FUTUROS PASSADOS

Um programa forte para a sociologia política no Brasil

A strong program for political sociology in Brazil

Lucas Correia Carvalho
Universidade Federal Fluminense, Brasil
Aline Marinho Lopes
Universidade Federal Fluminense, Brasil
Maria Isaura Pereira de Queiroz

Um programa forte para a sociologia política no Brasil

Revista Brasileira de Sociologia, vol. 10, núm. 25, pp. 219-241, 2022

Sociedade Brasileira de Sociologia

Recepção: 20 Setembro 2022

Aprovação: 26 Setembro 2022

RESUMO: O texto discute os principais tópicos expostos por Maria Isaura Pereira de Queiroz no texto “Contribuição para o estudo da sociologia política no Brasil”, apresentado no I Congresso Brasileiro de Sociologia, realizado na cidade de São Paulo, em 1954. Argumentamos que na agenda de pesquisas proposta neste texto a socióloga expôs a radicalidade analítica de investigações que partissem da base social da política, formada historicamente pela combinação de mandonismo local, controle territorial e violência. “Contribuição” serve também como advertência a nós cientistas sociais que enfrentamos hoje – e novamente - o desafio de compreender os percalços da democracia no Brasil.

Palavras-chave: sociologia política, pensamento social no Brasil, Maria Isaura Pereira de Queiroz.

ABSTRACT: This text discusses the main topics addressed by Maria Isaura Pereira de Queiroz in her work “Contribution to the study of political sociology in Brazil”, presented at the I Brazilian Congress of Sociology, held in the city of São Paulo, in 1954. We argue that the research agenda proposed in this text, she claimed the analytical radicality of investigations that would draw on the social base of politics, historically formed by the combination of local bossiness, territorial control and violence. “Contribution” also serves as a warning for us, social scientists who face today – and again – the challenge of understanding the mishaps of democracy in Brazil.

Keyword: political sociology, history of social sciences in Brazil, Maria Isaura Pereira de Queiroz.

De forma muito oportuna, a presente edição da Revista Brasileira de Sociologia republica um dos textos fundamentais da sociologia brasileira. Trata-se de “Contribuição para o estudo da sociologia política no Brasil”, de Maria Isaura Pereira de Queiroz, apresentado no I Congresso Brasileiro de Sociologia, realizado na cidade de São Paulo entre os dias 21 e 27 de junho de 1954. Nos Anais do Congresso, redigido por Antonio Candido, Florestan Fernandes e Oracy Nogueira, nota-se que, entre os expositores, constavam alguns dos principais nomes da sociologia brasileira naquele momento, como Roger Bastide, Alberto Guerreiro Ramos, Azis Simão, além do próprio Florestan Fernandes (Anais do I Congresso Brasileiro de Sociologia, 1955). Pelo conteúdo e pela ocasião em que é apresentado, o texto de Maria Isaura se torna um marco. Seu formato programático se assemelha a um manifesto, propondo o que, segundo a autora, deveriam ser as bases de sustentação do desenvolvimento da área de sociologia política, tida por ela como ainda “incipiente” entre nós (Queiroz, 1976a, p. 17).

A comunicação destoava do tom geral do Congresso não apenas pelo tema – sociologia política –, mas pelo esforço que propugnava no sentido de formar uma agenda de pesquisas que, partindo de um esforço conjunto e contínuo, deveria superar certas deficiências programáticas que atravancavam o desenvolvimento da área. De fato, a sociologia política, enquanto especialidade disciplinar, surgiu de forma bastante tardia no Brasil, confundindo-se, até o início dos anos 1980, com a ciência política. Brasílio Sallum Jr. (2002, p. 73) chama a atenção para o fato de que, até o final da década de 1950, as análises sociológicas da política eram pouco frequentes e, de forma geral, centradas na história do pensamento político e na história das instituições políticas brasileiras, muito embora, e nem sempre reconhecido dessa forma pelos chamamos “pioneiros” das ciências sociais institucionalizadas, parte de nossos ensaístas já houvesse estabelecido tópicos fundamentais para que, com continuidades e descontinuidades, se pudesse pensar as bases sociais da política no Brasil (Botelho, 2007, 2019).

 “Contribuição” é um texto programático não só porque coloca em seu horizonte os desafios de uma área a se constituir, mas porque leva em conta o contexto de transformações pelo qual passava a sociedade brasileira na década de 1950 (Botelho et al., 2008). O intenso e abrupto processo de modernização não fora capaz, como imaginaram alguns de seus principais entusiastas, de extinguir a desigualdade no país, que, ao contrário, foi mantida a partir da redefinição de formas de dominação social que vigoravam sobretudo no campo, onde ainda boa parte da população residia – algo em torno de 70%, segundo o Censo de 1950. Portanto, seria preciso compreender os fatores que levavam a urbanização e a industrialização do país a intensificarem as desigualdades e, mesmo, a excluírem amplas camadas da população das garantias básicas de cidadania. Como se sabe, esse é um desafio posto a todos e a todas cientistas sociais daquele tempo, que, assim como Maria Isaura, tendiam a elaborar uma visão crítica do presente ao se defrontarem com o peso do passado (Villas Bôas, 2006).

No momento em que apresentava o texto para seus pares, Maria Isaura já era pesquisadora experiente e ocupava, desde 1951, o cargo de assistente da Cadeira de Sociologia I da prestigiada Faculdade de Filosofia Ciências e Letras da Universidade de São Paulo (FFCL/USP), instituição onde obteve a graduação em Ciências Sociais, em 1949, e onde realizava pesquisas sobre diversas manifestações sociais, culturais e políticas oriundas do “mundo rústico”, termo utilizado por Antonio Cândido para designar a camada camponesa de nossa população.

Sua trajetória como pesquisadora, alicerçada em incursões frequentes ao campo, já lhe credenciava a lançar, no I Congresso Brasileiro de Sociologia, uma agenda de pesquisas para a Sociologia Política. Propunha que esse desenvolvimento deveria se assentar em um tripé formado a) por estudos sociológicos “de nosso passado político, que pudessem fornecer um pano de fundo para os trabalhos efetuados sobre o presente, dando a visão de continuidade ou das transformações havidas na política” (Queiroz, 1976a, p. 17); b) por pesquisas empíricas efetuadas a partir do município; e, por fim, c) por estudos que ultrapassem apenas as ideias e se detenham nos “fatos”, observando sempre o preceito sociológico “observar antes de interpretar” (Queiroz, 1976a, p. 18). Referindo-se a pesquisas anteriores sobre a vida política brasileira, Maria Isaura destacava como os analistas se fixavam no estudo das instituições ou nas ideias políticas sem atentarem para seus sentidos práticos – e contraditórios.

Seguindo o primeiro preceito estabelecido para o estudo da sociologia política, ou seja, o da necessidade de estudos do passado político para calibrar as análises empíricas do presente,  em “Contribuição”, a autora examina o comportamento político a partir das transformações sociais e econômicas da sociedade brasileira ao longo do tempo, procurando chamar a atenção para a existência de uma “linha de continuidade interna de nossa política” (Queiroz, 1976a, p. 29), que se dá através da grande influência que o mandonismo local exerce em distintas fases da vida do país, forjando relações baseadas em um domínio pessoal e arbitrário do chefe sobre a população. Nos trabalhos que desenvolve posteriormente, Maria Isaura aprofunda as conclusões desse primeiro estudo, procurando suprir a ausência de análises sociológicas dos fatos políticos do passado e do presente (Lopes, 2012; Carvalho, 2010). Em “O mandonismo local na vida política brasileira”, de 1956, e em “O coronelismo numa interpretação sociológica”, de 1975, a autora analisa a dinâmica do funcionamento e dos aspectos estruturais das formas de dominação vigentes no Brasil desde o período colonial até a década de 1930. Os três ensaios, aos quais se soma um estudo sobre o conceito de “jagunços”, compõem a coletânea intitulada “O mandonismo local na vida política brasileira e outros ensaios”, publicada em 1976. Em todos esses trabalhos, o mandonismo é definido, desse modo, pela relação de posse que os homens tinham uns com os outros. Isso nos leva ao segundo preceito.

A importância de se estudar a política a partir do munícipio, como propunha Maria Isaura, revela-se justamente porque é nele que o poder local, o mandonismo, se mostra de forma mais viva. Perspectiva contrária aos estudos que tomavam como núcleo da vida política nacional as instituições sediadas na Corte ou na capital. Essa advertência, cabe reforçar, tomava o município não propriamente como unidade administrativa, mas como lugar de onde se irradiava o poder local fundado no mandonismo, esse sim o fenômeno mais geral da estrutura social e política brasileira. Segundo a socióloga, abrir novos caminhos de pesquisa exigiria voltar o foco para a esfera local, onde se constituiu historicamente a base social fundamental de nossa vida política, marcada pela solidariedade familial e pelas formas de controle gestadas em uma economia exclusivista fundada durante longo tempo no trabalho escravo e na arregimentação do eleitorado pelos mandões locais e seus intermediários. Por isso, a investigação deveria partir, antes de tudo, do local de origem dessas pugnas, onde “o fenômeno político é mais violento e colore todos os outros aspectos da vida em grupo – o plano municipal” (Queiroz, 1976a, p. 30).

Contraditoriamente, as vicissitudes dessa ordem social se mostrariam melhor, em sua força e intensidade, no próprio bojo do processo de urbanização e industrialização no Brasil. As diferenciadas e complexas formas que assume a vida social na cidade têm reflexos na organização e estrutura políticas. A emergência de novos atores, como a burguesia e o proletariado, sinalizaria o enfraquecimento desse tipo de solidariedade familial. No entanto, como aponta a socióloga, tal fato não significa o surgimento de uma solidariedade de classes, embora os interesses de cada grupo apareçam com mais nitidez. A época que marca essa disjunção social e política são os anos 1940 e 1950, e o marco político é a Revolução de 1930. O regime inaugurado por Getúlio Vargas era expressão de um novo rumo político, embora não prescindisse dos velhos atores dessa arena, sobretudo os mandões locais. Estrutura social e política assumem novas feições, mais complexas, e intercambiam de uma nova maneira, embora mantendo sua base fundamental. Os partidos políticos que surgem com o final da ditadura Vargas, em 1945, revelam novos e velhos interesses que vão agitar a arena político-institucional daquele período. Processo de mudança social, destaca Maria Isaura, “em que tempos históricos diferentes coexistem” (Queiroz, 1976a, p. 29). Não à toa o “populismo”, marca da política nos anos 1950, viria a ser a junção desses polos, fundando-se, segundo a socióloga, na demagogia e nos interesses então nascentes da indústria e inaugurando uma nova velha forma de fazer política, um “novo tipo de coronelismo, o coronelismo urbano” (p. 29). Nesse fluxo dos acontecimentos, o nosso passado político conflui com o presente mostrando “uma linha de continuidade interna de nossa vida política” (p. 29).

Alguns dos pontos acima seriam retomados mais tarde por Maria Isaura em texto clássico intitulado “O coronelismo numa interpretação sociológica” (1976b), no qual distingue mandonismo e coronelismo, afirmando que o coronelismo representa a forma assumida pelo mandonismo local a partir da Proclamação da República, constituindo parte integrante de uma totalidade maior (Carvalho, 1998). Para a socióloga, o coronelismo pode ser visto, dessa maneira, como uma manifestação mais geral da sociedade tradicional brasileira. Ela se opõe às análises correntes sobre o assunto, notadamente a de Victor Nunes Leal, que tendiam a vê-lo como um fenômeno exclusivamente político,* chamando a atenção para as diversas facetas que compõem a figura do coronel. Com efeito, “considerá-lo apenas sob este aspecto é mutilar um conjunto complexo, empobrecendo-o e não permitindo uma compreensão mais ampla, tanto em si mesmo quanto em sua evolução histórico-social” (Queiroz, 1976b, p. 165). Ela procura, dessa forma, analisar não apenas as bases políticas da organização coronelista, mas também os seus fundamentos socioeconômicos, chamando a atenção, mais uma vez, para o fato de que a descoberta da lógica da política brasileira exige a introdução do ponto de vista sociológico.

Nesse sentido, a continuidade do mandonismo local em épocas sucessivas vincula-se de maneira estreita à permanência de uma estrutura social baseada na importância e no modo particular de funcionamento dos grupos de “parentela”, que constituíam grupos formados tanto pelo parentesco sanguíneo (com suas alianças) quanto pela associação por razões político-econômicas. O termo “coronel” designava não apenas o indivíduo que detinha grande soma de poder econômico e político, como também o que se encontrava na camada superior dos grupos de parentela.

Internamente heterogêneas quanto à economia, as parentelas eram compostas por grupos familiares distribuídos numa hierarquia que revelava a influência do poder econômico e político. Maria Isaura assinala, contudo, que, “paradoxalmente, indivíduos e famílias, no seu interior, se sentiam unidos pelos mesmos interesses sociopolíticos e econômicos, e unidos os defendiam; sobrepunha-se o interesse da parentela ao das famílias e ao dos indivíduos, e por isso mesmo aquele se tornava finalmente o primeiro interesse de todos” (Queiroz, 1976b, p. 184). Assim, as parentelas se caracterizam por fortes laços de dependência entre seus membros, revelando notável grau de coesão.

Maria Isaura chama a atenção para o fato de que a parentela apresentava três aspectos interligados – o político, o econômico e o do parentesco – mostrando que a sociedade na qual estava implantada era de estrutura socioeconômica e política ainda pouco diferenciada em seus setores de atividade. Esta indiferenciação entre os múltiplos setores sociais não implicava, no entanto, equilíbrio, paz e harmonia entre os grupos que formavam a parentela ou a sociedade de forma mais ampla. Maria Isaura ressalta que “pelo contrário, justamente porque indiferenciada, qualquer choque num setor repercutia violentamente em todos os outros, determinando rupturas em geral profundas” (Queiroz, 1976b, p. 186). A descrição da autora se opõe, portanto, à imagem de estabilidade, equilíbrio e integração tradicionalmente associada à sociedade tradicional. Dentro e fora das parentelas, as relações podiam ser de aliança, com base nos laços afetivos e na semelhança de interesses econômicos e políticos; mas também podiam ser de competição e rivalidade, levando a conflitos sangrentos, desencadeados até por causas aparentemente sem importância. A forte solidariedade que caracterizava a parentela, unindo camadas inteiramente díspares, não excluía, dessa forma, a animosidade, com o aparecimento de fraturas e a formação de grupos adversários a partir de um mesmo estrato parental. Na base desses dilaceramentos, estavam quase sempre ambições de mando ou de posse, vinculadas a disputas pela ascensão a postos mais elevados na hierarquia do poder.

A fragmentação e a fragilidade decorrentes dos conflitos entre grupos de parentela coronelísticos distintos e dentro de um mesmo grupo não se opunham, segundo Maria Isaura, à sua coesão, mas lhes eram constitutivas. As brigas entre parentelas rivais contribuíram para prevenir disputas que poderiam se desencadear entre as próprias camadas internas da parentela, pois incitavam uma forte solidariedade vertical. O conflito entre parentelas aparece, portanto, como importante fator de continuidade delas, pois as perpetua através da exigência de lealdade e apoio unânime entre todos os seus membros. Para a autora, as disputas contra parentelas rivais desempenharam um importante papel na formação social brasileira, uma vez que concorreram para afastar lutas entre camadas socioeconômicas distintas. Ao abordar esses múltiplos conflitos, Maria Isaura ressalta que a violência era, de fato, em todos os níveis da sociedade, uma forma “normal” de resposta a determinadas situações ou ações, constituindo uma das modalidades legitimadas de agir. Assim,  

solidariedade e conflito surgem [...] na sociedade brasileira coronelista e na que lhe fora anterior, como duas faces da mesma moeda, não existindo uma sem a sua oposta, inerente, complementar e recíproca, por mais ambígua e paradoxal que seja a parelha; e porque existem ambas, também existem as violências, que têm por finalidade o aniquilamento, o extermínio do oponente

(Queiroz, 1976b, p. 190).

Para Maria Isaura, solidariedade, conflito e violências sempre foram fatores de conservação da estrutura brasileira de parentelas, que constitui o principal alicerce do mandonismo local. A solidariedade permitiria a plasticidade necessária para que, mesmo em localidades onde o senhor ou o coronel não tivesse controle direto, como nas zonas de pequena propriedade, seus desígnios pudessem encontrar alta probabilidade de obediência (Queiroz, 1976b, p. 170). Dentro de suas propriedades, o controle do senhor era direto e muitas vezes violento, o que faz do domínio territorial um importante componente da manutenção do poder (mas não necessariamente o mais importante, embora o tornasse certamente mais eficaz). Mais uma vez, adverte Maria Isaura, é no plano local que essas formas de controle se fazem mais visíveis ao analista.

A combinação mandonismo local, controle territorial, violência e influência política é chave de compreensão do Brasil contemporâneo. Grupos armados e milícias se espraiam por diversas regiões do país a partir do forte domínio territorial e de modalidades próprias de extração financeira (Hirata & Couto, 2022). Ademais, o domínio territorial, mantido sob violência e medo, serve também como recurso fundamental na barganha político-eleitoral e na ocupação de postos institucionais estratégicos (Manso, 2020; Alves, 2019). Como se sabe, o acesso a cargos públicos e o seu controle constituem instrumentos fundamentais de dominação e perpetuação desses grupos armados, fechando o circuito que sela atualmente a força do mandonismo local.

A mensagem de “Contribuição” é direta: o fortalecimento da sociologia política no Brasil dependia – depende - fundamentalmente de reconhecer na vida social a base dinâmica da organização política. Advertência que pode parecer trivial, mas que, em meio ao turbilhão em que estamos e tentando ainda compreender como chegamos nele, nos coloca mais uma vez o desafio da análise da política marcada menos pela temporalidade das eleições ou das formalidades institucionais e mais por um processo social de raízes históricas.

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Contribuição para o estudo da Sociologia Política no Brasil

Maria Isaura Pereira de Queiroz

O estudo da Sociologia Política entre nós quase não se desenvolveu e permanece incipiente. Quem tem se dedicado com afinco à análise detalhada do fenômeno político é o Professor Orlando M. Carvalho, de Minas Gerais;1 mas são poucos e raros trabalhos como os seus, de verdadeira pes­quisa política, assim como os trabalhos de conjunto e sín­tese; apenas uma ou outra obra busca explicar a influência da política em setores particulares de nossa vida social, ou vice-versa, como por exemplo o estudo do Professor Fernando de Azevedo, “Canaviais e Engenhos na vida política do Brasil”.2

Em 1949, a Cadeira de Política da Faculdade de Filo­sofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo, então sob a direção do Professor Charles Morazé, iniciou um estudo das eleições efetuadas no Brasil a partir de 1945. O pro­grama da pesquisa incluía a feitura de gráficos sobre o alis­tamento eleitoral e a votação; estudos sobre os diferentes partidos, sua composição, histórico, caracteres principais; estudo das alianças partidárias; quadro do desenvolvimento econômico, social e político do país desde 1930; estudo da propaganda; descrição das lutas políticas nos municípios etc. Todo este rico acervo de documentação sobre o presente devia permitir se esboçasse a fisionomia atual da política entre nós.

Todavia, um obstáculo dificultava os trabalhos dos estu­dantes de São Paulo: a falta quase total de qualquer espécie de estudo sociológico do nosso passado político, que pudesse fornecer um pano de fundo para os trabalhos efetuados sobre o presente, dando a visão da continuidade ou das transfor­mações havidas na política; sem esse pano de fundo, o fenô­meno político perde todo o relevo e uma parte de seu signi­ficado.

É que os fatos políticos entre nós sempre foram enca­rados e estudados de acordo com o ponto de vista liberal, que os considera antes de tudo resultantes da infiltração de diferentes ideologias políticas no país, como se estas fossem os únicos motores das atividades dos homens em tal setor. Ora, esse modo de encarar as coisas é particularmente pouco fecundo no Brasil, onde nunca existiram ideologias próprias e onde ninguém se preocupou de investigar quais são as ideias políticas realmente brasileiras. Não temos ainda uma história dos fatos políticos feita do ponto de vista sociológico, em que eles sejam encarados como produtos da vida em grupo, uma vez que não são fatos isolados dos outros fatos sociais; participando do desenvolvimento e das vicissitudes destes, somente poderão ser compreendidos dentro do todo, sofrendo sua influência e influenciando-o. Os estudos de política entre nós são histórias das ideias políticas que os brasileiros foram buscar no estrangeiro e tentaram implantar nesta terra, no afã de dar ao país uma fisionomia à altura do progresso mun­dial; coladas como etiquetas a diversos acontecimentos histó­ricos, sugeriram aos estudiosos problemas que são quebra­-cabeças para quem procura esclarecê-los de acordo com tais ideologias, mas que se simplificam se estudados sem uma ideia preconcebida, observando-se apenas o que se passou na realidade.

Caio Prado Jr. tentara uma interpretação sociológica do nosso passado político, com sua Evolução política do Bra­sil;3 mas fugira ao primeiro preceito sociológico que é obser­var antes de interpretar: fora ao campo munido da inter­pretação prévia através da luta de classes e tentara impô-lo aos fatos brasileiros, quando só agora o Brasil desperta para essa luta.

Para que haja luta de classes é preciso que haja cons­ciência de classes, solidariedade de classes. Essa consciência não existia antigamente entre nós; os que estavam colocados mais abaixo na escala social não tinham noção de que inte­resses diferentes podiam separá-los dos que pertenciam às camadas mais elevadas; a solidariedade aqui existente tinha por base a tribo familial com parentes, aderentes, agregados, isto é, laços de dependência consanguínea, material e moral. Para o sitiante compadre do Coronel Fulano, estar o Coronel Fulano de cima na política era estar o sitiante amparado e em situação privilegiada; seus interesses se entrelaçavam por esse lado com os do Coronel Fulano, embora ambos perten­cessem a camadas sociais diferentes.

Este tipo de solidariedade tinha acompanhado muito natu­ralmente o modo pelo qual se processara a ocupação do solo, as grandes propriedades nas mãos de alguns senhores. O recém-chegado numa zona era condenado a se acolher à sombra do mandão local e ligá-lo fortemente a si se quisesse ter um apoio (de onde a importância da instituição do compa­drio). A escravidão, reforçando o poder do proprietário rural, deu mais ênfase a estas relações. E tudo isto junto formou o nódulo duro e resistente do mandonismo local no Brasil, que fazia os homens se definirem em termos de posse em relação uns aos outros: “— Quem é você?” “— Sou gente do Coronel Fulano”.

Duas eram as razões que levavam os grandes proprie­tários do interior a tomarem partido diante de problemas políticos: em primeiro lugar, seus interesses particulares; em segundo lugar, suas ligações de família e suas amizades, essa espécie de solidariedade tribal que ligava entre si largas có­pias de grupinhos pelo interior brasileiro. Desde que a ques­tão não tocava em suas posses, no que era ou no que espe­rava que fosse seu, o grande proprietário rural votava de acordo com as ideias de sua família ou de acordo com as ideias do compadre letrado da Corte que entendia melhor das coisas da política; em caso contrário, adeus solidarie­dade! Quanto aos outros, parentes, proprietários, menores, sitiantes, agregados, que gravitavam na órbita do grande proprietário, sempre se definiam da maneira pela qual tinha se definido este, acatando a decisão do chefe da família e do padrinho da tribo.

A política se desenvolveu tendo por núcleo o município. Durante a colônia, as dificuldades que encontrou Portugal em dominar e povoar um país do tamanho do Brasil fizeram com que se fomentasse o poder e a independência dos senhores rurais, que dominavam esses pequenos centros; o que havia de importante então eram as lutas dos proprietários rurais entre si para terem o poder, ou as lutas dos mesmos pro­prietários contra as interferências da Metrópole.

A importância do poder municipal se manteve durante o Império; no município, se o mandão local se desgostava com a Corte, a autoridade do governo “tornava-se pouco mais do que nominal: em vão promulgava os seus éditos, não eram obedecidos”.4 O parlamentarismo mascarou tal processo, dan­do lugar às controvérsias sobre se Pedro II fora ou não um autocrata, se quem governava era ele ou era o gabinete, se o gabinete fazia ou não fazia as eleições. Quem governava realmente eram as maiorias que se compunham e decompu­nham segundo os chefes locais estavam ou não de acordo com as medidas propostas pelo governo, e só quando nenhuma ameaça existia no horizonte contra os interesses dos proprie­tários rurais é que a “máquina eleitoral” do partido no poder dava resultado positivo. Daí a importância das eleições mu­nicipais que, notam depoimentos da época, eram o campo onde os políticos experimentavam suas forças; das compo­sições, acordos, adesões e defecções observadas no âmbito municipal dependeriam a cor e a composição das Câmaras Municipal, Provincial e Geral, e finalmente do gabinete.5

Durante a Primeira República, as lutas municipais con­tinuaram de primordial importância para a política brasileira. E a independência que continuavam a manter os municípios diante do poder central – fosse estadual ou federal – é demonstrada, entre outras provas, pelo célebre pacto que entre si estabeleceram chefes políticos do interior do Ceará, entre os quais o Padre Cícero, para evitar a queda dos oligarcas então dominantes. Uma das cláusulas do tra­tado estatuía que “havendo em qualquer dos municípios, rea­ções ou mesmo tentativas contra o chefe oficialmente reco­nhecido com o fim de depô-lo ou de desprestigiá-lo, nenhum dos chefes dos outros municípios intervirá, nem consentirá que os seus amigos intervenham ajudando direta ou indireta­mente os autores da reação”, mas que só poderão intervir “para manter o chefe e nunca para o depor”.6 Todo o documento é escrito como se não existisse no Estado nenhum poder mais alto do que o poder dos coronéis municipais que o firmaram; e não existia mesmo, pois que nenhuma medida estadual ou federal interceptou o pacto...

O desenvolvimento interno do país foi se processando por acomodações sucessivas com este poder de fato – poder municipal nas mãos dos proprietários rurais – que, podemos dizer “grosso modo”, se impôs à Metrópole durante a colônia, governou sob o manto do parlamentarismo durante o Im­pério e abertamente dirigiu os destinos do país durante a Primeira República.

Os políticos de tipo realista, os que souberam ver que a verdadeira força política estava concentrada nas mãos dos proprietários rurais, os Bernardo de Vasconcellos, os Pinheiro Machado, dominaram sua época e estiveram sempre “de ci­ma”; é que eles não se deixavam levar por rótulos ideológicos enganosos ou por partidos sem existência real e procuravam se entender diretamente com os coronéis rurais, perscrutando onde estavam as maiorias formadas pelo seu descontentamento ou satisfação. Oposto a este tipo, existiam os políticos idealis­tas que pretendiam impor reformas, desencadear movimentos de moralização social ou eleitoral em nome de princípios abs­tratos, que acreditavam que as leis fazem um país.

Durante as lutas pela abolição, fornecem-nos os ardentes abolicionistas um bom exemplo deste idealismo, os sóbrios republicanos do realismo. Abolição a todo o transe reclama­vam os primeiros, levados por ideais humanitários abstratos, sem inquirir quais as consequências para a vida do país em geral e do escravo em particular. Enquanto os segundos, que se apresentavam como os defensores de todas as liberdades mas estavam conscientes do meio em que agiam, não se defi­niam abertamente diante do problema com o fim de conquistar as simpatias de gregos e troianos. No entanto, vê-se que mes­mo este segundo tipo não tinha uma visão larga do fato político, não procurava enxergar além do imediatismo de suas preocupações, mas tomava contato apenas com o setor coberto pelos seus interesses.

A Independência trouxe aos proprietários rurais a neces­sidade de enviar representantes seus às Câmaras; obrigados a escolher entre o município e a capital, conservaram em suas mãos o município, que era onde assentava o seu poder, e mandaram para as Câmaras provincial e geral delegados seus, escolhidos entre os membros da família que tinham algum saber e podiam dignamente representá-la. Formou-se então durante o Império e a Primeira República uma camada de “profissionais” da política, quase todos de profissão liberal, desligados pela educação e pela necessidade de viver nas capi­tais do ambiente rural que representavam. A certeza de serem reeleitos, desde que votassem de acordo com os chefes do interior, desinteressava-os das lutas políticas municipais, que ficavam para os coronéis, e fixava-os nas cidades, – fenômeno do absenteísmo tão falado entre nós. Podia ser que tudo corresse bem e eles se portassem sempre como lídimos representantes de seus mandantes, percebendo ou não que eram simples mandatários; mas podia ser também que de repente a realidade em bruto, a realidade sem interpretação, a realidade rude do interior os expulsasse das Câmaras.

Durante o Império, o caso do gabinete Dantas é um bom exemplo de como os proprietários rurais formavam as maio­rias e afastavam da política os representantes que os desgos­tavam. Dantas, liberal, apresentou à Assembleia Geral, cuja maioria era também liberal, um projeto relacionado com a emancipação dos escravos; imediatamente “destacaram-se da maioria liberal vários deputados que, unidos à oposição conservadora, moveram implacável guerra ao ministério”, isto é, entraram em choque Assembleia e gabinete. Dantas não teve dúvidas, dissolveu a Assembleia e convocou novas elei­ções, para as quais pôs em movimento sua “máquina eleito­ral”; por toda a parte, nos municípios, reinaram a violência e a fraude com o fito de dar votação majoritária ao gabinete, mas apesar de todos os esforços a vitória contrária foi esma­gadora: todos os deputados abolicionistas que tinham apoiado o projeto não foram reeleitos e vieram ocupar lugar na Câ­mara “os mais graduados paladinos” da escravidão, fossem eles conservadores e liberais. Mas os proprietários rurais só sossegaram realmente quando o Imperador apelou para Cote­gipe a fim de que formasse o gabinete; grande chefe escravocrata conservador, era a garantia de que a abolição não viria tão cedo. Assim impunham os proprietários rurais a sua vontade.7

No entanto, o próprio político avisado que sabia reco­nhecer os sintomas de nova maioria estava peiado porque sua visão tinha os limites dos seus interesses e dos de sua grei; não percebia muitas vezes a decadência daqueles de que era representante e a ascensão de outros. A força econômica tem sido no Brasil o esteio da política – o fato de terem sido tão importantes os proprietários rurais o atesta; esta força se desloca no espaço e no tempo, seguindo a ascensão de diferentes produtos e de diferentes zonas. Podemos dis­tinguir no país períodos de homogeneidade política, quando a zona mais próspera é quem governa direta ou indiretamente; e períodos de desajustamento e crise, quando há mudanças de eixo econômico.

Há dois períodos nítidos de homogeneidade política em nossa história independente: o da Maioridade, até mais ou menos 1870 ou 1875, dominado pela prosperidade cafeeira do Vale do Paraíba.; e o da Primeira República, de 1900 até mais ou menos 1922, pela riqueza de Minas e sobretudo do café do Oeste paulista. Todo o início do século XIX até mais ou menos a Maioridade é período de crise, de desajus­tamento e consequentes tentativas de harmonização; proces­sava-se então a decadência do açúcar no Nordeste e iniciava-se a ascensão do café no Vale do Paraíba; os políticos do Nor­deste perdiam para os políticos fluminenses mas não comple­tamente, porque a decadência não foi total e porque muitos fidalgos da cana vieram abrir fazendas de café nas imedia­ções da Corte. O outro período de crise tem mais ou menos início com o empobrecimento e a ruína do Vale do Paraíba e com a melhoria dos matutos paulistas, que se tinham posto a plantar café na opulenta terra roxa, abandonando suas tro­pas de burros; a ela está associada a propaganda e o triunfo da República.

Nos períodos de homogeneidade política, os representantes da zona rica e próspera tinham a impressão de que represen­tavam os interesses da nação como um todo; mas perdiam pé quando uma zona nova subia que reclamava medidas dife­rentes das que pretendiam para sua própria zona, medidas diferentes que julgavam inócuas ou arriscadas porque os inte­resses da sua não as requeriam. A zona rica vencendo levava seus políticos ao poder; as outras aderiam de bom ou mau grado ao vencedor e sofriam logo o contágio do seu pensa­mento, de que as medidas necessárias e reclamadas por ele eram as requeridas pelo progresso do país como um todo.

Esta falta de sentimento das diferenças do país, uma vez que muito diversas são as zonas, culturas, recursos e desen­volvimento, foi sempre um fato na política brasileira e pren­deu-se não somente à riqueza e poderio de determinada região, como ao tamanho do país e à falta de comunicações que im­pedia que os habitantes de um lugar tomassem sentido dos problemas dos habitantes de outro.

Outros fatores contribuíram para reforçar a falta de visão: a homogeneidade social e política do país. Homoge­neidade social porque, de norte a sul, a mesma estrutura estava presente com o tipo de família patriarcal apoiada na grande propriedade e na escravatura; as mudanças de eixo econômico estavam presas apenas à decadência da terra ou à impossibilidade de o produtor competir com outros no mer­cado estrangeiro; e se o eixo político acompanhava a mu­dança do eixo econômico, a estrutura social não se alterava. Homogeneidade política, porque por toda a parte era a Câ­mara Municipal que congregava os “homens bons” para o governo local e a defesa de seus interesses.

O aparecimento de órgãos centrais de governo – Assem­bleias provinciais e Assembleia geral — não aumentou a visão, porque eram eleitos para elas apenas os representantes dos proprietários rurais dominantes na zona e, nas outras zonas, seus simpatizantes. Uma queixa formulada geralmente du­rante a Primeira República era a de que mesmo nos muni­cípios mais afastados dos estados mais longínquos, só eram eleitos para as Câmaras dos Vereadores os simpatizantes da política paulista e mineira.

A constante entrada de estrangeiros também não trazia nenhuma modificação porque sua ingerência na política não era vista com bons olhos; precisavam lutar para conseguir o direito de cidadania e, uma vez conquistado esse direito, a própria luta tinha agido como elemento aculturador, integrando-os no modo de pensar do país. Quando falamos em estrangeiros, não queremos acusar nossa gente de atitudes xenófobas; queremos chamar a atenção para o fato de que a defesa dos antigos contra os novos, os antigos defendendo privilégios, direitos e postos de mando, existiu e marcou sempre nossa política.

Este fenômeno se apresentou sob modalidades diversas. Durante o período colonial, exprimiu-se no desgosto dos velhos colonos contra os recém-chegados, de que a fundação de Santo André da Borba do Campo, para contentar os melindres de João Ramalho, é exemplo. Mais tarde, quando já existiam brasileiros de nascimento, deu lugar ao nativismo que desabrochou em nacionalismo no momento da Independência. Den­tro dos municípios, inscreveu-se na lei imperial que impu­nha que o eleitor, além de satisfazer outras exigências, devia residir no lugar há mais de dois anos. Finalmente, anterior­mente à Revolução de 1930, opôs uma barreira ao ingresso na arena política dos descendentes de imigrantes que subiram na escala social.

O fenômeno tem, pois, dois aspectos: um, é a defesa dos habitantes mais antigos contra os recém-chegados no país, brasileiros contra portugueses, brasileiros contra imigrantes, e forma o fundo do nacionalismo; o outro é o da defesa dos que já estão instalados na política contra gente que nela procura entrar, fenômeno interno que ora se apresenta como rivalidades regionais, ora como luta entre grupos.

Este segundo aspecto, muito importante, não teve ainda sério estudo entre nós. Lembremos um exemplo pitoresco: o Barão de Itapemirim, chefe político de prestígio, riquíssimo proprietário rural, não conseguiu nunca vencer uma eleição no município onde tinha o grosso de sua fortuna; todo o poder político local estava nas mãos dos irmãos Bittencourt, família antiga ali, que não permitiam que aquele homem novo na zona viesse usurpar posto de mando municipal que por direito de ancianidade lhes pertencia; a rede da solidariedade familial prendia todos os eleitores do Itapemirim à família Bittencourt, e o Barão, que tinha muita influência na política provincial do Espírito Santo, nunca teve uma vitória no seu município.8

Foram essas as direções principais que, num exame forçosamente ligeiro da história e do desenvolvimento social brasileiro, observamos vir à tona. A importância da solida­riedade familial e o papel desempenhado em nossa política pelas lutas municipais estão a indicar a necessidade de come­çarem as pesquisas a partir do município, acabando com o mito de que um grupinho de figurões, na Corte ou na Capital Federal, comandava as pugnas partidárias, puxando de longe os cordõezinhos que moviam os coronéis do interior. Estudo que demanda tempo. Mas o quadro, embora ligeiramente esboçado,9 já fornecia uma base de comparação para a pes­quisa feita na atualidade.

Tentara o Prof. Charles Morazé,10 a partir do material recolhido e elaborado pelos alunos, um diagnóstico da política brasileira de hoje, reservando a apresentação desse material para uma futura publicação em Boletim da Faculdade de Filosofia. Projetando contra o estudo do passado o quadro das eleições e do desenvolvimento social presente, verificar-se-ia a continuidade ou a transformação do fenômeno polí­tico atual.

Depois de 1889, o rápido desenvolvimento das cidades brasileiras acompanha um crescimento demográfico acentuado que começara no passado com a chegada de levas de imigran­tes; desenvolvimento que é uma novidade na atmosfera bra­sileira predominantemente rural. A cidade de São Paulo segue até 1930 o progresso demográfico do seu Estado; depois o ultrapassa de maneira espetacular, erguendo-se numa linha quase vertical. No estado de Minas Gerais, o crescimento da população do estado todo comparado com o da capital mostra como este foi relativamente pequeno em relação àquele. Na Bahia, Salvador tem desde o início certa importância em comparação com a população do Estado, que as capitais dos outros dois não possuíam; e o desenvolvimento da capital baiana acompanha, passo a passo quase a curva demográfica do estado, índice da relativa continuidade de uma urbani­zação já existente. Outros gráficos – do movimento ban­cário, do crescimento das superfícies cultivadas, – corro­boram o aspecto agrícola do estado de Minas Gerais, a fisio­nomia urbanizada de São Paulo.

Paralelo ao desenvolvimento urbano posterior a 1930, processava-se o equipamento industrial e técnico do país, principalmente no Estado de São Paulo, denotado por exemplo no gráfico do movimento da aviação: enorme em São Paulo, é relativamente fraco na Bahia e muito fraco em Minas. A falta de desenvolvimento técnico e industrial dá a estes dois estados um caráter conservador, em oposição ao progressista de São Paulo.

Associando a estes aspectos o político, teremos o seguinte quadro: São Paulo, urbanização e industrialização rápidas a partir de 1930, predomínio do PSD sobre os outros par­tidos nas eleições de 1945 e 1947 e, em 1950, do PSP. Em Minas, desenvolvimento urbano pequeno, industrial me­nor ainda, estado de estrutura rural conservadora; embora o PSD tenha tido a maior votação, nota-se que é o único estado brasileiro em que o PR conservou importância. Finalmente, Bahia, onde a urbanização já existia e crescia de maneira constante, onde a industrialização era pequena, estado, pois, de estrutura urbana conservadora, nele a UDN teve a vitória. Nos estados de tipo conservador, os partidos como o PTB, PSP e PCB têm pouca representatividade, o que já não se dá num estado como São Paulo, em que figuram como partidos importantes.

UDN e PR são partidos “tradicionais”. O PR é o velho Partido Republicano anterior a 1930, que fora o órgão do coronelismo rural; é, pois, um partido conservador rural. A UDN tem tradição urbana; em São Paulo, por exemplo, seu antecessor é o Partido Democrático que antes de 1930 congregava as forças de uma burguesia nascente; é um partido conservador urbano. O PSD se mostra – em São Paulo principalmente – como o partido das grandes fortunas industriais. PCB, PTB, PSP são os partidos das massas.

Temos então em São Paulo, com os fenômenos da urba­nização e da industrialização, o aparecimento de partidos novos. Na Bahia, estado conservador urbano, vence a UDN. Em Minas, estado conservador rural, o velho PR conserva prestígio.

A defesa de posições e privilégios pelos antigos ocupantes dos postos políticos atuou em 1945, por ocasião da reestru­turação política, impedindo a expressão, dentro dos partidos “tradicionais”, de novas camadas da população que, não vendo razão para que as posições-chave continuassem nas mãos dos velhos políticos, formaram partidos novos. Os novos que assim reclamavam ingerência nos negócios políticos eram for­mados por gente que a industrialização enriquecera; por uma burguesia média, que aparecera entre os antigos senho­res rurais e a massa; e por esta mesma massa que, na sua parte alfabetizada, se mostrava desligada dos velhos chefes políticos.

É o PSD a expressão da nova camada de gente rica; não criou esse partido nenhuma forma nova de participação política, exprimiu-se através do tipo coronelista: assim como o coronel rural ia votar rodeado de parentes, afilhados e agre­gados cuja sorte estava presa à sua, assim o grande indus­trial tem à sua roda uma corte de dependentes que o apoiam; não os operários, mas todos os interesses que múltiplos negó­cios fazem dele depender. O PSD é de tal modo um partido à antiga maneira coronelista, que admitiu a adesão de grande parte do coronelismo rural – daí sua vitória em Minas Gerais, em detrimento do PR. Adesão que não é novidade nos anais brasileiros; da mesma forma a vitória da República, que era a vitória dos fazendeiros do café do Oeste paulista, trouxe para o Partido Republicano a adesão de coronéis das mais diversas zonas do Brasil.

No entanto, o fenômeno realmente novo na política brasileira é tomarem atualmente colono e operário consciência de que os interesses dos patrões não são os mesmos que os seus; na zona urbana, a industrialização promove este modo de pensar; na zona rural, é o loteamento das grandes fazen­das, o aparecimento da pequena propriedade policultora que o propiciam.

Mas operário e colono não despertaram ainda para o fato de que fazem parte de uma classe. As possibilidades de ascensão social e de evasão da camada em que se nasceu dificultam o aparecimento dessa consciência e favorecem o individualismo. Operários e colonos assumem atitudes de luta, que se revelam pela recusa em votar nos candidatos dos patrões, mas reúnem-se, por outro lado, a legítimos represen­tantes do capitalismo, desde que acreditem que estes estão empenhados em defendê-lo – daí as chances de partidos do tipo PTB e PSP, assim como a formação de um outro tipo de coronelismo urbano, fundado na demagogia, ao lado do coronelismo urbano fundado nos interesses industriais.

É esse o fenômeno novo da nossa política: o desapare­cimento da solidariedade familial, apagada pelo reconheci­mento das diferenças de interesse das diversas camadas da população, nas quais não surgiu ainda todavia uma solidarie­dade de classes.

Esta nova independência nas atitudes políticas veio a lume primeiramente no país todo com a reeleição de Getúlio Vargas; em seguida, nas últimas eleições de Pernambuco e de São Paulo, com a vitória, nas capitais, de candidatos de partidos eleitoralmente inexpressivos: a massa manifestava assim sua falta de confiança nos candidatos das camadas altas, mas também sua falta de solidariedade interna. O mito do “pai dos pobres” não atuou em benefício dos candidatos do PTB nas duas últimas eleições referidas, apesar da votação maciça que em 1950 obtivera o atual chefe do governo, mostrando que a desconfiança crescera, atingindo os próprios dirigentes desse partido. Por outro lado, os par­tidos a que pertenciam os dois candidatos vitoriosos continuaram eleitoralmente inexpressivos como dantes, evidenciando que uma massa inorganizada, em busca de definição política é que lhes dera a palma.

Todos estes partidos são “nacionais”, em oposição ao regionalismo e à atomização que havia antes de 1930 sob a capa de um PR único. No entanto, é no âmbito muni­cipal que existe a fidelidade ao partido (sem que isto queira dizer que os políticos não mudem de um para outro): aí as lutas são violentas, as animosidades dividem os habitantes segundo linhas intransponíveis. Mas a segregação rigorosa vai enfraquecendo à medida que se passa para o plano estadual, depois para o federal, tornando possíveis os acordos mais incríveis, as associações mais impensáveis entre cédulas de candidatos de diferentes partidos dentro do mesmo envelope de voto. É nas lutas municipais, pois, que existem de fato diferenças partidárias, é ali que os partidos têm realidade e não nos outros planos da vida política.

Todas estas alianças, acordos, combinações e pactos entre diferentes partidos num determinado plano, quando noutros planos se mostram adversários ferrenhos, contribuem para reforçar a impressão de que a política brasileira é eminente­mente absurda e caótica. É nos períodos de crise e de ajus­tamento que esta opinião se reforça; no passado, as diferenças econômicas que então vinham a lume contribuíram para desnortear os políticos, mas o ajustamento era mais fácil porque a estrutura social se conservava homogênea. Atual­mente, à mudança do eixo econômico da agricultura para a indústria, em vias de se processar, juntou-se uma compli­cação da estrutura social, que hoje apresenta gradações em muito maior quantidade do que as conhecidas até agora, aumentando a impressão de desordem.

A desordem e o caos existem de fato. Num país em que a vida se processou sempre segundo ritmos diferentes, em que tempos históricos diferentes coexistem, em que for­mas diferentes de ocupação de solo e diferenças geográficas determinam grandes diferenças de produção, dando como resul­tado tipos sociais diversos, introduziu-se com a industriali­zação uma componente nova que rompeu o equilíbrio em que se mantinham os elementos referidos. Há, uma busca de novas soluções, mas os políticos continuam a não ter plena cons­ciência de que, dada a variedade de situações, as mesmas soluções não servem para todos: os interesses locais ou os interesses privados continuam desempenhado o papel de funes­tos antolhos.

Quisemos mostrar, com esta rápida análise, que existe uma linha de continuidade interna de nossa política; ela se evidencia, por exemplo, no aparecimento do novo tipo de coronelismo, o coronelismo urbano, para integrar na política brasileira elementos novos; assim os fenômenos que vão apa­recendo adotam formas já conhecidas para se incorporarem no que existe.

Dizer então que nossa política é irracional não tem sen­tido; ela tem sua racionalidade interna que é preciso desco­brir e que é forçosamente diferente da dos fenômenos polí­ticos de outros países.

Mas a descoberta desta continuidade só pode ser feita através da introdução do ponto de vista sociológico nos estu­dos políticos brasileiros. Então se conseguirá desvendar, sob a falsa aparência de um desenvolvimento irracional, as cons­tantes do nosso comportamento político que vêm se manifes­tando através da história e que unem entre si as populações dos diferentes estados; e se alcançará conhecer as diversi­dades que esse comportamento apresenta devido às diferen­ças que existem no próprio país, formado de zonas geográfica, econômica e socialmente diferentes. O ponto de partida desses estudos deve ser o plano em que o fenômeno político é mais violento e colore todos os outros aspectos da vida em grupo – o plano municipal.

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Referências

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Notas

1 Ver Carvalho, Orlando M. (1949), Práticas eleitorais no interior de Minas. Sociologia, XI(2); e (1953). A força dos partidos e a estrutura ocupacional das chefias políticas de Minas. Revista da Faculdade de Direito, IV, p. 122-159. É pena que o autor não tenha traduzido em gráficos os dados que apresenta neste último estudo, para facilitar-lhes a leitura e a compreensão.
2 Azevedo, Fernando de. (1948). Canaviais e engenhos na vida política do Brasil: ensaio sociológico sobre o elemento político na civilização do açúcar. Instituto do Açúcar e do Álcool.
3 Prado Jr., Caio (1933). Evolução política do Brasil. Empr. Gráfica Revista dos Tribunais.
4 Armitage, João. (1837). História do Brasil. Typ. Imp. e Const. de J. Villeneuve.
5 Souza Carvalho, A. A. (1870). O Brasil em 1870. Bl. L. Garnier Livr. Ed.
6 Barroso, Gustavo. (s/d.). Almas de lama e aço. Cia. Melhoramentos. pp. 24-31.
7 Celso, Affonso. (1901). Oito anos de Parlamento. Laemmert et Cie. pp. 66-67.
8 Taunay, Afonso de. (1939). História do Café. Ed. do Departamento Nacional do Café.
9 Queiroz, Maria Isaura Pereira de. (1957). O mandonismo local na vida política brasileira (da Colônia à Primeira República). São Paulo: Editora Anhembi. N.E.: Publicado posteriormente a esta comunicação de Maria Isaura Queiroz, pela Editora Anhembi, de São Paulo, em 1957.
10 Morazé, Charles. (1954). Les trois âges du Brésil. Armand Colin.

Autor notes

Professor do Programa de Pós-graduação em Sociologia da Universidade Federal Fluminense (PPGS/UFF). lucascorreiacarvalho@id.uff.br
Professora do Departamento de Sociologia e Metodologia das Ciências Sociais da Universidade Federal Fluminense (UFF)
In memoriam
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