Resumo: A temática migração internacional, na atualidade, vem articulando fatores micro e macroestruturais, apontando para fluxos migratórios diferenciados, trazendo à tona a precariedade das políticas públicas migratórias, como é o caso brasileiro, principalmente devido ao grande volume de imigrantes venezuelanos que tiveram o Brasil como destino ou trânsito. Este artigo tem por objetivo explicitar as especificidades e o funcionamento do Programa de Interiorização, a partir da ação de algumas organizações da sociedade civil atuantes no estado de Minas Gerais. O apoio dessas organizações, que se constituem em redes sociais, tem sido fundamental na receptividade, no acolhimento e na integração dos imigrantes venezuelanos no estado. Porém se faz necessária uma maior sinergia entre as mesmas, bem como políticas públicas mais direcionadas para o acolhimento e integração desses imigrantes.
Palavras-chave: Imigração venezuelana, programa de interiorização, organizações da sociedade civil atuantes em Minas Gerais.
Abstract: The international migration theme, at present, has been articulating micro and macrostructural factors, pointing to differentiated migratory flows, bringing up to light the precariousness of public migration policies, as is the case of Brazilian, mainly due to the large volume of Venezuelan immigrants who had Brazil as their destination or transit. Thus, this article aimed to explain the specifics and the functioning of the Interiorization Program based on the actions of some civil society organizations, operating in the State of Minas Gerais. The support of these organizations, which are constituted in social networks, has been fundamental in the receptivity, reception and integration of Venezuelan immigrants in the State, however, it is necessary a greater synergy between them, as well as more directed public policies for the reception and integration of these immigrants.
Keywords: Venezuelan immigration, Interiorization program, civil society organizations, Minas Gerais state.
Artigos
Interiorização de Venezuelanos para Minas Gerais: instituições que atuam em redes sociais
Venezuelans interiorization to Minas Gerais: institutions that work in social networks
Recepción: 26 Junio 2020
Aprobación: 04 Mayo 2021
O cenário contemporâneo das migrações internacionais passou a articular fatores microestruturais – na recepção e no capital social dos imigrantes na sua inclusão na sociedade de acolhimento –, bem como fatores macroestruturais – principalmente o papel do capitalismo, em nível global, no desencadear dos fluxos migratórios, ou na regulação estatal desses fluxos (Baganha, 2001). Além disso, tal cenário mostra-se complexo, plurifacetado e em constante metamorfose na adaptação às circunstâncias do mundo em que acontecem as migrações (Nolasco, 2016), evidenciando uma heterogeneidade significativa (Baeninger, 2018).
Assim, para Baeninger (2018) e Brito (2013), as legislações restritivas dos países desenvolvidos – nos quais o anti-imigracionismo se tornou um elemento político decisivo, traduzido numa legislação desfavorável para os imigrantes internacionais – vêm contribuindo para modificar os movimentos migratórios e seus destinos.
Essas restrições fazem com que os imigrantes utilizem várias estratégias para garantir a entrada e permanência nos países de destino, como, por exemplo, o casamento de conveniência nos países que reconhecem o direito de permanência por reunião familiar ou a utilização do instituto de refúgio, via solicitação desse amparo legal quando da entrada no país de “acolhida”. Esse é o cenário característico de imigrantes de vários países, como Síria, Haiti e, mais recentemente, Venezuela, que tiveram o Brasil como um local de destino ou de trânsito, dinamizando a mobilidade internacional de refúgio – ao amparo de normativas internacionais e da Lei nº 9.474/1997 - Lei Brasileira de Refúgio (Magalhães et al., 2018).
É importante ressaltar que esses movimentos acontecem em momento da alteração da legislação migratória brasileira. Regida, até 2017, pelo Estatuto do Estrangeiro de 1980, a migração passa a ter, a partir de 24 de maio de 2017, na Lei 13.445 (Lei da Migração) novo amparo legal (Brasil, 2017) – alteração essa que pode, em parte, ser creditada ao fluxo migratório do ano 2000. No entanto, apesar das inovações introduzidas, persiste a dificuldade em atender alguns requisitos legais e a via da solicitação de refúgio continua, já na terceira década do Século XXI, a ser o mecanismo mais utilizados por imigrantes que chegam ao Brasil, principalmente os nacionais da Venezuela.
A chegada de venezuelanos nas terras brasileiras teve como principal ponto de entrada a cidade fronteiriça de Pacaraima, no estado de Roraima, com posterior deslocamento para a capital, Boa Vista, trazendo impactos não só para aquela sociedade, mas também para as autoridades municipais, estadual e federal, que dialogavam de forma fragmentada. “A incapacidade das autoridades de lidar com a situação, por conta das dificuldades político-institucionais (...), fez com que a governança do fluxo migratório dos venezuelanos fosse entregue às forças armadas” (Castro et al., 2018, p. 449). Segundo esses autores, os imigrantes venezuelanos tiveram apoio de organismos internacionais, como o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados/ACNUR, a Organização Internacional para as Migrações/OIM, o Fundo de População das Nações Unidas/UNFPA e de organizações da sociedade civil/OSCs, principalmente as ligadas a Igreja Católica, sendo as OSCs as principais atuantes no acolhimento desses imigrantes em outros estados e regiões do Brasil.
Com o aumento do fluxo imigratório de venezuelanos no estado de Roraima, principalmente nos anos de 2017 e 2018, ataques xenofóbicos e conflitos entre brasileiros e venezuelanos se faziam cada vez mais presentes, agravando a situação precária e vulnerável em que os mesmos se encontravam, em alguns casos como moradores de rua. A situação ganhou tamanha repercussão, que a ex-governadora Suely Campos (2015 a 2018) declarou situação de emergência social, publicando, em 4 de dezembro de 2017, o Decreto nº 24.469-E (Roraima, 2017), inclusive solicitando ao Governo Federal o fechamento e controle da fronteira com a Venezuela (Nunes, 2018; G1, 2018; Rodrigues, 2018; Folha Web, 2018). Antes desse ocorrido, a governadora já declarara emergência em saúde pública de importância nacional na rede pública estadual de saúde nos municípios de Pacaraima e Boa Vista, através do Decreto nº 22.199, de 6 de dezembro de 2016 (Roraima, 2016).
Diante desse cenário, em 3 de março de 2017, o Conselho Nacional de Imigração (CNIg) publicou a Resolução Normativa (RN) nº 126/2017 (CNIg, 2017), que concedia aos venezuelanos as mesmas prerrogativas contidas no acordo de Livre Trânsito do MERCOSUL;1 prática esta que já havia sido seguida pela Colômbia e Peru, mediante o Acordo sobre Residência para os Nacionais dos Estados Partes e Associados do MERCOSUL.
Para o incremento de ações que pudessem diminuir os impactos causados pela imigração dos venezuelanos no país, o governo federal, utilizando os mecanismos disponibilizados na nova Lei de Migração (Brasil, 2017), promulgou a Medida Provisória nº 820, de 15/02/2018 (Brasil, 2018a), posteriormente convertida na Lei nº 13.684, de 21/06/2018 (Brasil, 2018b), que dispõe sobre medidas de assistência emergencial para acolhimento a pessoas em situação de vulnerabilidade decorrente de fluxo migratório provocado por crise humanitária, e o Decreto nº 9.286 (Brasil, 2018c), também promulgado em 15/02/2018, que define a composição, as competências e as normas de funcionamento do Comitê Federal de Assistência Emergencial para acolhimento a pessoas em situação de vulnerabilidade decorrente de fluxo migratório provocado por crise humanitária, previsto na Medida Provisória nº 820.
Ressalta-se, portanto, que, apesar de não haver uma política brasileira para migração, uma vez que o artigo nº 120 da Lei 13.445 que trata do tema não foi regulamentado, ações foram adotadas pelo governo federal no intuito de reduzir a pressão sobre os serviços públicos e o mercado de trabalho no estado de Roraima, devido ao grande fluxo de imigrantes venezuelanos que ali se estabeleceram. Dessa forma, através da “Operação Acolhida” – definida ao amparo do Decreto nº 9.286 e coordenada pela Casa Civil da Presidência da República, tendo ainda a participação de dezesseis Ministérios, Forças Armadas e agências do Sistema ONU –, em abril de 2018 iniciou-se o “Programa de Interiorização” dos venezuelanos.
Diante do exposto, e ponderando sobre a precariedade na governança do tema migração no Brasil e necessidade de ações conjuntas entre governo e OSCs, este artigo tem por objetivo explicitar as especificidades e o funcionamento do Programa de Interiorização, a partir da ação de algumas OSCs, tendo como referência o estado de Minas Gerais. Para tanto, foram agendadas visitas, reuniões, conversas por telefone e mensagens de e-mail com representantes de algumas das OSCs que atuam no acolhimento dos imigrantes venezuelanos, no estado de Minas Gerais, especificamente na Região Metropolitana de Belo Horizonte/RMBH, no período de outubro a dezembro de 2019.
Os migrantes venezuelanos, na contemporaneidade, deslocam-se com a intenção de conseguir recursos básicos como alimentação, atenção à saúde e trabalho, mesmo que em condições estafantes e precárias (questões relacionadas à sobrevivência e falta de estabilidade). Nesse movimento, manifestam, ainda, a preferência por permanecer nos estados da região Norte, principalmente o Amazonas, ou mesmo por ficar na região próxima à fronteira (Simões, 2017), para enviar mantimentos para familiares que ficaram no seu país de origem.
Com referência à imigração venezuelana no Norte do Brasil, especificamente em Roraima, Rodrigues e Silva (2017) alegam que uma característica importante dessa região é a sua área fronteiriça, em que se destaca intensa circulação cultural, e que compreende vários ciclos migratórios internacionais e migrações internas, podendo se configurar tanto como lugar de controle, quanto de transgressão.
A permanência de venezuelanos no Brasil, de forma regular, é condicionada a duas possibilidades: solicitação de refúgio ou visto temporário. A solicitação de reconhecimento do refúgio está amparada na legislação nacional (Lei nº 9.474, de 1997) e nos acordos internacionais de que o país é signatário. O visto temporário e a autorização de residência para reunião familiar têm seus procedimentos estabelecidos e regularizados pela Portaria Interministerial nº 12, de 13/06/2018, podendo ser concedido ao ascendente ou descendente do imigrante até o segundo grau (Ministério da Justiça, 2018).
Assim, devido às condições política e socioeconômica que a Venezuela vem enfrentando em decorrência das dificuldades internas, houve notório aumento de solicitações de refúgio2 por parte dos venezuelanos a partir de 2017, sendo que os principais motivos destacados pelo ACNUR3 para a saída do país são: ameaças e violência por grupos armados; perseguição política; desabastecimento (alimentos e medicamentos); falta de acesso a serviços e recursos básicos; inflação e insegurança. De acordo com dados publicados pela Polícia Federal (PF)4 em 24 de janeiro de 2020, modificados em 03 de março de 2020, o total de solicitações ativas de refúgio, até novembro de 2019, era de 219.103, sendo que 129.988 eram de venezuelanos.
Além da solicitação de refúgio, existem imigrantes em situação informal, que estão de passagem ou não solicitaram refúgio. Dessa forma, o Sistema de Tráfego Internacional (STI) apontou que o movimento migratório de venezuelanos para o Brasil, de 2017 a 2019, prestando 764.864 atendimentos, contabilizou 481.864 entradas e 280.407 saídas; porém, há dupla contagem, uma vez que uma mesma pessoa pode sair e entrar várias vezes.
Mesmo com a elevada emigração de venezuelanos, representantes do ACNUR e da OIM ressaltam que o Brasil é o 5º país como opção para eles, que preferem outros países da América Latina, como Colômbia e Peru, ou América do Norte e Europa.
Em junho de 2019, o Comitê Nacional para Refugiados/CONARE, vinculado ao Ministério da Justiça e Segurança Pública, por meio da Nota Técnica nº 3, reconheceu que há na Venezuela uma grave e generalizada violação dos direitos humanos e conflitos armados; posição esta que abre caminho para o reconhecimento da situação de refúgio dos imigrantes venezuelanos. Assim, em cinco de dezembro de 2019, o governo brasileiro aprovou, de uma só vez, 21.432 solicitações de refúgio de venezuelanos. Somadas às 11.231 já concedidas, até o ano de 2018 (para diferentes nacionalidades), o total de refugiados quase triplicou (Rodrigues, 2019). Em 31 de janeiro de 2020, mais 17 mil venezuelanos tiveram o status de refugiado concedido (Rodrigues & Palma, 2020), fazendo com que o Brasil seja o país com maior número de refugiados venezuelanos na América Latina (ACNUR, 2020).
A situação que envolve a Venezuela vem trazendo novos debates e discussões sobre políticas públicas brasileiras que devam produzir condições de melhor acolhimento e integração daqueles que estão em situação vulnerável. Sidney Silva (2018) reforça a questão da insuficiência ou falta de políticas de acolhimento, principalmente em relação aos venezuelanos, ao argumentar que o aumento do fluxo na fronteira entre a Venezuela e o Brasil, ensejou diferentes reações por parte de brasileiros que vivem em Pacaraima e em Boa Vista. Quando os imigrantes são acomodados em acampamentos improvisados ou, na falta destes, habitam nas ruas, instituindo um “caos urbano”, manifestações xenofóbicas não tardam a aparecer, bem como a atribuição àqueles do “aumento da criminalidade, das sujeiras nas ruas, da mendicância em semáforos, da prostituição, entre outros” (Silva, S., 2018, p. 302).
Jornais regionais, bem como outros de alcance nacional, começaram a anunciar aumento da criminalidade, ataques xenofóbicos, conflitos entre brasileiros e venezuelanos e a situação precária e vulnerável em que se encontravam os venezuelanos. Um dos conflitos ocorreu no dia 18 de agosto de 2018, em Pacaraima, onde brasileiros destruíram acampamentos de imigrantes venezuelanos (Brandão & Oliveira, 2018; Folhapress, 2018; Mendonça, 2018). Pouco depois, em seis de setembro, outro conflito resultou na morte de um brasileiro e de um venezuelano, desta vez na capital, Boa Vista, fazendo com que o exército retirasse os venezuelanos em situação de rua e os levasse para o Centro de Triagem (Menezes, 2018). Tais ocorrências viraram palco para campanhas de políticos no Estado (Agência Brasil, 2018).
Essas ações fizeram com que o governo federal se posicionasse em relação a uma política que atendesse tanto o acolhimento dos venezuelanos solicitantes de refúgio, quanto a necessidade de gerenciar o caos que acometeu o estado de Roraima. Assim, em abril de 2018 iniciou-se o Programa de Interiorização de venezuelanos, como medida estratégica do governo federal, considerada uma complexa e articulada política de assistência emergencial aos venezuelanos.
Segundo Ruseishvili et al. (2018), até o final de 2017, a migração de venezuelanos para Roraima não era vista como uma “crise” ou uma “emergência”. Assim, para os autores, “as noções sobre o estado de emergência e a assistência humanitária formam um conjunto de significados socialmente construídos que refletem uma maneira com a qual pensamos os processos sociais concretos” (Ruseishvili et al., 2018, p. 65). Corroborando essa visão, Pinto e Obregon (2018) afirmam que a movimentação de solicitantes de refúgio cresceu de forma exponencial em ambiente de conflitos e divergências políticas, donde se percebe uma crise humanitária gigantesca, principalmente em estados que recebem refugiados, pois extrapola os limites do governo, seja em termos de abrigos, seja na rede de saúde e alimentícia.
Dessa forma, com o apoio de órgãos como o ACNUR, a OMI, o UNFPA, o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento/PNUD, além de outras organizações não-governamentais e da sociedade civil, o governo federal iniciou a interiorização e a integração local dos venezuelanos. É importante ressaltar que o apoio das OSCs tem sido fundamental no processo de interiorização, para que indivíduos e famílias venezuelanas sejam acolhidos e integrados de forma adequada nas sociedades de destino. Assim, iremos ressaltar no decorrer desse estudo, as ações de algumas que atuam na RMBH, em Minas Gerais.
Com a publicação da Medida Provisória nº 820, de 15/02/2018 – convertida na Lei nº 13.684, de 21/06/2018 – e do Decreto nº 9.285, de 15/02/2018 – revogado pelo Decreto nº 9.970, de 14/08/2019 – que foi concebido como complementar às diversas ações de acolhida na fronteira do estado de Roraima (Baltar et al., 2018), a interiorização dos venezuelanos começou a ser executada no dia cinco de abril de 2018. A nova Lei de Migração respalda essas ações de acolhimento e de assistência, além de possibilitar que as OSCs, através da Lei nº 13.019, de 31/07/2014, participem e recebam recursos do governo para contribuir em ações de interesse público (Brasil, 2014).
Segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) (2018), as OSCs têm natureza jurídica distintas, podendo ser: associações privadas, fundações privadas, organizações religiosas e organizações sociais. “As organizações que tem [sic] como finalidade desenvolvimento e defesa de direitos e interesses e as organizações com finalidade religiosas .sic] são os principais grupos de OSCs do país e representam mais de seis em cada dez organizações em atividade” (IPEA, 2018, p. 21).
Algumas dessas OSCs estão envolvidas na interiorização de venezuelanos, que faz parte da “Operação Acolhida”, oficialmente, de caráter temporário, coordenada pela Casa Civil da Presidência da República, com a participação de dezesseis ministérios, das Forças Armadas e, como já mencionado, agências do sistema ONU. Essa “operação” envolve o Exército, a Marinha e a Aeronáutica e norteia-se por três frentes de atuação: ordenamento de fronteira, abrigamento e interiorização (Vasconcelos, 2020).
O ordenamento de fronteira caracteriza-se pela primeira recepção dos imigrantes, ainda à beira da estrada, antes mesmo de sua entrada na zona urbana de Pacaraima. O exército brasileiro e as demais forças em parceria com órgãos federais e agências internacionais identificam e controlam o fluxo migratório (Vasconcelos, 2020, p. 105).
Segundo a autora, o abrigamento é, certamente, “o aspecto mais visível da atenção militar para os solicitantes de refúgio” (Vasconcelos, 2020, p. 106) e envolve infraestrutura de recepção, alimentação, acomodações, instalações sanitárias, assistência médica, lavanderia, coleta de lixo e uma área de convivência. Além disso, facilita a organização do terceiro objetivo da Operação Acolhida, a interiorização, estabelecendo como condição para o ingresso nos abrigos – que até outubro de 2019 totalizavam 13, sendo 2 em Pacaraima e 11 em Boa Vista – a predisposição para participar desse programa.
Como já mencionado, o Programa de Interiorização não é uma política pública consolidada, mas sim uma medida estratégica do governo federal, que tem como objetivo enviar imigrantes venezuelanos para outros estados do Brasil, com intuito de desafogar os impactos desse específico fluxo migratório no estado de Roraima, principalmente nos serviços públicos de saúde e no mercado de trabalho.
Para Baltar et al. (2018, p. 282-283), esse processo “constitui a ação mais efetiva da política federal, no sentido de reduzir a pressão que o grande fluxo de imigrantes passou a exercer sobre os serviços públicos, mercado de trabalho [...]” em Pacaraima e Boa Vista.
Como principal objetivo, Pereira et al. (2018, p. 294) afirmam ser o de
ajudar os venezuelanos solicitantes de refúgio e de residência que estão em Roraima a encontrar melhores condições de vida em outros estados brasileiros. (...) diminuir os impactos do intenso fluxo de migrantes nos municípios da fronteira do Brasil com a Venezuela, como Pacaraima e Boa Vista em Roraima, por um lado, e, por outro, viabilizar novas oportunidades de trabalho e inserção social que possibilitem melhor qualidade de vida aos migrantes.
Sidney Silva (2018, p. 211) indica que o processo de interiorização tem como objetivo “oferecer uma oportunidade àqueles que desejam buscar trabalho em outras regiões brasileiras, já que em Roraima essa possibilidade é quase inexistente”. Para o autor, além da questão da pouca disponibilidade dos municípios em receber os venezuelanos, existe ainda a possibilidade do não interesse por parte desses em aderir ao programa, por desejarem estar próximos à fronteira para enviar recursos e alimentos aos seus familiares que permaneceram no seu país.
A adesão à interiorização deve ser realizada de forma voluntária, por venezuelanos em condição de regularização migratória junto a Polícia Federal – ou seja, por solicitação de refúgio ou residência temporária – sendo necessário estar com a documentação regularizada, passar por exames de saúde e estar vacinados. Todo o processo é acompanhado pela ACNUR, a OIM e o UNFPA. Segundo o Subcomitê Federal para Interiorização dos imigrantes, desde o início do programa, em abril de 2018, até maio de 2020, 37.6185 venezuelanos foram interiorizados para outros estados, sendo que as cidades que mais receberam esses imigrantes foram Manaus (4.576), São Paulo (2.466), Curitiba (2.136), Dourados (2.100), e Porto Alegre (1.340). Mesmo participando tardiamente do Programa de Interiorização, o estado de Minas Gerais acolheu expressivos 2.186 venezuelanos (conforme tabela 1).
No dia dois de outubro de 2019, o governo federal assinou dois acordos para acelerar o processo de interiorização: um primeiro que se refere a uma cooperação técnica com a Fundação Banco do Brasil, no intuito de criar um fundo privado para receber doações para a Operação Acolhida (Ministério da Defesa, 2019); o segundo, a um protocolo de intenções que visa incentivar municípios brasileiros a receberem os venezuelanos, firmado por meio da Casa Civil da Presidência da República – incluindo a Secretaria de Governo e os ministérios: da Cidadania; da Justiça; da Mulher, Família e Direitos Humanos; da Defesa; da Educação, da Saúde; do Desenvolvimento Regional – com a Confederação Nacional dos Municípios (CNM) e ACNUR, OIM e UNFPA. O protocolo tem duração de um ano, podendo ser prorrogado pelas partes, caso tenham interesse.
De acordo com o ACNUR, a interiorização é dividida em quatro modalidades: quando uma vaga de emprego é disponibilizada (abrigo – trabalho); quando a transferência é feita de abrigos de Boa Vista para outros abrigos mantidos pelo poder público no interior do país (abrigo – abrigo); quando das parcerias com sociedade civil, por meio das quais o imigrante é levado de um abrigo para outro abrigo, em outro estado (abrigo – sociedade civil); e pela reunificação familiar, que ocorre quando o imigrante tem algum familiar que possa recebê-lo e integrá-lo na sociedade.
Camila Silva (2018) pondera sobre alguns limites da política de interiorização, sendo eles: a regularização da documentação do imigrante, o tempo de acolhimento (que pode variar entre seis meses e um ano, conforme o abrigo), e a própria política de interiorização que não é uma política pública consolidada, mas apenas uma iniciativa do governo federal. É notável, portanto, que a inserção no mercado de trabalho, bem como a integração dos venezuelanos que participam da interiorização trazem, ainda, desafios, não somente para as políticas migratórias, mas também para os diversos agentes que atuam no acolhimento desses imigrantes e refugiados.
Dessa forma, nota-se que os desafios são muitos, como também são muitos os atores que vêm operando nesse processo, ora atuando de forma autônoma, ora em parcerias com outros órgãos, como será ilustrado em seguida, no contexto do estado de Minas Gerais.
Como já indicado, a política de interiorização não é uma política pública consolidada, e, inicialmente, poucos estados assentiram. No caso de Minas Gerais, o governo não se pronunciou às solicitações do governo federal, porém, passou a receber imigrantes venezuelanos a partir de novembro de 2018, já na 20ª etapa do processo de interiorização. Cabe, portanto, assinalar que a interiorização de venezuelanos ocorreu (e ainda ocorre) através de ações advindas de OSCs – algumas em parceria com o governo federal, enquanto outras de forma autônoma – evidenciando a existência de uma dinâmica social, vislumbrada no processo imigratório de venezuelanos, em se tratando de análise de redes, em que muitos atores/agentes, instituições e organizações estão envolvidas.
De acordo com Braga (2011), analisar quem são os principais atores e instituições envolvidas no suporte à migração, o tipo de auxílio recebido na origem e no destino do movimento, a percepção sobre a existência de uma ou mais redes atuando nesse processo e quais tipos de redes envolvidas são aspectos importantes para os estudos migratórios internacionais, na atualidade. No caso das redes que abrangem a migração venezuelana, é possível observar não somente indivíduos com vínculos familiares e de amizade, mas, principalmente, muitas instituições que se articulam na ajuda ao ato de migrar, motivam a imigração e dão suporte e apoio, principalmente no destino desses nacionais venezuelanos. Isso reforça o que Braga (2002, como citado por Soares, 2002, p. 19) indicou em seus estudos, caracterizando a migração como um “processo social concreto, [o qual] incluiria redes institucionais e de pessoas que, operando entre esferas micro e macro, organizariam, de fato, a migração”.
Assim, segundo Soares (2002, p. 24), uma “rede social consiste no conjunto de pessoas, organizações ou instituições sociais que estão conectadas por algum tipo de relação. Uma rede social, em virtude do processo em torno do qual ela se organiza, pode abrigar várias redes sociais”. A partir dessas considerações, destacamos algumas instituições e organizações que atuam na interiorização, no apoio e acolhimento dos imigrantes venezuelanos que têm como destino final o Estado de Minas Gerais (ver Tabela 2) e, posteriormente (Figura 1), como elas se conectam.
Vale destacar que, em Belo Horizonte, o SJMR conduz a “Rede Acolhe Minas”, composta por ACNUR, Arquidiocese de Belo Horizonte, Providens - Ação Social Arquidiocesana de Belo Horizonte, Cáritas Regional Minas Gerais, Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Instituto Felix Guatarri, Rede Filhas de Jesus, Núcleo de Acolhida e Articulação da Solidariedade Paroquial (NAASP), Cio da Terra, Colégio Loyola, Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE), Colégio Santo Agostinho, Colégio Marista, Escola Superior Dom Hélder, Paróquia Nossa Senhora da Boa Viagem, Centro Federal de Educação Tecnológica (CEFET), Defensoria Pública, além de profissionais e refugiados venezuelanos que já residem na cidade, estudantes e profissionais que atuam na área da saúde e assistência social.7 Essa rede foi criada em setembro de 2018, para realizar campanhas de arrecadação, apoiar a gestão das casas e a integração das pessoas. Dentre as instituições mais atuantes em Minas Gerais, às quais tivemos acesso, destacam-se: a Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias, conhecida como Igreja Mórmon, a Agência Adventista de Desenvolvimento e Recursos Assistenciais (ADRA), o SJMR, a Casa de Apoio Chico do Vale e o Refúgio 343.
A Igreja Mórmon é uma organização religiosa que acolhe famílias de imigrantes venezuelanos, com prioridade às que fazem parte da congregação, proporcionando pagamento de aluguel residencial, equipamento das casas e despesas com água e energia, pelo prazo mínimo de 1 ano. Por meio de uma seleção das famílias imigrantes, até novembro de 2019, a instituição já realizou a interiorização de aproximadamente 93 famílias, com média de quatro pessoas por família, e previsão de chegar a 100 famílias até o início de 2020.
Os mórmons mantêm dois abrigos no estado de Roraima: um na cidade de Pacaraima, e outro na capital, Boa Vista. Através da interação de bispos da Venezuela com outros do Brasil, a igreja recebe as famílias nesses abrigos (que mais se caracterizam como casas de passagem) e agiliza suas documentações para que possam ser acolhidos em outros estados. Há indicações de que o papel da igreja nesse processo migratório seria parte da missão institucional, uma vez que um dos pilares da doutrina seguida é a ajuda mútua entre os fiéis e, considerando que o Brasil é o segundo país no mundo em termos do número de fiéis da igreja, esse apoio se justifica.
A ADRA é uma organização privada, sem fins lucrativos – Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP) – que, através do projeto Seventh-day Adventist World Service (SAWS) (Serviço Mundial Adventista), tem a meta de instalar 2.400 venezuelanos nos estados do Amazonas, Bahia, Minas Gerais, Paraná e Rio Grande do Sul, via Curitiba.
Iniciaram a participação no processo de interiorização entre julho e agosto de 2019, tendo a previsão de interiorizar 480 pessoas por estado (uma média de cinco pessoas por família), sendo que, das 96 famílias previstas para Minas Gerais, 10 já se encontram no estado, com trabalho e moradia. A meta, até abril de 2020, era de interiorizar 2.400 pessoas e o apoio inicial tem um prazo de três meses.
O SJMR é uma instituição internacional da Companhia de Jesus que é especializada em migração, deslocamento forçado e refúgio. Em parceria com estruturas governamentais e através do Projeto Acolhe Brasil, concretiza a interiorização de venezuelanos, atuando no Brasil em cinco estados: Minas Gerais, Roraima, Amazonas e Rio Grande do Sul.
A Casa de Apoio Chico do Vale é uma associação filantrópica cujo propósito inicial é o acolhimento a pacientes transplantados e em tratamento na capital mineira. A partir do ano de 2018 passou a acolher refugiados venezuelanos, interiorizados para Minas Gerais. Em parceria com o Serviço Jesuíta e outras entidades religiosas, além do apoio e doação de empresários e voluntários, já recebeu, aproximadamente, 400 venezuelanos. Estes, inicialmente, são acolhidos no abrigo, podendo permanecer no local por um período de três meses, até sua inserção no mercado de trabalho ou encaminhamento para outras cidades do interior do estado. Todo o processo é acompanhado pelo Padre Ronilson Braga, da Pastoral Universitária de Roraima, em conjunto com outras instituições religiosas.
O Refúgio 343 foi criado por iniciativa de doze amigos que se reuniram para acolher famílias venezuelanas que participam do processo de interiorização, por meio do projeto da instituição Fraternidade Sem Fronteiras (FSF). Caracterizado como sendo uma organização humanitária, aceleradora da interiorização de famílias venezuelanas, que atua também no estado de São Paulo, recebe as famílias proporcionando as despesas com aluguel, alimentação, água, luz, saúde e transporte, por um período de três meses. A partir desse período, responsabilizam-se apenas pelo aluguel, por mais três meses. Através do projeto “Brasil, um coração que acolhe”, contribuiu para a interiorização de mais de trezentos venezuelanos (no período de abril a outubro de 2019), principalmente para os estados de São Paulo, Mato Grosso do Sul, Rondônia e Minas Gerais.
As instituições mencionadas, de forma autônoma ou em parcerias, oferecem serviços, auxílios e assistência a famílias e indivíduos venezuelanos, em condição de refúgio ou residência temporária, proporcionando a estes a possibilidade de iniciar uma nova vida, com menor impacto e melhor condição de integração social.
Os movimentos migratórios internacionais, na contemporaneidade, apresentam-se distintos em relação às condições de saída, destino e chegada a uma nova sociedade, sendo que, no caso dos venezuelanos, além do volume, o movimento traz desafios relacionados aos diálogos diferenciados entre as instituições envolvidas no processo de interiorização. Mesmo com saldo migratório negativo, o Brasil enfrenta desafios pela falta de políticas públicas migratórias nos âmbitos municipal, estadual e federal, o que traz limitações à atuação dos governos e explicita a importância do apoio de instituições não governamentais, religiosas e da sociedade civil de modo geral. Outra questão limitadora envolve a adesão dos governos estaduais à política de interiorização do governo federal que, no caso de Minas Gerais, ocorreu tardiamente e, até o início de 2020, não apresentava nenhum resultado concreto.
Como citado, a interiorização é a estratégia e a ação mais efetiva da política federal para reduzir os impactos do grande influxo de imigrantes para o estado de Roraima, que abre outros caminhos, principalmente para a criação de redes e a possibilidade de outros destinos para o imigrante, como vem acontecendo em outros estados.
Observa-se, também, a necessidade de criar uma sinergia entre as instituições que atuam nesse processo, bem como políticas públicas direcionadas, de modo a trazer maior eficiência e eficácia na receptividade, no acolhimento e na integração dos imigrantes venezuelanos.