RESUMO: Após 20 anos de implantação em algumas universidades públicas e dez anos depois de se terem tornado obrigatórias nas universidades e institutos federais por conta da chamada lei de cotas (Lei 12.711 de 2012), as ações afirmativas universitárias ainda continuam gerando polêmica, como provam os debates em torno da avaliação e da possível prorrogação da lei de 2012, com diversos projetos de lei com compreensões opostas tramitando no parlamento. Da mesma forma, o debate sobre como combater as desigualdades raciais em diferentes setores da sociedade brasileira redimensiona o tema no campo das políticas públicas no país. Assim, entender os efeitos dessas duas décadas de ações afirmativas no país é fundamental para que se possa ter uma visão ampliada dessas políticas, de modo a elevar os termos das discussões sobre o tema para além de suas implicações diretas. O presente dossiê pretende justamente contribuir nessa direção. Ao buscarmos dar visibilidade às transformações sociais provocadas direta ou indiretamente pela introdução de ações afirmativas, esperamos não apenas contribuir para a avaliação das consequências dessas políticas públicas, mas também lançar luz sobre o modo como elas afetaram a compreensão da “questão racial” em nossa sociedade. O que significa ampliar a reflexão sobre os efeitos e impasses das ações afirmativas, tanto no interior das universidades como fora delas. Isso a partir de textos sobre diferentes aspectos que transformaram a vida educacional no sentido mais amplo (com especial ênfase no espaço universitário) e sociopolítica no país.
Palavras-chave: Desigualdades raciais, acesso ao ensino superior, políticas públicas, questão racial, impactos de ações afirmativas.
ABSTRACT: Following 20 years of implementation in some public universities and ten years after it became mandatory in federal universities and institutes under the so-called quota law (Law 12,711 of 2012), university affirmative action still arouses controversy, as shown by debates around evaluation and possible extension of the 2012 law, with several bills presenting opposing views under consideration of legislature. Likewise, the debate on how to fight racial inequalities in different sectors of Brazilian society reassesses the issue in the field of public policies in the country. Thus, to understand the effects of these two decades of affirmative action in Brazil, it is essential to attain a broader view of these policies, in order to raise the terms of discussions on the subject beyond their direct implications. The present dossier intends to contribute precisely to this direction. As we seek to raise visibility of social transformations caused either directly or indirectly by the introduction of affirmative action, we hope not only to contribute to evaluating its consequences, but also to shed light on how it affects the understanding of the “racial issue” in our society. Which means broadening the reflection on the effects and impasses of affirmative action, both within universities and outside them, by compiling texts on different aspects of changes produced in educational life in its broadest sense (with special emphasis on universities) and in the sociopolitical context in the country.
Keywords: Racial inequalities, access to higher education, public policies, racial issue, impacts of affirmative actions.
DOSSIÊ
Novas configurações e debates sobre as ações afirmativas em um contexto de mudanças: uma introdução
New configurations and debates on affirmative actions in a changing context: an introduction
Recepção: 31 Dezembro 2022
Aprovação: 10 Janeiro 2022
Implantadas em universidades públicas a partir de 2002, com as experiências inovadoras das estaduais do Rio de Janeiro e da Bahia, as ações afirmativas tornaram-se um modelo de política pública igualitarista, ao buscar reduzir as desigualdades sociais através do acesso de estudantes oriundos de classes populares e negros ao ensino superior. Esse processo gerou, como se sabe, um intenso debate no seio da sociedade brasileira acerca dos efeitos dessas medidas para a redução das desigualdades entre brancos e negros, bem como sobre as sociabilidades hegemônicas no país: para muitos isso estimularia o crescimento dos conflitos raciais (Maggie & Fry, 2004), enquanto para outros isso ajudaria a desmascarar as múltiplas faces do racismo (Silvério, 2002).
Essa transformação das ações afirmativas como políticas públicas legítimas se consolida com a votação pelo STF da constitucionalidade das cotas para negros, em 2012, bem como com a aprovação, nesse mesmo ano, da chamada Lei de Cotas (Lei 12.711 de 2012) que tornou obrigatória a reserva de vagas para estudantes de escolas públicas, com cortes racial e de renda, em todas as instituições federais de ensino superior. Processo que se amplia com a adoção de cotas para alunos negros em vários cursos de pós-graduação a partir dos anos 2010, somada à lei que impõe a reserva de 20% das vagas para os concursos públicos na esfera federal em 2014 (Lei 12.990 de 2014).
Ao mesmo tempo, a discussão sobre raça e racismo sofreu profundas mudanças no Brasil desde que as ações afirmativas começaram a ser implementadas. Como diversos autores e autoras vêm demonstrando em publicações que fazem balanços da produção no campo das relações raciais, houve não apenas o aumento quantitativo de textos e autorias, como também a diversificação temática se tornou evidente (Artes & Mena-Chalco, 2017; Barreto et al., 2017, 2021; Campos et al., 2018).
Nesse sentido, não é exagero afirmar que as políticas de ações afirmativas foram o principal vetor pelo qual a discussão sobre o racismo se disseminou na sociedade brasileira nessas duas últimas décadas. Isso certamente está relacionado com o lugar que as universidades têm no imaginário e nas estratégias de reprodução das elites na nossa sociedade, o que gerou um imenso desconforto em certos segmentos sociais com poder e prestígio capazes de elevar o debate sobre as ações afirmativas a um patamar de questão nacional. De repente, no auge da discussão, era como se a própria identidade nacional estivesse em questão. Não por acaso, um dos temas mais visitados nas polêmicas dos anos 2000 acerca das ações afirmativas foi o da existência, ou não, do racismo entre nós (Moehlecke, 2002). Por trás dessa discussão, estava implícita a disputa pelo discurso hegemônico sobre a identidade nacional do país. Entre um país idílico, definido pela cordialidade e pelas relações igualitárias, e um Brasil marcado pelos preconceitos e pelas desigualdades, inclusive as raciais.
Após 20 anos de implantação em algumas universidades públicas e dez anos depois de terem se tornado obrigatórias nas universidades e institutos federais, as ações afirmativas universitárias ainda continuam gerando polêmicas, como provam os debates em torno da avaliação e da possível prorrogação da lei de 2012, em que diversos projetos de lei com compreensões opostas tramitam no parlamento.1 Da mesma forma, o debate sobre como combater as desigualdades raciais em diferentes setores da sociedade brasileira redimensiona o tema no campo das políticas públicas no país.
Nesse sentido, entender os efeitos dessas duas décadas de ações afirmativas no país é fundamental para que se possa ter uma visão ampliada dessas políticas, elevando assim os termos das discussões sobre o tema para além de suas implicações diretas. De fato, o que podemos afirmar desde a introdução das primeiras ações afirmativas é que elas dizem respeito aos projetos de nações que se confrontaram nos últimos decênios.
O fato é que, a partir das cotas, a visibilidade do debate racial ganha uma dimensão antes inusitada. Esse sucesso midiático mostra que o que está por trás dessas políticas de combate às desigualdades educacionais vai além da discussão sobre o que ocorre no espaço universitário, dialogando com dimensões que se inserem em diversos espaços socioculturais, políticos e simbólicos. Razão pela qual este dossiê busca dar visibilidade a textos que trazem à baila alguns desses aspectos, como veremos.
A proposta do presente dossiê pretende ir além do que tradicionalmente é feito nas avaliações sobre as políticas afirmativas. Ao buscarmos dar visibilidade às transformações sociais provocadas, direta ou indiretamente, pela introdução de ações afirmativas, esperamos não apenas colaborar para a avaliação das consequências diretas dessas políticas públicas, mas também lançar luz sobre o modo como elas afetaram a compreensão da “questão racial” em nossa sociedade. O que significa ampliar a reflexão sobre os efeitos e impasses das ações afirmativas, tanto no interior das universidades, como fora delas.
Ora, após mais de 20 anos de efetiva implantação dessas políticas, quais os seus efeitos de um ponto de vista ampliado? Cremos que responder a esta pergunta é fundamental para entendermos algumas transformações recentes na sociedade brasileira, tanto em termos da diminuição das desigualdades quanto em termos simbólicos, isto é, no que se refere às crenças e concepções presentes no seio da sociedade em relação ao racismo e ao modo de conceber a identidade nacional.
A realização de inúmeras pesquisas recentes sobre as políticas de ação afirmativa, não apenas individuais, mas também coletivas, através de consórcios reunindo docentes de diferentes IES, tem produzido evidências empíricas muito importantes para aprofundar a nossa compreensão a respeito de tais políticas (Carreira & Heringer, 2021; Campos & Lima, 2022; Senkevics & Mello, 2022). Há convergências nos resultados no sentido de reconhecer as ações afirmativas como políticas de sucesso que estão propiciando a diversificação racial e socioeconômica da população discente dos cursos de graduação das Instituições de Ensino Superior públicas, sendo o efeito da política intensificado nas carreiras mais tradicionais e com maior demanda. Segundo a Cartilha que sintetizou os resultados do Consórcio de Acompanhamento das Ações Afirmativas, entre 2001 e 2020, aumentou bastante a proporção de estudantes pretos, pardos e indígenas (PPI) nas universidades públicas, passando de 31% (2001) para 52% (2020), e aumentou mais ainda a proporção de estudantes das Classes C, D e E, variando de 19% (2001) para 52% (2020). Em relação aos coeficientes de rendimento, quando comparados os estudantes que tiveram acesso às universidades por meio das várias modalidades de reserva de vagas, ou por meio da ampla concorrência, as diferenças existentes são insignificantes. O mesmo ocorrendo quando se trata das taxas de evasão dos cursos.2
Esses dados são próximos dos das pesquisas realizadas pela ANDIFES (Associação de Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior), que publicou, em 2019, a “V Pesquisa Nacional de Perfil Socioeconômico e Cultural dos(as) Graduandos(as) das IFES – 2018” (Andifes, 2019). De acordo com essa pesquisa, o percentual de alunos de graduação “brancos” passou de 59,4% a 43,3%, entre 2003 e 2018. No mesmo período, a porcentagem de “pardos” passou de 28% para 39,2% e o de “pretos” de 5,9% a 12 %. Esses valores correspondem, de forma aproximada, ao percentual de cada grupo de cor na população brasileira segundo dados do IBGE, sobretudo se considerarmos, como faz essa instituição, as categorias “pretos” e “pardos” como componentes da categoria “negros” (em 2018, a composição por raça/cor no Brasil era de 43,1% de “brancos”, 46% de “pardos” e 9,3% de “pretos”). Essa maior presença “negra” e de outros grupos vistos como minoritários nas universidades trouxe consigo experiências sociais e subjetividades novas ao ambiente universitário brasileiro, marcado, até os anos 2000, pela predominância de jovens brancos de classe média.
Em suma, o acesso de todos os segmentos aos cursos de graduação das universidades, seja por meio das várias modalidades de reserva de vagas, ou por meio da ampla concorrência, propiciou a redução das distâncias e a maior equidade no sistema de ensino superior público e, em razão disso, as ações afirmativas podem ser consideradas políticas que alcançaram, em parte, os seus objetivos.
A chegada de públicos até então minoritários na educação superior criou condições para que reivindicações identitárias e demandas que extrapolam os limites das universidades viessem à tona. Com isso, entender esse processo é de fundamental importância para avaliar transformações da sociedade brasileira atual. Parte-se, pois, da constatação de que a introdução das ações afirmativas no ensino superior foi um catalisador de mudanças sociais em diferentes esferas da vida nacional.
A questão que se coloca então para os/as pesquisadores/as do campo é como dar conta desse processo sem o tornar excessivamente segmentado e restrito. Uma grande parte dos estudos recentes sobre ações afirmativas tem – por razões operacionais e de acesso às informações que as universidades disponibilizam – priorizado as dimensões da vida universitária ligadas à carreira discente (acesso, permanência, desempenho etc.), sem conseguir dar atenção para outras dimensões desses processos.
Com isso, sabe-se pouco ainda sobre aspectos importantes desse fenômeno relativamente novo na sociedade brasileira. Assim, discussões sobre temas tais como os efeitos das reservas de vagas para os cursos de pós-graduação ou para os concursos docentes; a inserção de egressos no mercado de trabalho; os efeitos no sistema de classificação racial entre estudantes, docentes e técnicos; as discussões sobre a colonialidade do saber; a expansão das ações afirmativas para outras categorias que não os negros de escolas públicas (trans, quilombolas, indígenas, pessoas com deficiência etc.), entre outros, têm sido pouco desenvolvidas. Da mesma forma, outros temas emergentes ainda merecem maior aprofundamento: os impactos nas pesquisas; as demandas por mudanças nos currículos (virada decolonial); a formação dos coletivos negros; o feminismo negro que se fortalece nesses espaços e fora deles; as bancas de heteroidentificação e o jogo das classificações raciais; os efeitos no ensino médio; a história da África como espaço para contextualizar o racismo no Brasil, e assim por diante.
Essas não são apenas questões acadêmicas. Elas têm uma importância prática, na medida em que o desenvolvimento de estudos nessas áreas pode trazer elementos que sirvam de parâmetros para a avaliação das políticas de ação afirmativa nas universidades. Assim, por exemplo, a discussão sobre a real situação de estudantes cotistas egressos pode servir para pensar políticas públicas para a fase pós-estudos universitários, uma vez que pouco ainda se sabe sobre isso. No mesmo diapasão, uma discussão sobre a relação entre as ações afirmativas na pós-graduação e as dinâmicas de produção de nossas elites intelectuais é de fundamental importância para se pensar sobre como tornar essas medidas mais efetivas. Uma discussão sobre os efeitos decoloniais e identitários das políticas de cotas pode também ajudar a pensar políticas antidiscriminatórias a partir das experiências de jovens beneficiados/as pelas ações afirmativas. Ou seja, ensejar a publicização de novos olhares sobre as ações afirmativas é uma forma de intervir no debate público sobre as mesmas.
Nesse sentido, o presente dossiê visa dar voz a pesquisas que estão perscrutando novas dimensões das ações afirmativas, com base em pesquisas empíricas sólidas e inovadoras. Desse modo, esperamos que os textos aqui apresentados impactem a compreensão atual sobre as ações afirmativas nas ciências humanas, de modo a interpretá-las não apenas como políticas públicas, mas também como fenômenos socioculturais, econômicos e políticos.
Essa mesma preocupação pode ser percebida em dossiês publicados recentemente em outras revistas acadêmicas. Assim, por exemplo, a seção especial denominada “Ações Afirmativas de Promoção da Igualdade Racial na Educação: Lutas, Conquistas e Desafios”, publicada no volume 43 da Revista Educação e Sociedade no ano de 2022, tem a mesma pretensão. Editado por Salomão Barros Ximenes, Nilma Lino Gomes, José Eustáquio Brito e Paulo Vinicius Baptista da Silva, os textos selecionados abordam as ações afirmativas através de temas variados em que a ênfase não recai apenas no âmbito universitário. Da mesma forma, o dossiê organizado por Antonádia Borges e Joaze Bernardino-Costa, para o número 28 (3), de 2022, da Revista MANA, vai na mesma direção. Denominado “Dessenhorizar a Universidade: 10 anos da Lei 10.711, Ação Afirmativa e Outras Experiências”, o dossiê traz textos sobre mudanças na pós-graduação, acerca do modo de se fazer antropologia, sobre as implicações das comissões de heteroidentificação etc., buscando com isso mostrar o processo em curso.
O presente dossiê busca aprofundar essa tendência, trazendo olhares até aqui pouco enfatizados nos estudos sobre ações afirmativas. Ele se inicia com o texto de Weder Bruno de Almeida e Ângela Figueredo sobre as possíveis mudanças no âmbito da produção do saber que medidas como a interiorização dos campi universitários e a introdução das cotas para negros nas graduações estão provocando. Dialogando com as teorias decoloniais, os autores buscam verificar se as demandas de novas epistemologias antirracistas e anticoloniais dos jovens que estão adentrando as universidades estão se traduzindo nos currículos das disciplinas do curso de ciências sociais da UFRB (Universidade Federal do Recôncavo da Bahia). Com efeito, a descolonização dos currículos tem sido uma das principais demandas tanto no Brasil quanto em outros países, a exemplo da África do Sul após os movimentos “Rhodes must fall” (Neves et al., 2019). Porém, apesar de uma produção crescente de intelectuais negros e de classes populares, formados a partir das políticas afirmativas, ainda são poucos os indícios de que isso está se traduzindo em mudanças curriculares nas universidades. Razão pela qual esse texto ganha um lugar ímpar nas discussões sobre os efeitos das ações afirmativas no país.
O segundo texto, de autoria de Luciana Garcia de Mello, tem o sugestivo título de “Justiça inconclusa: vícios e virtudes da política de cotas na pós-graduação da UFRGS”. Buscando desnudar os mecanismos de preservação das práticas institucionais racistas, a autora faz uma pesquisa com alunos beneficiados por ações afirmativas nas pós-graduações da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Além da diversificação da população discente dos cursos de pós-graduação, em distintas regiões do Brasil, considerando a intersecção de raça, classe e gênero, as experiências e percepções de estudantes que tiveram acesso por meio da livre concorrência e da reserva de vagas também têm atraído a atenção de pesquisadores/as. É desse tema que trata o texto em tela ao trazer uma reflexão sobre a relação entre as ações afirmativas adotadas por programas de pós-graduação da UFRGS e o enfrentamento do racismo institucional. As evidências empíricas foram produzidas através da aplicação de questionários a estudantes negros/as, de distintos cursos de pós-graduação, optantes pelas ações afirmativas, visando captar as suas percepções sobre essas medidas. Na conclusão, destacou-se que as mudanças ocasionadas pela adoção da reserva de vagas convivem com as manifestações concretas de racismo. Ou seja, fazendo a constatação de que, apesar da entrada de alunos com um novo perfil, as ações afirmativas não conseguiram vencer certas práticas racistas, a autora argumenta que há uma espécie de justiça inconclusa na introdução dessas políticas.
O texto seguinte, de Andréa Costa, Ludmila Moreira Lima e Luma Done Miranda, sobre as comissões de heteroidentificação em uma universidade federal no Rio de Janeiro, com o título “Sobre quem somos e sobre quem dizem que somos: o que revelam os rituais das Comissões de Heteroidentificação?”, tem a característica de, ao contrário da maioria dos textos sobre o tema, não se restringir à análise meramente institucional e procedimental dessas comissões e buscar o significado simbólico e ritualístico das mesmas, mostrando suas ambiguidades e dilemas. Embora algumas comissões datem do início dos anos 2000, as comissões de heteroidentificação tornaram-se comuns nas universidades públicas ao longo da última década. Pensadas como forma de controle contra as fraudes, elas têm despertado inúmeras polêmicas por conta das fronteiras indefinidas de classificação racial no país, levando à publicização de casos de candidatos com clara ancestralidade e traços físicos negros que foram excluídos de processos seletivos em algumas universidades (Neves, 2022). Discutir esse tema para além dos dogmas torna-se, pois, uma tarefa imprescindível!
As transformações que estão ocorrendo nos cursos de pós-graduação têm interessado um número cada vez maior de pesquisadores/as, que têm documentado o processo de diversificação da população discente dos cursos de pós-graduação, em distintas regiões do Brasil, considerando a intersecção de raça, classe e gênero e buscado compreender as experiências de estudantes que tiveram acesso por meio da livre concorrência e da reserva de vagas. Em 2016, foi publicada a Portaria do MEC nº 13, determinando que as instituições federais de ensino superior deveriam apresentar propostas para a inclusão de estudantes negros, indígenas e pessoas com deficiência em seus programas de pós-graduação, além de criarem comissões específicas destinadas às ações afirmativas. Segundo os dados publicados pelo Observatório de Ações Afirmativas na pós-graduação, em 2018, havia 737 programas com políticas de ação afirmativa.3
Um dos textos que integra o Dossiê aborda esse tema, traçando um panorama sobre o atual cenário das políticas de ações afirmativas na pós-graduação de uma universidade federal do sul do país, a Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), onde a implementação do sistema de cotas teve início em 2016. Trata-se do texto “Ações afirmativas na pós-graduação brasileira: o caso da UFRGS” de Éverton Garcia da Costa, que discute se têm sido considerados outros marcadores sociais da diferença, além dos étnico-raciais, como critérios para a reserva de vagas, e se existem distinções significativas entre as regras dos editais, considerando que não há uma norma geral dentro da universidade com validade para todos os programas de pós-graduação.
Por fim, o texto de Milena Mateuzi Carmo, Laura Moutinho e Klein Charles (Periferias nas universidades: Ecos das políticas de ações afirmativas) traz à luz uma questão deveras importante para pensarmos os impactos das políticas afirmativas. A partir da trajetória de mulheres periféricas que fizeram estudos universitários com o apoio de diferentes políticas afirmativas, as autoras e o autor mostram o quanto discursos e práticas vigentes nos meios acadêmicos encontram um terreno fértil nas periferias. Isso é sobretudo verdadeiro no que diz respeito ao feminismo e aos discursos antirracistas, os quais alimentam muitos dos coletivos de mulheres negras em espaços não acadêmicos. Com isso, o texto nos possibilita apreender o quanto o mundo universitário impacta outros espaços sociais em que se entrelaçam dinâmicas tão variadas quanto a pobreza, a violência, as relações de gênero etc.
Como vemos nessa rápida apresentação, o tema das ações afirmativas tem ainda muito a ser pesquisado para que possamos compreendê-lo em sua completude. Os esforços de pesquisadores, gestores públicos e, principalmente, de jovens universitários que se beneficiaram por algum dos tipos de ações afirmativas estão ampliando nossa compreensão sobre a temática. Oxalá esse dossiê possa ensejar novas pesquisas que explorem dimensões ainda pouco estudadas.
paulo.neves@ufabc.edu.brpaulabarreto14@hotmail.com