DOSSIÊ

Ações afirmativas e ciências sociais na UFRB: tensões e transformações na produção do conhecimento

Affirmative actions and social sciences at UFRB: tensions and transformations in knowledge production

Weder Bruno de Almeida
Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, Brasil
Angela Figueiredo
Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, Brasil

Ações afirmativas e ciências sociais na UFRB: tensões e transformações na produção do conhecimento

Revista Brasileira de Sociologia, vol. 10, núm. 26, pp. 17-40, 2022

Sociedade Brasileira de Sociologia

Recepção: 31 Outubro 2022

Aprovação: 31 Dezembro 2022

RESUMO: Este artigo visa compreender em que medida as Ciências Sociais e as universidades brasileiras estão se transformando e/ou sendo transformadas por uma nova configuração da geopolítica e do corpo político do conhecimento, a partir da interiorização das universidades públicas, implementada pelos governos do Partido dos Trabalhadores, e das cotas raciais. Para entender tais dinâmicas, realizamos um estudo de caso na Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, procedendo à análise do Projeto Político Pedagógico do curso de Bacharelado em Ciências Sociais, assim como da atuação de coletivos e grupos de pesquisa compostos por sujeitos negros e negras, com o intuito de identificar se há uma reprodução ou transformação da colonialidade do saber e do racismo/sexismo epistêmico nesta instituição. Para tal análise, elencamos como pressupostos teórico-metodológicos a perspectiva decolonial e o pensamento afrodiaspórico de intelectuais negros e negras que pensaram a experiência acadêmica a partir de uma perspectiva racial crítica, antes e depois das políticas de ações afirmativas.

Palavras-chave: Universidade, decolonialidade, produção do conhecimento, corpo político, ações afirmativas.

ABSTRACT: This article aims to understand to what extent the Social Sciences and Brazilian universities have experienced changes induced by a new configuration of geopolitics and the political body of knowledge based on the spread of public universities across the interior of the country, implemented by the governments of Workers’ Party (PT), and the implementation of racial quotas and affirmative actions. To understand such dynamics, we carried out a case study at the Federal University of Recôncavo da Bahia, analyzing the Political Pedagogical Project of the Bachelor’s Degree in Social Sciences and also the performance of collectives and research groups composed of black men and women, with the aim of identifying whether there is a reproduction or transformation of coloniality of knowledge and epistemic racism/sexism in this institution. For this analysis, we took as theoretical/methodological assumptions the decolonial perspective and the Afrodiasporic thinking of black intellectuals who reflected on academic experience from a critical racial perspective, before and after the implementation of affirmative action policies.

Keywords: University, decoloniality, knowledge production, body politic, affirmative actions.

Introdução

É inegável o impacto positivo da implementação das ações afirmativas no Brasil. Entretanto, ainda temos relativamente poucos estudos voltados à compreensão das dinâmicas ligadas à produção do conhecimento. Neste artigo buscamos entender como as Ciências Sociais e as universidades brasileiras estão se transformando e/ou sendo transformadas pela presença de um maior número de sujeitos/as negros/as na universidade, o que tem sido definido como uma nova configuração da geopolítica e do corpo político do conhecimento, a partir da interiorização do ensino superior e da implementação das cotas raciais e ações afirmativas.

A Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB) surgiu no contexto da expansão e interiorização das Instituições de Ensino Superior (IES),1 bem como da implementação das políticas afirmativas,2 que possibilitaram a regiões e sujeitos/as historicamente marginalizados/as na geopolítica do conhecimento ingressarem nesses espaços de produção intelectual. É importante pontuar que a UFRB está localizada em uma região periférica, do ponto de vista social e econômico, marcada por uma forte herança colonial, porém com uma rica diversidade sociocultural e de resistência de matriz africana, assim como é formada por um expressivo número de estudantes negros/as, embora com um corpo docente majoritariamente branco.3

Considerando as questões acima elencadas, realizamos uma pesquisa buscando entender em que medida a experiência do curso de Ciências Sociais na UFRB contribui para ampliar, diluir ou mesmo tensionar a relação poder/saber ocidental/eurocentrado. Para alcançar o objetivo proposto, organizamos o texto da seguinte forma: na primeira parte, apresentamos as contribuições das perspectivas teóricas decolonial e afrodiaspórica para a compreensão das transformações que estão ocorrendo nas universidades brasileiras, a partir da implementação das políticas afirmativas. Posteriormente, analisamos o curso de Bacharelado em Ciências Sociais da UFRB para averiguar se há alguma proposta diferenciada na relação ensino-aprendizagem, assim como nos conteúdos ministrados, ou se persiste a lógica da reprodução da colonialidade do poder, do saber e do ser. Por fim, descrevemos como, a partir das políticas de ações afirmativas, estão ocorrendo transformações significativas na produção do conhecimento científico, por meio da participação de sujeitos/as negros/as em grupos de pesquisa, bem como do seu engajamento político-social em coletivos dentro e fora das universidades.

A perspectiva decolonial e o debate sobre ações afirmativas

De acordo com Boaventura de Sousa Santos (2009), as linhas cartográficas e imaginárias “abissais” que distinguiam o Velho Mundo do Novo Mundo, seus territórios coloniais e a produção de conhecimento científico legitimado persistem e se reatualizam estruturalmente na lógica contemporânea ocidental de modo visível e invisível, separando-se, assim, o chamado Norte Global do Sul Global. Por Norte Global compreendem-se os países ocidentais da Europa e os Estados Unidos, enquanto o Sul Global corresponde às demais regiões que passaram por processo de colonização pós 1492 e, atualmente, refere-se aos países de regiões periféricas do sistema-mundo moderno que, após a Segunda Guerra Mundial, foram classificados pelo Norte Global como “Terceiro Mundo”, dentre as quais, encontra-se a região da América Latina.

As linhas abissais visíveis da apropriação/violência nos territórios coloniais são legitimadas pelas linhas abissais invisíveis, nas quais a realidade social dos povos colonizados é produzida como inexistente, irrelevante e incompreensível, ou seja, é excluída toda e qualquer possibilidade de produção de conhecimento e diálogo com o outro lado, ocorrendo, assim, um processo contínuo de epistemicídio contra os povos dos territórios colonizados. Dessa forma, a principal característica do pensamento abissal é a impossibilidade de existência mútua entre esses dois lados, constituindo-se tal conjuntura como uma injustiça cognitiva global.

Ramón Grosfoguel (2016) afirma que o homem branco ocidental constituiu o seu privilégio epistêmico ao longo século XVI (1450-1650), a partir de quatro genocídios/epistemicídios cometidos contra sujeitos/as coloniais, dentre os quais: os povos muçulmanos e judeus, na conquista de Al-Andalus; os povos indígenas das Américas; os povos africanos; e as mulheres europeias acusadas de bruxaria. Nesses quatro genocídios/epistemicídios perpetrados pelos povos europeus, estruturaram-se as bases epistemológicas racistas/sexistas das universidades ocidentalizadas no mundo moderno/colonial.

De acordo com Grosfoguel, o privilégio epistêmico do homem branco ocidental é utilizado de modo sistemático, como forma de subsidiar projetos imperiais/coloniais/patriarcais ao redor do mundo, tratando-se de um grave problema contemporâneo, já que esse monopólio possui o poder de definir o que é a verdade, a realidade e o melhor para os demais povos.

Todos os elementos citados se configuram como fundamentais para a elaboração da perspectiva epistemológica decolonial e podem ser utilizados de modo a subsidiar e ampliar a nossa tese acerca da importância das políticas de ações afirmativas para a decolonização do conhecimento, para a justiça social e cognitiva, tanto no contexto local quanto no global. Essa perspectiva epistemológica, proposta por intelectuais latino-americanos/as que trabalham nos Estados Unidos e na América Latina, desde meados da década de 1990, possui entre seus pressupostos básicos uma crítica ao conceito de modernidade, a partir do lugar de enunciação da América Latina, assim como uma pesquisa coletiva em torno do conceito de colonialidade e seus efeitos nefastos no continente (Castañeda, 2013).

Eles se propuseram debater diversas leituras dos problemas geopolíticos em e sobre a América Latina que diferem das iniciativas antes mencionadas ao enfocar a crítica nas construções epistêmicas. Ou seja, suas preocupações se concentram nas formas de produção do conhecimento, com seus consequentes efeitos de verdade, efeitos convertidos em práticas. O grupo parte da premissa de que as formas de dominação e as relações de poder não podem ser analisadas nem rearticuladas sem pensar nos níveis de produção do conhecimento e nos efeitos de verdade que as sustentam

(Castañeda, 2013, p. 11).

O conceito de colonialidade do poder, desenvolvido por Anibal Quijano (2005), considera que a partir da invasão do continente latino-americano pelos países europeus foram estabelecidas estruturas coloniais que abarcaram todas as esferas sociais, políticas, econômicas e culturais da sociedade, institucionalizando-se as relações de poder com base em classificações sociais expressas na ideia de raça.

A noção de raça foi uma construção mental que justificou as hierarquias dos povos e legitimou a dominação colonial, assim como a divisão e exploração racial do trabalho e a acumulação de capital, culminando na atual globalização do capitalismo moderno/colonial. Constituiu-se, assim, um novo padrão de poder mundial denominado como sistema-mundo moderno/colonial, no qual, apesar do fim do colonialismo enquanto estrutura formal de poder dominante, seus efeitos nefastos perduram até os dias atuais por meio da colonialidade do poder.

A colonialidade do poder possui como eixo epistemológico estruturante o eurocentrismo, que é disseminado por meio de instituições, como as universidades ocidentalizadas, criando dispositivos que fazem perdurar a colonialidade, que persiste e atualiza as relações coloniais de poder, abarcando as diversas dimensões sociais no continente latino-americano, como o poder político, o poder econômico, o controle sobre a natureza, a sexualidade, o gênero, a subjetividade e o conhecimento (Quijano, 2009).

Essas distintas formas de dominação também são expressas por meio da colonialidade do saber. De acordo com Castro-Gómez (2005), Lander (2005) e Mignolo (2005), a colonialidade do saber, da qual as Ciências Sociais foram signatárias, representa toda a produção de conhecimento em instituições universitárias ocidentalizadas que reproduzem o caráter eurocêntrico e hierarquizador que privilegia determinados tipos de conhecimento, tidos como universais, em detrimento de outros saberes possíveis, produzindo uma série de discursos e práticas coniventes com o racismo, o sexismo, o genocídio, o epistemicídio e demais processos sociais excludentes relacionados à diversidade cultural e histórica dos povos subalternizados.

O grupo Modernidade/Colonialidade, de intelectuais latino-americanos, questiona o conceito de modernidade e afirma que ela, tal qual nos é apresentada nas Ciências Sociais, não teria se desenvolvido exclusivamente no continente europeu e desembarcado em terras latinas, mas teria se constituído de modo intrínseco à “descoberta” do continente americano por espanhóis e portugueses, assim como nas interações e tensões com os povos indígenas e, posteriormente, os povos africanos. Dessa forma, não é possível pensar a modernidade sem a colonialidade, sendo esses fenômenos faces do mesmo contexto histórico-social. Portanto, a colonialidade se constitui como o lado oculto da modernidade, ou seja, trata-se de uma estratégia de exploração e silenciamento dos povos colonizados (Mignolo, 2005).

Contudo, Nelson Maldonado-Torres (2007) afirma que desde os primeiros momentos da invasão colonial, os povos indígenas, africanos e seus descendentes, a partir de seus processos de luta e resistência, tornaram-se sujeitos/as decoloniais, tensionadores e construtores do poder/saber no sistema-mundo moderno/colonial, bem como foram agentes primordiais dos processos de luta por descolonização e pela decolonialidade do conhecimento. Assim, a decolonialidade, para além do campo acadêmico, é também compreendida como uma atitude de resistência histórica, teórica, política e epistemológica dos agentes colonizados frente à lógica de desumanização imposta pela colonialidade do poder, do saber e do ser.

Nesse contexto, decolonialidade como um conceito oferece dois lembretes-chave: primeiro, mantêm-se a colonização e suas várias dimensões claras no horizonte de luta; segundo, serve como uma constante lembrança de que a lógica e os legados do colonialismo podem continuar existindo mesmo depois do fim da colonização formal e da conquista da independência econômica e política. É por isso que o conceito de decolonialidade desempenha um importante papel em várias formas de trabalho intelectual, ativista e artístico atualmente

(Maldonado-Torres, 2018, p. 28).

Outra dimensão abordada pela ótica teórica da colonialidade se refere à colonialidade do gênero. Para María Lugones (2014), a modernidade/colonialidade é marcada pela hierarquia dicotômica entre aqueles que são considerados humanos e aqueles que são considerados não humanos, sendo que esse processo histórico ocorreu predominantemente em prol do homem branco ocidental. Nesse sentido, o monopólio da humanidade ficou restrito aos povos ocidentais, porém, uma das hierarquias dicotômicas impostas, a partir da modernidade/colonialidade, diz respeito à distinção entre homens e mulheres, incialmente, uma distinção social e, posteriormente, uma distinção biológica.

O homem europeu, burguês, heterossexual se impôs como hegemônico para decidir os rumos da vida pública e do governo, e a mulher burguesa europeia ficou relegada à condição de reprodutora da raça e do capital, sendo-lhe atribuídas características de feminilidade, como pureza sexual, passividade e atributos domésticos. Desse modo, excluíam-se, ontologicamente, os povos indígenas e os povos africanos das categorias homem e mulher, por se tratar de espécies “não humanas”, relegadas, portanto, à condição de machos e fêmeas. Assim, impôs-se a colonialidade do gênero no sistema moderno/colonial, marcado por dicotomias ontológicas e pela interseccionalidade entre raça e gênero.

Em suma, abordamos a contribuição dos aportes teóricos da perspectiva decolonial, para a realização de uma pesquisa que confrontasse essa realidade acadêmica, ao mesmo tempo em que nos desse subsídios para ampliar o debate e reafirmar a importância das políticas de ações afirmativas para a mudança desse panorama, já que estamos inseridos/as em uma instituição de herança colonial/moderna, que historicamente contribuiu para esse quadro. O racismo/sexismo epistêmico, assim como a colonialidade do poder/saber, reproduzidos em universidades ocidentalizadas, constituem um problema que impacta e se materializa cotidianamente por meio das mais variadas formas de violência física e simbólica contra as mulheres, a população negra, os povos indígenas, as comunidades quilombolas e demais minorias sociais em nosso país.

Em seguida, apresentaremos a contribuição político/epistemológica de intelectuais negros e negras que pensaram o contexto acadêmico das universidades brasileiras, a partir da diferença racial e colonial, antes e depois das políticas afirmativas. Assim, em um momento anterior às políticas afirmativas, discutiremos brevemente as obras e trajetórias intelectuais de Guerreiro Ramos e Lélia Gonzalez. Posteriormente, dialogaremos com autores contemporâneos, como Angela Figueiredo, Joaze Bernardino-Costa e Nádia Maria Cardoso da Silva, que debatem as universidades brasileiras e o impacto das ações afirmativas a partir de uma perspectiva negra e decolonial.

Decolonialidade, pensamento afrodiaspórico e ações afirmativas

Primeiramente, neste texto, como forma de contribuir para a visibilização de intelectuais negros/as, destacaremos os seus sobrenomes em negrito, na primeira vez em que seus nomes forem citados como referência bibliográfica. Essa é uma atitude que está sendo adotada a partir de uma perspectiva feminista negra e decolonial, a fim de feminilizar e enegrecer o campo acadêmico. De acordo com Angela Figueiredo (2020, p. 8, grifos da autora):

O que destacamos agora é que não somente o gênero, a raça, a classe e também a sexualidade são elementos determinantes na configuração desses novos sujeitos ou novas sujeitas na produção do conhecimento. Destaquei a palavra sujeita, visto que essa atitude tem sido mais do que uma reinvindicação, é uma prática política voltada para feminilizar e enegrecer a linguagem nos textos produzidos por autoras e autores negros neste novo milênio. Reivindicamos também enegrecer as referências bibliográficas – procedendo de maneira análoga aos textos feministas que reconhecidamente transformaram as regras de citações, ao incluir o primeiro nome das mulheres citadas nos artigos, para fazer frente a certa masculinização das referências bibliográficas, quando apenas os sobrenomes são citados, colocando em negrito o sobrenome para indicar que aquelas são contribuições de autoras e autores negros. Desse modo, subvertemos a regra; para nós será DAVIS, Angela, por exemplo.

Mais uma vez, vale ressaltar a pertinência da teoria decolonial para compreendermos a dinâmica das hierarquias raciais presentes nas universidades brasileiras. Em vista do contexto nacional, a colonialidade do poder/saber se expressou de diversas formas, como na constituição do campo de estudos das chamadas “relações raciais”, na qual acadêmicos, majoritariamente homens brancos, tomaram a população negra como objeto de estudo para compreender as desigualdades sociais no país.

A constituição desse campo de estudo nas Ciências Sociais brasileiras remete à década de 1930, mas antecede esse período e se consolida a partir do Projeto Unesco, nos anos 1950. Sendo essa temática fundante das Ciências Sociais brasileiras, Angela Figueiredo e Ramón Grosfoguel (2007) afirmam ser mais adequado renomear esse campo para o “estudo das hierarquias raciais”, pois, assim, evidenciam-se as assimetrias dessas relações sociais de poder, em contraponto ao mito das relações raciais horizontalizadas.

Em consonância com essa perspectiva, Nádia Cardoso da Silva (2017a, p. 23) afirma que:

Apresentamos o ensino superior brasileiro como criação que fortalece o colonialismo português no Brasil e a universidade brasileira, surgida na década de 1920, como lugar de produção de conhecimento a partir da colonialidade de poder/saber sobre negros, negras e indígenas, sustentando o eurocentrismo e consolidando o racismo/sexismo epistêmico. No século XXI, os Movimentos Negros desafiam a universidade brasileira a enfrentar tais desafios através da descolonização do conhecimento acadêmico, pois, ainda que estejam adotando políticas de ampliação do acesso dos negros e negras, encaram dificuldades para operar mudanças epistemológicas que enfrentem o silenciamento epistêmico de intelectuais negros e negras. A partir da perspectiva decolonial latino-americana, visibilizamos a experiência de alguns intelectuais negros e negras como estratégia de combate ao racismo/sexismo epistêmico no Brasil.

Como exemplos paradigmáticos, no que se refere aos objetivos deste texto, optamos por evidenciar o caso de intelectuais que elaboraram suas trajetórias acadêmicas tendo como pressupostos epistemológicos suas próprias experiências raciais nas universidades ocidentalizadas. Sendo assim, faremos uma breve reflexão acerca do pensamento de Guerreiro Ramos e Lélia Gonzales, importantes figuras da intelectualidade negra brasileira e latino-americana. Debateremos como ambos foram de suma importância para o avanço da diversidade epistêmica e o enriquecimento do pensamento crítico social brasileiro, que influenciaram tanto formulações de um ponto de vista decolonial negro/a como a elaboração de políticas de ações afirmativas.

A princípio, abordaremos alguns aspectos da trajetória de Guerreiro Ramos. O autor negro, santo-amarense, da região do Recôncavo da Bahia, que foi relegado do campo das Ciências Sociais brasileiras, nos princípios de sua institucionalização nos anos de 1950/60, mas que, a partir do século XXI, teve a qualidade de sua obra reconhecida tanto por intelectuais brancos/as, como Simon Schwartzman, Marcos Chor Maio, Lucia Lippi Oliveira, como por intelectuais negros/as, como Angela Figueiredo, Nádia Maria Cardoso da Silva e Joaze Bernardino-Costa.

Vale ressaltar que esses intelectuais negros/as salientam a importância e o pioneirismo de Guerreiro Ramos para o giro decolonial nas Ciências Sociais brasileiras e latino-americanas, já que o intelectual baiano imprimiu uma perspectiva negra, ativista e afrodiaspórica em seus trabalhos (Bernardino-Costa, 2019). Porém, Angela Figueiredo e Ramon Grosfoguel (2007) ressaltam que a colonialidade do poder/saber excluiu Guerreiro Ramos do campo acadêmico, a partir do que os autores definiram como “política do esquecimento”, prática que exclui a contribuição de intelectuais negros/as na produção do conhecimento.

[D]enomino de “política do esquecimento” o mecanismo pelo qual apagamos da memória das novas gerações a contribuição acadêmica de autores negros. Consciente ou inconscientemente, raramente os autores negros estão nas bibliografias dos cursos ministrados nas universidades. Consequentemente, poucas vezes temos tido a oportunidade de conhecer a contribuição desses autores, refletindo, inclusive, não apenas sobre o conteúdo de seus trabalhos, mas sobre o contexto político-intelectual em que foram produzidos. [...] o isolamento do intelectual negro, particularmente, quando ele é politicamente comprometido com o combate às desigualdades raciais e, evidentemente, ao racismo, tal como ele se manifesta em nossa sociedade

(Figueiredo & Grosfoguel, 2007, p. 36).

De acordo com Nádia Maria Cardoso da Silva (2017b), Guerreiro Ramos expõe o racismo nas Ciências Sociais brasileiras, a partir do modo como a disciplina objetificou a população negra, por meio da estereotipação de um ser humano estático, exótico, mumificado e problemático. Na concepção de Guerreiro Ramos, essa perspectiva da população negra foi subsidiada por epistemologias sociológicas consulares e enlatadas, ou seja, teorias exógenas, que não condiziam com os fatos da realidade brasileira. Em contraposição às Ciências Sociais vigentes à época, Guerreiro Ramos (1979) defendia um pensamento sociológico autóctone, comprometido com a emancipação do povo negro brasileiro, denominando-o como “negro vida”, aquele que, apesar dos percalços sociais advindos da herança da colonização e escravidão, é sujeito da sua própria trajetória, e a faz cotidianamente.

Para além desse saber sociológico relacionado ao “negro vida”, Guerreiro Ramos (1996) sistematizou sua crítica epistemológica a partir do conceito de “redução sociológica”, referindo-se às especificidades da produção de um conhecimento sociológico a partir da América Latina, ou seja, diante de um contexto de independência colonial político-jurídica formal, porém, sem a descolonização das estruturas econômicas, das relações sociais e do pensamento, sendo esse um pressuposto fundamental para a perspectiva decolonial.

O legado construído por Guerreiro Ramos teve como fundamental subsídio o seu ativismo no Teatro Experimental do Negro (TEN), movimento social fundado por Abdias do Nascimento, em meados dos anos de 1940. É a partir dessa experiência coletiva, fora do espaço acadêmico e dialogando com o conhecimento produzido por movimentos sociais negros, que Guerreiro Ramos formula suas críticas ao negro tema e à colonialidade do saber nas Ciências Sociais brasileiras, bem como propõe a sua superação epistemológica, por meio da afirmação do locus do “negro vida”, ou seja, a partir da afirmação de um ponto de vista do sujeito negro na produção do conhecimento. Assim, em um lugar de enunciação, situado e engajado com as transformações sociais, haveria a possibilidade de uma melhor compreensão da realidade do povo brasileiro, tendo como pressuposto epistemológico o reconhecimento da população negra enquanto integrante indissociável da nação, não como algo exógeno, estranho ou fora do padrão branco idealizado.

Ademais, Guerreiro Ramos também propunha a afirmação positivada do locus epistemológico dos brancos-mestiços brasileiros, de modo que esse grupo pudesse superar suas patologias sociais, identificadas como um forte complexo de inferioridade cultural, racial/estético e intelectual com relação aos brancos europeus (Silva, 2017b).  Inclusive, como forma de descolonizar as Ciências Sociais brasileiras, de modo pioneiro, Guerreiro Ramos (1995) propõe um estudo sobre a branquitude brasileira, suas patologias sociais e seu privilégio epistêmico, visto que, historicamente, o sujeito branco teve o privilégio de ver sem ser visto, enquanto um objeto/tema/problema de pesquisa.

Além das questões relacionadas ao corpo político e à geopolítica do conhecimento, a partir de um ponto de vista afrodiaspórico, a perspectiva decolonial dialoga com as teorias feministas que, desde os anos de 1980, explicitaram o lugar epistêmico do sujeito na produção do conhecimento, de modo a desestabilizar o sujeito universal, ou seja, aquele que enuncia seu saber a partir de um lugar supostamente neutro em relação ao seu objeto de estudo. Essa estratégia epistemológica camufla seu privilégio epistêmico, marcado por uma estrutura moderna/colonial de classe, raça e gênero. Nessa perspectiva, feministas negras têm denominado seu lugar de enunciação como “ponto de vista afrocentrado” (Figueiredo & Grosfoguel, 2007).

Assim, quando debatemos sobre a colonialidade do saber, do ser e do gênero, estruturada a partir do racismo/sexismo epistêmico, não podemos deixar de mencionar Lélia Gonzalez e sua contribuição e crítica epistemológica, elaborada por meio de sua própria experiência na academia. Segundo Fernanda Cardoso Fonseca (2021), Lélia Gonzalez explicita em seus trabalhos a colonialidade do poder/saber, ao mesmo tempo em que aponta para uma atitude decolonial de desobediência epistêmica:

Lélia, em maior ou menor grau, trabalha com os aspectos que compõem, de acordo com Mignolo (2003, 2007a), os cinco níveis de controle formadores da colonialidade do poder. Novamente, percebemos a consonância do seu pensamento através da sua capacidade de interpretação da Améfrica e do Atlântico Negro. Com relação ao controle do conhecimento e das subjetividades, os efeitos do racismo e da supremacia branca no Brasil têm, sistemática e concretamente, invisibilizado, apagado e silenciado, no campo epistemológico, vozes destoantes de seu projeto. Além da subalternização e desqualificação das produções de conhecimento negras, esse processo de silenciamento se acentua ainda mais quando se trata de mulheres negras (Barreto, 2016). Por isso, ao trazer à tona essa perspectiva, Lélia supera a lógica do controle do conhecimento e das subjetividades, ao explicitar a “matripotência” da mulher negra na sociedade através da resistência e de sua intelectualidade

(Fonseca, 2021, p. 127).

Lélia Gonzalez (2020) toma para si uma posicionalidade na qual se coloca como o lixo da sociedade, ou seja, o lugar de subalternidade da mulher negra. Provocativamente, Lélia Gonzalez destaca que o lixo vai falar. E dentro da academia, o lugar epistemológico de pessoas negras era considerado o lugar do lixo, ou, no máximo, o lugar de objeto de estudo. Lélia Gonzalez denuncia autores que se tornaram cânones nas Ciências Sociais brasileiras e recebem imensa atenção em suas interpretações sobre o país, autores que objetificaram e desumanizaram a experiência da mulher negra no Brasil colonial e na contemporaneidade. Pois bem, no meio acadêmico, tendo como referências as bibliografias disponibilizadas, observa-se quem são considerados os autores clássicos, que devem constar em nossas matrizes curriculares obrigatórias, e quem ainda é considerado marginal e, esporadicamente, aparece em algum componente curricular optativo.

É importante observar como Lélia Gonzalez denunciava a colonialidade do saber contra o povo negro, por meio da internalização e reprodução de valores brancos ocidentais, tidos como ideais. A ciência produzida na academia é um meio privilegiado de difusão desses valores, denominados por Boaventura de Sousa Santos (2009) como uma imposição da monocultura da ciência. Dessa forma, Lélia Gonzalez abre uma importante reflexão para que a composição curricular se torne mais plural.

A autora é de suma importância para o pensamento decolonial e afrodiaspórico contemporâneo, pois elaborou uma perspectiva política/epistemológica denominada feminismo afro-latino-americano, que tem como base primordial a sua atuação e militância em movimentos sociais negros, como o próprio Movimento Negro Unificado (MNU) e os movimentos feministas. A partir de uma perspectiva crítica das relações de poder dentro do movimento negro, a intelectual não deixa de afirmar que os homens negros, em muitas situações, acabavam por reproduzir práticas sexistas do patriarcado dominante, excluindo as mulheres negras dos espaços de decisão. Nos movimentos feministas dos quais fazia parte, em muitos casos, também havia uma reprodução da exclusão e invisibilização das mulheres negras, a partir de uma lógica de dominação racista.

A perspectiva do feminismo afro-latino-americano se torna crucial para o fortalecimento, tanto dos movimentos sociais negros como dos movimentos feministas. Além do mais, sua perspectiva teórica também pode subsidiar outras epistemologias de resistência, que interajam de forma mais horizontal com a realidade das universidades brasileiras e com os movimentos sociais, a partir do contexto de exploração colonial/moderno latino-americano.

Cabe aqui um dado importante da nossa realidade histórica: para nós, amefricanas do Brasil e de outros países da região – assim como para as ameríndias – a conscientização da opressão ocorre, antes de qualquer coisa, pelo racial. Exploração de classe e discriminação racial constituem os elementos básicos da luta comum de homens e mulheres pertencentes a uma etnia subordinada. A experiência histórica da escravização negra, por exemplo, foi terrível e sofridamente vivida por homens e mulheres, fossem crianças, adultos ou velhos. E foi dentro da comunidade escravizada que se desenvolveram formas político-culturais de resistência que hoje nos permitem continuar uma luta plurissecular de liberação. A mesma reflexão é válida para as comunidades indígenas. Por isso, nossa presença nos movimentos étnicos bastante visível; aí nós, amefricanas e ameríndias, temos participação ativa e, em muitos casos, somos protagonistas.

(Gonzalez, 2020, p. 134)

Acreditamos que o ponto de vista afrodiaspórico desses autores acerca das universidades ocidentalizadas esteja alinhado com a perspectiva do pensamento decolonial e a política de ações afirmativas, pois apontam para uma diversidade epistêmica na produção do conhecimento, a partir da perspectiva de sujeitos/as coloniais que foram historicamente subalternizados e que tensionaram e tensionam conhecimentos hegemônicos.

Apesar das históricas resistências materializadas pela colonialidade do poder/saber nas universidades ocidentalizadas, vislumbramos como promissoras as propostas e ações de democratização da educação superior no Brasil. Elas são resultado das constantes lutas dos movimentos sociais negros por acesso à educação, sendo Guerreiro Ramos e Lélia Gonzalez figuras emblemáticas, referências de engajamento político e epistemológico, tanto para professores/as negros/as como para as novas gerações de intelectuais que ingressaram através das políticas de cotas e que agora estão comprometidos/as com a justiça social e as transformações da sociedade brasileira.

A importância das políticas afirmativas para a decolonização do pensamento

Neste tópico discutiremos como, a partir da expansão, interiorização e democratização do acesso às universidades públicas brasileiras, por meio das políticas afirmativas, sujeitos/as negros/as, organizados em coletivos estudantis e grupos de pesquisa, têm reivindicado a incorporação de intelectuais negros e negras, como Guerreiro Ramos e Lélia Gonzalez, nos currículos e bibliografias dos cursos, enquanto estratégia de descolonização das universidades.

De acordo com Figueiredo (2016), a ampliação de estudantes negras/os nas universidades tem contribuído deveras para que se exerça um maior tensionamento entre os/as professores/as no sentido de incorporarem autores negros/as e africanos/as nas bibliografias adotadas pelos cursos, ampliando as possibilidades da produção de saberes decoloniais, afrodiaspóricos e contra-hegemônicos, como o feminismo negro.  Essa perspectiva corrobora a experiência de muitos/as estudantes, inclusive aquela de um dos autores deste artigo, Weder Bruno.

É importante destacar aqui a diferença geracional entre os dois autores deste artigo, pois isso revela muitos aspectos relacionados às dinâmicas raciais no Brasil ao longo dos últimos 30 anos, as trajetórias acadêmicas, o arcabouço teórico utilizado, a disputa de narrativas e a busca por referenciais negros na bibliografia, o que demonstra uma consciência da colonialidade do saber/poder, do epistemicídio e da monocultura do saber existentes nas universidades.

Ao enfatizar as trajetórias dos dois autores, notamos que o primeiro ingressou no Bacharelado de Ciências Sociais da UFRB, no ano 2013, pelo sistema de cotas raciais e ensino público, e que se inseriu nos núcleos e coletivos negros que emergiram através da ampliação do número de estudantes negros/as e, em menor medida, de professores/as negros/as nas universidades. O Núcleo de Negras e Negros Estudantes da UFRB (NNNE)- Núcleo Akofena é um dos núcleos e coletivos negros formados a partir da ampliação do número de estudantes negros/as nas universidades públicas. O Akofena realiza reuniões para estudar e discutir autores/as negros/as em busca de outras bases epistemológicas e interdisciplinares que não faziam parte da matriz curricular e que, simultaneamente, contemplam as identidades raciais, práticas políticas, epistemológicas e diversidade cultural de seus/suas integrantes. Consequentemente, essa atitude proporciona subsídios que norteiam pesquisas acadêmicas engajadas com a realidade de seus/suas integrantes. Ademais, frequentemente os/as estudantes sugerem a inclusão de autores/as negros/as na bibliografia dos cursos ministrados, já que, em geral, o corpo docente não tinha acesso às referências que eram demandadas. Essa atitude estimula o compartilhamento de informações e reflexões acerca dos temas abordados, tornando o conhecimento, minimamente, mais horizontalizado.

Em contrapartida, a segunda autora deste artigo também teve toda a sua formação acadêmica na universidade pública, mas com poucos colegas negros/as e nenhum/a professor ou professora negra. Ademais, a geração da qual ela faz parte se diferenciava de gerações anteriores, em que o acesso à educação formal em nível universitário era visto como um processo de branqueamento. Mas ela faz parte de uma geração que foi sendo formada pelo conhecimento acadêmico e pelo conhecimento propiciado pelos movimentos negros. No texto “Carta de uma ex-mulata a Judith Buttler”, Angela Figueiredo (2015) discorre sobre o processo de tornar-se negra e de como a afirmação da identidade foi determinante para a conquista de direitos. Apenas em algumas universidades existiam os Núcleos de Estudos Afro-Brasileiros (NEABS) e os movimentos estudantis eram coletividades associadas aos partidos políticos de esquerda.

Ademais, além dos aspectos relacionados à formação, há ações políticas que merecem ser aqui mencionadas. Em 2015, o Núcleo Akofena constituiu uma campanha pela implementação de cotas e políticas afirmativas na Pós-Graduação da UFRB, já que o ingresso na Pós-Graduação é um passo necessário para dar prosseguimento à carreira docente e, consequentemente, transformar a geopolítica e o corpo político do conhecimento nas universidades.

Como consequência de uma intensa mobilização por parte de docentes e discentes que compreendiam essa importante política equitativa, a UFRB finalmente montou a Comissão de Instauração da Política de Cotas e Ações Afirmativas na Pós-Graduação. Essa comissão contou com a participação de representantes do Núcleo Akofena e o do Núcleo de Estudantes Negros/as Sankofa, do Centro de Formação de Professores (CFP – Amargosa), e, enfim, no semestre de 2018.1 foi realizado o primeiro processo seletivo com reserva de vagas para Pós-Graduação na UFRB. Vale ressaltar que, inicialmente, a proposta de cotas e políticas de ações afirmativas incluía a reserva de vagas, além das cotas raciais, para estudantes oriundos de escolas públicas, e incluía a reserva de vagas proporcionais para indígenas, quilombolas, pessoas trans e pessoas deficientes.

Infelizemente, em um primeiro momento, a reserva de vagas não garantiu políticas de bolsa e permanência, fato que recentemente foi colocado em pauta, de modo que, no semestre de 2020.1, a UFRB lançou o primeiro edital do Programa de Permanência Qualificada da Pós-Graduação (PPQ-Pós), que teve como objetivo primordial contemplar os Programas de Pós-Graduação, qualificar a permanência de pós-graduandos, fomentar as pesquisas e a produção acadêmica e consolidar as políticas afirmativas no âmbito da universidade. É importante frisar que, no ano de 2020, um dos autores do artigo, Weder Bruno, ingressou no Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da UFRB justamente pela política de cotas, no qual foi contemplado pelo programa PPQ-PÓS.

Outro exemplo importante são as ações do Coletivo Angela Davis (UFRB), que alinha a sua proposta político-acadêmica com a importância de discutir as intersecções entre gênero, raça, classe e subalternidades. O Coletivo faz uso de outros referenciais teórico-epistemológicos, aos quais, via de regra, os estudantes não têm acesso em suas bases curriculares e bibliografias oficiais. Além da contraposição ao racismo/sexismo epistêmico, o Coletivo propõe estabelecer relações mais horizontalizadas com os movimentos sociais e considera como um dos seus princípios epistemológicos o feminismo negro, no qual o conhecimento é construído tanto dentro quanto fora do espaço acadêmico.

O Coletivo Angela Davis, composto majoritariamente por mulheres negras, assim como estudantes cotistas, atua em diversas frentes, dentro e fora da academia. Atua na formação, pesquisa e extensão, oferendo cursos de formação básica sobre Feminismo Negro para participantes internas/os e externas/os; promove eventos públicos, como Saraus, Seminários de Pesquisa, Rodas de Conversa, Aulas Públicas, Laboratórios de Escrita e Consultoria para projetos de Mestrado e Doutorado para estudantes negras/os. Em tempos de pandemia da Covid-19, o Coletivo também promoveu lives pelo Instagram como o “Papo de pesquisa”4 e webinários, em parceria com o Grupo de Pesquisa A Cor da Bahia da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e com o Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre a Mulher (NEIM/UFBA), com temáticas voltadas para a educação e o racismo/antirracismo em perspectiva comparativa entre Brasil e Estados Unidos (Formação e Estudos sobre Racismo e Antirracismo, 2020a, 2020b).

Já o Coletivo Luíza Bairros (UFBA), que possui integrantes do Coletivo Angela Davis entre seus participantes, formado em 7 de outubro de 2016, é também uma experiência importante, do ponto de vista da articulação entre professores, servidores técnicos e estudantes universitários. Dentre as ações propostas, um dos objetivos do Coletivo é acompanhar a implementação das cotas para os cargos de professores universitários. As denúncias realizadas por esse Coletivo foram importantes para garantir o cumprimento da Portaria Normativa 13/2016 do MEC para a implementação das cotas na Pós-Graduação em sua integralidade, assim como atuam na aplicação da Lei 12.990/14, que reserva para a população negra 20% das vagas nos concursos públicos de administração federal. Por isso, o Coletivo se propõe a debater e atuar em um novo projeto de Estado, denunciando o racismo institucional e promovendo o reconhecimento dos saberes e cosmovisões afrocentrados, como aponta em seu manifesto de fundação (Coletivo Luiza Bairros, 2017).

A partir desse contexto, o primeiro autor deste artigo foi influenciado a realizar o seu TCC, no qual analisou o currículo do Bacharelado em Ciências Sociais da UFRB, para entender, na prática, como se reproduz a colonialidade do poder/saber. Com relação à geopolítica do conhecimento, os resultados apontaram que ainda existe uma grande disparidade entre a bibliografia presente no Projeto Pedagógico do Curso (PPC) e a demanda de sujeitos/as coloniais, que foram historicamente excluídos da esfera acadêmica.

Os dados coletados indicaram que 92% do conteúdo disponibilizado no currículo pertencem ao chamado Norte Global (Europa/Estados Unidos), reafirmando a colonialidade do saber e o privilégio epistêmico do homem branco ocidental, em detrimento de uma pluralidade dos saberes e das múltiplas Epistemologias do Sul, como reivindica Boaventura de Souza Santos (2009). Ou seja, o PPC analisado ainda não foi impactado/transformado pela demanda dos/as estudantes negros/as, indígenas, quilombolas, cotistas ou não.

Com referência ao gênero, verificou-se que 74% dos autores que fazem parte do currículo são homens. Com relação à raça, identificou-se uma enorme prevalência de autores brancos/as, equivalente a 97,4% da bibliografia disponibilizada. Em relação à representação de autores/as negros/as nas bibliografias do curso, identificou-se uma presença de apenas 2,6%, sendo que 1,8% é composta por homens negros e apenas 0,8%, por mulheres negras. Além do mais, nenhum autor indígena é mencionado no currículo do curso.

Porém, a pesquisa apontou para os esforços de docentes e discentes, no sentido de promover ações conjuntas que visem superar o modelo hegemônico de produção do conhecimento. Mencionamos os diversos momentos em que o corpo docente se alinhou aos discursos e práticas acadêmicas contra-hegemônicas, por meio de eventos, palestras e reformulações nas bibliografias, principalmente em componentes optativos. É paradigmático o exemplo de um componente no qual a bibliografia disponibilizada era composta pelos TCCs dos próprios estudantes do curso, dando acesso ao conhecimento produzido na região. Nessa ocasião, tivemos a oportunidade de apresentar e discutir nosso trabalho em sala de aula e perceber a recepção positiva dos/as estudantes em relação à nossa pesquisa.

Outro importante dado relacionado à pesquisa se refere ao corpo político do conhecimento no âmbito docente do curso. Dos 18 profissionais, 13 eram homens e apenas cinco mulheres, o que equivale a 72% de profissionais do sexo masculino. Em relação à raça, apenas quatro docentes eram negros/as; destes, três eram homens e apenas uma, mulher, o que equivale a 22% da composição docente. Os homens negros representavam 16% e as mulheres negras, 5%. Não havia nenhuma representação indígena no corpo docente. Ao fazermos um debate acerca das diretrizes curriculares presentes no curso, não podemos ignorar a composição do corpo docente que produz essas diretrizes, pois é a partir de distintos lugares de enunciação que relações de poder podem ser observadas, a partir das posições que estes/as sujeitos/as ocupam na estrutura moderna/colonial.

De todo modo, essas experiências de coletivos de estudantes e de grupos de pesquisa demostram como, após as políticas de ações afirmativas, estão ocorrendo transformações significativas na relação entre sujeito/objeto na produção do conhecimento, particularmente no que diz respeito à redução da hierarquia presente nessa relação, bem como à busca de diálogo e interlocução continuada da universidade com os movimentos sociais. Compreendemos que tais iniciativas ainda são escassas no espaço acadêmico, no entanto, não podemos deixar de ressaltar a importância das políticas afirmativas para a contínua transformação desse quadro.

Considerações finais

O objetivo central deste artigo foi, a partir de um estudo de caso realizado na Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, compreender a importância das políticas de ações afirmativas na produção do conhecimento, através da utilização de perspectivas epistemológicas contra-hegemônicas, como o feminismo negro, o pensamento afrodiaspórico e o pensamento decolonial negro. Nesse sentido, resgatamos as contribuições de autores como Guerreiro Ramos e Lélia Gonzalez, que pensaram a universidade a partir de uma perspectiva racial e da diferença colonial, assim como dialogamos com autores contemporâneos, a exemplo de Angela Figueiredo e Joaze Bernardino-Costa, que pensam a produção do conhecimento a partir de uma perspectiva negra e decolonial em um contexto de pós-implementação das ações afirmativas. Tendo em vista o nosso próprio locus geopolítico do conhecimento, ou seja, a UFRB, vislumbramos como as ações afirmativas podem contribuir para uma maior diversidade epistêmica perante a colonialidade do poder/saber e do racismo/sexismo presente nas universidades ocidentalizadas. Salientamos que o nosso engajamento político/acadêmico está diretamente ligado ao reconhecimento, e que nossa experiência é pessoal e coletiva, enquanto pesquisador negro, advindo da escola pública, cotista, assistido pelas políticas de ações afirmativas e que está comprometido com a produção de um conhecimento que visa à superação das desigualdades raciais e sociais.

Ainda que tanto a bibliografia quanto o corpo docente do curso analisado sejam compostos majoritariamente por um corpo masculino e branco, visto que dos 18 docentes, apenas uma era uma professora negra, observa-se um esforço de docentes e discentes negros no sentido de promoverem ações conjuntas que visem enegrecer a bibliografia, buscando superar o modelo hegemônico de produção do conhecimento eurocentrado.

Dessa forma, com o auxílio das políticas afirmativas, continuamos a seguir os passos político-intelectuais de autores negros e negras brasileiros/as, que contribuíram para a produção de um conhecimento comprometido com a transformação da sociedade, em busca da superação das desigualdades sociais e raciais.

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Notas

1 Durante os governos federais de Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff foi implementado, através do Decreto n° 6.096/2007 o Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (REUNI) que, no período vigente de 2003 a 2014, financiou a construção de 18 universidades federais e 173 campi em cidades no interior do Brasil, entre elas, a UFRB.
2 A UFRB aplica a Lei nº 12.711/2012 integralmente, reservando 50% das vagas para estudantes que se enquadram nesse perfil.
3 A UFRB possui 38,02% de estudantes pretos/as, enquanto a média nacional é de 8,72%. Também possui um quadro de 46,28% de estudantes autodeclarados/as pardos/as, superior à média nacional, de 32,08%. Assim, esta universidade possui 84,3% de seu corpo discente composto por estudantes negros e negras, sendo considerada, proporcionalmente, a universidade mais negra do país. Desse universo de estudantes negros/as, 71,89% se encontram em situações de extrema vulnerabilidade social, nas linhas econômicas das classes C, D e E, de acordo com Ronaldo Crespim Sena Barros (2013).
4 Esta atividade é pensada como um espaço mais informal, destinado a conversar sobre os processos, as metodologias e os desafios de fazer pesquisa, bem como um meio de democratizar o acesso ao conhecimento.

Autor notes

Mestrando pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB).
Professora do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia.

weder.bruno@hotmail.comangelaf39@gmail.com

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