ARTIGOS
Recepção: 10 Dezembro 2021
Aprovação: 23 Agosto 2022
DOI: https://doi.org/10.20336/rbs.854
RESUMO: A obra de Weber segue relevante para a compreensão das interações contemporâneas entre Estados, governos, burocracias, organizações e sociedade. Contudo, cabem indagações sobre o que permanece e o que precisa ganhar novas interpretações em sua vigorosa obra. Este artigo tem três objetivos primordiais. O primeiro consiste em revisitar os fundamentos metodológicos e os principais conceitos e argumentos desenvolvidos por Weber sobre o Estado ao longo de sua obra. O segundo busca apresentar uma avaliação crítica sobre possíveis permanências, incompletudes ou superações nas formulações weberianas para a compreensão do Estado nas sociedades contemporâneas. O argumento é o de que há falhas ou, pelo menos, seletividade limitadora na definição de Estado pelo meio típico, já que essa delimitação não incorpora outros meios igualmente típicos identificados pelo próprio Weber em outras obras e sumariamente se recusa a considerar fins, alguns dos quais as próprias análises do eminente sociólogo identificaram na formação dos Estados modernos, como buscaremos demonstrar. O terceiro consiste em apresentar indicações de um conceito alternativo de Estado que concilie meios e fins historicamente determinantes na conformação dos Estados contemporâneos. Para cumprir seus objetivos, este artigo apresenta uma reconstituição concisa dos argumentos de Weber dos conceitos mais abrangentes de Estado e de afirmação metodológica basicamente do pré-guerra. Em seguida, apresenta o conceito mais restrito de Estado que emerge das suas reformulações do pós-guerra, com a busca da afirmação de sua (inacabada) sociologia do Estado, aborda brevemente o conceito de tipo ideal e, por fim, procura oferecer um balanço sintético, mas não encerrado, de permanências, incompletudes ou superações nas formulações weberianas sobre Estado, oferecendo um conceito alternativo de Estado que dialoga com Weber, mas que procura ir além de suas formulações sobre o tema. Essa análise argumenta pela constatação da necessária superação do conceito sociológico de Estado moderno com base exclusivamente no meio característico (monopólio da violência considerada legítima) por um conceito de Estado que considere igualmente fins e meios socialmente relevantes e politicamente em disputa.
Palavras-chave: Max Weber, Teoria do Estado, Teoria Social, burocracia, Estado, tipos ideais.
ABSTRACT: Weber’s work remains relevant to understanding contemporary interactions between States, governments, bureaucracies, organizations, and society. However, there are questions about what remains and what needs to gain new interpretations in his vigorous work. This article has three main objectives. The first consists of revisiting the methodological foundations and main concepts and arguments developed by Weber about the State throughout his work. The second seeks to present a critical assessment of possible permanence, incompleteness, or improvement in Weberian formulations for understanding the State in contemporary societies. The argument is that there are flaws or, at least, limiting selectivity in the definition of State by the typical means, since this delimitation does not incorporate other equally typical means identified by Weber himself in other works, and summarily refuses to consider ends, some which the eminent sociologist’s own analyses identified in the formation of modern states, as we will try to demonstrate. The third is to present indications of an alternative concept of state that reconciles means and ends that are historically determinant in the conformation of contemporary states. To achieve its objectives, this article presents a concise reconstruction of Weber`s arguments for the most diffuse and comprehensive concepts of the State that appear mainly, but not only, in his pre-war historical and methodological works. Then it presents the more restricted concept of State that emerges from its post-war reformulation in search of the affirmation of its (unfinished) sociology of the State, briefly addresses the concept of ideal type and, finally, offers a synthetic assessment, though not finished, of permanence, incompleteness or improvement in Weber’s formulations on State by developing an alternative concept of State that dialogues with Weber, though seeking to go beyond his vigorous formulations on the subject. This analysis points to the limits in the construction and use of ideal types and argues that the ideal type concept of modern State based exclusively on its characteristic means (monopoly of violence considered legitimate) should be replaced with a concept of State that equally considers socially relevant and politically disputed ends and means.
Keyword: Max Weber, Theory of State, Social Theory, bureaucracy, State, ideal types.
Introdução
Max Weber segue e seguirá influenciando vigorosamente o debate contemporâneo em praticamente todas as agendas relevantes que envolvam as complexas interações entre Estado, governo e sociedade. Alguns exemplos são suficientes para demonstrar esse ponto.1 Ao analisarmos as abordagens contemporâneas da teoria social sobre as relações Estado e sociedade, constatamos que o chamado novo institucionalismo histórico é uma vertente do pensamento contemporâneo diretamente influenciada por Weber e fez dessa influência, explicitamente reivindicada, um componente de distinção em relação às demais abordagens da teoria social contemporânea (Acco, 2009; Dusza, 1989; Jessop, 2003; Misse, 2011). Todo o edifício intelectual do projeto Bringing the state back in (BSBI) – obra programática dessa influente abordagem – é explicitamente calcada em Weber e numa tentativa de constituir uma interpretação sobre os Estados e as sociedades contemporâneas que fundamentalmente descole Weber do marxismo (Skocpol, 1985) e que afirme a noção de centralidade institucional dos estados nacionais (stateness). O projeto de trazer o Estado de volta ao centro do debate social contemporâneo estava calcado no retorno a Weber, em particular às suas contribuições sobre o Estado e a burocracia, bem como aos conceitos cruciais de racionalidade, autonomia e centralidade institucional do Estado (Evans et al., 1985).
As reflexões de Weber sobre Estado e burocracia também estiveram em questão em boa parte das formulações dos movimentos do new public management (NPM) e reinventing government orientadas sobremaneira aos esforços para a superação da burocracia weberiana, espécie de síntese de um Estado burocratizado, excessivo e perdulário a ser reinventado, em larga medida, sob a inspiração de procedimentos e práticas da gestão privada. Embora os defensores do NPM ou do reinventing government tenham incorporado outros elementos não diretamente abordados por Weber, parece ser correto inferir que a concepção weberiana de Estado e de burocracia esteve no centro das atenções dessas influentes abordagens. Osborne e Gaebler (1994), em seu Reinventando o governo, foram explícitos quanto a isso. A subseção “A falência da burocracia” centra sua crítica à forma do Estado burocrático vigente; aquilo que há um século foi retratado por Weber como a máquina organizacional mais avançada para lidar com organizações e sociedades complexas teria tomado a forma de um “ethos especial, de um governo lento, ineficiente, impessoal” (p. 13). Aquilo que Weber observou e descreveu como um tipo puro de dominação legítima passa a ser qualificado como burocracia weberiana, a antítese do ethos do empreendedorismo que deve ser liberado para a reinvenção das instituições governamentais contemporâneas.
No Brasil, a influência de Weber pode ser encontrada em boa parte da literatura produzida na retomada dos estudos sobre Estado e burocracia ao longo das últimas décadas, a exemplo das contribuições de autores como Loureiro, Abrucio e Rosa (1998), Bresser-Pereira (2017, por exemplo) e Schneider (1994). Demonstrando que Weber não é um autor que se preste a uma única interpretação, cada um desses autores incorporou Weber ao seu modo. Assim, Schneider (1994), ao analisar a atuação do Estado e da burocracia estatal brasileira ao longo da expansão capitalista dos anos do regime autoritário, o faz a partir da perspectiva das carreiras dos ocupantes de cargos de direção das empresas estatais e identifica quatro tipos sociais de burocratas atuando em seus principais cargos: os militares, os técnicos, os políticos e os técnicos-políticos. Enquanto Loureiro, Abrucio e Rosa (1998), ainda que utilizando a perspectiva da carreira, buscam um caminho híbrido, que eles chamam de politização da análise da estrutura burocrática governamental, procurando explorar as interações entre política e administração e política e técnica, tipificadas na figura dos policymakers, ou seja, os decisores com responsabilidade política. Bresser-Pereira, em diversos momentos de sua extensa obra, incorporou categorias weberianas, particularmente em suas análises sobre a evolução histórica do Estado e dos modos de dominação e gestão presentes nas sociedades, das formas patrimonialistas, passando pelo Estado burocrático, ao gerencialismo. Alguns trabalhos recentes de pesquisadores brasileiros, em diálogo com a produção internacional, retomaram a pesquisa e a reflexão sobre os papéis e atribuições das burocracias, orientando suas investigações, desta feita, para as atuações das burocracias do nível de rua e de médio escalão (Abers, 2015; Acco e Schwartz, 2019; Lipsky, 2010; Lotta, 2012; Muir, 1977; Pires, 2009; Pires & Gomide, 2014). Esses autores abordam o papel da discricionariedade e do ativismo da burocracia de médio e baixo escalão, em diálogo crítico com a interpretação weberiana hegemônica de burocracia como um corpo consideravelmente uniforme, seguidor de regras em tempo integral e também incapaz de inovar democraticamente.2
Outros exemplos bastante evidentes de uso da obra de Weber no Brasil são encontrados em documentos normativos produzidos para reformar o aparelho do Estado ou aspectos da configuração estatal, a exemplo do Plano Diretor da Reforma do Aparelho de Estado (Pdrae) (Mare, 1995) e da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) nº 32/2020, em tramitação no Congresso Nacional.3 Ambos mobilizaram, aos seus modos, elementos de conceitos ou categorias de inspiração weberiana para, como no caso do plano diretor, buscar diferenciar o que é exclusivo do Estado do que não lhe é exclusivo; a separar aquilo que deve permanecer estatal daquilo que deve ser transferido para as organizações da sociedade civil ou para o setor privado; ou, como no caso da PEC 32/2020, os funcionários públicos que devem manter sua estabilidade no emprego e devem ser recrutados com base em concursos públicos para cargos exclusivos de Estado, separados daqueles demais que podem ser recrutados por contratos de trabalho por tempo determinado e mediante processos seletivos simplificados. Enfim, uma nova interpretação do Estado, de reconfiguração do Estado e de suas formas de interação com a sociedade se afirma, e a presença de Weber tem sido invocada para os projetos normativos reivindicarem – insistimos, aos seus modos – parte de sua legitimidade.
Os exemplos de usos adequados ou distorcidos de Weber poderiam ser multiplicados, mas os anteriormente indicados são suficientes para ilustrar o argumento de que se posicionar em relação aos temas centrais no debate sobre o conceito de Estado, sobre as atribuições e competências dos Estados e de governos no contexto contemporâneo, sobre a capacidade estatal, entre outras agendas cruciais de nossos dias, significa, ainda, levar em acurada consideração as contribuições de Max Weber. Contudo qual Weber? Considerando que o eminente sociólogo não é um autor simples, que possa ser sintetizado numa interpretação única e linear como encontrado em manuais reducionistas ou em reprováveis apostilas de concurso público. Ao contrário, como um clássico em todas as acepções que Italo Calvino (1993) conferiu ao termo, sua obra suscita diferentes interpretações e constitui um campo relevante em disputa no pensamento social contemporâneo e, por sua influência marcante e continuada, também com implicações na reconfiguração das nossas instituições contemporâneas.
Tendo presente essa continuada relevância de Weber no cenário intelectual e político contemporâneo, este artigo tem três objetivos primordiais. O primeiro consiste em revisitar os fundamentos metodológicos e os principais conceitos e argumentos desenvolvidos por Weber (1986a, 1986b, 1986c, 1973, 1993) ao longo de sua obra sobre o Estado, um tema que ocupou sua formulação desde sua produção intelectual do final do século XIX, como revelam os instigantes ensaios Estado nacional e a política econômica alemã [1895] e O declínio da cultura antiga [1896], passando por suas formulações sobre o tema encontradas em A objetividade do conhecimento nas ciências sociais [1904], quando o tema ainda não lhe era um objeto específico de análise (Hübinger, 2009), chegando àqueles produzidos ou revisados na década final de sua vida, como Parlamento e governo numa Alemanha reconstruída [1918], Política como vocação [1919], A cidade [concebida no plano editorial de 1914 e publicada postumamente em 1921], Conceitos sociológicos fundamentais [1920], até as releituras sobre o tema nas quais o eminente sociólogo trabalhava nos difíceis meses que antecedem sua morte, nas incompletas conferências Allgemeine Staatslehre und Politik (Staatssoziologie), na Universidade de Munique, entre abril e maio de 1920, nas quais Weber planejava expor sua revisitada sociologia do Estado no âmbito de uma teoria geral da política e do Estado.4
Trata-se de uma releitura dos elementos centrais do conceito de Estado que Weber perseguiu ao longo de sua trajetória intelectual e política, buscando identificar questões cruciais, bem como a forma como elas foram sendo tratadas pelo autor em diferentes obras e contextos. Em certo sentido, o fio condutor dessa releitura parte dos textos do pré-guerra, recolhendo elementos e formulações anteriores que, em alguma medida, foram “deixadas de lado” em suas formulações finais e mais conhecidas da sua busca por uma sociologia do Estado. Como Weber reconhecia já em 1904, o conceito de Estado é um dos mais desafiadores, e os graves acontecimentos vividos nos anos finais de sua vida – profundamente marcados pela Primeira Guerra Mundial, levantes e revoluções socialistas, além de mudanças do regime político e da constituição na Alemanha – trataram de reforçar a importância da agenda, não sendo, portanto, por acaso que este tenha sido um dos temas primordiais que o ocuparam em sucessivos artigos, conferências e aulas em seus anos finais.
O segundo objetivo deste artigo consiste em apresentar uma avaliação crítica sobre possíveis permanências, incompletudes ou superações nas formulações weberianas sobre Estado. Embora seja certo que muito da obra weberiana permaneça atual e influente nos nossos dias, é pertinente que façamos as perguntas sobre continuidades, superações e incompletudes em seu edifício intelectual. Esse exercício, apesar de aparentemente petulante, é necessário. Contamos, para isso, com a licença metodológica oferecida pelo próprio Weber para quem “não é necessário ser um César para compreender a César” (ESv1) (Weber, 1992a, p. 4),5 além do fato de que a própria formulação de Weber sobre o assunto estava em continuada e incompleta reformulação.
A intenção aqui, nos limites de um artigo, é problematizar dois fundamentos associados à metodologia dos tipos ideais empregados na abordagem de Weber sobre o tema: i) o pressuposto metodológico da impossibilidade de definição do Estado por seus fins; e ii) a definição (a que denomino restrita) de Estado exclusivamente pelo seu meio típico. O argumento é o de que há falhas ou, pelo menos, seletividade limitadora na definição de Estado pelo meio típico, já que essa delimitação não incorpora outros meios igualmente típicos identificados pelo próprio Weber em outras obras e sumariamente se recusa a considerar fins – alguns desses fins que as próprias análises de Weber identificaram na formação dos Estados modernos, como buscaremos demonstrar. Ou seja, Weber sugere diferentes definições de Estado em passagens de suas obras que vão além da definição restrita do Estado como aquela organização de tipo institucional que monopolizou os meios de violência considerados legítimos. O método do tipo ideal, por assim dizer, aprisionou a interpretação weberiana de Estado num conceito restrito, que, apesar de elegante e de fácil compreensão, precisa ser superado.
Com o intuito de reinterpretar o conceito, ou melhor, os conceitos de Estado que se revelam em sua obra, também serão revisitados, ainda que brevemente, os conceitos de dominação e de burocracia que, juntos ao conceito de Estado, formam um tripé articulado para a compreensão do conceito de Estado moderno pelo qual Weber é mais conhecido. O procedimento metodológico dos tipos ideais e, especificamente, como Weber empregou a metodologia dos tipos ideais na construção e uso das categorias Estado, dominação e burocracia também serão objetos de consideração. O breve tratamento dos procedimentos metodológicos dos tipos ideais se faz necessário, considerando que, como destaca Cohn (1979, p. 71), seria impensável abordar a empreitada intelectual do autor sem a compreensão desse recurso que decorre necessariamente da orientação metodológica adotada por Weber “em tomar as ações e interesses individuais como unidades de análise”.
Em seu conjunto, buscamos não considerar os textos históricos, sociológicos, políticos ou metodológicos do autor como mundos apartados, nem mais ou nem menos meritórios entre si, mas como obras que podem ser colocadas lado a lado e consideradas criticamente em seus contextos, propósitos e limitações.6Bellamy (1994) e Cohn (1979) já haviam alertado para isso, e, mais recentemente, os diferentes textos introdutórios dos volumes que compõem a Max Weber Gesamtausgabe (MWG), como Baier, Lepsius, Mommsen e Schluchter (2001), Hübinger (2009) e Schluchter (2011), demonstram minuciosamente o entrelaçamento de aspectos políticos, acadêmicos e científicos que permeiam os esforços de Weber em diferentes agendas, em particular em sua incompleta teoria sociológica do Estado.
O terceiro objetivo, oriundo das instigantes provocações do competente corpo editorial da Revista Brasileira de Sociologia, consiste na apresentação de um conceito alternativo de Estado que busca incorporar tanto meios quanto fins característicos da atuação do Estado ao longo da história e que permanecem como atribuições marcantes da sua atuação contemporânea. Em alguma medida, procuro apresentar uma nova síntese conceitual que, ao mesmo tempo em que retoma as definições ampliadas de Estado de Weber, incorpora novas interpretações no campo das teorias contemporâneas do Estado.
Para cumprir seus objetivos, este artigo está organizado em quatro seções além desta. A próxima apresenta uma reconstituição a mais concisa possível dos argumentos de Weber para os conceitos mais difusos de Estado que aparecem principalmente, mas não só, em suas obras históricas e de afirmação metodológica do pré-guerra. Em alguns casos, menciono nessa seção obras do pós-guerra que são, em geral, frutos de conferências em que Weber utilizou obras e anotações de períodos anteriores. A seção seguinte apresenta o conceito mais restrito de Estado que emerge das suas reformulações do pós-guerra com a busca de afirmação da sua [inacabada] sociologia do Estado. A seção quatro aborda fundamentos do conceito de tipo ideal, ferramenta metodológica adotada por Weber na construção de suas categorias sociológicas de Estado, dominação e burocracia. Já o tópico seguinte procura oferecer um balanço sintético, mas não encerrado, de permanências, incompletudes ou superações nas formulações weberianas sobre Estado, momento em que ensaio um conceito alternativo de Estado que dialoga com Weber, mas que procura ir além de suas formulações sobre o tema.7
A configuração das noções abrangentes de Estado
Max Weber reconhecidamente aprofundou a análise histórica e sociológica sobre o Estado e a burocracia modernos, ocupando-se com esses temas, inicialmente, em suas obras do final do século XIX, especialmente naquelas sobre o Estado nacional e a política econômica alemã [1895] e sobre o declínio da cultura antiga [1896], bem como, posteriormente, no âmbito de sua interpretação do processo mais abrangente sobre a racionalização e desencantamento do mundo, fase na qual sobressaem as reflexões sobre os tipos de dominação, em particular a dominação burocrático-legal típica das organizações e sociedades modernas, tal como encontrado em Conceitos sociológicos fundamentais, no escopo do Economia e sociedade.8 A preocupação com uma sociologia do Estado e com uma definição sociológica do Estado aparece especialmente em suas formulações do pós-guerra e será abordada na seção seguinte.
Do ponto de vista de sua origem histórico-cultural, a leitura de Weber considera o moderno Estado racional, hábitat do moderno funcionário burocrata, como um fenômeno exclusivamente ocidental. Ao lado de outras formações exclusivas ao mundo ocidental como a ciência, a historiografia, a arte, a música racional, a arquitetura, as universidades, o funcionário especializado e o próprio capitalismo.
Chamo a atenção desde já que, nessa definição, os meios típicos racionais que definem o Estado são mais abrangentes: constituição, direito racionalmente ordenado, administração por regras e funcionários especializados integram essa definição de Estado como entidade política que emerge e se distingue no mundo ocidental. Comparado às formas estatais existentes em outras regiões do mundo, não há menção direta ao monopólio da violência, até mesmo porque esse meio era comum a praticamente todas as formas pré-modernas de Estado e impérios. A relevância do direito – leis, constituição, sistemas de leis e ordenamento jurídico, racionalização do processo, previsibilidade, cálculo dos procedimentos etc. – para a configuração do Estado (racional moderno) e para o capitalismo é apresentada por Weber em diferentes textos e conferências, destacadamente na Sociologia do direito,9 e mesmo em obras tardias, como em Esboço da história social e econômica universal, compilado postumamente a partir de anotações de suas conferências no inverno de 1919-1920 na Universidade de Munique.
As premissas jurídicas do Estado racional – não em termos de seu conteúdo, mas em termos de sua expressão formal – teriam se desdobrado a partir dos princípios rígidos do direito romano. Diferentemente da China antiga, onde teria se consolidado um corpo de funcionários com forte formação humanística, porém incapazes de encaminhar os assuntos políticos, administrativos e econômicos do Estado, no Ocidente teria se constituído um tipo particular de funcionário do Estado, forjado sob a tradição formalista do direito romano, do qual provém sua superioridade técnica de racionalização do processo quando comparado aos funcionários estatais de outros territórios. Como um produto da cidade-estado romana, o direito romano é visto como decisivo para a racionalização e a previsibilidade do processo, em muito superior a outras formas de formalismo mágico, encontrado em outras tradições de processos judiciais. A aliança entre o Estado e a jurisprudência formal, reunida de diferentes fontes (os títulos de renda, do direito germânico, a letra de câmbio do direito árabe, italiano, alemão e inglês, a hipoteca, em sua origem medieval e não antiga etc.) favorecia indiretamente a ascensão do capitalismo:
para os interessados no mercado de bens, a racionalização e a sistematização do direito significaram, em termos gerais [...], a calculabilidade crescente do funcionamento da justiça, uma das pré-condições mais importantes para as empresas [...] de tipo capitalista
(ESv2, p. 144).Estranhamente, a racionalização do processo, tão destacada por Weber em sua sociologia do direito e econômica, não foi assumida plenamente como um meio característico para compor sua conhecida definição sociológica do Estado moderno. Em “A ‘objetividade’ do conhecimento...” [1904], outro artigo marcante do período pré-guerra, no qual Weber está imbuído do propósito de afirmar as premissas individualistas, tanto na formulação das categorias para a compreensão quanto nas ações que estão na base das categorias e ações coletivas, ele apresenta a seguinte definição para a noção de Estado como sendo
uma infinidade de ações e sujeições humanas difusas e discretas, de relações reais e juridicamente ordenadas, singulares ou regularmente repetidas e unificadas por uma ideia: a crença em normas que se encontram efetivamente em vigor ou que deveriam estar, assim como em determinadas relações de domínio do homem pelo homem.
(Weber, 1986c, p. 115).Note-se que aqui a ênfase recai na crença em normas, portanto, na legitimidade de que o meio jurídico (e não a violência) dispõe como essencial ao reconhecimento da noção de Estado.10 Um pouco mais adiante, no mesmo artigo sobre “A ‘objetividade’...”, ao buscar precisar o conceito de interesses do Estado, essa noção mais abrangente e fluída de Estado volta a aparecer:
Mas o que vem complicar ainda mais a questão é que o ‘Estado’ [...] é para nós apenas uma expressão que envolve um enredamento obscuro de ideias de valor, às quais o reportamos nos casos particulares. Tais ideias de valor podem ser: a pura segurança militar relativamente ao exterior; a manutenção do predomínio de uma dinastia ou de determinadas classes no interior; o interesse pela manutenção e fortalecimento da unidade formal do Estado, que seja por ele próprio, quer para conservar determinados valores culturais objetivos e diferenciados entre si [...]; ou a transformação social do Estado no sentido de determinados ideais culturais, por sua vez muito variados. Enfim, mesmo a mera enumeração de tudo quanto está envolvido na expressão “interesses do Estado” [...] nos levaria demasiado longe.
(Weber, 1986c, p. 125, grifos do autor).Nesse período, no qual o conceito de Estado ainda não figurava como objeto sistemático de sua sociologia (Hübinger, 2009), encontramos esse entendimento mais fluido e dependente da crença nas normas legais, ou então desse enredamento de ideias de valor em torno a (difusos e múltiplos) interesses do Estado. Como se constata, o problema da multiplicidade dos diversos fins do Estado está colocado e nos levaria demasiado longe, para uma definição difícil; mas Weber, ao que parece, ainda não havia encontrado a chave metodológica e delimitadora para a afirmação do conceito restrito de Estado que se enunciará no pós-guerra.
Exploremos outras agendas mais abrangentes. No longo processo histórico de consolidação do Estado moderno, Weber situa o aparecimento dessa forma de Estado nos interstícios e contradições das políticas econômicas irracionais mercantilistas dos primórdios da era moderna, particularmente em como essas se desdobraram na Inglaterra a partir do final do século XIV. Embora a Inglaterra seja o berço tanto do mercantilismo quanto do capitalismo moderno, este não decorreu daquele. Para Weber, o núcleo do confronto entre o capitalismo irracional e o capitalismo racional teria ocorrido nas instâncias de direção do Banco da Inglaterra. O embate entre aventureiros capitalistas (moldados às práticas monopolistas e aventureiras do mercantilismo) versus homens de empresa puritanos que o dirigiam culmina com o predomínio destes últimos, essa “categoria racionalista de membros do Banco, que eram todos, direta ou indiretamente, de origem puritana ou estavam sob a influência do modo de ser puritano” (Weber, 1919-1920/1980, p. 167).11
É importante registrar que, apesar da importância histórica atribuída à gestão racional da moeda nacional, e tendo mesmo apresentado essa atribuição como característica do Estado moderno – por exemplo, no § 32 das Categorias sociológicas fundamentais da gestão econômica (1992b), em que asseverou que o “Estado moderno mantém a) sempre o monopólio da organização do sistema monetário” – estranhamente, Weber também não incorpora essa atribuição em sua conhecida definição sociológica do Estado moderno.
Seguindo sua análise histórica, constatamos que Weber destaca três pré-requisitos necessários para a consolidação de um Estado e uma burocracia racionais modernos. O primeiro consiste exatamente na necessidade do desenvolvimento de um sistema monetário avançado, de dupla utilidade, tanto para a organização e mediação dos negócios privados quanto para proporcionar os meios de recompensa racionais aos funcionários de um Estado que, cada vez mais, assenta sua organização em práticas rotineiras e continuadas. A administração financeira do Estado é um meio essencial igualmente destacado em seus textos históricos iniciais.12 O segundo consiste num aparelho tributário e fiscal capaz de dar sustentação à institucionalização do domínio estatal e que, como Weber muito bem salienta, é fundamental para estabelecer complexas relações de cobrança, isenções, mediação de interesses e distribuição de recursos e de poder entre e com as classes e estamentos. Cobrar tributos, na forma de produtos, tempo de trabalho ou em moeda, é, logicamente, essencial para qualquer formação estatal – no sentido de que não há Estado sem tributos.
O terceiro pré-requisito consiste na necessária separação dos funcionários dos meios materiais de dominação, aspecto considerado por Weber como fundador do Estado racional moderno na definição de Estado que aparece, por exemplo, na conferência Política como vocação [1919]. Não precisamos nos estender sobre esse ponto, já ressaltado por outros (Bianchi, 2014; Dusza, 1989), central para o conceito de Estado como empresa (Betrieb), apenas indicar que, desses três requisitos, somente a formação da propriedade estatal dos meios de administração separada da propriedade privada dos dirigentes, funcionários e dos demais cidadãos é considerada um meio essencial para a configuração do Estado moderno em sua definição sociológica.
Em consonância com esses pré-requisitos históricos de constituição do Estado moderno, Weber indica outras agendas historicamente marcantes da atuação dos Estados, que, adotando-se certa atribuição de valores, como propõe o próprio Weber, também poderiam ser consideradas típicas, como ficará mais evidente adiante quando tratarmos a questão da construção do tipo ideal. Destaquemos brevemente três dessas outras agendas. Primeiro, a questão de garantir a integridade territorial especialmente nas regiões de fronteira e, ainda, administrar a ocupação, o uso e a propriedade fundiária (rural e urbana) são atribuições apontadas por Weber (1895/1986a, 1896/1986b) como essenciais dos Estados e impérios. A política fundiária – ou a regulação do acesso e uso da terra ou, mais amplamente, da natureza (Jessop, 2002) – é, desde sempre, fundamental para afirmar a dominação do território, sendo praticamente impensável um Estado que não se ocupe com esse tipo de atribuição.
O segundo exemplo pode ser extraído do parágrafo inicial com que Weber (1999, 2013) abre sua Sociologia da dominação (ESv2, p. 187; cap. 4 da MWG, I, Vol. 23 – Escritos inacabados de 1919-1920), no qual destaca o papel do controle das línguas, dos dialetos e do idioma oficial, portanto a política de idioma (ou, de modo mais abrangente, de imposição cultural) como elemento fundamental para o exercício da dominação. A administração política dos idiomas e dos dialetos – em geral, a imposição de um idioma oficial – é outra agenda basilar para o exercício do poder de mando, ainda mais se considerarmos que o exercício da dominação para Weber depende de algum nível de aceitação por parte dos dominados das ordens proferidas pelos dominadores. Isso é ainda mais verdadeiro para a dominação burocrático-legal, pois todo o seu edifício da racionalização e dominação ocorre sob a forma preferencialmente escrita, na forma de leis, códigos e procedimentos, escritos, lidos, compreendidos e obedecidos com base num idioma comum. Ainda que obviamente sirva para muitos outros fins, o idioma é um meio essencial para a dominação, não sendo à toa que Weber inicie seu tratado sobre o tema com essa questão. Como exercer a dominação legítima e continuada se os dominados não compreenderem as ordens enunciadas?
O terceiro exemplo está relacionado ao papel dos Estados na administração e na regulação da força de trabalho, questão central identificada por Weber já no seu estudo de 1896 sobre o declínio da cultura antiga, uma cultura que era eminentemente urbana, escravista e que proporcionava uma progressiva divisão de trabalho marcada pela dependência do trabalho escravo. Como ressalta Weber (1986b, p. 41), a “guerra antiga era [...] caça aos escravos”, conduzida com o objetivo de levar trabalhadores escravos aos mercados, em fluxo contínuo e a preços baixos.13 O tema da administração e da regulação da força de trabalho é retomado em outros trabalhos de Weber, a exemplo de seu estudo sobre o Estado alemão e a política econômica, no qual o componente racial aparece de modo marcante, mas que, por limitações óbvias, não é possível tratar aqui. Fica apenas o registro dessa outra atribuição que muito bem poderia ser considerada típica e que mobiliza diferentes aparatos do Estado, incluindo grande parte do aparato repressivo. Nessa, como em outras agendas, mudam-se os meios (violência, guerra, ocupação, legislações, regulações, fiscalização, política social etc.), mas a finalidade geral mantém-se. Ou, melhor, meios e fins combinam-se a depender dos contextos e correlações de forças. Qual Estado poderia prescindir da regulação da força de trabalho, se definir as formas de sujeição do trabalho está na essência dos aparatos de dominação?
Numa síntese não exaustiva, outras agendas relevantes encontradas nas obras de Weber também sobressaem como atribuições que poderiam ser consideradas típicas dos Estados modernos. Atividades que, como escreve Weber, não podem ser abandonadas ao comércio livre, tais como a formação e administração de estoques e o provimento de alimentos (especialmente de cereais) para alimentar as cidades (1986b); a dotação de múltiplas infraestruturas, destacadamente de segurança (fortes, quartéis, prisões etc.), de transporte de pessoas e de produtos (estradas, portos) e também de segurança alimentar (armazéns, aquedutos) (Weber, 1986a); a política de educação superior e científica também tratadas por ele;14 a política social e a política de assistência, estabelecida, segundo Weber (1980, p. 163), para “assegurar o sustento necessário” desde antes do advento do mercantilismo; ou a própria política econômica racional, própria dos Estados nacionais modernos ocidentais, conforme apresentada em alguns de seus trabalhos de história e sociologia econômica.
Pouco antes da Primeira Guerra Mundial, Weber trabalhou em um conceito de Estado que ficou em segundo plano em relação ao conceito de dominação (Hübinger, 2009). Em Comunidades políticas, texto do imediato pré-guerra [1910-1912], pode-se identificar o início da guinada sociológica e a incorporação mais direta do tema da violência e da construção dos aparatos de violência do Estado moderno. Contudo, sua formulação neste texto é feita ainda em estreita relação com as forças sociais orientadas à construção da paz. Nesse texto, destaque-se que Weber elenca as funções fundamentais do Estado como sendo:
o estabelecimento do direito legítimo (legislação); a proteção da segurança pessoal e da ordem pública (polícia); a proteção dos direitos adquiridos (justiça); o cultivo de interesses higiênicos, pedagógicos, político-sociais e outros interesses culturais (os diversos ramos da administração) e; por fim e sobretudo, a proteção organizada por meios violentos contra inimigos externos (administração militar)
(Weber, 1910-1912/ ESv2, p. 158).15Aqui já se constata que “a comunidade política monopoliza a aplicação legítima da força para seu aparato coativo, transformando-se, paulatinamente, numa instituição protetora de direitos” (ESv2, p. 160). Como a perspectiva da paz ainda estava no horizonte, no processo de configuração dos Estados como instituição protetora dos direitos – mais um fim bastante relevante para o jurista Weber, “abandonado” em suas formulações posteriores – é fundamental a aliança que se forma nos Estados com os interesses religiosos e econômicos (especialmente as burguesias urbanas) interessadas na paz e na instauração das épocas de paz crônica (ESv2, p. 160-1).
O conceito sociológico e restrito de Estado: guerra, dominação e Estado moderno como o monopólio da violência considerada legítima
Contudo, a formulação de Estado de Weber muda substancialmente no curso da Grande Guerra. Progressivamente, o conceito de Estado moderno vai tomando contornos mais nítidos. Transita da noção difusa de Estado dependente da crença nas normas legais, ou então do enredamento de ideias de valor sobre o que se considera interesse do Estado, encontrada em seus textos e conferências até aproximadamente 1910; passa pelo entendimento do Estado como um grupo social (Staat als soziale Gruppe) no âmbito de comunidades políticas de caráter nacional competidoras, do início do período moderno, marcadas pelas experiências de guerras e violência, mas que ainda aspiram a paz e a proteção de direitos, do período do imediato pré-guerra (1910-1914); e chega a um conceito mais direto de Estado moderno como um tipo especial de associação política no âmbito de sua teoria da dominação. O Estado moderno passa a ser compreendido, então, como uma ordem política (Staat als politische Ordnung) com funções como moderno Estado de massa na forma de um Estado de poder nacional. Os motivos para essas mudanças, argumenta um dos editores da MWG, estão associados especialmente à experiência existencial da guerra, ao compromisso intelectual com a reorganização constitucional da Alemanha após a guerra e à busca de um tratamento científico da política moderna exigida pelo contexto (Hübinger, 2009).
É o Estado moderno como aparato institucional de dominação que ocupa progressivamente sua atenção. Nessa nova fase, Weber passa a afirmar um procedimento metodológico bastante restritivo para a formulação do conceito de Estado moderno. Embora seja um consenso que o conceito de Estado no âmbito de uma teoria e sociologia do Estado seja uma formulação incompleta, o conceito sintético que emerge de seus escritos do pós-guerra, especialmente em Conceitos sociológicos fundamentais [1919-1920] e Política como vocação [1919], é, certamente, o mais difundido. Como já salientado, esses dois textos são retomados em seu curso final, no qual pretendia estabelecer sua sociologia do Estado.
Weber enuncia sua definição sociológica do Estado logo nos parágrafos iniciais de sua conferência Política como vocação [1919]. Esse conceito aparece logo após o conferencista adotar uma definição também concisa de política, que passa a ser definida simplesmente como a direção ou influência sobre a direção de um Estado. Se o Estado está, portanto, no centro do conceito de política, então, o que é um Estado? Para chegar ao seu conceito de Estado moderno, Weber adota um duplo procedimento metodológico. De um lado, afirma que, sociologicamente, o Estado não se deixa definir por seus fins, afinal, quase que
não existe uma tarefa que uma associação política qualquer não tenha se ocupado alguma vez, de outro lado, não é possível referir tarefas das quais se possa dizer que tenham sempre sido atribuídas com exclusividade aos [...] Estados, ou [...] aos precursores do Estado moderno
(Weber, 1919/1993, p. 56).Essa primeira premissa sociológica de que não é possível definir os Estados pelos seus fins é arrematada com a segunda de que “sociologicamente o Estado moderno não se deixa definir a não ser pelo meio específico que lhe é peculiar: o uso da coação física” (Weber, 1993, p. 56). O Estado contemporâneo, portanto, é aquela “comunidade humana que, dentro dos limites de um determinado território [...] reivindica o monopólio do uso legítimo da violência física” (p. 56).16
No § 17 dos Conceitos sociológicos fundamentais, Weber apresenta o conceito de Estado como sendo aquela “empresa com caráter de instituição política [...] quando e na medida em que seu quadro administrativo reivindica com êxito o monopólio legítimo da coação física para realizar as ordens vigentes” (ESv1, p. 34).17 Weber, como esperamos ter indicado na seção anterior, tem ciência de inúmeros fins a que os Estados têm orientado suas ações e, no § 17, ele retoma alguns:
Desde os cuidados do abastecimento de alimentos até a proteção das artes não existe nenhum fim que as associações políticas não tenham perseguido em algum tempo, pelo menos ocasionalmente, e desde a garantia da segurança pessoal até a jurisdição, nenhum que tenham perseguido todas as associações.
(ESv1, p. 34).A racionalização do processo, a administração da moeda, as finanças ou os tributos públicos, o monopólio da regulação da terra e do território, a imposição do idioma apropriado à dominação, a dotação das infraestruturas fundamentais, a política social, a busca da paz ou a garantia de direitos – nenhum desses fins é incorporado à sua definição de Estado. Se esses múltiplos fins e meios poderiam nos levar demasiado longe, agora se impõem o apelo, a ameaça e a aplicação do monopólio legítimo da violência como a essência do Estado moderno, a sua última ratio e, algumas vezes, primeira razão de existir.
Embora Weber reconheça que a coação não é o meio normal ou único do Estado, este seria o seu meio específico, não sendo claro quais os critérios adotados para essa especificidade, já que a coação é fenômeno difuso e generalizado nas sociedades, comunidades e grupos, praticamente atemporal e que também goza de certa legitimidade (inclusive nos três tipos puros de dominação). Além disso, a própria ideia de legitimidade da violência é problemática.18
O fato é que a definição concisa e sociológica de Estado moderno legada por Weber, largamente citada e aceita com pequenas modificações até hoje, é demasiado restritiva e tem gerado incompreensões sobre as reais atribuições que recaem sobre os Estados (modernos e contemporâneos). Os Estados, em toda parte, ocupam-se de agendas como moeda, natureza, trabalho, direitos, território, fluxos migratórios, infraestruturas, bem-estar, saúde, educação, pesquisa científica e tantas outras não apenas porque “extrapolariam” indevidamente suas competências ou o seu meio típico. Essa visão é demasiado limitadora e impede os avanços que precisamos fazer na reflexão sobre os Estados. Além disso, é curioso que Weber tenha mencionado outros meios até mais específicos ao Estado moderno, mas tenha se fixado num que é comum a outras formas de associação política.
Nessa definição, o Estado moderno é uma associação política (politischer Verband) de dominação do tipo institucional que, além do monopólio da coação legítima, detém um território (sem dar muito destaque a este meio basilar) e que também concentrou os meios de administração (Estado como empresa). Trata-se de uma relação de dominação de homens sobre homens, na qual os dominadores reclamam continuamente obediência à sua autoridade junto aos dominados. A dominação, um tipo especial de poder, foi definida por Weber como a “probabilidade de encontrar obediência para ordens específicas (ou todas) dentro de determinado grupo de pessoas” (ESv1, p. 139).
Nenhum Estado poderia sobreviver se deixasse de exigir essa relação de dominação continuada. Para Weber, em outra escolha metodológica crítica, os segredos da dominação só podem ser desvendados quando compreendidos os motivos internos que a justificam, a serem observados do ponto de vista dos dominados e não da perspectiva das motivações e estratégias dos dominadores. Note-se que, embora seja uma associação política orientada à dominação, a dominação não é compreendida por Weber como um conjunto de ações e estratégias dos dominadores para conquistá-la, mantê-la ou ampliá-la. A dominação, no sentido weberiano, só ocorre com o consentimento, e sua compreensão deve ser buscada na legitimação por parte dos dominados. Em seu conhecido esquema de análise, o autor aponta, a princípio, três fundamentos internos da legitimidade por parte dos dominados, correspondentes aos três tipos puros de dominação legítima.19
Tipos ideais aplicados aos Estados modernos, dominação e burocracia
Para melhor compreendermos as razões dessas escolhas metodológicas críticas operadas por Weber, com especial relevância para o conceito de Estado moderno, é preciso indicar brevemente alguns fundamentos da concepção weberiana dos tipos ideais. É preciso enfatizar que o interesse aqui não é apresentar uma análise exaustiva sobre os tipos ideais, algo já tratado por literatura competente, mas apenas registrar alguns fundamentos que nos ajudem a compreender as razões metodológicas que justificam essa definição sociológica de Estado.
Seguindo a interpretação de Cohn (1979), Weber parte da decisão metodológica de tomar as ações e interesses individuais como unidades válidas de análise – escolha que estabelece um nexo lógico e necessário com a identificação de tipos.20 Se são as ações, motivações e interesses individuais que importam, essa tremenda multiplicidade só pode ser captada através da observação empírica de certas regularidades. A compreensão dessa multiplicidade em Weber envolve, ainda segundo Cohn, dois recursos analíticos: o acesso a um conhecimento “nomológico”, referente às regularidades observáveis de condutas dos agentes, e a construção de tipos a partir dessas operações.
Essas regularidades, contudo, foram compreendidas não como leis gerais (a exemplo do que pretendiam correntes da economia com as quais Weber dialogava), mas como tipos ideais identificados pelo cientista em diversas categorias sociais (racionalidades, dominação, religiões etc.). Como argumenta Tormin (2016), os tipos ideais fornecem esse “porto-seguro” para as ciências culturais, no sentido de que sua pretensão epistêmica é mais reduzida que a de uma lei geral, já que é apenas uma “ferramenta que permite uma abordagem simplificada – redutora de complexidade – do curso empírico, que não pretende ser válida no sentido de descrever a realidade”.
Outro aspecto, de especial importância, é que os tipos ideais são instrumentos metodológicos, categorias construídas pelo cientista social mediante
a acentuação unilateral de um ou vários pontos de vista, e mediante o encadeamento de grande quantidade de fenômenos isoladamente dados, difusos e discretos [...] e que se ordenam segundo os pontos de vista unilateralmente acentuados, a fim de formar um quadro homogêneo de pensamento. O conhecimento científico-cultural encontra-se preso a premissas subjetivas.
(Weber, 1986c, p. 104-106)Portanto, os tipos ideais apresentam certa seletividade, preferências ou ênfases do pesquisador sobre determinadas variáveis, são ideias de valor que conferem significação à realidade. Assim,
É indubitável que as ideias de valor são “subjetivas”. Entre o interesse pela evolução dos maiores fenômenos imagináveis, que durante largas épocas foram e continuam a ser comuns a uma nação ou a toda a humanidade, existe uma escala infinita de “significações”, cujos graus se apresentarão para cada um de nós, numa ordem diferente
(Weber, 1986c, p. 98).21Como indica McKinney (1969), os tipos ideais construídos pelos cientistas sociais são resultantes de reduções por meio da conceituação operada intencionalmente diante da série infindável de fenômenos que ocorrem no tempo e no espaço. Compreender é introduzir ordem em nossa experiência desses fenômenos. Isso requer que os fenômenos sejam tratados como se fossem idênticos, recorrentes e gerais. Para alcançar a redução conceitual, o cientista social passa por cima ou ignora o único, o estranho e o não recorrente. Todos os conceitos gerados no processo de tipificação são generalizações e todas as generalizações implicam abstração e redução, sintetiza McKinney (p. 3).22
É o que vimos buscando demonstrar no conceito típico ideal de Estado: entre a grande quantidade de fenômenos possivelmente destacáveis, Weber operou uma seleção, priorizando alguns meios (coerção legítima, território, separação dos meios de administração), deixando outros de lado (administração da moeda, imposição do idioma, sistema tributário, o sistema jurídico-legal, a racionalização do processo etc.). Além disso, os tipos são instrumentos no processo de pesquisa, são funcionais, e não devem ser confundidos imediatamente com a realidade, nem podem ser tomados como uma meta ideal a ser alcançada pela realidade (Tormin, 2016; McKinney, 1969; Kalberg, 2016, entre outros).23 Os tipos são construções ideais e não podem ser confundidos com o mundo real; na verdade, eles não existem realmente, são ferramentas conceituais construídas para que se possa avaliar, em cada caso particular, a proximidade ou afastamento entre a realidade e o quadro ideal. Weber sabe que a relação entre tipos ideias e realidade é tensa, e quem utiliza essa ferramenta está sempre sujeito a borrar essas fronteiras.
Diante desse dilema, Weber destaca o dever elementar do autocontrole científico para realizar a distinção entre a relação que compara a realidade com tipos ideais em sentido sociológico e a apreciação avaliadora dessa realidade a partir de ideais, o uso normativo dos tipos ideais. Weber recusa enfaticamente a segunda prática; condena, portanto, o uso dos tipos ideais como ferramenta avaliadora da realidade, como uma métrica ideal a ser alcançada diante de uma realidade imperfeita e distante do ideal (Weber, 1986c, p. 106 et seq.). Assim, a questão da neutralidade axiológica coloca-se como desafio crucial para o cientista (Psathas, 2005; Pereira, 2013). Como salienta Psathas (2005), assume-se que o pesquisador tem um objetivo e um conjunto de interesses que o conduziram na formulação de um projeto, de um objetivo ou de um conjunto de objetivos de pesquisa que motivam ou guiam seu estudo em importantes e inumeráveis modos. Esses objetivos e interesses do pesquisador devem, contudo, ser deixados “em suspenso” na análise das informações e observações sobre o objeto, para que a análise não seja indevidamente influenciada por essas motivações subjetivas.
Como tal, como sínteses de atributos selecionados no fluxo de acontecimentos pelo cientista com base em procedimentos metodológicos que buscam identificar certas regularidades nomológicas, os tipos ideais podem ser construídos para todas as categorias sociais coletivas (dominação, Estado, igrejas, religiões, seitas, individualismo, imperialismo, feudalismo, nacionalismo, capitalismo, liberalismo, racionalidade, socialização, subordinação, classe, castas, socialismo etc.) e cumprem um papel também de facilitadores comunicacionais para expressar essas noções, de outro modo, vagas e dispersivas. Considerando a natureza discursiva do conhecimento, destacada por Weber, os tipos ideais funcionam como uma espécie de taquigrafia conceitual, oferecendo uma terminologia comum aceita e compreensível sobre realidades distintas e complexas entre interlocutores e seus sistemas plurais de valor (Weber, 1986c, p. 109).
Por fim, mas certamente não o último, os tipos ideais não buscam emoldurar todas as formas empiricamente verificáveis de qualquer fenômeno social que pretendam descrever. A sociologia não é, portanto, um catálogo de infindáveis tipos ideais. Além disso, como já ressaltado, os tipos ideais raramente são verificáveis no mundo real em estado puro, na verdade, no mundo real, as formações sociais combinam variavelmente características encontradas nos tipos. O mesmo fenômeno histórico, exemplifica Weber, “pode ter, numa parte de seus componentes, caráter ‘feudal’, noutra ‘patrimonial’, numa terceira ‘burocrático’ e, numa quarta, ‘carismático’” (ESv1, p. 12). As possibilidades são múltiplas, sendo possível a construção de tipos híbridos delineados a partir dos tipos puros. A realidade segue sendo, portanto, não ideal e não pura, em muitos sentidos, híbrida e mesmo contraditória, e a tarefa da Sociologia pode ser precisamente ir além da construção de tipos ideais, ainda que siga se utilizando dos tipos ideais.24
Não é preciso insistir na importância dos tipos na construção de diversas categorias sociais por ele adotadas e no sucesso que tal ferramenta encontrou em diversas áreas do conhecimento. Para o conceito de Estado e de Estado moderno, em especial, o uso do ferramental metodológico do tipo ideal foi decisivo tanto para a definição em si quanto para o entendimento do Estado moderno no contexto de um tipo especial de dominação – a dominação burocrático-legal – e para a própria compreensão do funcionamento real dos Estados modernos, cujas burocracias são os componentes essenciais a conduzir os assuntos de interesse das sociedades modernas de massa.
Cabe aqui apenas o registro de que Weber, em sua Sociologia da dominação, considera o tipo de dominação burocrático-legal como o “mais importante na vida cotidiana” (ESv1, p. 144). Isto porque os assuntos do Estado moderno devem ser conduzidos não por discursos no parlamento ou por pronunciamentos esporádicos dos monarcas ou presidentes, mas sim, necessariamente, pela rotina administrativa que só o quadro de administração burocrática pode organizar e operar. Por detrás do biombo formado pelas aparições públicas de figuras políticas do Estado, agem contínua e rotineiramente os burocratas. “São estes que tomam as decisões sobre todos os nossos problemas e necessidades diários” (Weber, 1973, p. 16). Mesmo assim, também a burocracia acabou sendo desconsiderada como um meio constitutivo específico em sua definição sociológica do Estado moderno.
Continuidades, relevâncias, insuficiências: Weber e o pós-Weber
A obra de Max Weber seguirá, por inúmeras razões, relevante para se enfrentar temas primordiais da multifacetada agenda que envolve Estados, burocracia, parlamentos, governos e temas adjacentes. Sem a menor pretensão de esgotar o assunto, seguem relevantes desde algumas de suas premissas metodológicas para a construção de tipos ideais (como o reconhecimento dos valores individuais que moldam a formulação dos tipos) e o autocontrole científico recomendado para evitar a profissão de fé e a razão avaliadora e normativa no uso dos tipos ideais para moldar a realidade. Mesmo suas polêmicas considerações de natureza normativa podem ser úteis para balizar o debate, como, por exemplo, nos difíceis debates sobre o papel do parlamento como contrapeso ao Executivo, sobre a liderança política ou, ainda, a sua crítica às distorções geradas pelos excessos da autonomização da burocracia. Se a crítica a Otto von Bismarck pode ser interpretada como um alerta ainda atual às distorções provocadas pela liderança carismática autoritária, a sua crítica aos excessos do burocratismo também segue relevante. A ocupação por burocratas de posições de liderança política e o corporativismo voraz de certas categorias seguem sendo fatos sociais demasiado consistentes para serem desconsiderados.
Por outro lado, a análise da obra de Weber revela insuficiências consideráveis. Trataremos de indicar brevemente duas. A primeira diz respeito à formulação e ao uso dos tipos ideais, que, embora reconhecidamente úteis, precisam ser bem avaliados em seus fundamentos internos e também no seu uso. Isso porque a construção de tipos ideais é uma estratégia metodológica que tende a engessar categorias em blocos separados: o burocrata, o político, o empresário, o patrimonialismo, o racional e assim por diante. Cada tipo sendo concebido com seu ethos próprio e exclusivo, sua racionalidade e seu padrão único de comportamentos. Mesmo como método, devemos estar cientes de que diversos aspectos essenciais das realidades retratadas pelos tipos ideais são encobertos e, na prática, as ações e as racionalidades, inclusive as não típicas e encobertas, costumam combinar, de modo não linear e dialético, elementos de distintos tipos ideais. Como revela a literatura que aborda a burocracia de nível médio ou de nível de rua, em qualquer repartição é possível encontrar tipos que assumem comportamentos distintos em diferentes circunstâncias, como ser burocrata, ativista ou reativo a determinados assuntos, republicano ou patrimonialista com determinadas clientelas ou gerencial em outras. Há uma sociologia política dos híbridos a ser estabelecida, ofuscada pela quase onipresença dos tipos ideais. Ainda sobre os tipos ideais, é necessário prestarmos mais atenção em alguns valores que Weber atribuiu em suas formulações, como, por exemplo, ao pressupor uma racionalidade superior do empresário privado ou ao conferir o caráter do monopólio da violência considerada legítima como fundamento do Estado. Quando e quão racionais são os empresários e quando e quão legítimas são as violências praticadas e os meios utilizados pelos Estados são algumas das questões cruciais que seguem em aberto. Simplesmente não são dados da realidade, mas apenas construtos ideais indelevelmente marcados por valores do cientista e que carecem de rigoroso escrutínio.
Por fim, como temos argumentado, a definição weberiana de Estado pode e precisa ser reconsiderada. Os dois pressupostos metodológicos utilizados para definir o Estado moderno exclusivamente por seus meios característicos e a sua recusa em considerar os fins almejados nos diferentes contextos históricos deixaram um longo rastro de simplificações perigosas. Ainda mais que, como procuramos demonstrar, Weber apontou outros meios e também fins relevantes da ação dos Estados, e este assunto não lhe era, portanto, estranho, antes pelo contrário. Naturalmente, e isso precisa ser enfatizado, Weber não é, em hipótese alguma, responsável pela recepção e uso de suas formulações, mas o legado de interpretações contemporâneas do Estado formuladas com base nessa definição restrita tem gerado concepções de um Estado mínimo e essencialmente repressor, punitivo, controlador, auditor e julgador, com poucos aparatos, essencialmente orientado para o exercício do monopólio da violência imposta como legítima num território. Insisto: embora Weber não possa ser responsabilizado pelos erros de seus leitores e intérpretes posteriores, esse legado é suficientemente impactante para justificar a reabertura do debate sobre o tema. A fórmula de Weber, embora elegante, tem se revelado perigosa em seus usos como empresa de dominação.
A própria reflexão sobre o Estado com base numa rígida separação entre meios e fins, administração e política precisa ser superada. Pensar em meios, de um lado, e fins, de outro, é um artificialismo em diversos sentidos. Meios e fins, assim como administração e política, mesclam-se. É preciso repensar a ação (socio)estatal com base em outras categorias que, desde o princípio, considerem as interações entre meios e fins, tal como permitem as noções e conceitos de agendas, campos ou políticas públicas que historicamente têm exigido a atuação dos Estados em suas múltiplas formas. Como procuramos ressaltar, Weber apresentou algumas dessas agendas cruciais, que podem ser consideradas típicas dos Estados: administração do território e política fundiária; política de idiomas; administração financeira e da moeda; tributos e fundos públicos; infraestruturas; políticas de bem-estar; garantia de direitos; entre outras. Sobre esse aspecto, é preciso dirimir outra confusão: mesmo que outras formas institucionais (como empresas privadas, organizações da sociedade, organismos internacionais etc.) desempenhem atividades em algumas dessas agendas (como na educação ou na saúde, por exemplo) e que, portanto, os Estados não sejam agentes exclusivos em algumas dessas agendas, isso não significa que a atuação dos Estados, mesmo nessas agendas compartilhadas, seja menos relevante ou menos necessária. Essa confusão precisa ser desfeita: não exclusividade não significa irrelevância nem a automática retirada do Estado. Nesse sentido, não encontramos razão para recusar a reflexão que também incorpore as agendas com que os Estados têm historicamente se ocupado. Aquelas que Weber detectou e outras que a literatura contemporânea tem revelado.
Assim, com base numa razoável revisão da literatura sobre Estado contemporâneo (Acco, 2009), temos definido o Estado contemporâneo como um conjunto (razoavelmente) articulado de instituições, sistemas e subsistemas, de natureza política, econômica, jurídico-legal e organizacional que mobiliza instrumentos e recursos (políticos, econômicos, humanos, coercitivos, jurídicos, tecnológicos, administrativos e cognitivos) na forma de políticas públicas, constituídas em complexas interações com a sociedade, especialmente com seus segmentos sociais mais organizados, com vistas ao alcance de objetivos diversos, conflituosos e politicamente em disputa. Atuando no âmbito de um determinado território nacional e em interação com outros Estados no sistema interestatal, os Estados nacionais, suas políticas, seus aparatos institucionais, organizacionais e jurídicos e seus instrumentos e recursos, historicamente, têm se dirigido ao alcance de objetivos (mais ou menos explícitos e sempre altamente disputados) em cinco macrodimensões fundamentais da vida das sociedades, em relação i) ao bem-estar, ao mundo da vida e aos bens comuns; ii) à economia; iii) à política; iv) às dinâmicas, sistemas e subsistemas setoriais; e v) às suas próprias estruturas e imperativos organizacionais, jurídico-legais, institucionais e de poder. Em termos mais específicos, sem a pretensão de esgotar o debate, essas macrodimensões desdobram-se em pelo menos dezesseis grandes agendas razoavelmente comuns aos Estados nas sociedades contemporâneas: i) o Estado como base primordial para a relativa coesão social, política, cultural e ideológica dos povos; ii) o complexo segurança, violência considerada legítima e integridade territorial; iii) diplomacia, representação, negociação e cooperação internacional; iv) gestão da moeda, do câmbio, do sistema financeiro e dos fluxos econômicos; v) provimento de infraestruturas diversas; vi) política fiscal e tributária, composição dos fundos, gestão orçamentária e distributiva; vii) sistema de leis, segurança jurídica e administração da justiça; viii) garantia dos contratos, direitos de propriedade (inclusive intelectual), condições de concorrência; ix) regulação das relações de trabalho e mediação do mundo do trabalho; x) direitos de cidadania, diversidade, identidades e aparatos de bem-estar (envolvendo amplas agendas de saúde, educação, assistência, comodidades urbanas etc.); xi) conhecimentos, inovação, ciência e tecnologia; xii) políticas econômicas diversas (estabilidade, crescimento, políticas setoriais); xiii) regulação do acesso à natureza; xiv) agenda de desenvolvimento econômico e social (especialmente em contextos de crises); xv) informações, planejamento e gestão de instituições, políticas e programas; e xvi) democratização da sociedade, do Estado e dos organismos internacionais.
Como temos procurado demonstrar (Acco, 2009), os Estados nacionais, suas políticas, seus aparatos institucionais, organizacionais e seus instrumentos e recursos, historicamente, têm se dirigido ao alcance de objetivos politicamente disputados em agendas e atribuições cruciais nas quais, por uma série de razões, não podem ser facilmente substituídos por outros agentes, sejam empresas ou corporações privadas, organismos internacionais, organizações da sociedade civil ou mesmo entes federativos subnacionais. Apenas para exemplificar a regra numa agenda: dizer que os Estados estão historicamente envolvidos com a agenda de democratização das sociedades obviamente não significa dizer que todos os Estados sempre agem nessa direção, mas que essa agenda está inscrita em reiteradas disputas políticas com forças que agem no sentido de formas de relações e instituições autoritárias. Os Estados são arenas decisórias para as quais convergem diversas disputas sobre agendas socialmente relevantes. Os Estados são, nesse sentido, relações sociais em disputa. As agendas, como tenho procurado argumentar, são continuadas, persistentes; os resultados das disputas políticas e as expressões institucionais assumidas nos diferentes contextos históricos e geográficos não.
Reconhecer que os Estados desempenham atribuições historicamente recorrentes, por uma série de razões necessárias, nesses termos, estruturais e que essas atribuições seguem sendo, em muitos aspectos, indispensáveis numa série de agendas cruciais para as sociedades também significa reconhecer que os Estados não podem ser simplesmente retirados do jogo, ainda mais usando o artifício da tesoura conceitual-normativa autoritária que corta exatamente as substâncias e aquilo que precisa ser devidamente compreendido. Se os Estados historicamente lidam persistentemente com temas aparentemente singelos, mas complexos em suas economias políticas, e absolutamente relevantes para as diferentes sociedades, como a dotação de água, alimentos, meios de transporte, habitação, educação, saúde, cuidados com idosos e crianças, gestão da moeda, governança e sustentabilidade dos bens comuns, relações internacionais, infraestruturas, acesso a bens e serviços culturais, relações trabalhistas, renda, justiça, garantia dos contratos, ciência e outras tantas agendas, não é por mero capricho voluntarista de Estados não racionais, como se existisse uma série de caprichos estranhamente constatada em boa parte do planeta. Trata-se, antes, de demandas reais das sociedades que, por uma série de razões, recaem sobre os Estados e que, portanto, são atribuições essenciais que devem ser consideradas tão ou mais importantes quanto as associadas aos meios coercitivos dos Estados. Para isso, é preciso retomar Weber, mas seguirmos além de suas vigorosas contribuições.
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Notas
Autor notes