Resumo: Desde os anos 2000, observa-se a difusão do programa de pesquisas em Capitalismos Comparados (CC), envolvendo três gerações de estudos interdisciplinares nos campos da economia política e da sociologia econômica sobre Variedades de Capitalismo (VoC). Com foco quase que exclusivo nos países desenvolvidos nas duas primeiras gerações, em sua terceira geração os estudos em CC passaram a se ocupar também dos países em desenvolvimento, principalmente dos países emergentes, como os BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul). Contudo, apesar de os mais importantes estudiosos comparatistas nas ciências sociais sempre terem se preocupado com a questão agrária nas grandes transformações que deram origem e definiram os rumos do mundo moderno, é notável a ausência de temas agrícolas, rurais e alimentares nos estudos em CC. No intuito de superar parte dessa lacuna, o artigo explora o lugar da “questão agroalimentar” nas variedades de capitalismo dos BRICS e o papel desempenhado por esses países no reordenamento do “regime alimentar internacional”.
Palavras-chave:BRICSBRICS,variedades de capitalismovariedades de capitalismo,regime alimentarregime alimentar,questão agroalimentarquestão agroalimentar,análise institucional comparativaanálise institucional comparativa.
Abstract: Since the 2000s, there has been a diffusion of the Comparative Capitalism (CC) research programme, involving three generations of interdisciplinary studies in the fields of political economy and economic sociology on Varieties of Capitalism (VoC). With an almost exclusive focus on developed countries in the first two generations, in its third generation CC studies started to focus on developing countries as well, especially emerging countries, such as the BRICS (Brazil, Russia, India, China and South Africa). However, despite the fact that the leading comparative scholars in social sciences have always been concerned with the agrarian question in the great transformations that gave rise to and defined the directions of the modern world, there is a notable absence of agricultural, rural and food issues in CC studies. In order to overcome part of this gap, the article explores the place of the “agrifood question” in the BRICS’ varieties of capitalism and the role played by these countries in the reordering of the “international food regime”.
Keywords: BRICS, varieties of capitalism, food regime, agrifood question, comparative institutional analysis.
Dossiê
Variedades de capitalismo nos BRICS: uma perspectiva agroalimentar
Varieties of capitalism in the BRICS: an agrifood perspective
Recepción: 05 Abril 2021
Aprobación: 20 Julio 2021
A notável divergência observada nas trajetórias de crescimento e distribuição entre países a partir dos anos 1990, na esteira da queda do socialismo real e da hegemonia da globalização neoliberal, claramente contraria a suposta tendência à convergência prevista pela tese do fim da história (Fukuyama, 1992) e prescrita pelo chamado Consenso de Washington (Williamson, 2004). Nesse ínterim, um conjunto de abordagens institucionalistas ganhou força nos campos da economia política e da sociologia econômica ao oferecer explicações alternativas para tal fenômeno. A perspectiva dos Capitalismos Comparados (CC) é provavelmente a mais famosa nos países desenvolvidos do Norte e também tem recebido atenção nos países em desenvolvimento do Sul (Schedelik et al., 2020). Enquanto as origens intelectuais da economia política internacional comparada remontam a Polanyi ([1944]2000) e Gerschenkron ([1962]2015), Shonfield (1965) é geralmente considerado o precursor e Albert (1996) o pioneiro dos estudos em CC contemporâneos. Mas é reconhecidamente a abordagem das Variedades de Capitalismo (VoC), desenvolvida por Hall e Soskice (2001), a principal responsável pela explosão dos estudos em CC observada desde o início dos anos 2000.
Em vez de prever um único tipo de capitalismo, Hall e Soskice (2001) postulam dois tipos polares: economias de mercado liberais (LME), representadas por Estados Unidos e Inglaterra, e economias de mercado coordenadas (CME),* ilustradas por Alemanha e Japão. A análise foca no microcomportamento das firmas e em sua coordenação através de cinco domínios institucionais: finanças e governança corporativa, relações industriais, educação e treinamento, relações empregados-gestores e relações interfirmas. As LMEs são coordenadas por mercados competitivos e contratos formais e as CMEs por redes sociais e associações entre empresas. Devido às suas complementaridades e vantagens comparativas institucionais específicas, cada tipo segue padrões distintos de especialização produtiva e comércio exterior, diferentes modelos de bem-estar social e sistemas políticos diversos. Ambos, porém, seriam igualmente eficientes em termos de desempenho econômico. Essa abordagem extremamente parcimoniosa mostrou-se uma alternativa convincente à narrativa neoliberal hegemônica sem se opor frontalmente aos princípios básicos do paradigma da escolha racional e, ao mesmo tempo, sendo compatível com as novas abordagens institucionalistas que surgiam nas ciências sociais. Entretanto, mesmo dentro dos debates dessa primeira geração de pesquisas VoC, a abordagem não passou sem contestações. Sociólogos econômicos problematizaram o valor da categorização bipolar e o caráter funcionalista da análise, sugerindo retificações com base no institucionalismo histórico e sociológico (Streeck & Yamamura, 2001; Crouch et al., 2005). Economistas regulacionistas criaram tipologias indutivas mais abrangentes buscando abarcar a diversidade institucional do capitalismo realmente existente em diferentes países e regiões do mundo desenvolvido (Amable, 2003; Boyer, 2005). E mesmo os marxistas, com participação marginal nesses debates, criticaram a própria concepção de capitalismo utilizada e a ausência de temas como desigualdades, conflitos de classe e o papel do estado (Coates, 2005).
Algumas dessas críticas foram parcialmente incorporadas, dando origem a uma segunda geração de pesquisas “beyond-VoC”, que busca tornar a abordagem mais dinâmica. A ênfase em estabilidade institucional e path-dependence foi relativizada e se reconheceu que os efeitos de interação entre instituições podem produzir ineficiências e tensões, não apenas complementaridades, e que os conflitos políticos e distributivos podem perpassar o estado e gerar ajustes e mudanças institucionais. Ademais, a tipologia foi expandida para cobrir uma gama mais ampla de casos nacionais no Leste, Norte e Sul da Europa, Ásia e América Latina (Deeg & Jackson, 2006; Hancké et al., 2007; Bohle & Greskovits, 2009; Schneider, 2009). Por fim, surge uma terceira geração de pesquisas, “post-VoC”, que, embora se mantenha aberta ao diálogo, enseja rupturas epistêmicas e inaugura um novo programa de pesquisas dentro dos estudos em CC. Esse programa supera o foco estreito nos países da OCDE, o individualismo metodológico centrado na firma, a análise funcionalista e economicista e a tipologia confusa e dicotômica da VoC padrão. Empiricamente, expande a abrangência geográfica dos estudos e cria tipologias mais adequadas para variedades regionais ou sub-regionais de capitalismo, bem como para comparações inter-regionais, particularmente entre os BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) e outros países emergentes. Teoricamente, busca construir um “institucionalismo crítico” que compreenda a natureza, dinâmica e diversidade do capitalismo a partir de clássicos como Marx, Weber, Veblen, Keynes, Polanyi e Gramsci. Metodologicamente, combina elementos analíticos neo-weberianos, neo-marxistas/gramscianos e pós-keynesianos/kaleckianos, entre outros, para dar conta de dimensões ignoradas ou inadequadamente tratadas pelas gerações precedentes. Primeiro, o lado da demanda, fundamental para determinar os “regimes de crescimento e distribuição”. Em segundo lugar, a composição de classe dos “blocos sociais”, cuja correlação de forças sustenta o poder do estado. Em terceiro, a integração das economias nacionais ao capitalismo global, dada a existência de “interdependências sistêmicas” (Ebenau et al., 2015; Coates, 2016; Amable et al., 2019; Schedelik et al., 2020).
É em diálogo com essa última geração de estudos em CC que se coloca a problemática do presente artigo, aportando uma contribuição eminentemente interdisciplinar. A proposta é esboçar uma análise institucional comparativa das variedades de capitalismo dos BRICS1 com base numa perspectiva agroalimentar. Por um lado, diferente da maioria dos estudos em CC, meu objetivo não é criar uma tipologia dedutiva. Becker (2013) e Hay (2019) demonstram que, embora a VoC padrão reivindique Weber, pretendendo que LMEs e CMEs operem como tipos ideais, o seu enfoque tipológico é logicamente inconsistente. Por exemplo, a abordagem classifica casos empíricos como se fossem tipos abstratos e faz generalizações no nível macro a partir das análises no nível micro, entre outras confusões metodológicas comprometedoras. Becker (2013) vai inclusive propor cinco tipos ideais de capitalismo (liberal, estatista, meso-comunitário, corporativista e patrimonial) e sugerir alguns casos aproximados; mas, ao aplicar essa tipologia aos BRICS, conclui que, na medida em que as economias da China, Índia, Rússia e Brasil combinam doses variadas de quatro desses tipos, não faz sentido embutir casos tão diferentes entre si dentro de um único tipo coerente, isto é, de uma suposta “variedade BRICS de capitalismo”. Por outro lado, é notável a ausência de temas agrícolas, rurais e alimentares nos estudos em CC em geral e na literatura sobre VoC em particular, que tratam quase que exclusivamente de economia industrial (Kohl et al., 2017). Isso contrasta com a constatação de que alguns dos mais importantes estudiosos comparatistas nas ciências sociais sempre se preocuparam com questão agrária nas grandes transformações que deram origem e definiram os rumos do mundo moderno (Moore Jr., 1983; Byres, 1986). Ademais, estudos recentes deixam claro que os BRICS, como grandes centros emergentes na produção, circulação e consumo de commodities e produtos agroalimentares, detentores de abundantes reservas de trabalho e recursos naturais e possuidores de grandes mercados domésticos, são cruciais para entender não somente o futuro do sistema agroalimentar global, mas também do próprio capitalismo (McKay et al., 2018; Cousins et al., 2020). Nessa direção, o artigo interroga sobre o lugar da “questão agroalimentar” na diversidade institucional do capitalismo nos BRICS e o papel que eles desempenham no reordenamento do “regime alimentar internacional”.
Para isso, o texto conta com quatro seções além dessa introdução. A segunda seção faz uma revisão crítica da bibliografia internacional sobre VoC nos BRICS. Qualquer revisão não sistemática sempre traz o risco de incorrer em vieses e subjetividades implícitas na seleção do material. Consciente disso, reviso apenas os principais trabalhos representativos da terceira geração de estudos em CC com foco nos BRICS. Somente um trata do conjunto dos países, alguns discutem apenas um país e outros têm abrangência regional. Mas este artigo só cobre os casos de China, Índia, Rússia e Brasil. A terceira seção delineia uma proposta analítica da questão agroalimentar nos estudos em CC. Depois de expor as contribuições fundamentais da abordagem dos Regimes Alimentares (FR, sigla em inglês para food regimes) para a economia política internacional da agricultura e da alimentação, estabeleço conexões metodológicas entre esta e as principais dimensões dos atuais estudos em CC acima mencionadas, a partir de uma releitura dos clássicos da questão agrária. A quarta seção esboça uma análise institucional comparativa da questão agroalimentar nas variedades de capitalismo dos BRICS. Trata-se de uma análise indutiva operacionalizada através de descrições necessariamente esquemáticas e estilizadas das vias de transição agrária para o capitalismo e das problemáticas da questão agroalimentar nas trajetórias recentes de cada país, além de uma breve apreciação sobre o significado dos BRICS no contexto global. A quinta seção sintetiza as principais conclusões e indica direções de pesquisa.
O termo BRICS, cunhado por Jim O’Neil da Goldman Sachs, em 2001, para designar os “mercados emergentes” que se destacavam por suas dimensões territoriais, populacionais e econômicas, na esteira da crise de 2008, passou a ser assumido coletivamente por China, Índia, Rússia e Brasil. Com inclusão da África do Sul, em 2010, e as sucessivas Cúpulas do BRICS, o agrupamento adquiriu significado político e institucionalização crescentes. Apesar dos interesses e capacidades econômicas, políticas e militares díspares entre seus membros, todos exercem certa liderança regional e alegam querer reformar o poder global numa direção multipolar, como demonstram as iniciativas do Novo Banco de Desenvolvimento e do Arranjo Contingente de Reservas (Stuenkel, 2020). Entretanto, é questionável se, e em que medida, os BRICS realmente oferecem uma alternativa progressista ao neoliberalismo ou desafiam as desigualdades de poder e riqueza existentes entre Norte e Sul (Garcia, 2017). A incapacidade do grupo em lidar com a influência de pressões externas, como nos episódios das sanções contra a Rússia, da renúncia de Zuma na África do Sul e do impeachment de Dilma Rousseff no Brasil, ou mesmo com as tensões intragrupo, como a deterioração das relações sino-indianas e as hostilidades diplomáticas sino-brasileiras, indica uma clara reversão das expectativas otimistas outrora nutridas em relação aos BRICS (Batista Jr., 2019; Ibañez, 2020). O abandono da política externa ativa, o alinhamento ideológico com o governo Trump e a gestão inconsequente da crise do coronavírus pelo governo Bolsonaro, no Brasil, também dificultam o estabelecimento de uma estratégia coerente e articulada entre os países (Oliveira et al., 2021). E, apesar de a China ainda se identificar como uma economia em desenvolvimento, o país já opera como uma grande potência, por meio de uma estratégia de projeção global ambiciosa plasmada em instituições como o Banco Asiático de Investimento em Infraestrutura (AIIB) e a Iniciativa Cinturão e Rota (BRI) (Li, 2019). Mesmo assim, apesar das limitações expostas pelos BRICS, seja em se posicionar como fórum na arena multilateral, ou ainda mais em se afirmar como um bloco comercial, monetário e geopolítico, as suas trajetórias de desenvolvimento continuam chave para compreender as transformações em curso na economia política internacional. Nesse sentido, a atual terceira geração de estudos em CC aporta contribuições oportunas.
Na interpretação de Nölke et al. (2020), os casos dos B(R)ICS podem ser representados através de um tipo ideal de Economias de Mercado Permeadas pelo Estado (SMEs), em que o estado coopera estreitamente com o capital doméstico dominante para proteger o mercado interno e apoiar a internacionalização de empresas líderes. A China é a expressão mais plena de um capitalismo SME. Empresas estatais e grupos econômicos familiares caracterizam a estrutura de propriedade corporativa. Grandes bancos públicos têm papel central em financiar as empresas via crédito subsidiado. Apesar de privatizações seletivas, as multinacionais atuam de modo restrito. Controles de capital e acúmulo de reservas monetárias têm caráter estratégico. O mercado de trabalho é segmentado entre setor formal e informal, rebaixando os custos da mão de obra e gerando desigualdades distributivas. As alianças público-privadas operam por relações interpessoais de reciprocidade, que podem tanto facilitar a corrupção como funcionar como um efetivo mecanismo de coordenação. Hundt e Uttan (2017), por sua vez, propõem descortinar “as origens sociais do capitalismo” e argumentam que o “enraizamento social” é uma pré-condição institucional para a construção de estados intervencionistas fortes e capazes de promover políticas econômicas, industriais e distributivas robustas e efetivas. Por meio de uma reconstrução histórica do “socialismo de mercado” chinês, defendem a centralidade das reformas agrárias de Mao e Deng na instituição de um “igualitarismo enraizado”, que, embora em processo de reversão, deitou as bases para uma industrialização intensiva em mão de obra e manufatura de massa, liderada por investimento e exportações, que atualmente avança a passos largos rumo à fronteira das inovações tecnológicas. Destacam que o entrelaçamento pragmático de valores confucianos e socialistas e de práticas coletivistas e neomercantilistas permitiu à China articular competição de mercado e intervenção estatal de modo a criar um capitalismo com ampla base social e de alto desempenho. Por fim, segundo McNally (2019), a configuração institucional do “sino-capitalismo” centra-se na interação dialética entre duas dinâmicas de acumulação de capital: uma liderada pelo estado, de cima para baixo, via empresas estatais, intervenção governamental direta e planejamento estratégico de longo prazo, e outra baseada no empreendedorismo privado, de baixo para cima, via relações patrimonialistas de guanxi em setores orientados para o mercado, frequentemente concentrados, globalmente integrados e rodeados por um amplo setor informal. As mudanças institucionais que ocorrem por meio dessa interação deixam um amplo espaço para a engenhosidade local, aprendizagem e ajustes, mas também produzem tensões e conflitos de interesse. Esse processo é habilitado pela legitimidade do Partido Comunista da China (PCC), que pragmaticamente promove a experimentação e a adaptação econômica contínuas, graduais e flexíveis, ao mesmo tempo em que mantém intacto o controle político do estado sob a autoridade de Xi Jinping.
O caso da Índia é tratado por Nölke et al. (2020) como uma variante do tipo SME. Na Índia, mais do que em outras SMEs, os clãs familiares têm um papel central como mecanismo de coordenação e fonte de financiamento, promovendo uma simbiose entre capital doméstico e autoridades públicas a partir de redes de parentesco, valores comuns e background social compartilhado. Mesmo em empresas listadas, os maiores blocos patrimoniais permanecem nas mãos da família fundadora ou do acionista controlador, além de fazerem uso de financiamento estatal direto ou indireto, frequentemente alocado através de redes informais. A modernização seletiva via privatizações e investimentos estrangeiros diretos em setores de nível médio de tecnologia, sobretudo em serviços intensivos em mão de obra, é outro elemento crucial. Isso permitiu à Índia fazer inovações e abrir espaços em certas cadeias globais de valor (como a farmacêutica) ao mesmo tempo em que seu grande mercado interno é atendido principalmente por firmas nacionais. Segundo Hundt e Uttan (2017), o “capitalismo democrático” construído na Índia pós-independência caracteriza-se pela prevalência de um “elitismo enraizado”, reproduzido por meio do lock-in institucional associado ao chamado “complexo casta-classe-região-religião-identidade”. Embora tenha passado de um regime de crescimento intensivo em capital e manufatura pesada para outro intensivo em conhecimento e puxado pelos serviços, a persistência dos interesses vetustos de uma pequena mas poderosa aristocracia fundiária fez com que o impulso industrializante experimentado pela Índia fosse incapaz de absorver a mão de obra excedente e desse vez a um setor informal gigantesco, que mantém a produtividade e os salários rebaixados e reproduz a pobreza endêmica e as desigualdades distributivas. Na mesma direção, Mazumdar (2017) argumenta que o fracasso em lidar com as restrições agrárias e a origem colonial das classes capitalistas indianas limitaram a extensão em que esse legado poderia ser superado, engendrando um processo restrito de industrialização. Junto com outros fatores, isso criou as condições para a ascensão de um neoliberalismo que, apesar das taxas de crescimento elevadas, mostrou-se altamente excludente, abrindo caminho para o populismo de direita representado por Modi, o qual reproduz e reafirma, através de um novo discurso, os interesses elitistas enraizados da burguesia indiana.
O caso da Rússia é retratado de maneira sui generis pela literatura em CC. Nölke et al. (2020) não o incluem entre as SMEs. Becker e Vasileva (2017), por sua vez, buscam explicar o caráter cambiante do capitalismo russo através das mudanças ao longo do tempo no poder político, nas ideias e discursos e nas políticas públicas – um insight que também se aplica para compreender o Brasil e a Índia. Embora o desenvolvimento político-econômico russo seja frequentemente descrito como um processo de liberalização desde o início dos anos 1990 e de reestatização após os anos 2000, o seu “patrimonialismo enraizado” constrangeu o aumento da capacidade econômica do estado, pois subverteu a liberalização e minou a estatização como modos de institucionalização do capitalismo. Buhr e Frankenberger (2014) exemplificam a Rússia como um “capitalismo incorporado”, em que as empresas estatais predominam no setor energético e no complexo industrial-militar e os fundos públicos são cruciais no financiamento das empresas privadas que fazem parte da clientela do estado. A “cooptação patrimonialista” opera como um mecanismo informalmente institucionalizado de governança, que evolui da necessidade recíproca de cooperação, evitando o uso da coerção, empregada apenas como último recurso. Drahokoupil e Myant (2015) representam o caso russo como um “capitalismo oligárquico”, integrado à economia mundial através da exportação de commodities (petróleo e gás), enquanto outros setores permanecem voltados para o mercado doméstico, com pouca capacidade de competir internacionalmente. O estado fornece a infraestrutura econômica básica e protege a economia a partir de uma relação íntima entre as oligarquias empresariais e o poder público. Mas as condições do mercado de trabalho e as políticas de bem-estar não são fatores determinantes, senão refletem a correlação de forças de uma sociedade enredada pelo regime autoritário de Putin. Essa lógica de rent-seeking, segundo Mihályi e Szelényi (2019), é a característica fundamental do “capitalismo pós-comunista” russo, que evolui da captura do mercado pelas elites políticas à captura do estado pelos oligarcas e desemboca na captura dos oligarcas pelo governante autocrático por meio da criminalização seletiva, via acusações de corrupção e da redistribuição dessa riqueza para os novos ricos leais ao regime.
E o caso do Brasil, segundo Nölke et al. (2020), mostra alguns desvios em relação ao tipo SME. Embora conte com um grande mercado interno e certa capacidade de coordenação estado-empresas-bancos públicos, o país sofre com resíduos de um “capitalismo dependente”. Apesar dos resultados macroeconômicos e sociais promissores, os governos do Partido dos Trabalhadores (PT) não conseguiram desdobrar plenamente as potencialidades do capitalismo SME para tornar a economia brasileira mais independente de pressões externas. A integração financeira subordinada, a forte presença das multinacionais forâneas, o rentismo em torno da dívida pública, a reprimarização das exportações, a perda de participação da indústria no PIB e no emprego, as políticas monetária, fiscal e tributária inadequadas, o congresso focado em interesses particularistas e os fracionamentos e divisões entre a burguesia, a classe média e os trabalhadores são todos fatores que dificultaram a coordenação necessária para perpetuar uma estratégia de desenvolvimento vigorosa liderada pelo estado. Para Boschi e Pinho (2019), essa inconsistência na trajetória de desenvolvimento do capitalismo brasileiro, este deslocamento de um modelo “estatista” para um modelo “ultraliberal”, decorreu da incapacidade do governo Dilma em resistir às pressões do mercado financeiro para implementar o ajuste fiscal, em 2015, em resposta à desaceleração econômica, à queda da arrecadação e aos impactos da Operação Lava Jato, descambando no golpe parlamentar, midiático, empresarial e jurídico de 2016 e, logo, no desmonte das políticas públicas do Estado e na reversão dos indicadores de produção, desemprego, informalidade, pobreza e desigualdade. Para Morgan et al. (2020), as instituições brasileiras estão historicamente presas a uma distribuição altamente enviesada de renda em favor do capital devido à propriedade restrita da terra e ao controle de grandes grupos empresariais na indústria, varejo, mídia e bancos por poucas famílias muito ricas. Lula pretendia construir um bloco social que permitisse conciliar o apoio ao empresariado com a melhoria das condições de vida das classes populares nas cidades e no campo, sem enfrentar os privilégios dos ricos e da alta classe média, por meio de um regime de crescimento baseado nas exportações primárias, na internacionalização das “campeãs nacionais” e no consumo doméstico. Porém, quando a crise global se fez sentir na economia brasileira, esse bloco “neo-desenvolvimentista” se desfez e as frações burguesas passaram a recompor o bloco neoliberal em volta de Temer e depois de Bolsonaro, com apoio dos militares, das igrejas neopentecostais e da classe média conservadora, embora provavelmente sem capacidade de articular um novo regime de crescimento para além das commodities e da financeirização.
Essa rápida revisão dos estudos em CC nos BRICS enseja duas considerações cruciais. Primeiro, conquanto tipos ideais possam ser úteis para a interpretação e proverem referências analíticas flexíveis e sensíveis ao contexto, o seu uso se mostra elusivo na compreensão das variedades de capitalismo dos BRICS. Enquanto Mazumdar (2017), Becker e Vasileva (2017), Boschi e Pinho (2019) e Morgan et al. (2020) não recorrem a tal método, Hundt e Uttan (2017), McNally (2019) e Mihályi e Szelényi (2019) simplesmente dão nomes a partir de características típicas dos países. Buhr e Frankenberger (2014) e Drahokoupil e Myant (2015) vão ilustrar com o caso da Rússia os seus tipos de capitalismo autoritário e patrimonialista. Mas é somente Nölke et al. (2020) que procuram apreender toda a diversidade institucional do capitalismo nos B(R)ICS por meio de um tipo ideal à la Weber. Entretanto, apenas a China, e em menor medida a Índia são realmente representadas como SMEs, ao passo que o Brasil – e a África do Sul – ficam relativamente aquém do alcance do conceito e a Rússia nem mesmo é estudada, deixando dúvidas sobre a utilidade de usar um único tipo para interpretar todos os casos. Além disso, o tratamento por eles concedido aos BRICS parece tomar a sua natureza de agente coletivo como base para a formação do tipo ideal – o que é questionável. Não obstante essa insistência pouco justificável no uso de tipologias estabelecidas de maneira dedutiva e a priori para capturar a diversidade institucional do capitalismo, a fecundidade dos estudos em CC da terceira geração está no fato de, sem abandonar o olhar sobre as formas de organização das firmas, eles combinarem elementos de análise macroeconômica de corte pós-keynesiano/kaleckiano e de análise das classes e do Estado de extração regulacionista/gramsciana.
Em segundo lugar, uma dimensão que não foi enfatizada na revisão acima, mas está presente na maioria dos estudos, concerne às interdependências sistêmicas entre as economias nacionais e às tendências contraditórias associadas à crescente inserção dos BRICS no capitalismo global. Empiricamente, isso pode ser observado nos fluxos transnacionais de comércio, investimentos e finanças, que se refletem no balanço de pagamentos dos países, e nas suas estruturas produtivas e tecnológicas que condicionam sua inserção nas cadeias globais de valor (Schedelik et al., 2020). Teoricamente, isso implica que os capitalismos nacionais não variam como iguais na escala internacional e que a integração dos países emergentes se dá num sistema interestatal hierarquizado (Nölke et al., 2020). Historicamente, a hipótese levantada é que, independentemente de os BRICS serem capazes ou não de alterar a dinâmica do quadro hegemônico atual enquanto um bloco coordenado, a emergência desses países por si só, especialmente da China, em meio à atual confluência de crises múltiplas e sucessivas, pode estar denotando o fim da era neoliberal do capitalismo e o início de um novo período de “capitalismo organizado”. No entanto, isso não significa que a próxima fase do capitalismo será do tipo social-democrata, com impostos altos, pleno emprego e sindicatos fortes. Em vez disso, poderá ser marcada pela formação de novas oligarquias capitalistas e a reprodução de velhas e novas desigualdades (Nölke & May, 2019).
Congruente com tal concepção, o programa de pesquisas de Friedmann e McMichael (1989) visa explorar o papel da agricultura no desenvolvimento da economia mundial e na trajetória do sistema interestatal. Influenciado pelas Teorias do Sistema Mundo e da Regulação e, mais tarde, por Polanyi e Gramsci, o núcleo analítico dessa abordagem gira em torno do conceito de Regime Alimentar (FR), que vincula relações internacionais de produção e consumo alimentar a regimes de acumulação de capital em três períodos distintos. O primeiro regime (1870-1914/30) foi erigido sob a hegemonia do Império Britânico e do sistema monetário do Padrão Ouro. Sob a ideologia imperialista do livre comércio, os domínios e as periferias coloniais ou dependentes espalhadas pelas Américas, Oceania, Ásia e África eram estimulados ou compelidos a fornecer alimentos e matérias primas baratas para as metrópoles em industrialização, a fim de manter valor salarial de reprodução da sua força de trabalho em nível baixo. O segundo regime (1945-1973/85) foi construído sob a hegemonia dos EUA e do sistema monetário de Bretton Woods. Sob a ideologia anticomunista e desenvolvimentista da Guerra Fria, a América do Norte e a Europa consolidaram-se como potências agrícolas e passaram a difundir os programas de “ajuda alimentar” e os pacotes tecnológicos da “revolução verde” pelas periferias, com fins geopolíticos. O terceiro regime (1995-hoje), porém, carece de interpretação consensual: Friedmann (2005) vai conceber um regime “corporativo ambiental” emergente, e McMichael (2005), um regime “corporativo” consolidado. No entanto, ambos concordam que a renovada hegemonia dos EUA, baseada no sistema monetário pós-Bretton Woods de taxa de câmbio flexível é inerentemente instável e que a criação da Organização Mundial do Comércio (OMC) e do Acordo sobre a Agricultura (AoA), em 1995, forneceu o arcabouço institucional para a liberalização do comércio agrícola internacional, restringiu a capacidade dos estados para intervir e fazer políticas públicas e permitiu a proliferação de padrões privados de regulação no sistema agroalimentar global (Friedmann, 2009; McMichael, 2009).
Sem embargo, o terceiro regime alimentar seguiu sendo objeto de intensa controvérsia interpretativa. Pritchard (2009), por exemplo, considera que o colapso da Rodada de Doha em 2008 sinaliza a decadência da OMC e a crise do segundo regime alimentar, questionando a própria existência de um terceiro regime. Pechlaner e Otero (2008), por sua vez, argumentam que desde o rescaldo da Rodada Uruguai, em 1993, emergiu um “regime alimentar neoliberal” em simultâneo com a ampla difusão das biotecnologias. Enquanto, para Burch e Lawrence (2009), as crises financeira e alimentar de 2008 são sintomas da crise de um “regime alimentar financeirizado”, que emergiu pari passu com a difusão das novas tecnologias da informação e comunicação. Seja como for, de uma abordagem essencialmente estruturalista, o conceito de FR tornou-se um dispositivo heurístico capaz de “identificar os fundamentos agroalimentares de períodos históricos, ciclos ou mesmo tendências seculares no capitalismo” (McMichael, 2009, p. 148). Com efeito, a noção de um terceiro regime tem servido de guarda-chuva para uma ampla gama de tópicos interrelacionados cobertos pelos estudos agroalimentares críticos.2
Sintomaticamente, os debates mais acalorados sobre o atual regime centram-se em questões de hegemonia, multipolaridade e transição. Gaudreau (2019) observa que, apesar de a China figurar cada vez mais nas análises contemporâneas, sua ausência da narrativa histórica dos FR é notável, não obstante seu envolvimento não desprezível no comércio agroalimentar internacional e sua relevância para as políticas externas das potências hegemônicas durante o primeiro e segundo regimes. Niederle (2018), ao examinar a história do sistema agroalimentar brasileiro, argumenta que a abordagem dos FR tem lidado mal com a heterogeneidade social, porque concebe o núcleo hegemônico como uma fonte de restrições estruturais homogeneamente estendidas às periferias, sem um tratamento empírico cuidadoso das especificidades de países fora do Norte/Ocidente, supervalorizando as rupturas em detrimento das transições e tendendo ao raciocínio prescritivo. Ao passo que Wilkinson e Goodman (2017) argumentam, inter alia, que a abordagem dos FR faz generalizações excessivas e imprecisas com base na história dos hegemons enquanto negligencia as multipolaridades na evolução do sistema mundial capitalista e as continuidades históricas nas estratégias de acumulação agroalimentar perseguidas por outras economias ascendentes, como é atualmente o caso dos BRICS.
Essas críticas, em geral endereçadas a McMichael, de acordo com Friedmann (2016), devem-se à falha do colega em aplicar o método de “comparação incorporada” que ele mesmo apregoa. Na elaboração de uma teoria historicamente fundamentada, em vez de se presumir as “partes” (formações sociais e sistemas agroalimentares nacionais) do “todo” (capitalismo global e regime internacional), essas devem ser consideradas diferentes momentos do todo que emerge da análise comparativa. Assim, na comparação incorporada, o todo é construído por meio de um procedimento metodológico que contextualiza as trajetórias históricas. Esse método precisa ser restaurado, se o propósito for desvendar “a totalidade das relações de acumulação, poder, geografia e classe por meio da análise do condicionamento mútuo das partes” (Friedmann, 2016, p. 674-675). Nesse sentido, se olharmos as transformações do capitalismo na era neoliberal (o todo) enquanto um “duplo movimento” (Polanyi, [1944]2000) cuja direção depende das “correlações de forças” existentes (Gramsci, 1992), o reordenamento do regime alimentar pode ser contemplado a partir das lutas por hegemonia dentro e entre os países (as partes) que o compõem, abarcando organicamente suas interdependências sistêmicas.
É nesse momento que as perspectivas CC e FR se encontram. Em vez de observar o comportamento de certas variáveis através dos casos, como faz a abordagem VoC padrão, que geralmente compara indicadores dos distintos “domínios institucionais” para classificar um caso como pertencente a um ou outro tipo, a análise institucional comparativa “incorpora” os diversos casos a partir das problemáticas da questão agroalimentar, rastreando processos a fim de reconstruir as cadeias causais das trajetórias estudadas na forma de narrativas históricas mais ou menos complexas (Mayntz, 2004). Nessa linha, diversamente da VoC ou até de alguns estudos em CC da terceira geração, que geralmente usam tipos ideais como critério comparativo, os estudos clássicos da questão agrária usualmente comparam as rotas ou vias históricas tipicamente percorridas por determinadas formações sociais concretas em seus processos de transformação política e econômica. Na mais célebre obra dessa tradição, Moore Jr. (1983) traça três rotas históricas para o mundo moderno, decorrentes dos conflitos e alianças entre a burguesia ascendente, a aristocracia rural e o campesinato: a democrática burguesa, seguida por Inglaterra, França e EUA; a capitalista reacionária, trilhada por Alemanha e Japão; e a comunista revolucionária, exemplificada por China e Rússia; além da Índia, que conquista a independência e a democracia, mas não consegue consolidar uma rota capitalista robusta. Byres (1986), por sua vez, traça certas vias de transição agrária para o capitalismo, igualmente decorrentes das relações de classe entre latifundiários, camponeses e burguesia: capitalismo de cima para baixo na Prússia e capitalismo de baixo para cima nos EUA; capitalismo de baixo para cima mediado pelos latifundiários na Inglaterra e capitalismo demorado na França; capitalismo com reforma agrária controlada pelos latifundiários no Japão e capitalismo com reforma agrária controlada pelo estado na Coreia do Sul e em Taiwan.
Além disso, Byres (1986) identifica três diferentes sentidos da questão agrária nos clássicos do marxismo: o sentido político, em Engels, sobre as relações entre campesinato e latifundiários e destes com as outras classes sociais frente ao poder do Estado; o sentido sociológico, em Kautsky e Lenin, sobre as formas, extensão e barreiras ao desenvolvimento capitalista na agricultura; e o sentido econômico, em Preobrazhensky e Bukharin, sobre a extração do excedente agrícola para apoiar a formação de capital e a industrialização. Trazendo essas contribuições clássicas para a atualidade, nas sociedades crescentemente urbanizadas do século XXI, a “questão agrária” adquiriu novos significados e tornou-se, de fato, uma “questão agroalimentar”. Metodologicamente, a questão agroalimentar contemporânea é composta por três “problemáticas”. A primeira é a “acumulação de capital”, que trata do lugar da agricultura e do sistema agroalimentar na dinâmica econômica, especialmente os vínculos intersetoriais do agronegócio, a importância relativa dos mercados interno e externo e os fluxos financeiros e de investimento. A segunda é a “reprodução social”, que trata das formas e graus de mercantilização da agricultura e seus efeitos nas estratégias de subsistência e diferenciação social rural e dos níveis de transição nutricional e suas implicações para as condições de vida dos consumidores urbanos. A terceira é a “política”, que trata das contradições e conflitos, alianças e compromissos entre as classes rurais dominantes e subalternas e sua influência sobre o Estado e as políticas públicas rurais e agroalimentares (mas não somente).
Com base nesse arcabouço interpretativo e no material empírico trabalhado por Escher (2021), a análise institucional comparativa proposta segue três etapas. Cada uma dessas etapas está conectada com as principais dimensões analíticas introduzidas pela terceira geração de estudos em CC. Primeiro, um esboço esquemático das vias de transição agrária nos casos da China, Índia, Rússia e Brasil. Este ponto se conecta com a proposição de Hundt e Uttan (2017) sobre a importância das “origens sociais do capitalismo”. O intuito é situar, em traços muito gerais, o legado histórico da questão agrária enraizado nas instituições, na economia e nas relações de classe prevalecentes em cada país em meados dos anos 1990. Em segundo lugar, um esboço das três problemáticas da questão agroalimentar nos BRICS. A acumulação de capital conecta o comportamento das firmas no nível micro com os “regimes de crescimento” no nível macro. A reprodução social conecta os meios de vida das famílias no nível micro com os “regimes de distribuição” no nível macro. E a política conecta as disputas entre diferentes interesses agrários com a composição dos “blocos sociais” que dirigem o estado. Na terceira etapa, uma ligeira contextualização sobre o significado dos BRICS para o regime alimentar e o capitalismo global. Este ponto conecta a comparação incorporada com as “interdependências sistêmicas”.
A China oferece um exemplo único de transição agrária socialista para capitalista que envolveu transformações abrangentes da agricultura facilitando a industrialização em larga escala. Após um período de reforma agrária e cooperativização (1949-1955), Mao promoveu a rápida coletivização da agricultura (1955-1958), organizada em comunas populares (1958-1978). Com Deng, a agricultura foi descoletivizada (1978-1984) e instituiu-se o sistema de responsabilidade familiar de propriedade coletiva e contratos individuais de direitos de uso da terra (até hoje), incluindo as possibilidades de arrendamento e transferência de terras por tempo definido (na última década) (Ye, 2015). Durante a era revolucionária, a extração, apropriação e transferência dos excedentes físicos (trabalho, alimentos e matérias primas) e financeiros (tributação direta e termos de troca desfavoráveis) gerados na agricultura impulsionaram o processo inicial de acumulação industrial e a criação de infraestruturas básicas, serviços e recursos humanos sobre os quais as conquistas econômicas posteriores foram erguidas. E ao longo dos mais de quarenta anos de reforma, a inversão dos termos de troca em favor da agricultura, a continuidade do sistema hukou de registro de residência rural e a abolição progressiva dos impostos rurais foram fatores chave para elevar a renda e os níveis de consumo dos agricultores, gerando o excedente reinvestido na indústria rural por meio de empresas de vilas e aldeias e liberando a força de trabalho dos camponeses migrantes para impulsionar as grandes plataformas de exportação das zonas econômicas especiais com base em investimentos estrangeiros e joint ventures nas regiões costeiras (Zhan, 2019).
A Índia é descrita como uma transição agrária capitalista contornada, com base no argumento de que as transformações agrícolas pouco contribuíram para a industrialização. À independência (1947), prosseguiu um projeto nacional de desenvolvimento e um conjunto de reformas que incluíram: a abolição do sistema zamindar de tributação colonial, a estabilização do arrendamento de terras e a criação de programas de proteção social e desenvolvimento comunitário (1950-1964). Na sequência, foi implementada uma nova estratégia (1964-1980) de revolução verde e modernização agrícola em algumas regiões (até hoje) (Lerche, 2013). Sob o dirigismo Nehruviano, a extração, apropriação e transferência de excedentes físicos (trabalho, alimentos e matérias primas) e financeiros (termos de troca desfavoráveis e agiotagem) gerados na agricultura para alimentar a acumulação de capital via industrialização por substituição de importações tiveram uma extensão restringida. Os resultados econômicos decepcionantes serviram, pelo menos em parte, como justificativa para a adoção de políticas neoliberais desde 1991, o recuo na intervenção do Estado e o desmantelamento do aparato de apoio à agricultura camponesa, abandonada à própria sorte em face do mercado global, com consequências sociais terríveis (como suicídios em massa no meio rural) (Patnaik, 2012).
A Rússia exemplifica uma transição agrária socialista para capitalista com resultados altamente contestados em relação tanto às transformações agrícolas como industriais. Após o comunismo de guerra (1917-1921) dar lugar à nova política econômica e à aliança operário-camponesa (1921-1928), a coletivização forçada da agricultura (1928-1940) levou à criação de grandes fazendas coletivas e estatais (kohlkhozy e sovkhozy) (1940-1991). Com a queda da URSS, a agricultura foi oficialmente desestatizada (1991-1994), mas apenas desajeitadamente privatizada sob um complicado sistema de participação acionária de direitos de propriedade da terra (até hoje) (Wegren, 2007). Na época de Stalin, a extração, apropriação e transferência de excedentes físicos (trabalho, alimentos e matérias primas) e financeiros (tributação direta e termos de troca desfavoráveis) gerados na agricultura viabilizaram o processo de acumulação socialista primitiva e industrialização acelerada a altos custos humanos, reparados em parte com a implantação de um amplo sistema de seguridade social vinculado ao local de trabalho. As reformas neoliberais pós-soviéticas e o recuo do Estado sob o comando de Yeltsin abriram caminho para a expansão de novos modelos agrícolas baseados na propriedade privada da terra, basicamente por meio de arrendamentos. No entanto, não foram observadas mudanças significativas na estrutura agrária ou no aumento da produtividade, e sim uma deterioração pronunciada na prestação de serviços e na situação social rural (Wegren, 2004).
O Brasil representa uma variante da transição agrária capitalista de cima para baixo, com modernização conservadora da agricultura e um nível substancial de industrialização. A revolução de 1930 deu origem ao nacional desenvolvimentismo e ao Estado moderno, mas não alterou as retrógradas relações sociais vigentes no campo. As forças emergentes em favor da reforma agrária foram derrotadas pelo golpe civil-militar de 1964, enquanto a base técnica da agricultura foi modernizada e vários complexos agroindustriais foram estabelecidos (1965-1985), apoiados por um leque de políticas estatais (até hoje) (Silva, 1998). Durante a ditadura, a extração, apropriação e transferência de excedentes físicos (trabalho, alimentos e matérias primas) e financeiros (termos de troca desfavoráveis) gerados na agricultura fomentaram a acumulação de capital por meio da industrialização por substituição de importações e da integração do território nacional e do mercado doméstico. A redemocratização produziu um quadro ambíguo: de um lado, a espetacular expansão do agronegócio como parte essencial da estratégia de integração subordinada à globalização neoliberal; de outro lado, atores sociais historicamente excluídos e marginalizados – agricultores familiares, trabalhadores sem-terra, indígenas, quilombolas e povos tradicionais – emergiram na cena pública dispostos a disputar os rumos das questões rurais e agroalimentares no país (Delgado, 2012).
A acumulação de capital vem ocorrendo nos sistemas agroalimentares dos BRICS por meio de processos de integração intersetorial e concentração da produção agropecuária, boom exportador de commodities específicas e transnacionalização de empresas agroalimentares apoiadas pelo estado que reproduzem escalas de operação e práticas oligopólicas semelhantes às suas contrapartes do Atlântico Norte. Para além da rápida e crescente adoção de insumos a montante da agricultura, os capitais agroindustriais a jusante, as chamadas “empresas cabeça de dragão” (DHEs), são o motor das transferências de terras, integração vertical e agricultura de contrato na China (Yan & Chen, 2015). Na Índia, a integração vertical e a agricultura de contrato se espalharam apenas nos estados agrícolas mais desenvolvidos, especialmente ao norte, onde se observa um aumento da mecanização agrícola e do uso de insumos industriais (Mohanty & Lenka, 2016). Na Rússia, a maquinaria encontra-se depreciada e o uso de insumos abaixo da média dos países desenvolvidos, mas a integração horizontal avançou sobremaneira sob a liderança das agroholdings, megaempresas formadas através do arrendamento das parcelas de terra dos antigos empregados das fazendas estatais e coletivas que foram parar nas mãos de alguns oligarcas, sendo, por essa razão, apelidadas “oligarkhozy” (Wegren et al., 2018). E, no Brasil, onde o custo total dos insumos já ultrapassa a metade do valor de produção da agricultura patronal e chega a quase 1/3 desse valor na agricultura familiar, tanto a integração horizontal, através da formação de megafazendas capitalistas altamente mecanizadas, quanto a integração vertical, através de contratos entre agricultores familiares e agroindústria (principalmente nas regiões sul e sudeste), são generalizadas (Conterato et al., 2014).
Mesmo com os efeitos da peste suína e da guerra comercial, a China produz e consome mais de 50% da carne suína do mundo, predominantemente através de “operações concentradas de alimentação animal”, modelo similar ao dos EUA ou do Brasil. O grosso das operações na criação, produção e abate de porcos e no processamento, distribuição e varejo de carne, é controlado por DHEs como a Shanghui, que adquiriu a americana Smithfield e se tornou a maior do mundo nesse negócio (Schneider, 2017). O principal ingrediente da ração usada para alimentar os porcos é a soja transgênica, importada principalmente do Brasil, dos EUA e da Argentina. O Brasil é o maior produtor e exportador de soja mundial e o principal fornecedor chinês. O “complexo soja-carne Brasil-China”, inicialmente puxado pelas relações comerciais, consolidou-se por meio dos investimentos chineses no agronegócio brasileiro, especialmente no ramo de trading e nas infraestruturas. Além disso, China e Brasil têm grandes empresas agroalimentares competindo para se tornar transnacionais líderes no mercado mundial. Particularmente impressionante é a trajetória da estatal COFCO, a maior trader agrícola chinesa, que adquiriu a holandesa Nidera e a cingapuriana Noble Agri, ambas com operações em larga escala no Brasil e demais países do Cone Sul, e hoje contesta frontalmente o oligopólio das ABCD (as americanas ADM, Bunge, Cargill e a francesa Louis Dreyfuss), as grandes transnacionais que, há mais de um século, dominam o mercado mundial (Escher & Wilkinson, 2019). O setor de proteína animal também se destaca entre as “campeãs nacionais” brasileiras: a BRF, formada a partir da fusão entre Sadia e Perdigão, é hoje a maior exportadora de carne de aves, e a JBS-Friboi, consolidada a partir da aquisição de inúmeras firmas no exterior, é a maior empresa de carnes em geral (principalmente bovina) no mundo (Niederle & Wesz Jr., 2018). A Rússia, em contraste, tem seguido uma estratégia protecionista de substituição de importações desde que instituiu o “Embargo Alimentar” em retaliação às sanções impostas pelo Ocidente após a anexação da Crimeia. Porém, em 2015 ultrapassou o Canadá e os EUA, tornando-se o maior exportador mundial de trigo. Além disso, empresas como RusAgro (grãos) e Miratorg (carnes) se preparam para conquistar mercados externos, principalmente na China e na Ásia (Wegren et al., 2018). Com exceção talvez da Haldiram’s e da Bikarnervala no mercado de snacks, é limitada a internacionalização de empresas alimentares indianas. A Índia, no entanto, é o maior exportador mundial de arroz, além de desempenhar um papel importante no complexo de carnes da Ásia, já que é o segundo maior produtor mundial de bovinos e o maior produtor e exportador de carne de búfalo (Jakobsen & Hansen, 2020).
Os BRICS mostram que a reprodução social rural não segue à risca nem as previsões de Lenin sobre polarização de classe, nem de Chayanov sobre persistência de um campesinato indiferenciado. Em vez disso, a integração agroindustrial acompanha a mercantilização do trabalho, produção e vida rural, transformando o campesinato em uma agricultura familiar heterogênea e diversificada, cuja condição “semiproletária” é explicada menos por sua funcionalidade ao capital do que pela relevância da sua “pluriatividade”3 como estratégia de sobrevivência e reprodução. Na China rural, a estrutura de classes é composta por: uma minoria de DHEs (ou falsas cooperativas) e “grandes empresas agrícolas familiares” oficialmente patrocinadas, ambas contratando terras e utilizando mão de obra assalariada; agricultores familiares comerciais especializados de média escala; uma maioria formada por camponeses pequenos produtores de mercadorias; camponeses de subsistência, que vendem apenas pequenos excedentes; e trabalhadores rurais assalariados, que alugam suas terras ou foram expropriados. Seja qual for o caso, a grande maioria das famílias rurais com terras contratadas por meio do sistema de responsabilidade familiar sempre tem membros da família sob seu hukou fazendo trabalho migrante e enviando dinheiro de volta para casa regularmente (Zhang, 2015). Na Índia, o “latifundismo semifeudal” declinou, embora ainda exista em algumas regiões; ricos fazendeiros capitalistas, incluindo alguns camponeses abastados e até ex-latifundiários, estão obtendo ganhos de produtividade, contratando trabalho assalariado e arrendando terras; boa parte do campesinato é formada por pequenos produtores de mercadorias que também se dedicam ao trabalho assalariado; mas a maioria são trabalhadores pobres quase sem terra, cuja produção agrícola não atende nem ao autoconsumo. A maior parte desses moradores rurais combina o cultivo de seus pequenos lotes com trabalho migrante sazonal nas cidades e trabalho autônomo na economia informal rural não agrícola para ganhar a vida (Lerche et al., 2013). Na Rússia, além dos oligarkhozy, que concentram 2/3 da terra e mais da metade da produção, há um pequeno grupo de empresas agrícolas familiares especializadas, que produz para o mercado e às vezes emprega trabalho assalariado. Mas as duas categorias somadas não chegam a 2% de todas as unidades agrícolas. A maioria da população rural é formada por unidades familiares camponesas que arrendam suas parcelas para as grandes empresas agrícolas, mas mantém pequenos lotes, onde não só produzem para o autoconsumo como seus excedentes comercializados representam mais de 1/3 da produção total. No entanto, só uma pequena proporção tem na agricultura a principal fonte de renda e a maioria também possui empregos não agrícolas (Wegren et al., 2018). O Brasil rural comporta uma estrutura de classes dividida em: agricultura patronal, formada por uma fração capitalista de megafazendas baseadas no trabalho assalariado, financeiramente integradas e orientadas para a exportação, que concentram mais de 50% da produção, e uma fração latifundista de rentistas agrários com produção baixa e extensiva; e agricultura familiar, composta por um pequeno segmento empresarial, especializado e de alta renda, um segmento comercialmente orientado, diversificado e com uma renda razoável, e um enorme segmento empobrecido, formado por aproximadamente metade dos estabelecimentos rurais. Enquanto nas regiões interioranas com centros urbanos dinâmicos as ocupações não agrícolas incluem empregos formais na agricultura, indústria ou serviços, nas regiões pobres e predominantemente rurais as atividades informais precárias são a única opção (Escher, 2020b).
Nos centros urbanos, no entanto, o fator mais importante da reprodução social ligado à alimentação está no fenômeno da transição nutricional, caracterizado pela rápida mudança dos hábitos alimentares e padrões dietéticos de distintos estratos sociais e segmentos da população, de alimentos básicos à base de cereais, fibras e vegetais para alimentos ultraprocessados ricos em carne, gordura saturada, sal e açúcar. Isso vem acompanhado por padrões demográficos e epidemiológicos que tendem a menores taxas de desnutrição e maiores as taxas de obesidade, a menores taxas de fertilidade e mortalidade e maior incidência de doenças crônicas não transmissíveis, afetando especialmente as classes mais baixas. Esse processo é impulsionado por forças como o aumento da renda per capita, a urbanização, a globalização e a preponderância dos supermercados. Otero et al. (2018) evidenciam que a transição nutricional, a qual já se encontrava em estado avançado ao final dos anos 1980 nos países do Atlântico Norte, vai adentrar também nos países em desenvolvimento desde os anos 2000. Entre os BRICS, o processo encontra-se mais avançado na África do Sul, no Brasil e na Rússia, seguidos pela China e a Índia. No entanto, ao invés de uma tendência linear, a influência do poder corporativo, das desigualdades sociais e das políticas de segurança alimentar faz da transição nutricional um processo profundamente contraditório, que produz situações paradoxais no Sul Global e, particularmente, nos BRICS, onde convivem os problemas da obesidade e da subnutrição.4
Finalmente, a política associada às questões rurais e agroalimentares nos BRICS reflete a regressão mais geral em todo o mundo com a ascensão do populismo de direita e do autoritarismo, em que o protecionismo e o neomercantilismo emergentes, ao invés de derrubar a ordem neoliberal, tendem a enredá-la (Borras Jr., 2019). As respostas ambíguas e inconstantes aos desafios que surgem em tempos de crises múltiplas expressam as contradições e lutas pela representação dos interesses das classes e frações de classe rurais no aparato estatal e pela institucionalização de ideias na implementação de políticas públicas. É possível vislumbrar os contornos de um duplo movimento polanyiano nos BRICS, com um movimento exacerbado de mercantilização a partir dos anos 1990 e algum tipo de contramovimento protetor lutando para emergir a partir dos anos 2000. No entanto, a conjuntura aberta com a grande recessão, no pós-crise de 2008, recrudesceu as disputas sobre seus rumos dentro da política mais ampla, fazendo com que as correlações de forças gramscianas se inclinassem para os interesses dos projetos agroalimentares dominantes em detrimento dos projetos subalternos desafiantes.
Na China, enquanto, desde o final da década de 1990, os intelectuais de esquerda do Novo Movimento de Reconstrução Rural foram capazes de promover iniciativas cooperativas e recomendar políticas pró-camponeses ao PCC em nível nacional, a partir de 2008, o apoio do governo ao agronegócio se consolidou por meio das DHEs e da política de “going out”, sob discursos discutíveis sobre segurança alimentar e autossuficiência de grãos, embora ainda haja um horizonte de perspectivas (Zhan, 2019). Na Rússia, enquanto a década de 1990 deixou as expectativas dos liberais em relação a um desenvolvimento rápido e espontâneo da agricultura familiar amplamente insatisfeitas, desde os anos 2000, o agronegócio atraiu capital de fora da agricultura e a formação de megaempresas agropecuárias se enraizou na política alimentar protecionista que surgiu depois de 2010 e especialmente de 2014 (Wegren et al., 2018). No Brasil, a partir de meados da década de 1990, e especialmente a partir de 2003, a agricultura familiar, a reforma agrária e outros atores subalternos e intelectuais de esquerda conseguiram ganhar espaço para políticas de desenvolvimento rural e de segurança alimentar, apesar da força da agricultura patronal, do agronegócio e do mercado de terras. Mas, desde o golpe de 2016, e mais ainda com Bolsonaro, estão experimentando graves reveses (Escher, 2020a). Na Índia, enquanto o projeto neoliberal permanece quase inabalável desde 1991, em 2013 o governo sinalizou um movimento progressista para institucionalizar uma abrangente política de segurança alimentar, a qual, entretanto, foi sumamente descartada após a vitória eleitoral da direita em 2014 (Jakobsen, 2019). Pode-se argumentar que, na China e na Rússia, o rescaldo de 2008 gerou uma espécie de “transformismo” relativamente sutil, mas importante, nas políticas de segurança alimentar, que passam a ser associadas principalmente à agricultura capitalista e à expansão do agronegócio, relegando os camponeses e a agricultura familiar a um papel subordinado. No Brasil e na Índia, em contraste, o que aconteceu mais recentemente foi uma ruptura institucional explícita – decerto mais traumática para o primeiro do que para o segundo caso – do “equilíbrio instável de compromissos” que, até então, permitira uma tensa coevolução de projetos políticos em disputa. Assim, a ascensão e declínio relativo dos BRICS parecem sinalizar que, apesar da sua importância na construção de um mundo multipolar e policêntrico, permanecendo inalteradas as atuais correlações de forças, o duplo movimento em curso tende a resultar em uma nova rodada global de “revolução passiva” (Gramsci, 1992).
Por limitações relacionadas ao espaço disponível, é impossível avançar mais detalhes acerca das implicações sistêmicas nas relações internacionais da agricultura e da alimentação dos BRICS. Essa dificuldade poderá ser transposta em trabalhos futuros, dissipando qualquer impressão de nacionalismo metodológico. É, ademais, complicado tentar prever o papel dos BRICS numa eventual “grande transformação” (Polanyi, 2000) do capitalismo neoliberal e no reordenamento internacional do regime alimentar em uma conjuntura histórica tão crítica e incerta como a que vivemos atualmente. Uma visão cautelosa e intelectualmente pessimista, desse modo, parece aconselhável. Pode-se afirmar que o reordenamento policêntrico impulsionado pela ascensão dos BRICS como polos exportadores e importadores de commodities e produtos agroalimentares-chave, a internacionalização de transnacionais do setor como novas máquinas de acumulação global e a formação de complexos agroalimentares articulados em uma linha Sul/Oriente relativamente independente do controle corporativo do Norte/Ocidente representam, é claro, uma transformação profunda. Os métodos e estratégias empregados, entretanto, não diferem muito. As preocupações com a concentração econômica, o controle de recursos, mercados e tecnologias, as desigualdades geográficas e de classe e os danos sociais, ambientais e de saúde permanecem vitais. A grande questão parece ser se a ascensão do populismo autoritário de direita que atinge a Índia e a Rússia, vorazmente assola o Brasil, deixou marcas nos EUA e aflige várias outras nações, consolidará uma revolução passiva em escala mundial, ou se haverá disposição e capacidade dos movimentos rurais e das organizações de agricultores, ao lado de uma gama mais ampla de forças sociais aliadas (estrategicamente incluindo consumidores urbanos de segmentos populares e de classe média), para compor novos blocos sociais e produzir contramovimentos progressistas eficazes.
Este artigo explora o lugar da questão agroalimentar nas configurações institucionais do capitalismo nos BRICS e o papel desses países no reordenamento do regime alimentar internacional. Os estudos em CC da terceira geração sobre os BRICS superam as limitações teórico-metodológicas da VoC padrão, substituindo o paradigma da escolha racional por um institucionalismo crítico ancorado nos clássicos, e o enfoque tipológico bipolar, reducionista e confuso por tipos ideais weberianos holísticos com os quais os casos reais são comparados. Ademais, a análise micro centrada na firma e no lado da oferta é complementada por análises macro focadas no lado da demanda, no poder do Estado e na integração internacional. Esses estudos oferecem contribuições oportunas – como os conceitos de enraizamento institucional, blocos sociais, regimes de crescimento e distribuição e interdependências sistêmicas. Todavia, sua insistência em rotular as variedades de capitalismo da China, Índia, Rússia e Brasil através de tipos ideais coerentes mostra-se francamente elusiva. Em suma, se suas análises são esclarecedoras e fecundas, isso não ocorre por causa, mas apesar, do uso de tipologias.
Tal insistência dos estudos em CC no recurso a tipologias para apreender a diversidade das configurações institucionais do capitalismo parece estar ligada, pelo menos em parte, à visão de que, se “cada caso é um caso”, tudo passaria a ser apenas uma questão empírica e qualquer razão teórica seria inviável. Espera-se que a proposta de análise institucional comparativa das variedades de capitalismo nos BRICS a partir de uma perspectiva agroalimentar tenha deixado claro que essa visão é injustificada. Primeiro, porque a periodização dos “regimes alimentares” e o método de “comparação incorporada” da abordagem dos FR são plenamente compatíveis com as concepções desposadas pelos estudiosos em CC da terceira geração, para quem o capitalismo evolui de forma pendular ao longo de fases liberais e organizadas (Nölke & May, 2019) e a diversidade institucional não emerge só da comparação de casos discretos, mas integra as relações hierarquizadas no âmbito do sistema internacional (Schedelik et al., 2020). Em segundo lugar, porque as análises das vias de transição agrária para o capitalismo e das problemáticas da questão agroalimentar – sintetizadas no Quadro 1 – dispensam a necessidade de tipos ideais, derivados dedutivamente, em favor de descrições teoricamente informadas de certas regularidades históricas estabelecidas empiricamente por meio de inferência indutiva (Hay, 2020). Não se trata de nenhum empiricismo, portanto, e sim de tipicidades reais derivadas indutivamente por meio do rastreamento de processos complexos reconstruídos na forma de narrativas históricas estilizadas (Mayntz, 2004). É a contextualização dessas narrativas, tomadas como partes, o que, por conseguinte, dará origem ao todo, que é “síntese de muitas determinações, isto é, unidade do diverso” (Marx, 2008, p. 256).
Sinteticamente, os BRICS se caracterizam como países com grandes economias de mercado, amplos setores informais, burguesias patrimonialistas e acentuadas desigualdades, nos quais o Estado desempenha um papel central na coordenação econômica. Independentemente dessas similitudes, o legado histórico da questão agrária, enraizado nas instituições e nas relações de classe prevalecentes, ajuda a explicar a diversidade do capitalismo nos BRICS. As trajetórias de desenvolvimento desses países são fortemente marcadas pelas problemáticas da acumulação de capital, da reprodução social e da política no sistema agroalimentar. E, ao entrar na competição global por recursos, mercados, lucros e poder a ponto de contestar o domínio de longa data do capital do Atlântico Norte, os BRICS impulsionam reordenamentos policêntricos na dinâmica do regime alimentar, que são cruciais para o futuro do capitalismo global. Tais processos contribuem para alinhar novas relações de poder entre classes e frações de classe, estados e mercados, desafiando o poder econômico dos países desenvolvidos e fortalecendo a influência dos países emergentes na arena internacional. No entanto, se tal contramovimento terá força para superar a hegemonia global dos EUA e se essa eventual transição seguirá uma direção progressista, estas são questões absolutamente em aberto, que vão depender das correlações de forças internas dos BRICS e deles com os demais países no sistema internacional. Refinar a integração entre os programas de pesquisa CC e FR com base na perspectiva agroalimentar proposta constitui, assim, uma tarefa instigante para uma agenda interdisciplinar colaborativa entre a economia política e a sociologia econômica.