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Examinando a relação entre proximidade espacial e integração socioeconômica a partir das articulações entre a população de dois bairros populares e os condomínios fechados de elite em Salvador, Brasil
Stephan Treuke
Stephan Treuke
Examinando a relação entre proximidade espacial e integração socioeconômica a partir das articulações entre a população de dois bairros populares e os condomínios fechados de elite em Salvador, Brasil
Assessing the relation between spatial proximity and socioeconomic integration along interactions between inhabitants of two shanty-towns and their surrounding affluent gated communities in Salvador, Brazil
Revista Brasileira de Sociologia, vol. 10, núm. 24, pp. 112-143, 2022
Sociedade Brasileira de Sociologia
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RESUMO: Neste trabalho, visa-se investigar sob quais condições o efeito-território, acometendo as populações pobres do bairro central Calabar e do bairro periférico Vila Verde, Salvador, Brasil, se vê mitigado pela proximidade a condomínios da classe alta. Com base em entrevistas, evidencia-se que existem tanto mecanismos que prejudicam o indivíduo, como a influência do tráfico de drogas, quanto mecanismos que beneficiam sua vida, como a mobilização coletiva da comunidade. Discute-se que as articulações entre os grupos socialmente distantes sofreram importantes alterações ao longo da trajetória de expansão das classes média e alta, sendo que a relação entre proximidade e integração socioeconômica se vê condicionada pela existência de espaços públicos, pela autonomia funcional do bairro e pelo impacto do crime. Conclui-se que a recente construção do condomínio Alphaville II não ampliou as possibilidades de articulação social com os segmentos mais pobres que moram no bairro Vila Verde, dada sua maior autonomia funcional e seu maior grau de isolamento espacial. Tampouco criou externalidades positivas para a população do seu entorno geográfico em termos de acesso a serviços urbanos e de segurança pública, em contraste com o bairro de Calabar.

Palavras-chave: pobreza urbana, segregação, efeito-território.

ABSTRACT: In this research, we shall inquire under what conditions neighborhood effects can be mitigated by the proximity of disadvantaged populations to affluent gated communities. Inferring from interview-based qualitative research conducted in the central shantytown of Calabar and in the peripheral shantytown of Vila Verde, Salvador - Brazil, we can attest the existence of mechanisms that either constrain individuals’ living conditions, such as the influence of drug trafficking, or entail positive effects on their lives, like the community’s collective mobilization. The relationships between socially distant groups have undergone important transformations. The study evinces that the relationship between spatial proximity and socioeconomic integration is conditioned by the existence of public spaces, by the neighborhood's functional autonomy and by the influence of crime. We concluded that, unlike Calabar, the recent construction of the upper-class gated community Alphaville II neither widened the opportunities of socio-economic integration of the poor inhabitants of Vila Verde, given its higher degree of functional autonomy and spatial isolation, nor improved their access to high-quality urban infrastructure, including public security.

Keywords: urban poverty, segregation, neighborhood effects.

Carátula del artículo

Artigo Original

Examinando a relação entre proximidade espacial e integração socioeconômica a partir das articulações entre a população de dois bairros populares e os condomínios fechados de elite em Salvador, Brasil

Assessing the relation between spatial proximity and socioeconomic integration along interactions between inhabitants of two shanty-towns and their surrounding affluent gated communities in Salvador, Brazil

Stephan Treuke
Ruhr-Universität Bochum, Alemanha
Revista Brasileira de Sociologia, vol. 10, núm. 24, pp. 112-143, 2022
Sociedade Brasileira de Sociologia

Recepção: 31 Outubro 2021

Aprovação: 18 Fevereiro 2022

Introdução

Desde a década de 1990, a sociologia urbana vem se dedicando a examinar a relação causal entre o aumento das disparidades de renda e a concentração espacial da extrema riqueza e pobreza nas grandes metrópoles (Sassen, 1999). Um dos desdobramentos mais discutidos remete à gentrificação das regiões centrais majoritariamente habitadas por uma população pobre (Atkinson & Blandy, 2016). Nos Estados Unidos, o debate gravita em torno da questão de se este processo pode ser visualizado como uma ruptura com a organização socioespacial dualista centro da cidade – subúrbio/região metropolitana e em qual medida a proximidade às camadas altas amplia as oportunidades de integração socioeconômica do indivíduo pobre (Lees, 2008). Essa discussão se insere em um panorama mais amplo de estudos norteados pelo conceito de efeito-território1 (Small & Feldman, 2012).

O enfoque dos estudos brasileiros que abordam as relações de proximidade espacial e integração socioeconômica se centra nas favelas inseridas nas regiões centrais da cidade, tratando-se de relações de vizinhança já consolidadas entre grupos socialmente distantes, que se forjaram através de vínculos empregatícios e do uso compartilhado de espaços públicos (Andrade & Silveira, 2013; Ribeiro, 2008). Desde a década de 1980/1990, esboça-se uma crescente tendência de construção de condomínios fechados das classes média e alta nas áreas periféricas habitadas pelas camadas baixas, engendrando novas configurações espaciais marcadas pela proximidade entre grupos socialmente distantes (Bógus & Pasternak, 2015; Lees et al., 2016).

Neste trabalho, visa-se comparar as chances de integração socioeconômica da população do Calabar, um bairro popular inserido no vetor de expansão da classe média e alta de Salvador, que emergiu nos anos 1940, com as chances de integração socioeconômica dos moradores do bairro periférico Vila Verde, localizado nas imediações geográficas do recém-construído condomínio de elite Alphaville II. Com base em 60 entrevistas, objetiva-se investigar sob quais condições as desvantagens estruturais concentradas na escala do bairro, como altas taxas de pobreza e de violência assim como um baixo desempenho escolar, se veem mitigadas pela proximidade aos condomínios da classe média e alta. Quais são os fatores que explicam a variabilidade entre os dois bairros e quais são os mecanismos pelos quais opera o efeito-território?

O artigo se compõe de cinco seções. A primeira seção aborda os principais desenvolvimentos dentro da discussão sobre o efeito-território, enquanto a segunda seção introduz a metodologia utilizada no estudo empírico e apresenta as áreas de estudo. Já a terceira e quarta seções expõem os resultados auferidos na pesquisa qualitativa, que serão objetos de discussão na quinta seção.

A abordagem da pobreza e da segregação a partir do conceito efeito-território

No contexto estadunidense, o debate acerca do efeito-território foi instigado a partir da aproximação estruturalista de Wilson (1987) à pobreza urbana. O autor postulou que a população que habita os bairros segregados da inner city de Chicago correria um maior risco de cair nos circuitos de reprodução da pobreza em função do efeito de concentração espacial de determinadas desvantagens estruturais, englobando altos níveis de desemprego e de violência, escolas dilapidadas e serviços urbanos deficitários. Sua argumentação baseia-se no conceito de isolamento social, definido como a dissociação do indivíduo pobre vis-à-vis pessoas, modelos de referência social e instituições que representam a sociedade dominante. Outrossim, Sampson (2012) demonstrou que o impacto negativo do contexto sociorresidencial se vê atenuado pela capacidade de controle social informal na escala da comunidade. Ao mesmo tempo, a erosão da collective efficacy2 favoreceria a infiltração de estruturas criminosas na sua organização social.

A discussão em torno do efeito-território tem impulsionado a elaboração de políticas de dessegregação, como o programa Moving to opportunity for fair housing (MTO). A lógica detrás dessas políticas se assenta na assunção que a proximidade a grupos socioeconomicamente distantes aumenta sua exposição a modelos de referência da classe média e amplia o espectro de seus contatos sociais através do uso compartilhado dos serviços urbanos locais (Small & Feldman, 2012). A assunção dessas “externalidades positivas” também contribuiu para legitimar os programas de revitalização da inner-city das grandes cidades. Contudo, essas políticas, para muitos pesquisadores, não produziram o efeito desejado de uma maior integração socioeconômica da sua população pobre, senão acarretaram processos de gentrificação (Atkinson & Blandy, 2016).

No âmbito europeu, cristaliza-se, desde os anos 1990, um crescente interesse em indagar sobre o impacto do contexto sociorresidencial nas condições de vida do indivíduo pobre (Friedrichs et al., 2003). Häußermann (2003) sugere levar em consideração tanto as desvantagens estruturais que impactam a mobilidade socioeconômica do indivíduo quanto o suporte social e institucional proporcionado por seus moradores e pelas entidades públicas. O autor propõe uma distinção entre três dimensões analíticas pelas quais o efeito-território opera e nas quais ele se manifesta, quais sejam: (1) a dimensão material, (2) a dimensão social, e (3) a dimensão simbólica. Na dimensão material, abordam-se aspectos atinentes às oportunidades empregatícias, ao acesso a serviços urbanos e à infraestrutura comercial, social e cultural no bairro. A dimensão social abrange os componentes redes sociais e influência de grupos de pares em processos de socialização. Já na dimensão simbólica investiga-se o impacto da estigmatização territorial no acesso ao mercado de trabalho e nos padrões de sociabilidade do indivíduo.

Na América Latina, estudos quantitativos que examinam a relação causal entre segregação e integração econômica em distintas metrópoles convergem em atestar uma influência negativa do efeito-território no nivel de renda, no acesso ao mercado de trabalho e na modalidade formal/informal do emprego desempenhado, afetando as populações pobres que vive em bairros periféricos (Roberts & Wilson, 2009). Kaztman e Filgueira (2006), examinando o efeito-território em Montevidéu, demonstram que a inserção do indivíduo em redes sociais internamente mais diversificadas e com maior dispersão territorial facilita sua integração no mercado de trabalho e a probabilidade de ser empregado com carteira assinada. Outrossim, os autores observam um enfraquecimento da capacidade de transmissão de modelos de referências da classe média, dada a bifurcação entre os sistemas de educação público e privado.

Todavia, observa-se um maior dissenso referente à questão de se a proximidade a bairros da classe média e alta amplia as oportunidades de integração socioeconômica da população pobre. Esse aspecto vem sendo estudado sob o conceito de gentrificação, um processo que, no contexto latinoamericano, não remete apenas à substituição da população pobre moradora dos bairros das porções centrais das cidades pelas camadas média e alta, mas também se refere à construção de condomínios fechados em regiões periféricas habitadas pelas camadas baixas (Janoschka et al., 2014; Lees et al., 2016).

Para a maioria dos autores refletindo sobre o impacto destes desdobramentos na organização socioespacial das metrópoles latinoamericanas, o isolamento espacial das camadas média e alta em enclaves fortificados se explica à luz da concentração da riqueza, da crescente privatização do espaço urbano e do aumento da criminalidade, e tende a reproduzir estruturas de segregação e de segmentação social na escala micro-urbana (Caldeira, 2000; Janoschka et al., 2014).

Contudo, estudos qualitativos que examinam a relação entre proximidade geográfica e integração socioeconômica nessas configurações espaciais apresentam maiores divergências. Por um lado, Sabatini e Salcedo (2007) afirmam que a proximidade aos condomínios das classes média e alta dinamiza as articulações funcionais (acesso a oportunidades empregatícias), sociais (trocas de sociabilidade) e simbólicas (revalorização da imagem do bairro pobre) entre os grupos socialmente distantes, fato que mitiga o efeito da segregação nas regiões periféricas de Santiago de Chile.

Por outro lado, estudos conduzidos por Ruiz-Tagle (2016) no bairro periférico de la Florida, Santiago, demonstram que as chances de a população pobre ser socioeconomicamente integrada se veem frustradas em função da sua discriminação e do acesso segmentado aos serviços urbanos de alta qualidade. O autor argumenta que o fator de proximidade espacial representa apenas uma variável interveniente dentro da concepção de “integração social”, ao lado das demais dimensões funcional (acesso a oportunidades e serviços dentro de uma determinada região), relacional (interações não-empregatícias entre grupos socialmente distantes) e simbólica (identificação cultural e territorial).

Andrade e Silveira (2013) observam que a proximidade aos condomínios fechados favorece a integração econômica dos moradores da favela vizinha Aglomerado da Serra, Belo Horizonte. Entretanto, Ribeiro e Lago (2000), compararando o grau de inserção de moradores de favelas e não favelas no mercado de trabalho formal no Rio de Janeiro, destacam a desvantagem em termos de rendimento médio acometendo o primeiro grupo, em função de mecanismos que transformam o estigma territorial em práticas discriminatórias no mercado de trabalho. Maior consenso existe no reconhecimento do efeito prejudicial que emana tanto do ambiente escolar e familiar quanto do contexto sociorresidencial no acesso às oportunidades educacionais e nas perspectivas de uma futura integração socioeconômica dos alunos (Ribeiro et al., 2010).

Os estudos conduzidos por Marques (2010) em diversos bairros segregados localizados nas regiões periféricas e centrais de São Paulo confirmam o alto grau de homofilia3 e de localismo marcando as redes pessoais dos seus moradores pobres. Embora admitindo que inexistam laços entre indivíduos transcendendo a própria classe de renda, o autor não adere à tese do isolamento social postulada por Wilson (1987), mas atribui às redes pessoais a capacidade de intermediação a recursos e serviços que permitem a obtenção de auxílios sociais e maiores rendimentos. Em virtude da escassez de postos de emprego e de serviços urbanos no bairro, Marques (2010) enfatiza que a segregação residencial torna a sociabilidade territorialmente mais dispersa e diversificada.

Para Almeida e d’Andrea (2004), além de providenciar oportunidades empregatícias, a população do bairro de classe alta Morumbi, em São Paulo, engaja-se no combate à pobreza e violência na favela vizinha Paraisópolis através de redes filantropo-assistencialistas. Hita e Gledhill (2009) chegam a conclusões similares, a partir da análise das articulações entre os moradores do bairro popular Bairro de Paz, Salvador, e seu entorno geográfico, composto por condomínios da classe alta. Entretanto, Ribeiro (2008) constata que a proximidade geográfica entre as favelas e os bairros de classe média e alta da Zona Sul do Rio de Janeiro não elimina as relações de dominação: as trocas de sociabilidades entre os grupos socialmente distantes não se produzem em virtude da manutenção das hierarquias reificadas pela assimétrica disposição de capital econômico, social e simbólico.

Em vez de focalizar uma variável específica, parte-se, neste trabalho, da multidimensionalidade do efeito-território. Seguindo as considerações de Häußermann (2003), pressupõe-se que o contexto sociorresidencial não impacta apenas o acesso ao mercado de trabalho e aos serviços urbanos, senão afeta também as esferas social e simbólica da vida do indivíduo.

Considerações metodológicas e áreas estudadas

Para o propósito desta pesquisa, convém examinar, em primeiro lugar, o impacto do efeito-território nas condições de vida dos moradores dos três locais para, em segundo lugar, analisar as articulações (não)empregatícias entre os grupos socialmente distantes, à luz do seu potencial de mitigar esse efeito.

Nesse sentido, recorre-se à aproximação metodológica ao efeito-território proposta por Häußermann (2003), que distingue entre três dimensões analíticas estreitamente interligadas, quais sejam: (1) a dimensão material, (2) a dimensão social, e (3) a dimensão simbólica. Na dimensão material, abordam-se aspectos atinentes às oportunidades empregatícias locais, ao acesso a serviços urbanos e à infraestrutura comercial, social e cultural no bairro. A dimensão social abrange os componentes redes sociais e influência de grupos de pares em processos de socialização. Acrescenta-se a esta dimensão a análise da capacidade de collective efficacy (Sampson, 2012), já que se pressupõe um impacto significativo do crime na organização social da comunidade e nas condições de vida dos seus moradores. Já na dimensão simbólica, investiga-se o impacto da estigmatização territorial no acesso ao mercado de trabalho e nos padrões de sociabilidade do indivíduo.

A pesquisa foi conduzida em dois bairros populares de Salvador. A Figura 1 retrata os distintos vetores de expansão territorial das camadas média e alta no município de Salvador, sendo que a primeira fase (1940-1960) corresponde ao deslocamento desses grupos sociais em direção às regiões litorâneas da orla marítima; a segunda fase (1960-2000), à ocupação do espaço intersticial entre a Av. Paralela e a Av. Otávio Mangabeira/Av. Oceânica; e a terceira fase (2000 até hoje) à construção de condomínios fechados de elite em ambos os lados da Av. Paralela. Destaca-se uma organização socioespacial da cidade configurada por quatro macro-regiões, quais sejam: o centro, a orla marítima – predominantemente habitadas pelas classe média e alta – e o subúrbio ferroviário/ilhas e o “miolo urbano” – abrigando uma população majoritariamente pobre.

Os dois bairros contemplados neste estudo se inserem no primeiro e terceiro vetores de expansão e refletem de forma paradigmática a apropriação “dualista” formal/informal do espaço urbano de Salvador, que favoreceu a emergência de configurações de vizinhança entre grupos socialmente distantes em regiões centrais e periféricas.


Figura 1
Vetores de expansão das camadas média e alta no município de Salvador
Fonte: Elaboração própria.

Conforme demonstrado pela Tabela 1, o bairro central Calabar apresenta níveis de vulnerabilidade social e taxas de homicídio substancialmente menos altos se comparado com o bairro periférico Vila Vede, corroborando-se o expressivo antagonismo centro-periferia, destacado pelas Figuras 2-4.

A Figura 2 retrata as fortes disparidades com relação ao nivel médio de renda familiar, que se manifestam no antagonismo entre centro e periferia; os grupos sociais com maior nivel de renda ocupam as regiões do centro e da orla marítima.

Tabla 1
Perfil socioeconômico e situação de vulnerabilidade das populações dos dois bairros analisados

Fonte: Elaboração própria.4

Figura 2
Distribuição dos grupos sociais a partir do critério de renda em Salvador
Fonte: Elaboração própria.

Figura 3
Distribuição dos grupos sociais a partir da proporção de chefes de família com nivel de educação superior em Salvador
Fonte: Elaboração própria.

Figura 4
Distribuição da quantidade de homicidios registrados por AISPs em Salvador
Fonte: Elaboração própria.

A Figura 2 também aponta a existência de enclaves pobres nas duas regiões centro e orla marítima. O Calabar esta circundado por bairros habitados por uma população com uma renda mensal superior de R$ 6.000, enquanto o condomínio fechado Alphaville II se destaca como enclave rico dentro de uma região predominantemente pobre onde se localiza o bairro Vila Verde. A Figura 3 retrata a distribuição dos grupos sociais, a partir do critério de proporção de chefes de família com nivel de educação superior.

Apresentando um baixo nivel de educação, o Calabar figura como enclave dentro da orla marítima; entretanto, o bairro Vila Verde se insere em uma região com baixo nivel médio de educação. Já o bairro Alphaville II se destaca com um alto nivel de educação do seu entorno geográfico.

A escolha desses dois locais se justifica, em primeiro lugar, pela pressuposição de uma certa variabilidade atrelada ao “grau de autonomia funcional” de cada bairro. Nesse sentido, distiguem-se cinco funções que determinam a distribuição dos distintos papeis na vida do indivíduo, quais sejam: a família; a provisão de recursos materiais, sociais e culturais; o lazer; a vizinhança; o transporte (Hannerz, 1980). Pressupõe-se que essa distribuição incide sobre a abertura ou o isolamento social que o local de residência produz nas articulações cotidianas do indivíduo, cujo espectro varia entre, por um lado, o preenchimento de todas as supracitadas funções no bairro e, por outro lado, a ausência dessas funções – abstraindo-se dos fatores “família” e “vizinhança” que possuem um caráter essencialmente local.

O segundo fator está relacionado ao “grau de imbricação funcional” da população vis-à-vis seu entorno geográfico, examinado através das articulações econômicas, sociais e simbólicas entre os grupos socialmente distantes. Hipotetiza-se que este “grau de imbricação funcional” diminui em configurações de vizinhança onde inexistem espaços públicos compartilhados e onde dispositivos de segurança e barreiras naturais dificultam as trocas de sociabilidade e a mercantilização de produtos.

Um terceiro fator se atrela à incidência de crimes nas condições de vida dos moradores dos dois bairros e nas articulações funcionais com os bairros vizinhos das classes média e alta. A Figura 4 retrata a distribuição espacial do número de homicídios segundo as Áreas Integradas de Segurança Pública (AISPs) no município de Salvador, em 2018, com base nos dados divulgados pela Secretraria de Segurança Pública do Estado da Bahia.

Evidencia-se uma concentração espacial de homicídios no subúrbio ferroviário e no “miolo urbano”, enquanto a região central e a orla marítima registram menos ocorrências. Essa situação se torna relevante para a interpretação dos resultados, considerando-se que a Vila Verde se insere em uma região periférica apresentando altos níveis de homicídios.

Foram realizadas 60 entrevistas semiestruturadas no período de novembro de 2018 a março de 2019, com aproximadamente meia hora de duração, em distintos locais do bairro e em diferentes horários, abordando-se as pessoas na rua ou em suas casas, através da intermediação dos líderes comunitários dos dois bairros. A amostra integra pessoas de diferentes perfis socioeconômicos, conforme ilustrado pela Tabela 2.

Tabla 2
Perfil socioeconômico dos entrevistados

Fonte: Elaboração própria.

A escolha de uma maior proporção de entrevistados da faixa “entre 18 e 65 anos” dentro da amostra se justifica à luz da assunção de que estes já se encontram inseridos no mercado de trabalho formal/informal. Pressupõe-se que essas pessoas podem fornecer importantes informações sobre suas relações empregatícias com os condomínios fechados vizinhos.

Para o próposito deste estudo qualitativo, realizou-se uma primeira rodada de dez entrevistas que seguia uma estrutura mais aberta. Este procedimento facilitou a elaboração do questionário final5 que se aplicou durante a segunda rodada de entrevistas, enfatizando-se os aspectos considerados como mais importantes. A seguir, as entrevistas foram transcritas e posterioramente submetidas a uma análise de discurso. A estrutura semiaberta das entrevistas nos permitia cobrir um maior espectro de assuntos relacionados ao efeito-território, que variavam principalmente em função do ciclo de vida do entrevistado, e de identificar as estruturas comuns dentro da construção social da sua realidade (Luckmann & Berger, 1991).  Posteriormente à transcrição das entrevistas, os assuntos nelas abordados foram realinhados ao questionário-padrão, com o intuito de viabilizar uma comparação direta entre os dois bairros. Para sustentar os argumentos desenvolvidos no texto, reproduzem-se distintos trechos de citação considerados como paradigmáticos para a temática abordada.

As entrevistas foram acompanhadas de observações de campo que viabilizavam a interação direta do pesquisador com os moradores e com as diversas associações, instituições e igrejas do bairro. Outrossim, recorremos à técnica de systematic social observation (observação social sistemática) de Sampson (2012) para coletar importantes dados secundários sobre o contexto sociorresidencial das populações dos dois bairros, incluindo percursos nas ruas principais e em algumas partes menos movimentadas, assim como a obervação dos encontros sociais e das atividades comerciais que ocorrem nos espaços públicos “intermediários” localizados entre as duas localidades e os bairros vizinhos das classes média e alta,  quais sejam: a Avenida Centenário (Calabar) e a Rua das Azaléias (Vila Verde).

Convém ressaltar que os resultados auferidos neste estudo possuem um caráter sugestivo e não conclusivo, dado o fato de que estes se baseiam na percepção subjetiva dos entrevistados e não em dados quantitativos obtidos a partir de indicadores censitários. Seguindo-se as contribuições metodológicas do método de estudo de caso ampliado de Burawoy (1998), a pesquisa enfatiza a contribuição da ciência reflexiva para a reconstrução da teoria, atentando para o fato de que essas reconstruções preservam os argumentos centrais da teoria ao mesmo tempo que absorvem novas anomalias.

Examinando o efeito-território em Calabar

O bairro de Calabar surgiu na década de 1950 quando grupos populacionais empobrecidos vieram se instalar nos terrenos devolutos pertencentes à Santa Casa de Misericórdia. Localizado na proximidade geográfica dos bairros de Barra, Ondina e Graça, o Calabar se encontra a uma curta distância do Centro Histórico, da Lapa e da Barroquinha. No caso do primeiro grupo desses bairros, predomina o uso funcional “misto” do espaço construído, ou seja, as localidades abrigam prédios residenciais, edifícios comerciais e espaços públicos. Já no segundo grupo – região do centro (histórico) de Salvador e adjacências – predomina a função comercial ainda que também residencial.

Com relação à dimensão material, cabe assinalar as vantagens locacionais do Calabar que decorrem da proximidade às oportunidades empregatícias encontradas no seu entorno geográfico imediato – principalmente nos condomínios dos bairros vizinhos, no Shopping Barra e no Hospital da Fundação José Silveira – e nos bairros que constituem o centro da cidade. Esses locais funcionam como grandes polos de emprego, que podem ser alcançados a pé, isentando os moradores das despesas de utilização do transporte público ou privado.

Abstraindo-se do vínculo empregatício, essa relação de proximidade a um entorno geográfico onde predominam as camadas média e alta também se torna beneficiária do acesso à infraestrutura e equipamento urbano dos moradores, que parcialmente recompensa as deficiências qualitativas que se superpõem à escala do bairro, como a ausência de instituições de ensino médio, a precariedade das opções de lazer e o acesso dificultado à rede pública de hospitais e postos de saúde que ofereçam serviços de tratamento mais especializados.

Prevalece uma avaliação positiva dos entrevistados acerca da vitalidade da infraestrutura comercial, social e cultural no Calabar, fato que promove um alto grau de articulação entre seus moradores e que fortalece a identidade territorial com o bairro principalmente a partir do engajamento de algumas instituições-chave, como a Escola de Educação Infantil, as igrejas evangélicas, a biblioteca comunitária e a associação dos moradores, conforme demonstra o seguinte relato:

Aqui sempre teve este apoio dos vizinhos na construção da casa, dar algum empréstimo de alimentos. Mas o que realmente define esta comunidade são estas atividades que eles oferecem na biblioteca e na escola

(João, 34 anos, carpinteiro).

Para além da esfera do vínculo empregatício, a maioria dos entrevistados declara não manter vínculos sociais com os moradores dos condomínios dos bairros vizinhos. De forma similar, não visualiza os principais espaços públicos de lazer e recreação, quais sejam a Avenida Cententário, o Shopping Barra e as praias espalhadas pela Barra e Ondina, como pontos de encontro com potencial de trocas de sociabilidade entre os grupos socialmente distantes, evidenciando-se uma nítida hierarquização do uso desses espaços, na percepção dos entrevistados, que cria obstáculos às articulações entre os grupos socialmente distantes, conforme já documentado por Ribeiro (2008) e Ruiz-Tagle (2016).

As trocas de sociabilidade se restringem às relações empregatícias que, em raros casos, contribuem à desconstrução das distâncias sociais entre os dois grupos já que se mantêm inalteradas as hierarquias de poder entre empregado e patrão, particularmente nas profissões de faxineiro, diarista e porteiro. Essa constatação sugere que a integração da população do Calabar apenas pelo viés empregatício não estimula o contato entre os dois grupos socialmente distantes nem promove uma maior “compreensão” e “empatia” por sua situação de vulnerabilidade, conforme já demonstrado por Ruiz-Tagle (2016) em Santiago, Chile.

No que tange à dimensão social do efeito-território, chama a atenção a expressiva orientação das relações sociais para os bairros vizinhos, fato que se comprova em um menor grau de localismo e homofilia que caracteriza suas redes sociais, conforme já observado por Marques (2010). O caso do Calabar exemplifica que a associação causal entre a pobreza do bairro e a probabilidade de os habitantes interagirem com grupos sociais extralocais depende da localização dos recursos periódicos e não periódicos requeridos pelos pobres na sua vida quotidiana, como o acesso ao mercado de trabalho, ao transporte público, à escola, ao supermercado etc.

O acesso a informações sobre vagas de emprego se vê beneficiado tanto pela intermediação através de pessoas-chave já trabalhando nos condomínios vizinhos quanto pelas redes tecidas nas esferas primárias de sociabilidade que promovem o acesso ao mercado laboral informal. Em virtude da alta proporção do mercado informal no conjunto das atividades profissionais exercidas pelos entrevistados, esses vínculos sociais ganham uma relevância particular no Calabar, já que são precisamente as pessoas mais íntimas dentro da rede de contatos dos moradores as que usufruem das intermediações e indicações de trabalho.

Incumbe um papel-chave à implantação da Base Comunitária de Segurança (BCS) da Polícia Militar, em 2011, na alteração da percepção subjetiva dos moradores acerca da exposição à violência e criminalidade no Calabar, fato que frisa a importância de investimentos públicos em segurança comunitária para o bem-estar da sua população. Corroborando as considerações de Sampson (2012), a fiscalização de comportamentos desviantes ou infratores pelos próprios moradores assim como a atuação preventiva da biblioteca comunitária, da BCS e da Escola Aberta, através do oferecimento de uma ampla gama de atividades supervisionadas, fortalecem a capacidade de collective efficacy na escala comunitária e reduzem consideravelmente a influência do tráfico de drogas na vida dos adolescentes dentro da vizinhança e na escola.

Na dimensão simbólica, comprovaram-se distintos mecanismos de estigmatização territorial da população do bairro que salientam a importância de levar em consideração a percepção subjetiva do indivíduo acerca do seu local de residência (Wacquant, 2016). Vários depoimentos demonstram que, dentro das entrevistas de emprego realizadas nos condomínios vizinhos, o dono do apartamento reage com receio quando é informado sobre o local de residência do potencial funcionário, frequentemente associado com a uma imagem de um bairro fortemente dominado pelo tráfico de drogas.

Quando fui pra entrevista, já olhavam estranho para mim. Mas tinha que ver a reação quando eu falei que moro no Calabar. Ohh, o Calabar, sim, vamos ligar depois. Um dia depois me ligaram e falaram que a vaga já foi preenchida

(Eliane, 23 anos, dona de casa).

Ao mesmo tempo, a reprodução dessa imagem pela mídia e o fato de que poucos não residentes visitam o Calabar reduzem as chances de interação com pessoas extralocais, dando maior margem para a perpetuação dos estigmas territoriais. Contudo, chama a atenção o fato de que a imagem atribuída pelo exterior não corresponde à realidade vivenciada dentro do bairro, segundo a percepção dos entrevistados. Observam-se distintas estratégias de disassociar-se do estigma territorial, que se centram na imagem de uma comunidade “engajada”, com uma longa história de mobilização coletiva e política, enquanto se dicerne uma nítida diferenciação interna entre os “trabalhadores honestos” e aqueles moradores considerados como “ociosos, traficantes e beneficiários da Bolsa Família”.

Com base nos resultados auferidos nesse bairro, identificaram-se dois mecanismos que promovem um melhor entendimento do efeito-território exercendo um impacto negativo nas condições de vida dos entrevistados, conforme apresentado na Tabela 3.

Tabla 3
Mecanismos pelos quais opera o efeito-território “negativo” no Calabar

Fonte: Elaboração própria.

Ressalta-se a permanência de uma imagem negativa do bairro apesar dos esforços de seus habitantes em demonstrar que se trata de uma população honesta e trabalhadora e a despeito da implementação da BCS, em 2011. Concomitantemente, registra-se o enfraquecimento do sistema primário de suporte da vizinhança, visualizado como resultado da fragmentação dos interesses dos moradores e da forte influência do tráfico de drogas no passado, que disseminou a desconfiança entre os vizinhos. Entretanto, identificaram-se três mecanismos que beneficiam os entrevistados (Tabela 4).

Tabla 4
Mecanismos pelos quais opera um efeito-território “positivo” no Calabar

Fonte: Elaboração própria.

Destacam-se as amplas oportunidades de participação socioeconômica dos entrevistados no seu entorno geográfico, tanto em relação ao mercado de trabalho quanto no acesso a serviços públicos de alta qualidade, acarretando uma série de benefícios para as esferas econômica, social e simbólica do indivíduo.

Examinando o efeito-território no bairro de Vila Verde

A localidade de Vila Verde pertence administrativamente ao bairro popular Mussurunga e se localiza nas porções limitrofes do “miolo urbano”. A expansão territorial e demográfica do bairro deve ser explicada à luz da crescente importância da Avenida Paralela para a estrutura econômica da cidade, destacando-se sua proximidade ao aeroporto, ao Norte Shopping e a uma série de grandes empresas que se instalaram nos seus arredores. Recentemente, essa região, até então pouco valorizada, foi contemplada por investimentos públicos em infraestrutura viária que acompanharam a construção de grandes complexos de condomínios fechados, como o Alphaville II, na região. Esse condomínio é fisicamente separado do bairro Vila Verde por remanescentes da Mata Atlântica, sendo que apenas uma estrada de chão batido serve como interligação entre as localidades.

Com relação à dimensão material, observa-se a escassez de postos de empregos locais e o acesso dificultado a serviços urbanos na região, fazendo com que a população precise se deslocar para os bairros vizinhos e para as regiões mais centrais de Salvador. Contudo, a construção do ponto de mêtro Bairro da Paz facilita sua locomoção para a região do centro e do Iguatemi, fato que reduziu substancialmente o tempo despendido para o deslocamento casa-trabalho e casa-estudos.

Chama a atenção que nenhum dos entrevistados declara estar trabalhando atualmente dentro dos condomínios do Alphaville II. Conforme os depoimentos, no início da construção desse condomínio, a população do Vila Verde criava grandes expectativas com a chegada de famílias com maior poder acquisitivo e apostava em uma rápida valorização do seu, conforme demonstra o relato seguinte.

Tinha que ver a alegria quando soubemos que este Alphaville 2 iria se instalar na nossa região! Agora, a realidade é outra: tentamos tanto de entrar nestes condomínios e oferecer – quase de graça – nosso trabalho e, nada!

(Eduardo, 25, desempregado).

Em vários relatos, aparecem as tentativas frustradas de oferecer sua mão de obra na construção civil; contrariando as expectativas iniciais, a empresa imobiliária responsável recrutou os operários de bairros mais distantes, alegando que não havia mais vaga para a população do Vila Verde. Conforme os relatos, os moradores nem conseguiam ter acesso ao condomínio, sendo sua entrada barrada pelos porteiros. As poucas pessoas que lograram vencer essa barreira assinalaram distintas práticas de discriminação nas entrevistas de emprego que se reportavam à imagem negativa dos bairros vizinhos Mussurunga e São Cristovão na mídia televisiva. Para Luis, trata-se claramente de uma forma de discriminação que associa o local com o tráfico de drogas na região.

Ah, eu não sei, mas todo este condomínio está fechado para nós. Vim uma vez falar com este administrador, para ver se posso colocar um dos meus familiares como faxineira, diarista. Quando soube que morava aqui ele simplesmente disse que iria ver mas que provavelmente não daria

(Luis, 62 anos, motorista de ônibus).

Essa falta de acesso ao condomínio ainda se vê agravada pela ausência de espaços públicos suscetíveis de facilitar a instalação de pequenos estabelecimentos e comércios para a venda de produtos não duráveis em proximidade ao condomínio.

Todavia, os entrevistados destacam como positiva a proximidade do bairro ao novo pólo econômico que surgiu na Av. Paralela, entre outros, o aeroporto, o Norte Shopping, o Hangar Business Park e várias empresas de grande porte e supermercados que privilegiam contratar os moradores do Vila Verde devido à sua proximidade e “pontualidade”. Contudo, várias pessoas entrevistadas relataram que se sentiam exploradas como mão de obra barata, alegando que os patrões se aproveitam da vulnerabilidade social da população para baixar o salário.

Aqui, bom, tem estes empregos de faxineira, diarista, porteiro nos hotéis. Bom, o lado ruim é o pagamento. Eu já falei com pessoas trabalhando no Ibis que moram em outros bairros mais distantes e me falam que ganham quase 50% a mais!

(Juliana, 42 anos, diarista).

Na dimensão social, discerne-se uma concentração nas redes primárias de sociabilidade, acusando um maior grau de localismo e homofilia, enquanto as esferas de sociabilidade secundárias são claramente subrepresentadas. Dessa forma, observa-se um certo recuo das pessoas para os vínculos mais íntimos e geograficamente mais próximos, quais sejam família, amigos e vizinhança, fato que dificulta o acesso a informações sobre vagas de emprego fora do bairro. Esse encapsulamento é frequentemente explicado pelos entrevistados com base no argumento de que, à noite, a locomoção dentro do bairro e o uso do transporte público se veem constrangidos pela atuação de grupos criminosos vinculados ao tráfico de drogas.

A ausência de organizações comunitárias e associações filantrópicas suscetíveis de promover um maior grau de coesão intracomunitária é atestada pela maior parte dos entrevistados. Falta, portanto, uma importante estrutura de suporte comunitário principalmente para os segmentos mais jovens da população. Esse “vácuo” foi preenchido parcialmente pelas igrejas majoritariamente do segmento evangélico, que promovem uma série de suporte (não)material para os membros da mesma congregação.

No que tange a collective efficacy, registramos uma significante desestabilização da organização comunitária em decorrência da violência que, de uma certa forma, reduz a disposição dos entrevistados a vigiar pela ordem social e a se engajar pelo bem coletivo da comunidade em um sentido mais amplo. Essas dificuldades de enfrentamento dos grupos criminosos no local tiveram como consequência uma intervenção repressiva da polícia comunitária. Ambas as dinâmicas são interligadas, já que a fragmentação territorial da região em conjunção com a ausência de uma solidariedade intracomunitária enfraquecem o poder de enfrentamento da população vis-à-vis as facções, o que se traduz em um menor grau de cooperação com a polícia.

Dessa forma, prevalece um receio generalizado entre a população de intervir em situações em que a criança e o adolescente se encontram “à toa” na rua ou em que uma pessoa adulta é desrespeitada na vida pública, dado o menor poder de controle e de correção sobre o comportamento e o risco de sofrer represálias.

Aqui, realmente ninguém quer mais ajudar. Ajudar para que também, se você ajuda, eles querem brigar com você também. E que vamos fazer com tanto adolescente fora da escola? Aí, eles só pegam estas ideias ruins

(Edilene, 28 anos, operadora de caixa).

Na dimensão simbólica, observa-se que os estigmas que acometem a população residente resultam da associação do bairro com os locais Mussurunga e São Cristovão, com uma forte presença de facções criminosas rivalizando pelo controle da venda de drogas na região, fato que prejudica a integração socioeconômica dos entrevistados. Destacam-se os constrangimentos na procura de um emprego, a abordagem institucional enviesada pela polícia e as dificuldades de se relacionar com não residentes.

A seguir, sintetizam-se na Tabela 5 os principais mecanismos pelos quais opera um efeito-território que exerce influência negativa nas condições de vida dos moradores.

Tabla 5
Mecanismos pelos quais opera um efeito-território “negativo” no Vila Verde

Fonte: Elaboração própria.

Destaca-se, nesse caso, o forte impacto do tráfico de drogas tanto no funcionamento das escolas e da infraestrutura comercial e social quanto nos padrões de sociabilidade e na percepção do entrevistado acerca do seu bairro de residência. Ao mesmo tempo, a construção da Alphaville II fez com que os entrevistados percebessem de forma mais agudizada as disparidades de renda inscritas no espaço urbano, que coaduna com um acesso hierarquizado aos serviços urbanos seguindo o dualismo público/privado. A Tabela 6 aponta um mecanismo pelo qual opera um efeito-território que beneficia a população residente.

Tabla 6
Mecanismos pelos quais opera o efeito-território “positivo” no Vila Verde

Fonte: Elaboração própria.

Como único mecanismo “positivo”, remete-se às oportunidades empregatícias que surgiram a partir da demanda dos hotéis e lojas por funcionários.

Discussão: a proximidade espacial favorece a integração socioeconômica?

Discutindo os resultados, cabe ressaltar que a relação de imbricação funcional principalmente pelo viés empregatício não deve ser interpretada como resultado “automático” da proximidade geográfica entre grupos socialmente distantes, senão se vê condicionada por três fatores, quais sejam: a capacidade de os espaços públicos compartilhados viabilizarem trocas mercantilistas e articulações entre os grupos socialmente distantes, o grau de autonomia funcional do bairro e a interferência de estruturas criminosas na organização socioinstitucional e na imagem exterior da comunidade.

No caso do Calabar, trata-se de um bairro inserido no primeiro vetor de expansão das classes média e alta de Salvador, cuja população usufrui da proximidade aos principais polos do mercado de trabalho, tanto formal quanto informal, assim como da alta qualidade dos serviços públicos oferecidos nos seus arredores. Conforme já observado por Marques (2010), a expressiva orientação para fora do bairro pode ser explicada à luz do baixo “grau de autonomia funcional”, ou seja: devido à escassez de postos de emprego e de serviços urbanos no local. Essa situação se conjuga com amplas oportunidades de participação socioeconômica no seu entorno.

Já as articulações econômicas, sociais e simbólicas dos entrevistados do Vila Verde esbarram na ausência de possibilidades de participação socioeconômica nos espaços públicos, tanto para promover as articulações sociais com os habitantes do Alphaville II quanto para a mercantilização de produtos não duráveis. O bairro de Mussurunga, no qual o Vila Verde se insere, abrange todas as funções necessárias para a reprodução social dos seus moradores (excetuando-se os postos de emprego), como escolas, creches, postos de saúde, supermercados etc. – uma situação que produz um maior confinamento dos entrevistados ao contexto social local. Em consequência, a influência de grupos de pares afiliados ao tráfico de drogas se faz mais presente na vida cotidiana dos entrevistados, ao mesmo tempo que a imagem negativa de um bairro abrigando uma população potencialmente perigosa dificulta a procura de emprego no condomínio vizinho Alphaville II e cria obstáculos às articulações entre os grupos socialmente distantes.

No que tange a tais articulações, examinadas neste trabalho a partir do “grau de imbricação funcional”, salientam-se três fatores: (1) as oportunidades empregatícias; (2) o acesso segmentado a serviços urbanos; (3) o evitamento social do “outro”. Quanto ao primeiro fator, que também pode ser considerado como um dos motivos principais para a ocupação informal dos espaços intersticiais da orla marítima, confirma-se que a população do Calabar usufruía da forte demanda que emergia, em uma primeira fase, na construção civil dos prédios de condomínios da classe média e alta e, em uma segunda fase, a partir dos serviços pessoais desempenhados dentro dos condomínios. Essas relações de imbricação funcional “simbióticas” evocam a imagem de uma sociedade polarizada, mas, ao mesmo tempo, interdependente, conforme já observado por Almeida e D’Andrea (2004).

Contudo, convém ressalvar que as profissões não qualificadas no setor de serviços pessoais acusam um alto nível de desproteção social que se conjuga com uma baixa remuneração. Dessa forma, a integração empregatícia por esse viés não promove uma ascensão econômica da população do Calabar no longo prazo, tratando-se mais de uma relação de aproveitamento da mão de obra barata por parte dos moradores dos condomínios. A mesma dinâmica se delineia no caso do Vila Verde, onde os entrevistados declaram se sentir explorados como mão de obra barata pelos hotéis, shoppings e lojas localizados no seu entorno. Nesse bairro, o fator de proximidade geográfica perde sua relevância em favor dos critérios de elegibilidade “segurança” e “confiança” que incidem sobre as chances de ser contratado como funcionário nos condomínios e que se norteiam estreitamente pela imagem midiática do bairro.

Com relação ao segundo fator, cabe salientar que apenas os entrevistados do Calabar declaram fazer uso de alguns dos equipamentos urbanos, na sua maioria da rede pública, localizados nos bairros vizinhos de classe média e alta. Nos dois bairros, as disparidades socioeconômicas entre os grupos socialmente distantes se refletem na bifurcação entre o sistema público e privado, no que tange ao acesso a serviços de educação e saúde. A mera proximidade a serviços privados de alta qualidade não garante o acesso pela população pobre nem alavanca sua mobilidade socioeconômica, dada a insuficiência de recursos financeiros de custear os serviços privados, conforme já apontado por Ruiz-Tagle (2016).

Quanto ao terceiro fator, delineiam-se diferenças entre, por um lado, o Calabar, onde a Avenida Centenário e as praias da Barra e Ondina viabilizam um maior contato entre os grupos socialmente distantes através do uso compartilhado dos espaços de lazer e onde a separação física dos prédios de apartamentos de classe média e alta ocorre a partir de controles de segurança, frequentemente superados pelos funcionários dos condomínios; e, por outro lado, o bairro de Vila Verde, onde o contexto social corre o risco de se tornar mais “totalizante” para sua população devido ao alto grau de autonomia funcional do local e devido à separação física vis-à-vis o Alphaville II.

Considerações Finais

O estudo evidenciou que existem tanto mecanismos que afetam negativamente as condições de vida dos entrevistados, como a influência do tráfico de drogas na organização comunitária, quanto mecanismos que os beneficiam, como a forte mobilização coletiva da população. A análise mais aprofundada desses mecanismos, capaz de identificar suas estruturas causais comuns e de atentar para sua variabilidade interna, pode servir de base para futuros estudos comparativos conduzidos em outros bairros de Salvador ou em cidades diferentes.

Destaca-se que a construção do condomínio Alphaville II não ampliou as possibilidades de articulação social com os segmentos mais pobres que moram nos seus arredores, dada sua maior autonomia funcional e seu maior grau de isolamento espacial. Tampouco criou externalidades positivas para a região, como, por exemplo, melhorias em termos de serviços urbanos e de segurança pública. Considerando as distintas fases de expansão da classe média e alta em Salvador, cabe ressaltar que a articulação funcional entre os grupos socialmente distantes sofreu importantes alterações; os resultados apontam um crescente distanciamento social, sendo que o potencial do fator de proximidade espacial perde sua relevância em contextos de vizinhança marcados por altas taxas de criminalidade.

Convém ressaltar que o objetivo desta pesquisa consistiu em identificar os mecanismos que explicam o impacto do efeito-território a partir de um enfoque microssocial. Todavia, é imperativo inserir essas observações dentro de uma panorama mais amplo. Wacquant (2016) já advertiu que existe o perigo de confundir as causas da reprodução da pobreza sempre que atributos socioeconômicos do indivíduo ou dados socioeconômicos do bairro se colocam no cerne do debate, sem que as transformações relevantes no mercado de trabalho, no mercado imobiliário e no sistema de bem-estar sejam levadas em consideração.

Todavia, defende-se aqui o argumento de que a análise dos processos que explicam a reprodução das desigualdades sociais unicamente a partir das estruturas políticas, históricas e socioeconômicas do país não deveria ofuscar a perspectiva a partir do fator contextualidade, particularmente em um contexto urbano marcado por fortes disparidades de renda, pelo acesso hierarquizado aos sistemas de saúde, educação e segurança e pela expressiva concentração espacial da violência e criminalidade (Kowarick, 2009). É imperativo reconhecer que nem todos os habitantes de um determinado bairro acometido pela concentração espacial de desvantagens estruturais veem suas condições de vida afetadas de uma forma homogênea.

Entretanto, seria prejudicial argumentar que o indivíduo logra escapar às condições adversas do seu ambiente sociorresidencial com seus próprios esforços. Este raciocínio se aproximaria ao liberalismo inerente à operacionalidade dos programas de mobilidade residencial implementados nos Estados Unidos, como o MTO. O estudo demonstrou que a relação de imbricação funcional dos habitantes dos dois bairros vis-à-vis seu entorno acusa um alto grau de complexidade e se vê condicionado por distintos fatores intervenientes. A consideração desses fatores poderia contribuir para a elaboração de estratégias de planejamento urbano atentas aos potenciais endógenos da comunidade, em termos de organização socioinstitucional, assim como às deficiências, em termos de serviços urbanos e segurança.

Material suplementar
Apêndices
Apêndice

1. Dimensão material




2. Dimensão social
2.1. Redes Sociais
2.1.1. Tipos de sociabilidade



2.1.2. Bridging ties



2.1.3. Bonding ties
2.1.3.1. Suporte proporcionado



2.1.3.2. Suporte recebido



2.2. Collective efficacy



2.3. Processos de socialização




3. Dimensão simbólica



Referências
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Notas
Notas
1 O conceito efeito-território se define como as desvantagens socioeconômicas que impactam na mobilidade socioeconômica e as condições de vida do indivíduo, em função da sua inserção em determinados contextos sociorresidenciais.
2 Conforme Sampson (2012), o conceito collective efficacy combina a coesão social e a confiança mútua com a expectativa compartilhada de controle social informal.
3 O conceito de homofilia remete ao princípio de que a convergência em determinados atributos como idade, gênero, nível educativo, raça/etnia, religião, classe ou status social etc. tende a produzir uma maior probabilidade de se interrelacionar e de concordar em opiniões específicas e práticas similares (Marques, 2010).
4 Os dados reproduzidos nesta Tabela 1 provêm do Atlas do Brasil (http://www.atlasbrasil.org.br/) e se referem ao Censo Demográfico de 2010. O indicador “Taxa de homicídios” provém da Secretaria de Segurança Pública de Salvador (http://www.ssp.ba.gov.br/) e se refere aos dados de 2019.
5 Para maiores esclarescimentos sobre as ferramentas metodológicos utilizadas na pesquisa qualitativa, compare o questionário padrão utilizado nas entrevistas, que se encontra no anexo deste artigo.

Figura 1
Vetores de expansão das camadas média e alta no município de Salvador
Fonte: Elaboração própria.
Tabla 1
Perfil socioeconômico e situação de vulnerabilidade das populações dos dois bairros analisados

Fonte: Elaboração própria.4

Figura 2
Distribuição dos grupos sociais a partir do critério de renda em Salvador
Fonte: Elaboração própria.

Figura 3
Distribuição dos grupos sociais a partir da proporção de chefes de família com nivel de educação superior em Salvador
Fonte: Elaboração própria.

Figura 4
Distribuição da quantidade de homicidios registrados por AISPs em Salvador
Fonte: Elaboração própria.
Tabla 2
Perfil socioeconômico dos entrevistados

Fonte: Elaboração própria.
Tabla 3
Mecanismos pelos quais opera o efeito-território “negativo” no Calabar

Fonte: Elaboração própria.
Tabla 4
Mecanismos pelos quais opera um efeito-território “positivo” no Calabar

Fonte: Elaboração própria.
Tabla 5
Mecanismos pelos quais opera um efeito-território “negativo” no Vila Verde

Fonte: Elaboração própria.
Tabla 6
Mecanismos pelos quais opera o efeito-território “positivo” no Vila Verde

Fonte: Elaboração própria.
























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