobre mecanismos de mudanças jurídicas que podem iluminar a ideia de mudança institucional endógena. O primeiro é a mudança do direito formal. Alterações de textos jurídicos são os mecanismos mais visíveis de mudança, visto que são, em regra, documentadas publicamente. As disputas político-partidárias para a votação de leis ou emendas constitucionais, bem como as barganhas no interior da burocracia estatal entre diferentes grupos privados, políticos incumbentes e da oposição e funcionários públicos, para a elaboração de políticas públicas a partir da construção infralegal estão no centro da atenção da ciência política há anos (Lowi, 1964, 1972).

O segundo e o terceiro mecanismos ligam-se às transformações do direito durante a implementação de uma norma, embora a “letra fria da lei”, no jargão jurídico, se mantenha constante. O segundo mecanismo diz respeito às práticas de enforcement do direito. Embora a o texto legal permaneça igual e o sentido da norma não mude, a prática de aplicação pode ser alterada (Funk & Hirschman, 2012, pp. 16-17). Isso pode ocorrer quando atores, diante de um contexto distinto ou de práticas inovadoras, expandem ou reduzem o alcance de uma norma. Ao desenvolverem novas práticas para aplicar uma mesma norma, atores públicos moldam, por exemplo, as formas de atuação do Estado em mercado. Por se tratar de um procedimento que pode restringir ou ampliar o alcance da norma, o mecanismo pode impulsionar mudanças formais, que tornem pública sua abrangência diante de novas práticas ou de situações não previstas em seu desenho inicial.

O terceiro mecanismo é a mudança de sentido das normas existentes. Nesse caso, embora o texto legal permaneça idêntico, seu sentido varia no tempo (Ravid & Schneider, 2020, pp. 244, 255-256). Uma mesma categoria ou regra jurídica pode adquirir significados distintos ao longo do processo social de disputa interpretativa da implementação. Conceitos abertos, sobretudo, são frequentemente passíveis desse tipo de mudança. Por implicar um mecanismo mais sutil que os anteriores, mudanças do terceiro tipo têm a vantagem de evitar a participação de certos atores na definição do direito. Aliás, os dois últimos mecanismos de mudança jurídica podem ser preferíveis a alguns atores, pois garantem maior liberdade ao aplicador.

Descentralização institucional: atores e arenas na recursividade do direito

Halliday e Carruthers (2007, pp. 1141-1142) argumentam que a interação doméstica entre direito nos livros e direito em ação é, contudo, apenas uma parte do fenômeno da mudança jurídica. Estudos da sociologia do direito, eles afirmam, restringiram seu foco ao se centrarem majoritariamente nas lacunas entre normas formais e sua implementação. As dinâmicas da criação do direito, especialmente a interação entre criação e implementação do direito, deveriam retornar às análises jurídicas, sobretudo, considerando-se os processos de internacionalização do direito, para que possam captar o processo de mudança jurídica em sua completude. Nesse sentido, formulam uma abordagem capaz de analisá-lo em sua complexidade, a partir da dinâmica doméstica-internacional de produção jurídica – que chamam de “recursividade” –, no contexto de globalização.20 Esse ponto é importante para que os limites da atuação dos Estados na arquitetura de mercados sejam identificados. Sendo assim, o processo de construção de mercados passa necessariamente pelas interações domésticas e internacionais.

Como ponto de partida, Halliday e Carruthers (2007, 2009) argumentam que processos de criação, reformas e implementação do direito não se circunscrevem às fronteiras nacionais, pois se conectam (derivam, respondem, impulsionam) a normas e padrões globais articuladas por organizações internacionais e Estados nacionais. Nesse sentido, em diversas áreas, arenas internacionais de construção normativa influenciam processos domésticos de criação do direito. Isso esteve ligado ao processo de globalização, dizem os autores, no qual organizações internacionais, como o FMI, o Banco Mundial, as Nações Unidas, entre outras, têm construído “uma arquitetura financeira global, tendo o direito como sua principal fundação” (2007, p. 1136; 2009, p. 20). Essa empreitada global vem repercutindo em diversas áreas jurídicas nacionais, de modo que não se pode compreender as mudanças do direito sem referência às interações entre a produção jurídica doméstica e global (Wilkinson & Lokdan, 2018).

A influência de arenas globais sobre arenas domésticas na criação do direito, segundo os autores, acontece por meio de diversos mecanismos. No estudo de caso de Halliday e Carruthers (2007) sobre a difusão de regimes de falência, três mecanismos de influência são sugeridos como centrais: (i) pressão e chantagem por parte de organizações internacionais e outros atores internacionais para que se incorporem domesticamente determinados padrões globais; (ii) poder de persuasão das organizações internacionais sobre atores domésticos; e (iii) dimensão normativa dos padrões internacionais que servem como “melhores práticas” para reformas domésticas (2007, pp. 1146; 1154). Na interação entre atores nacionais e internacionais, tais mecanismos são decisivos para a forma de “incorporação” de normas e padrões criados em arenas internacionais por arenas domésticas. Aqui, os autores indicam um possível diálogo com Dobbin, Simmons e Garret (2007, 2008) apontando, contudo, que o processo de difusão regulatória deve ser analisado também a partir das especificidades do fenômeno jurídico – seus atores, suas disputas interpretativas, sua dinâmica descentralizada.

A influência externa, nesse sentido, não é direta, como se mudanças jurídicas internas aos países, em contexto de globalização, fossem direcionadas de fora para dentro. Segundo Halliday e Carruthers, mudanças jurídicas operam em ciclos de recursividade de criação e implementação do direito, que são domésticos e internacionais. No nível global, isso se dá por meio de ciclos iterativos de criação de normas por diferentes atores internacionais. Em diferentes arenas, diversos atores se engajam na criação de normas e recomendações aplicáveis a vários países. Esse processo se dá na forma de uma negociação contínua entre eles, nem sempre completamente coerente. Embora quais arenas e quais atores internacionais atuem em certo tema sejam um dado contextual, a descrição dos autores sugere um tipo de produção do direito internacionalmente descentralizada.

No nível nacional, isso se dá, então, por ciclos recursivos de lawmaking. Nesse ciclo as dinâmicas de criação e implementação do direito se influenciam mutuamente. No processo já descrito acima, de disputa interpretativa dos textos jurídicos, interna aos países, atores influenciam dinamicamente o sentido do direito e impulsionam continuamente mudanças. A dinâmica de recursividade doméstica também expressa uma via de mão dupla: ao mesmo tempo em que o “direito em ação” é fenômeno a ser explicado, deve também ser explorado como eventual estímulo para reformas jurídicas subsequentes; e ao mesmo tempo em que o “direito nos livros” deve ser explicado pela disputa política “pré-formalização”, deve-se explorar igualmente como seu processo de promulgação influencia sua implementação (Halliday & Carruthers, 2007, pp. 1151-1152).

Por fim, o último ciclo de mudança jurídica acontece pela recursividade doméstica-internacional, em que experiências nacionais são incorporadas no processo iterativo de criação de normas globais, ao mesmo tempo em que essas últimas influenciam a produção doméstica do direito. Um ponto importante é que a força de cada arena e ator varia de contexto a contexto e da etapa no processo de recursividade: diferenças de poder e de conhecimento, por exemplo, podem favorecer arenas e atores internacionais na promulgação do direito formal, ao passo que competências jurídicas conferem maior poder a arenas e atores domésticos na implementação.

Além disso, defendem os autores, as relações entre as dimensões internacional e doméstica podem ser tanto cooperativas quanto de contestação (2009, p. 25). Nessa dinâmica, são centrais para o processo de recursividade doméstico-internacional as disputas e negociações em torno do diagnóstico de problemas a serem solucionados pela mudança jurídica proposta. Alguns atores se tornam mais legítimos que outros para propor mudanças e determinadas interpretações do contexto ganham maior força social, o que joga luz sobre o papel dos “especialistas” na produção do direito (2007, p. 112).21 Como o processo de diagnosticar o problema persiste ao longo da implementação do direito, a disputa interpretativa entre atores acontece continuamente nas diferentes etapas. Ao longo da recursividade, o “direito em ação” ganha um sentido próprio – não necessariamente identificado ao que motivou a criação do direito de início – e pode, inclusive, impulsionar novas mudanças incrementais do direito. Nesse sentido, o processo de fabricação institucional fica mais evidente, acompanhando as mudanças jurídicas.

Considerações finais

Estudos da sociologia econômica institucionalista iluminam o papel do Estado na arquitetura de mercados. Indicando que cada experiência nacional comporta uma conformação institucional da economia e, portanto, de relação entre Estado e mercados, eles fornecem lentes poderosas para se criticar o uso de conceitos limitadores como “livre-mercado” ou “Estado interventor”. Contudo, como se argumentou aqui, abordagens da sociologia econômica institucionalista podem ser significativamente enriquecidas com a incorporação do direito ao quadro analítico para melhor compreensão dos processos pelos quais instituições de mercado são arquitetadas pelo Estado. O direito como lente de análise das ciências sociais permite que enveredemos nas minúcias e nuances do processo de arquitetura de mercados, ao iluminar como as regras e normas jurídicas são criadas, mobilizadas, ignoradas, alteradas ou aplicadas por atores, em um processo essencialmente político, de construção institucional e de recursividade no plano da economia política internacional.

O direito, ele próprio uma instituição, é constitutivo das instituições políticas e econômicas – ele lhes confere estrutura, substância normativa e função econômica. Argumentou-se que, a partir do entendimento de como o direito é criado e recriado no plano doméstico e internacional (em meio à recursividade), é possível, em suma, acompanhar a formulação de instituições formais, mas também as interpretações feitas sobre elas ao longo de sua implementação. Para tanto, contudo, faz-se necessária uma visão alargada do fenômeno jurídico – com o que este artigo buscou contribuir. Esse diálogo aponta para uma aproximação mais decisiva e robusta entre a sociologia econômica e a sociologia do direito do que se tem hoje.

O artigo argumentou, finalmente, que a política do mercado, de fato, acontece também no processo contínuo da produção do direito. Atores privados e estatais interpretam suas posições e possibilidades de ação e avançam suas agendas e interesses por meio do direito, em uma dinâmica complexa de disputa social da institucionalidade vigente. Observar o direito nesse processo – decifrar seu código, perseguir seu rastro, mapear sua influência e efeitos institucionais e econômicos –, pode ser algo revelador de fenômenos e de achados de pesquisa que, de outra forma, passariam desapercebidos. Por isso, atentar à dimensão jurídica, por vezes apenas pressuposta pela sociologia econômica institucionalista, contribuirá para uma perspectiva aprimorada de análise da arquitetura institucional dos mercados, ao abrir a “caixa-preta” das relações Estados-mercados e desvelar o processo social que lhe está subjacente.

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Notas

1 Os autores agradecem aos/às dois/duas pareceristas anônimos/as que fizeram sugestões e críticas valiosas a uma versão anterior deste trabalho.
2 Há, nesse sentido, uma aproximação implícita entre análises da sociologia econômica institucionalista com a ideia de “variedades de capitalismo” de Hall e Soskice (2001).
3 Fourcade-Gourinchas e Babb (2004) argumentam que tais reformas mobilizaram defensores e críticos que, apesar de suas avaliações com sinais trocados, convergiam na descrição de um Estado meramente passivo e expectador diante de atores privados fortalecidos ao longo do processo.
4 Isso ocorre, em boa medida, por conta do alheamento disciplinar do campo jurídico – em geral autorreferenciado e refratário à empiria – em relação às ciências sociais, mas não apenas. Tem relação, ainda, com o fato de que a compreensão dos papéis do direito nos processos de criação e institucionalização de mercados requer métodos de análise não suficientemente desenvolvidos na literatura institucionalista (Coutinho, 2017).
5 Dez anos depois, Dobbin (2004) apresentou os principais fatores que moldam as estruturas sociais de mercados. O autor apresenta instituições políticas ao lado de redes sociais, modelos e ideias econômicas como fatores que conformam mercados. Apesar da perspectiva mais abrangente, o autor confirma sua abordagem (Dobbin, 1994) ao tratar das instituições políticas, indicando que as instituições cumprem o papel de “estabilizar arranjo de mercados nacionais”, não ao criar incentivos aos atores, “mas pelas ideias de causalidade que elas representam” (2004, p. 4).
6 No mesmo sentido, Pardi (2014, p. 8) argumenta que a sequência causal do argumento de Dobbin limita sua explicação sobre a relação entre cultura, policymaking e mudança institucional, em favor da primeira: “Dobbin claims that the structure of markets in each national economy is determined by the cultural values embedded in policymaking and that institutional changes happen when there are shifts in values or in the way values are interpreted (Dobbin 1994). According to Dobbin, policymaking is therefore exogenous to markets, and dominant market actors have to adapt to the institutional environments produced by the state.”
7 Segundo os autores, mudanças substantivas nos campos ocorreriam “normalmente por meio de choques exógenos” (Fligstein & McAdam, 2012, pp. 99-104).
8 Pardi (2014, pp. 14-15) apresenta como fica evidente, nos estudos de caso de Fligstein e McAdam (2012), esse tipo de explicação a partir de hipóteses dedutivas.
9 Esse é, aliás, um ponto central dos trabalhos citados pelos autores ao tratarem de mudanças incrementais, como Streeck e Thelen (2005) e Mahoney e Thelen (2010), que evidenciam a mudança incremental e contínua das instituições em razão de suas características intrínsecas: ao serem implementadas comportam sempre interpretações diversas e, por isso, estão abertas a disputas e alterações cotidianas. O diálogo disciplinar aqui proposto visa, entre outras coisas, contribuir para aprofundar o exame do passo a passo da construção e implementação de instituições para incorporá-lo à análise dos mercados.
10 Uma classificação semelhante das dimensões institucionais é apresentada por Scott (2014, p. 75), ao indicar três pilares das instituições: reguladora, normativa e cultural-cognitiva.
11 A referência explícita do autor, neste ponto, é Karl Polanyi que, em seu livro clássico, A grande transformação (1944), descreve o papel decisivo dos Estados (e da ideologia liberal) para a construção do que chamou de “mercado autorregulável”.
12 No segundo capítulo, por exemplo, Vogel (2018) situa clivagens de interesses políticos em torno do desenho institucional de áreas específicas. Reconhece que determinados desenhos favorecem certos grupos em detrimento de outros. Contudo, talvez para que sua teoria se aplique a qualquer contexto histórico, trata as disputas entre grupos e as escolhas institucionais como elementos abstratos. No entanto, somente com referência ao processo histórico é possível compreender que, ao longo do processo de transformação neoliberal, há uma mudança abrangente da organização e das funções dos Estados e da relação Estados-mercados.
13 Mas não somente o direito econômico, haja vista a influência de ramos do direito não diretamente associados à regulação de mercados e às políticas econômicas sobre a vida econômica, como o direito penal, civil, empresarial, tributário, administrativo, ambiental, entre outros. Agradecemos a um dos/as pareceristas anônimos a sugestão de ressalva.
14 Sobre isso ver também Pistor (2013) e Deakins et al. (2015).
15 Neste ponto, o tipo ideal de dominação legítima racional-legal, baseada na aplicação universal de regras racionais e formais em uma jurisdição, formulado por Max Weber, forneceria o paradigma explicativo.
16 Nesse sentido, a fabricação do direito, nos termos de Chambliss (1979, pp. 156; 169), é parte do processo político de resolver conflitos e dilemas sociais ligados às contradições fundamentais da organização social e econômica.
17 No pensamento institucionalista, autores e autoras vêm incorporando alguns desses argumentos, que se encontram bem desenvolvidos nos estudos sociojurídicos como Streeck e Thelen (2005) e Mahoney e Thelen (2010).
18 Uma classificação dos papéis do direito nas políticas públicas pode ser encontrada também em Coutinho (2013).
19 Rose e Valverde (1998, pp. 454-546) argumentam, nesse sentido, que a análise deve recair sobre o “complexo jurídico”, que extrapola a visão do direito como um fenômeno unitário, e abrange o funcionamento de práticas e mecanismos jurídicos, diferentes arenas e atores, interpretações jurídicas que compõem as diferentes estratégias de regulação.
20 Essa abordagem, a seu modo, enfrenta o desafio apresentado por Cotterrell (2002) e Faria (1999), anos antes. Cotterrel (2002, pp. 641-643) argumenta que boa parte do pensamento jurídico derivava a natureza essencial do direito das noções de Estado-nação e do direito internacional tradicional (focado na relação entre Estados). O autor argumenta que “estudos sociojurídicos podem ajudar a redesenhar o mapa do direito, enfatizando como e porque a mudança dos contextos transnacionais e intranacionais força uma mudança nas próprias estruturas de regulação”, alcançando até a teoria do direito para a formulação de “novas concepções do direito”. Faria (1999), por sua vez, indica os desafios do direito positivo, centrado na noção de “Estado-nação”, diante de uma ordem socioeconômica emergente policêntrica. Diante do pluralismo normativo, no qual disposições jurídicas passam a ser emanadas de diferentes poderes internacionais, públicos e privados, o autor propõe a superação das análises jurídicas convencionais, de modo a estabelecer um novo paradigma do “direito na globalização”. Halliday e Carruthers (2007; 2009), partindo de um diagnóstico semelhante a esses trabalhos, conseguem formular uma explicação integrada entre processos jurídicos internacionais e domésticos no contexto de globalização, articulados pela dinâmica da recursividade, que ampliam o mapa de análise da fabricação do direito e, como esse artigo procura argumentar, da própria relação entre Estados e mercados.
21 Neste ponto, a noção de atores sociais habilidosos ou empreendedores institucionais (Fligstein & McAdam, 2012) poderia ser integrada à análise de como o próprio direito é interpretado a partir de diagnósticos específicos.


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