Artigos
Bem-estar e estratificação social no Brasil contemporâneo
Well-being and social stratification in contemporary Brazil
Bem-estar e estratificação social no Brasil contemporâneo
Revista Brasileira de Sociologia, vol. 9, núm. 22, pp. 196-221, 2021
Sociedade Brasileira de Sociologia
Recepción: 13 Marzo 2020
Aprobación: 26 Enero 2021
Resumo: Com o objetivo central de avaliar o processo de mobilidade social no Brasil contemporâneo, foram construídos dois indicadores socioeconômicos que mensuram a origem e o destino das pessoas, tendo por diferença básica em relação aos estudos clássicos a construção de índices com base no acesso ao bem-estar social elementar. Esses indicadores foram avaliados simultaneamente com o fator educação escolar. Observou-se que a transmissão da vantagem socioeconômica no Brasil possui um duplo caminho, (i) investimento em educação formal e (ii) transferência direta de bem-estar socioeconômico entre parentes, o segundo fator com a maior significância. Interpreto o Brasil como uma sociedade que não é meritocrática, em virtude de o poder da educação escolar em modificar os resultados dos indivíduos em fase adulta ser estatisticamente inferior ao efeito da herança socioeconômica, ao assumir que existe uma corrida entre os indivíduos por recursos e que tudo começa antes mesmo do nascimento.
Palavras-chave: desigualdade, bem-estar social, educação escolar, estratificação social.
Abstract: With the central objective of evaluating the process of social mobility in contemporary Brazil, two socioeconomic indicators were constructed that measure people's origin and destination, having as a basic difference from the classic studies the construction of indexes based on access to elementary social welfare. These indicators were evaluated simultaneously with the school education factor. So that the transmission of socioeconomic advantage in Brazil has a double path, (i) investment in formal education and (ii) direct transfer of socioeconomic welfare among relatives, the second factor with the highest significance. I interpret Brazil as a society that is not meritocratic, because the power of schooling to modify the outcomes of individuals in adulthood is statistically inferior to the effect of socioeconomic inheritance, assuming that there is a race among individuals for resources and that everything begins even before birth.
Keywords: inequality, social welfare, school education, social stratification.
Introdução
Os modelos1 evolutivos e econômicos de transição demográfica foram desenvolvidos de modo a abarcar a passagem das economias de subsistência para economias de mercado. Isso levou ao aumento da dependência em relação a habilidades adquiridas por meio da educação formal, com a concomitante desvalorização do trabalho infantil, e ao sucessivo fortalecimento da ligação entre o investimento parental e os resultados dos herdeiros, o que incentivou a limitação da fertilidade e a extensão adicional da dependência juvenil (Hill & Kaplan, 1999; Hedges et al., 2016). O período moderno é conhecido pela longa dependência dos filhos em relação a suas famílias, envolvendo um tempo considerável de preparação e desenvolvimento de habilidades complexas, adquiríveis por meio da aprendizagem social (Hill & Kaplan, 1999; Kaplan et al., 2000; Mace, 2000; Hedges et al., 2016). Como esse tipo de investimento é elevado e continuado, os grupos sociais que não possuem recursos não são capazes de fazer os aportes necessários para que seus herdeiros adquiram as habilidades com alto retorno no mercado de trabalho, o que gera desigualdades de bem-estar em outras etapas da vida. Grosso modo, os pais que fazem doações de qualquer espécie para seus herdeiros aumentam as chances de vida desses indivíduos, do mesmo modo que o bem-estar social também aumenta as capacidades individuais.
À medida que os filhos deixam de ser vistos como mão de obra por suas famílias e passam a ser vistos como investimento, as famílias começam a investir de maneira mais robusta na educação de seus herdeiros. Em uma sociedade na qual a classe não é mais, exclusivamente, herdada, mas, em certa medida, conquistada, os indivíduos se tornam os arquitetos das suas próprias vidas, já que devem fazer seu destino. Entretanto, este argumento possui algum sentido empírico ou se trata de um mito? É possível escolher o próprio destino socioeconômico ou as pessoas estão fadadas à reprodução social?2
Para responder a esta questão, buscamos ajuda nos trabalhos de Seymour Spilerman e Florência Torche, que descrevem os mecanismos da inequidade tanto sob a perspectiva do mercado quanto sob o viés privado ou das famílias. O mecanismo descrito por esses autores envolve três condições: a) o investimento em capital humano por parte das famílias (Blau & Duncan, 1967); b) o retorno ao capital humano na idade adulta (Schultz, 1961; Becker, 1965); c) a transferência patrimonial direta aos herdeiros, avaliada pela correlação entre o bem-estar na origem e no destino – variável evidenciada por uma miríade de fatores, desde a herança direta de propriedade, a chance de participação na força de trabalho, a probabilidade de casamento e de casamento endogâmico, até o capital social e cultural da família (Spilerman, 2000; Torche, 2015).
Em um sentido correlato, porém com dados e informações do Brasil, o intuito central é propor um indicador empírico associado ao bem-estar social, que seja capaz de subsidiar uma avaliação dos fatores que afetam os níveis de desigualdade e estratificação social, a partir de uma variável independente que reflita a origem social dos indivíduos. A partir de um indicador de bem-estar social, pode-se ver outra parte das sociedades – a face “oculta” e importante do bem-estar das famílias brasileiras e, bem mais do que isso, como essa condição de origem, relacionada ao bem-estar, afeta a vida dos herdeiros das diferentes e desiguais famílias brasileiras. Grosso modo, o que importa mais? O fluxo de renda que o indivíduo é capaz de gerar em sua fase produtiva ou sua herança social e familiar?
O artigo busca oferecer contribuições tanto do ponto de vista metodológico, quanto para o campo de estudos sobre desigualdades sociais no Brasil. O índice construído é um indicador do bem-estar geral e se constitui em uma forma de estratificação social, como as outras formas reconhecidas socialmente – educação, ocupação, renda e gastos com consumo. O intuito, aqui, é comparar, por meio de análise de trajetórias (path analysis) diferentes facetas das inequidades sociais.
Sumariamente, o artigo contempla duas grandes seções, uma com foco na abordagem da desigualdade associada ao bem-estar das famílias, ou “desigualdades de estoque”, e outra destinada às abordagens usuais ancoradas na ocupação e na renda proveniente da ocupação – desigualdade associada ao mercado de trabalho ou “desigualdades de fluxo”. Nessa perspectiva, o trabalho está dividido da seguinte maneira: em um primeiro momento são descritos os diferentes níveis e dimensões das desigualdades e, em seguida, é desenvolvida a noção de bem-estar. Em outro momento, aborda-se os estudos sobre “desigualdade” e “estratificação social”, as correntes principais desenvolvidas, os autores clássicos e as suas ideias básicas acerca da estratificação. A seguir, apresentam-se informações sobre os dados3 utilizados e a metodologia ou o caminho seguido para alcançar o objetivo. Depois, os resultados e, por fim, são tecidas algumas conclusões e comentários finais.
Desigualdades de mercado e desigualdades familiares
O exame das características e causas das desigualdades sociais representou um importante objetivo de pesquisas, principalmente na segunda metade do século XX, com um pico de análises entre os anos 1970 e 1980. Essa prática decaiu nas décadas subsequentes, como um possível reflexo do declínio da abordagem sociológica de viés economicista, como no caso das teorias marxistas, que veem as relações de mercado como o fator principal a afetar o comportamento social. Nesse esteio, a desigualdade foi vista como uma consequência direta da posição individual no processo produtivo, a partir de uma forte influência do pensamento econômico. Weber (1958) não reconheceu a tese marxista de classe e, por esse motivo, ofereceu um modelo analítico mais alargado, referente tanto às relações de classe, como também às relações sociais que ocorrem no interior das unidades orçamentais, este último conceito referido aos grupos de amigos, colegas, familiares etc.
Diversamente de Marx (2005)4 que se manteve fiel à tradição econômica, Weber (2003) reconheceu pelo menos duas dimensões como definidoras da posição social em sua teoria social – uma relacionada ao mercado produtivo (estrutura) e outra à familia e aos grupos de status (unidades orçamentais) –, propondo que existem pelo menos dois caminhos para o entendimento do processo social de estratificação. Uma parte da divisão desigual dos recursos sociais é devida às relações sociais de trabalho, o que chamou de “desigualdade de classe”, enquanto a outra parte é devida às desigualdades históricas entre as diferentes famílias, o que chamou de “desigualdade de status”, da mesma forma que são importantes as diferenças de poder dentro destas unidades orçamentais (Weber, 2003; Saunders, 1984; Spilerman, 2000; Spilerman & Torche, 2004; Torche & Spilerman, 2009; Torche, 2015).
Este estudo avança nos dois trajetos colocados por Weber (2003), um referente às inequidades geradas pelas relações sociais de mercado e o outro sobre as desigualdades provenientes das diferenças históricas entre as famílias. As teorias posteriores aos clássicos da sociologia, em se tratando das análises que avaliam a estratificação social, não construíram avaliações empíricas dos fatores relacionados à herança material e ao bem-estar – ver, por exemplo, a teoria funcionalista da realização de status ocupacional proposta por Blau e Duncan (1967). O mesmo ocorre com os teóricos das classes sociais, independente da orientação teórica (weberiana ou marxista) – ver, Erikson et al. (1979), Wright (1982), Goldthorpe (1983). O que não varia entre esses autores é o fato de o caminho para a equidade ou desigualdade passar inequivocadamente pela divisão social do trabalho.
Neste ponto está concentrada a crítica mais contundente desenvolvida por Saunders (1984) e Spilerman (2000) ao paradigma do trabalho, uma corrente influente dentro dos estudos da estratificação social. Devido à maioria dessas pesquisas focarem uma medida ligada à dimensão produtiva (ocupação e renda), elas não conseguiram estabelecer uma distinção entre fluxo e estoque ligado à renda (Torche & Spilerman, 2009, p. 3). Por esse motivo, tais análises mostram apenas os resultados sociais provenientes da esfera produtiva, e não a parte da desigualdade proveniente da diferença entre as famílias, associada à herança familiar. Nas palavras de Spilerman (2000), o fluxo de renda gerado pelo patrimônio não requer um “trade-off” com o lazer, já que, de modo geral, o bem-estar não requer uma rotina de trabalho, como a ocupação profissional (Spilerman, 2000).
Desigualdades familiares de bem-estar
Entende-se, aqui, por “bem-estar” a capacidade de manter um padrão de vida condizente com o período moderno, visto em sua faceta socioeconômica como um conceito muito próximo aos conceitos de “estilo de vida” e “padrão de vida”. Estilo de vida é um padrão que inclui os tipos de bens e serviços que as pessoas utilizam e/ou acessam (Johnson, 1997). Os sociólogos, de um modo geral, estudam o “estilo de vida” a partir das análises que avaliam o que as pessoas gostam em termos culturais e de lazer, como na tradição francesa contemporânea. No caso deste artigo, o foco recai não na descrição do gosto estético e cultural dos indivíduos ou na concomitante associação com o conceito de classe social, mas na importância da origem para o destino social das pessoas. O indicador desenvolvido possui um duplo sentido: cultural e econômico. No primeiro caso, porque é proveniente da difusão cultural de gostos e hábitos e, no segundo, porque o indicador de bem-estar é, sobretudo, um meio material de medir a riqueza e o padrão de vida das famílias.
Nesse esteio, uma formulação teórica alternativa surgiu nas últimas décadas sob a lógica de investigar o padrão de vida das famílias (Spilerman, 2000). Nessa abordagem, não se trata de avaliar a posição do indivíduo no mercado de trabalho, mas a desigualdade entre as famílias com base no bem-estar. Para Spilerman, esse tipo de análise poderia se adequar melhor ao exame das desigualdades sociais por refletir os recursos das famílias e não apenas os rendimentos das atividades relativas ao mercado de trabalho, mas também a renda proveniente da acumulação material ou devida ao estoque patrimonial. Isso em detrimento de existir uma evidente preferência por modelos que avaliam as posições sociais a partir da localização social dos grupos de indivíduos nos mercados ou, ainda, a partir do status devido às recompensas profissionais. Essas condições variáveis são reconhecidas como os principais determinantes da qualidade de vida nos países industriais e são compreendidas como desigualdades de mercado ou relativas à esfera produtiva (Spilerman, 2000).
O uso do termo “classe” com base no status adquirido via credenciais foi criticado por Saunders (1984), que reconheceu a existência de uma conexão do seu conceito de estratificação com o processo de consumo (Saunders, 1978; Spilerman, 2000). Weber (1958), em seu estudo dos sistemas de estratificação social, localizou o consumo em suas diferentes tipologias conceituais. Entretanto, a discussão de Weber é relativa à ideia de “estilo de vida”, associada ao bem-estar. Desse modo, as contribuições materiais das famílias dizem respeito ao papel desempenhado pelos bens na replicação ou reprodução da desigualdade entre gerações (Spilerman, 2000).
É comum nas abordagens funcionalistas vermos pesquisas empíricas que avaliam as chances de vida e mobilidade dos jovens adultos a partir da localização ocupacional do pai – como são os casos de Blau e Duncan (1967), Jencks (1972) e outros. Desse modo, na medida em que os resultados da estratificação são enquadrados em termos dos padrões de vida e potencial econômico de consumo, ligados ao bem-estar, as análises deveriam, na mesma medida, ser capazes de abranger as considerações de consumo, como os meios para a aquisição de uma vida confortável (Spilerman, 2000).
Por exemplo, os avanços na área da engenharia de materiais permitiram o desenvolvimento de uma série de itens e produtos que diminuem o tempo gasto nas tarefas domésticas, do mesmo modo que o desenvolvimento da mecânica, a descoberta da eletricidade e o desenvolvimento da automação tornaram possível a utilização de bens e serviços que aumentam o bem-estar. O tempo gasto por uma família sem acesso à água potável na busca por este bem é expressivo, o que impede que outras tarefas possam ser desempenhadas; esgotamento sanitário diminui a incidência e o risco de algumas doenças infectocontagiosas; o acesso a bens e utensílios facilita as tarefas relacionadas ao conforto, tal como a posse de um veículo automotor, bicicleta ou qualquer outro meio de transporte individual facilita a mobilidade e locomoção, aumentando as capacidades individuais (Smits & Steendijk, 2015).
Existem vários utensílios relativamente baratos como panelas, pratos, talheres, ferramentas, mesas, cadeiras, tapetes e camas que reduzem a carga de trabalho e tornam a vida mais confortável, do mesmo modo que as famílias mudam completamente suas vidas com a eletricidade, por este bem abrir novas possibilidades. Com a luz elétrica, o tempo a ser gasto em atividades úteis e de lazer aumenta consideravelmente. Um refrigerador, por exemplo, reduz o tempo de compra diário, assim como as ferramentas e utensílios elétricos reduzem o tempo gasto com a preparação e manipulação dos alimentos, facilitando o trabalho doméstico; rádios e televisores trazem o mundo para a casa, telefones, computadores e internet aprimoram muito a comunicação e o acesso à informação (Smits & Steendijk, 2015).
Se, por um lado, a perspectiva do bem-estar não está na vanguarda do desenvolvimento teórico na área da estratificação social, também não está totalmente ausente (Spilerman, 2000). Os escritos dos sociólogos urbanos britânicos Forrest e Murie (1989), Dunleavy (1979) e Saunders (1984) são provas de que o tema já fora abordado por outros autores (Spilerman, 2000). Saunders (1984) argumentou que as clivagens no setor de consumo, no que diz respeito ao acesso à educação de qualidade e acesso aos cuidados de saúde, são fatores substitutivos das divisões socioeconômicas baseadas na produção (Spilerman, 2000). Essas clivagens são vistas por Saunders não como meramente derivadas da organização da produção, mas relativas a fatores transversais ao mercado de trabalho. Saunders (1984) não aceitou a noção de relações de classe de Goldthorpe e Wright – para quem essas relações são constituídas, de modo exclusivo, por meio da organização social de produção –, propondo um modelo relacionado a bens de consumo exteriores ao mercado de trabalho (ver Spilerman, 2000).
A intenção deste artigo é considerar a necessidade de estender a teoria e a análise da estratificação para uma abordagem que considere os recursos relacionados ao bem-estar, e não apenas os retornos de uma atividade produtiva, focalizando, desse modo, o efeito do “estoque patrimonial” (Spilerman, 2000; Spilerman & Torche, 2004; Torche & Spilerman, 2009; Torche, 2015).
Weber (1947) em sua clássica distinção entre classes de consumo e classes de propriedade atribuiu um peso maior à propriedade familiar em comparação às credenciais de status. A concepção weberiana possui elevada influência na pesquisa de estratificação, uma vez que se refere à disposição das competências e, portanto, a diferenciação ocupacional. As classes construídas com base na propriedade receberam uma menor atenção porque, como Parkin (1971) bem observou, “todo o peso da análise de classe, no momento atual, é suportado pela consideração das desigualdades decorrentes da divisão do trabalho” (Spilerman, 2000, p. 498).
No entanto, na formulação de Weber (1947), a classe com base na propriedade é um conceito mais abrangente do que a definição marxista de classe, por não se limitar às considerações de propriedade de bens de capital, e por abranger, também, outros tipos de riqueza das famílias. Como observado por Weber (1947), o “privilegiado em termos da propriedade poderia viver com a renda dos seus títulos” (Spilerman, 2000, p. 498). O sugestivo conceito de “chance de vida” de Weber (1947) também se baseia em uma visão mais amplificada das noções de oportunidades e de bem-estar econômico, não sendo remetido exclusivamente ao âmbito das recompensas ligadas ao status (Spilerman, 2000). Embora Weber tenha definido as chances de vida de várias maneiras, relacionou o conceito consistentemente com a chance de possuir, na vida adulta, bens, status e uma boa condição socioeconômica. O que, nas palavras de Seymour Spilerman (2000), constitui-se como clara evidência para as abordagens que avaliam o patrimônio material e o bem-estar das famílias. Nesse sentido, esse autor colocou que houve tentativas de expandir a formulação do status econômico, a partir da incorporação do patrimônio líquido e das transferências de riqueza nos novos modelos, destacando-se as propostas de Henretta e Campbell (1978; 1980) e Rumberger (1983).
O fato de existirem poucas análises que avaliem os recursos familiares deve-se à pouca disponibilidade de dados (Spilerman, 2000). A maioria dos artigos citados sobre questões de bem-estar é recente e inclui o acúmulo patrimonial das famílias na população (Filmer & Pritchett, 1999; 2001; Sahn & Stifel, 2003; Rutstein & Johnson, 2004; Rutstein, 2008), as transferências intergeracionais de recursos e as mudanças existentes na desigualdade de riqueza (Spilerman, 2000; Spilerman & Torche, 2004; Torche & Spilerman, 2009; Torche, 2015). Novas pesquisas devem, com o tempo, incorporar a tendência da utilização de informações respectivas às questões de bem-estar, incluindo o acúmulo de riqueza das famílias nas diferentes populações; as transferências intergeracionais de somas substanciais para os herdeiros; e as mudanças na distribuição e desigualdade da riqueza (Spilerman, 2000). O que, nas palavras de Spilerman, coloca o padrão de vida e o bem-estar econômico no núcleo dos estudos sobre estratificação social.
Recentemente observou-se o crescimento dos estudos que utilizam índices de bem-estar para medir o bem-estar das populações, mais precisamente em 1990 e 2010, particularmente em contextos nos quais não existem informações monetárias para mensurar desigualdades sociais em duas ou mais gerações. O índice de bem-estar tende a possuir uma importância mais acentuada nos países em desenvolvimento, onde, de maneira geral o rendimento da população é baixo (Filmer; Pritchett, 2001; Rutstein; Johnson, 2004; Howe, 2009; Townend et al., 2015). Nos lugares onde o emprego é intermitente e a renda volátil, a poupança familiar e não o salário é, na maioria das vezes, o fator que assegura a subsistência (Torche; Spilerman, 2004). Do mesmo modo que a utilidade de um item doméstico se encontra vinculada ao seu valor de uso, como bem ou serviço, o valor desse mesmo item se estende ao estoque familiar e pode vir a servir como valor de troca nos momentos de escassez financeira (Spilerman, 2000; Torche; Spilerman, 2009, p. 4).
Diferentes autores aceitaram a hipótese de que o bem-estar é um importante aspecto das desigualdades sociais. Nesse sentido, a desigualdade de acesso a bens e serviços contribui para a diferença de bem-estar entre as famílias (para mais informações, ver Deaton & Zaidi, 1999; Filmer & Pritchett, 1999; 2001; Spilerman, 2000; Spilerman & Torche, 2004; Vyas & Kumaranayake, 2006; Howe et al., 2008; Torche & Spilerman, 2009; Torche, 2015; Townend et al., 2015). Nas palavras de Howe (2009), todas essas formas de estratificação criam grupos com diferentes quotas de desigualdade, ligadas a vantagens e desvantagens, e essas formas podem atingir questões ligadas a poder, controle, acesso a recursos, posições sociais e bem-estar. Como é difícil, em alguns países, propor um indicador da origem socioeconômica com base na renda, uma saída, nesse sentido, é a utilização do índice de ativos patrimoniais como uma medida do bem-estar.
Desigualdades de mercado: ocupação, renda e educação
Os sociólogos que avaliam a posição socioeconômica a partir da ocupação levam em consideração a importância desse indicador como uma medida de classe. O Collins Dictionary of Sociology define prestígio ocupacional da seguinte forma: uma avaliação subjetiva da honra social ou permanente alienada a uma ocupação (citado em Howe, 2009, p. 33). O prestígio ocupacional, conforme Howe, pode ser observado a partir das visões e elementos marxistas, weberianos e funcionalistas. Em termos marxistas, a ocupação é cindida com base na divisão explorador/explorado, tratando-se da visão do poder econômico das relações sociais. Por outro lado, para Weber (1958), a dinâmica social é orientada, ao mesmo tempo, por fatores associados a classe, estamento e partido. Ao contrário de Marx (2008), para Weber (1958) existe uma divisão entre classe e status, sendo o primeiro conceito uma condição herdada e a segunda uma condição adquirida. A classe se refere à posição socioeconômica e o status à honra e ao prestígio, que pode ser alcançável por credenciais acadêmicas, valorizadas no mercado de trabalho.
As medidas de prestígio ocupacional são extremamente populares nos países de renda alta, sobretudo, no Reino Unido, onde a ocupação é registrada nos certificados de óbito. Existem vários esquemas para classificar as ocupações profissionais nas configurações industrializadas (Howe, 2009). Esses esquemas de classificação incorporam conceitos de autonomia e controle do trabalho, perspectivas de promoção, estabilidade no trabalho, nível de autoridade, credenciais educacionais etc. Tais esquemas de classificação e escalas de medição não são facilmente transferíveis para países com economias pouco diversificadas (Howe, 2009).
Nesse sentido, com a finalidade de entender como ocorrem as desigualdades sociais, os pesquisadores desenvolveram diferentes escalas ocupacionais, que se dividem em três tipos principais: escalas de prestígio, escalas socioeconômicas e escalas nominais ou categóricas de classe. Cada uma dessas tem uma lógica diferente de construção (Ganzeboom & Treiman, 1996). Por exemplo, as escalas de prestígio são desenvolvidas a partir do reconhecimento social das ocupações. As escalas socioeconômicas levam em consideração características como educação e renda.
Nesse esteio, Ganzeboom e Treiman (1996) forneceram um procedimento operacional para a codificação internacional com base no estatuto profissional previsto na Norma Internacional de Classificação Ocupacional de 1988 (ISCO88). Há, também, outras classificações como a ISCO 1957, 1967 – a codificação mais nova é de 2007. Esses tipos de escala socioeconômica levam em consideração características como educação e renda.
Na década de oitenta, um esquema de mensuração de classes emergiu como o mais amplamente utilizado, conhecido como categorias de classe EGP. As distinções EGP foram inicialmente desenvolvidas por Erikson et al. (1979) – na forma de um sistema de análise composto por sete classes, a partir de dados do ano de 1972 do Oxford Mobility Inquiry, condensados em três estratos de classe principais: Serviços, Intermediária e Trabalhadora.
Da mesma forma que a ocupação, a renda salarial, vista como um indicador socioeconômico, possui uma série de vantagens, assim como limitações de ordens diversas. Algumas vantagens de sua utilização incluem a disponibilidade da variável na maioria dos bancos de dados, e a confiabilidade do indicador para medir classe. Algumas desvantagens se referem à dificuldade de saber se o respondente diz a verdade em suas declarações de rendimentos salariais, a omissão de salários e a dificuldade de medir todas as variáveis que envolvem a renda, como aluguéis, pensões, ações, cotas, agiotagem, títulos diversos, dentre outras formas de renda monetária. Como colocado por Rutstein e Johnson (2004), as pessoas entrevistadas podem não saber ao certo reportar os rendimentos reais dos seus domicílios, do mesmo modo que muitos indivíduos escondem os seus rendimentos dos entrevistadores, especialmente se esses são de uma agência governamental (Rutstein & Johnson, 2004).
Aqueles que escondem renda incluem pessoas pobres (para parecerem mais pobres e, portanto, obter assistência ou assistência adicional) e pessoas ricas (com medo da possibilidade de tributação, repercussões políticas e roubo), como proposto por Rutstein e Johnson (2004). Outro entrave é o fato de as pessoas omitirem o seu rendimento total para as outras pessoas da casa, o que dificultaria chegar a uma medida realista, tendo-se em vista que na coleta de informações apenas uma pessoa reporta as informações dos domicílios aos entrevistadores. Isso sem falar que as fontes de renda podem ser diversas e podem envolver famílias com pessoas com mais de um trabalho ou com renda ilícita (Rutstein & Johnson, 2004). Esses autores defendem que a obtenção de informações válidas sobre a renda familiar necessita de uma longa e detalhada entrevista com cada membro da família com mais de doze anos de idade, o que tornaria tal empreendimento uma missão quase impossível, diante do custo e do tempo necessário à sua realização.
Igualmente difícil é mensurar os rendimentos advindos de juros, aluguéis de imóveis, liquidação de cotas, ações e ganhos em jogos de azar (Rutstein & Johnson, 2004; Howe, 2009), pela dificuldade em chegar a uma medida confiável devido à volatilidade da renda (Townend et al., 2015). Soma-se a essas a dificuldade de avaliar a produção doméstica e remunerada, referente a bens e serviços, o que acaba por excluir inúmeras famílias das análises.
Outra limitação do indicador de rendimento deve-se à flutuação dessa variável ao longo do tempo, comparativamente à maior parte dos outros indicadores de posição socioeconômica (Rutstein, 2008; Howe et al., 2008). Em países emergentes, ocorre uma maior variação no curto e médio prazo, exigindo elevado investimento com cálculos de deflações monetárias (Howe et al., 2008). No caso da renda, há uma série de dificuldades envolvidas na mensuração, principalmente nos países em desenvolvimento, incluindo a variabilidade sazonal e o alto grau de informalidade; o mesmo ocorre com as medidas que avaliam gastos com consumo (Sahn & Stifel, 2003). Esse tipo de limitação é particularmente forte nos países de baixa renda, onde o rendimento pode vir de uma variedade de fontes e oscilar drasticamente nas diferentes estações (Howe et al., 2008).
Existem problemas de medição que impedem, particularmente, o uso de medidas de renda e despesas nos países em desenvolvimento, o que recomendaria, devido às características populacionais, a consideração de um indicador baseado em ativos patrimoniais (Sahn & Stifel, 2003). De modo divergente dos países desenvolvidos, os levantamentos de consumo e despesas são intermitentes e a renda não é reportada do modo devido (Rutstein & Johnson, 2004). Os índices de preços ao consumidor, que são facilmente disponíveis e confiáveis nos países desenvolvidos, podem ser problemáticos nos países em desenvolvimento, especialmente quando a inflação é alta e variável, além disso, é incomum encontrar índices de preços regionais (Rutstein & Johnson, 2004). Isso pode não ser de grande importância nos países onde os mercados estão bem integrados e os custos de transporte e comercialização são relativamente pequenos, mas, nos países em desenvolvimento, a variação regional e sazonal dos preços é, muitas vezes, um entrave significativo para os pesquisadores (Sahn & Stifel, 2003). Isso, sem falar que as famílias mais pobres, de maneira geral, retiram os seus rendimentos da informalidade (Rutstein & Johnson, 2004).
Do mesmo modo que a ocupação e a renda, a educação é considerada uma característica do prestígio e, por isso, se encaixa no conceito de status de Weber. A escolarização formal é vista como uma característica relacionada ao desenvolvimento humano, com efeito sobre a produtividade e o bem-estar. Tendo em vista que a educação dificilmente se modifica após o início da idade adulta, esse indicador é utilizado, na maioria das vezes, para refletir experiências de vida precoces, ao olhar para as desigualdades a partir de uma perspectiva de vida (Howe, 2009). A educação de uma criança é afetada pelos recursos da família, de modo que os efeitos da educação sobre o bem-estar deveriam ser avaliados de maneira a captarem a importância do estoque patrimonial das famílias para a escolaridade dos seus herdeiros.
A partir da década de 1960, com a formalização por Becker (1965) da teoria do capital humano, começaram a acumular-se evidências empíricas, em diversos países e em diferentes estágios de desenvolvimento, a respeito da contribuição não elementar da educação para o desenvolvimento humano (Araújo Freitas, 2015). O capital humano, conforme descrito por Schultz (1961), divide-se em escolaridade, experiência e saúde. Escolaridade refere-se aos anos de escolarização formal das pessoas e a experiência é descrita como o tempo exercido em determinada ocupação. O terceiro item está relacionado aos gastos das famílias com cuidados básicos de saúde; cuidados médicos, odontológicos e outros. Schultz (1961) e Becker (1965) foram os primeiros autores a se ocupar em compreender a taxa de retorno à escolarização (Araújo Freitas, 2015).
De acordo com esses teóricos, parte da diferenciação socioeconômica poderia ser diluída pela meritocracia educacional, tendo-se em vista que o acesso à educação representou para os atores sociais um insumo fundamental e, em certa medida, esteve associado a uma maior produtividade. Schultz (1961) propôs que as habilidades adquiridas via educação formal e informal, como, por exemplo, a escolaridade do indivíduo, sua experiência e saúde, possuíam um papel fundamental para a determinação do progresso econômico. Os dispêndios em capital humano auxiliavam no crescimento econômico e eram importantes à explicação do crescimento real das chances dos trabalhadores melhorarem suas condições de vida (Schultz, 1961; Araújo Freitas, 2015).
Segundo Schultz (1961), as habilidades adquiridas pelos indivíduos no decorrer de suas vidas, foram consideradas como uma forma de capital. Os indivíduos, efetivamente, investiriam em capital humano na intenção de ampliar seus estoques de capital educacional disciplinar, de forma que esta atitude ampliaria de modo positivo as chances de obtenção de maiores retornos futuros. A ampliação do investimento em capital humano seria mais eficiente no sentido de melhorar o bem-estar das camadas menos abastadas da população, em comparação a outras políticas sociais, como as políticas de transferência de renda ou redistribuição da propriedade privada (Araújo Freitas, 2015).
Informações empíricas
Os dados são provenientes da pesquisa nacional sobre desigualdades sociais, realizada em 2008 pelo Centro de Estudo da Riqueza e da Estratificação Social (CERES), do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), sob a coordenação geral de Nelson do Valle Silva. A pesquisa, denominada “Dimensão Social das Desigualdades” foi um survey desenhado pelos pesquisadores da Uerj e aplicado em âmbito nacional, a partir da técnica estatística de amostragem, pelo instituto de pesquisas IBOPE. A amostra analítica contou com 5.084 casos.
Em termos metodológicos, o indicador aqui proposto foi desenvolvido a partir de um procedimento estatístico conhecido como análise de componentes principais (PCA), que coloca as famílias em uma escala contínua de riqueza relativa (Rutstein & Johnson, 2004). Mais informações sobre o índice de bem-estar estão apresentadas nos relatórios finais do Demographic and Health Surveys Program - DHS (Filmer & Pritchett, 2001). Para cada recurso familiar para o qual a informação é coletada, é atribuída uma pontuação de peso ou fator gerado através da análise de componentes principais (Rutstein & Johnson, 2004; DHS – www.dhsprogram.com/topics/wealth-index/index.cfm). A cada família é atribuída uma pontuação padronizada para cada ativo, em que a pontuação difere de acordo com o fato de a casa possuir ou não esse recurso. Essas pontuações são somadas para o agregado familiar e os indivíduos são classificados de acordo com a pontuação total do domicílio em que residem. A amostra é, então, dividida em quintis ou tercis populacionais (Rutstein & Johnson, 2004). Os escores de ativos resultantes são padronizados em relação a uma distribuição normal padrão com uma média próxima a zero (0) e um desvio padrão de uma unidade (1).
As famílias que reportaram a maioria ou a totalidade dos itens avaliados vivem com um maior bem-estar. Por outro lado, as famílias que não possuem a maioria dos itens avaliados não alcançam o bem-estar socioeconômico e tendem a viver na pobreza ou na condição de extrema pobreza. O índice dos pais (indicador da origem social) contou com as seguintes variáveis: fogão, geladeira, TV, ventilador, toca-discos, telefone fixo e rádio. O índice dos filhos (indicador do destino) foi construído a partir das seguintes variáveis: toca-discos, freezer, máquina de lavar roupas, telefone fixo, micro-ondas, computador e internet. O indicador “ocupação” é categórico e foi construído a partir do esquema de classes de Erikson, Goldthorpe e Portocarrero (EGP). A variável “grau de escolaridade” é qualitativa ordinal, com valores entre zero e dezesseis, sendo que (0) representa a condição “analfabeta” e (16) “ensino superior”. O fator “renda” foi calculado a partir do salário reportado pelos pesquisados. É uma variável quantitativa contínua, que reporta o rendimento salarial do trabalho individual dos chefes dos domicílios (geração de destino).
O modelo tridimensional proposto por Spilerman e Torche
Uma questão que emerge, aqui, é sobre como comparar os fatores relativos ao mercado e os fatores associados ao bem-estar. A maior parcela das pesquisas sociais apresenta uma parte das relações vislumbradas no modelo visto a seguir na Figura 1. Uma exceção é o trabalho de Torche (2015) que apresenta um modelo tridimensional, baseado no trabalho de Spilerman (2000). A análise de trajetórias é utilizada por permitir computar os efeitos diretos e indiretos e incluir diferentes variáveis dependentes e independentes, a partir da técnica de regressão estatística. No sentido de compreender as vias da mobilidade, Torche (2015) propôs que a transferência intergeracional está associada a três efeitos: efeito direto do bem-estar de origem no destino, efeito da origem material sobre o capital humano e o efeito do capital humano no bem-estar alcançado.
O modelo utilizado neste artigo, como alternativa aos modelos utilizados nos estudos sobre a dinâmica e padrões da distribuição dos recursos socioeconômicos, é tridimensional, por considerar, ao mesmo tempo, três associações: os investimentos das famílias na educação dos filhos, o retorno ao capital humano e a transferência de bem-estar das famílias para os seus herdeiros (Torche, 2015).
O caminho da educação inclui a associação entre a posição socioeconômica dos pais e o nível de escolaridade individual (desigualdade de oportunidades educacionais) e a associação entre o nível de escolaridade e a posição socioeconômica alcançada dos jovens adultos (retornos à educação). Esses caminhos são representados pelas vias (A – B) do modelo apresentado na Figura 1. Existe também a via direta de transmissão da vantagem de origem, que mostra a associação entre o bem-estar na origem e no destino. A via (C) do modelo representa a transmissão direta de recursos e capta o peso da origem material e suas consequências para o padrão de vida no destino (Torche, 2015).
A relação A representa o impacto da origem medido pelo bem-estar nas oportunidades educacionais; a relação B mostra o retorno da educação mensurado também pelo bem-estar; e, por fim, a relação C evidencia a transferência direta de bem-estar aos herdeiros. O conjunto das relações descritas no modelo formam parte do mecanismo de distribuição de recursos socioeconômicos. As análises ligadas ao retorno do capital humano mostram exclusivamente a relação B do modelo, embora, geralmente, os pesquisadores avaliem o efeito da educação formal na renda salarial. As análises ligadas ao capital cultural mostram a relação A, embora a variável ligada à origem seja a educação dos pais.
Resultados
A Tabela 1 mostra alguns indicadores socioeconômicos de maneira comparada. Comparam-se os seguintes indicadores: índice de bem-estar, renda e educação com o esquema EGP de categorização de classes. Como se pode observar, os proprietários rurais possuíam em 2008 maior bem-estar, em média, comparativamente aos pequenos proprietários com empregados, aos pequenos proprietários sem empregados e, também, aos indivíduos em ocupações não manuais de rotina. A partir da Tabela 1, é possível dizer que a divisão rural/urbana é demasiadamente simplista e não está isenta de erros confirmatórios, por existir uma variação em termos da renda e bem-estar. No Brasil, existem pessoas consideradas ricas vivendo em áreas rurais, do mesmo modo que as favelas representam a maior controvérsia para as teses que mensuram classe a partir da ocupação, pois é a melhor prova de que a construção teórica de Weber (2003) “rural/urbana” se tornou demasiadamente simplista. Podemos notar, também, que os indicadores de renda e bem-estar se parecem mais entre si comparativamente ao indicador ocupacional.
Escala | Índice de | Renda | Educação | Tamanho |
EGP | Bem-estar | Domiciliar | ||
ProfissionaisAlto | .07 | 3118.54 | 12.18 | 3.18 |
ProfissionaisBaixo | .04 | 2463.68 | 10.70 | 3.44 |
NãoManual.Rot.1 | .03 | 2.049,64 | 9.26 | 3.22 |
NãoManual.Rot. 2 | .00 | 1.385,27 | 8.17 | 3.21 |
PequenosPropriet.1 | -.00 | 1.383,85 | 7.36 | 3.84 |
PequenosPropriet.2 | -.01 | 1.109,46 | 6.99 | 3.73 |
ProprietáriosRurais | .02 | 1.799,49 | 6.38 | 3.72 |
Supervisores.Trab.M | -.00 | 1.229,56 | 5.85 | 3.74 |
Trabalhadores.qualif. | -.01 | 1.066,35 | 4.73 | 3.65 |
Trabalhadores.não.qualif. | -.04 | 784,20 | 3.72 | 4.56 |
Trabalhadores Rurais | -.00 | 1.179,17 | 2.87 | 3.91 |
A ideia central da análise de causalidade é mostrar a antecedência dos fatores envolvidos nas relações estabelecidas entre as variáveis. Nas análises de trajetórias utilizamos valores padronizados a partir do controle das pessoas entre 30 e 50 anos. Os procedimentos foram realizados de maneira separada, subtraindo-se uma unidade do R quadrado encontrado. A análise de trajetórias mostrou que há uma forte correlação entre o bem-estar na origem e no destino (44%). Esta é a via da transmissão material direta de pais para filhos. Por vias indiretas, ao regredir o índice de bem-estar associado à origem pela escolaridade alcançada pelos filhos, observou-se que o bem-estar da família explica 53% da escolaridade alcançada pelo filho(a).
A educação alcançada explica 54% do bem-estar no destino. A Tabela 2 exibe alguns trajetos possíveis entre bem-estar de origem e bem-estar de destino, com base no modelo da Figura 1. Todas as regressões foram significativas a 1%. O efeito indireto do bem-estar de origem é o efeito no bem-estar de destino via investimento em educação e retorno à educação alcançada, igual a (.285). Entre efeitos diretos e indiretos, o modelo (m) com três variáveis explicou 72% do bem-estar no destino, a partir do seguinte cálculo – investimento em educação (i.e) multiplicado por retorno à educação (r.e) adicionado ao efeito direto do bem-estar de origem no destino (e.d), dado por [i.e * r.e + e.d = m] ou (.532) * (.537) = (.285) + (.439) = .724 ou 72%. O efeito total do bem-estar de origem no bem-estar de destino é a soma dos caminhos diretos e indiretos, que é igual a 72%. Traçando os efeitos direto e indireto da educação alcançada no bem-estar de destino, observa-se que se trata também de uma correlação positiva. Evidencia-se que o efeito da origem no destino social é mais significativo do que os efeitos da educação alcançada na fase adulta. Desse modo, o efeito da origem social com base no bem-estar de origem está relacionado à educação escolar em quase 30%, enquanto o valor para o trajeto da origem foi de 44%.
1 | = +.439 | efeito direto de origem | ||||||
2 | (.532) | (.537) | = +.285 | efeito indireto via educação | ||||
Total r | = +.724 | |||||||
A seguir, na tabela 3, apresentam-se algumas correlações quantílicas entre bem-estar no destino, capital humano, bem-estar na origem e covariáveis como idade, sexo e cor. A ideia é captar o efeito da inclusão de outras variáveis no modelo, com a finalidade de avaliar até que ponto o efeito do bem-estar e do capital humano não seriam devidos à ausência de outras variáveis. Observa-se que os efeitos da escolarização e do bem-estar de origem são importantes para todos os estratos avaliados, evidenciando que essas variáveis independentes contribuem para as maiores variações nos coeficientes das regressões por quantis, o que sugere que o modelo não sofre variações significativas em termos comparativos. Observa-se, também, decréscimo das variações comparativamente aos modelos de regressão simples ponderadas (padronizadas), no entanto, isso não modifica o peso do bem-estar de origem e da educação alcançada no bem-estar futuro. Por outro lado, é preciso reconhecer que a mudança direta do coeficiente de variação entre bem-estar de destino (variável dependente) e bem-estar de origem (variável independente) cai à medida que se incluem outras variáveis, do mesmo modo que aumenta o R² na medida da inclusão de outros fatores que interferem na resposta esperada.
Quintis | Variáveis** | Coeficientes | P > |T| |
q25 | Escolarização | .166 | 0.000 |
Bem-estar | .179 | 0.000 | |
Idade | .079 | 0.014 | |
Idade² | .-000 | 0.137 | |
q50 | Escolarização | .211 | 0.000 |
Bem-estar | .236 | 0.000 | |
Idade | .139 | 0.009 | |
Idade² | .-000 | 0.045 | |
q75 | Escolarização | .260 | 0.000 |
Bem-estar | .266 | 0.000 | |
Idade | .157 | 0.000 | |
Idade² | .-001 | 0.013 | |
q90 | Escolarização | .238 | 0.000 |
Bem-estar | .252 | 0.000 | |
Idade | .126 | 0.004 | |
Idade² | .-000 | .0207 | |
q95 | Escolarização | .197 | 0.000 |
Bem-estar | .215 | 0.000 | |
Idade | .070 | 0.145 | |
Idade² | .-000 | 0.384 | |
Conclusões e discussão
Este trabalho avaliou o efeito da origem social no processo de vida, concluindo que, em um cenário multicausal, existem pelo menos dois caminhos relacionados ao bem-estar, o investimento das famílias em educação escolar e o retorno à educação e a transferência direta de bem-estar social. O investimento das famílias em educação escolar aumenta as chances de se obter uma boa colocação no mercado, do mesmo modo que o padrão de vida sustentável da família de origem influencia o bem-estar. A metodologia de análise de trajetórias (path analysis) foi utilizada por permitir isolar o efeito proveniente da educação escolar e o impacto do estilo de vida nas chances e resultados individuais. Foram construídos dois indicadores para medir o bem-estar das famílias brasileiras, um baseado no bem-estar social de origem quando a pessoa tinha quinze anos e outro no bem-estar de destino das pessoas já adultas. A ideia central foi avaliar até que ponto o bem-estar é importante na avaliação das desigualdades sociais e na formatação da estratificação social. Do mesmo modo, buscou-se frisar alguns problemas das pesquisas que avaliam renda e ocupação. Os indicadores foram testados a partir de um enfoque intergeracional, mostrando que o caminho direto relacionado ao bem-estar é mais significativo para que essa condição se reproduza no futuro, comparativamente com a educação alcançada pelos indivíduos. Isso ocorre porque o patrimônio elementar diminui a carga de trabalho relacionada com a sobrevivência e torna a vida mais confortável, aumentando o tempo livre para o desempenho de outras atividades laborais e de lazer, o que eleva o desenvolvimento social. As famílias que possuíam a maioria dos itens reportados na pesquisa eram também as unidades com o maior nível de riqueza e renda. Nesse sentido, apesar de existirem críticas referentes ao indicador “renda”, os resultados de diferentes dimensões da desigualdade (educação, renda e consumo de ativos) convergem no mesmo sentido. Os resultados propõem que as desigualdades associadas ao mercado de trabalho (educação) são significativas, embora as diferenças históricas e estatísticas entre as famílias (desigualdades de bem-estar) sejam mais importantes para a explicação das desigualdades sociais contemporâneas.
Os resultados alcançados são importantes e fornecem elementos para uma reflexão sobre as desigualdades sociais no Brasil, os limites da mobilidade social a partir da via educacional e ocupacional, bem como a força da renda familiar na explicação do bem-estar “no destino”. Por outro lado, os resultados não nos levam a concluir que vivemos em uma sociedade baseada no mérito. Afinal, há fortes resquícios de um passado pouco longínquo a ecoar sob o futuro dos indivíduos, que não são seres totalmente livres para escolher, tal como querem os teóricos individualistas metodológicos. Todavia, é interessante também notar as limitações dos indicadores associados ao bem-estar social e econômico. Não há como controlar a parte importante do consumo subsidiado pelo crédito, do mesmo modo que não se controla, também, o comportamento social desviante, a exemplo dos indivíduos que insistem em viver um estilo e/ou padrão de vida incompatível com suas capacidades econômicas e materiais. Finalmente, do mesmo modo que a abordagem do mercado, a abordagem que enfoca as famílias é também limitada; por isso a necessidade de uma análise que seja capaz de avaliar as diferentes facetas e dimensões da sociedade. Vem desse pressuposto o argumento principal para uma abordagem complementar-tridimensional, ao modo desenvolvido por pesquisadores das universidades de Colúmbia e Stanford. Inequivocamente, um modo mais completo de se avaliar tanto a diferença pré-nascimento como a distinção pós-nascimento. Assim, é possível mostrar como ocorre uma parte maior da “corrida” que existe entre os indivíduos por bem-estar econômico e social.
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Notas