RESUMO: O debate em torno das ações afirmativas na pós-graduação brasileira é relativamente recente. A literatura da área aponta que a adoção de ações afirmativas pelos programas de pós-graduação das IES públicas no país data do início dos anos 2000. A discussão se intensificou na segunda década do século XXI, no contexto da publicação da Lei nº 12.711/2012, que instituiu a reserva de vagas para estudantes negros e egressos de escola pública na rede federal de ensino superior, e da Lei nº 12.990/2014, que estabeleceu a reserva de 20% das vagas em concursos públicos para candidatos negros. Mais recentemente, o Ministério da Educação publicou a Portaria nº 13/2016, a qual determinou que as instituições federais de ensino superior deveriam apresentar propostas para a inclusão de estudantes negros, indígenas e pessoas com deficiência em seus programas de pós-graduação, além de criarem comissões específicas destinadas às ações afirmativas. Dentro desse contexto mais amplo, procurou-se traçar neste artigo um panorama sobre o atual cenário das políticas de ações afirmativas na pós-graduação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Os resultados mostram, sobretudo, que a implementação do sistema de cotas nos programas da UFRGS começou em 2016, o que talvez seja reflexo da Portaria nº 13/2016. Seguindo uma tendência nacional, têm sido considerados outros marcadores sociais da diferença além dos étnico-raciais como critérios para a reserva de vagas; há diferenças significativas entre as regras dos editais, dada a inexistência de uma norma geral dentro da universidade para todos os programas.
Palavras-chave: Ações afirmativas, pós-graduação, UFRGS.
ABSTRACT: The debate around affirmative action in Brazilian graduate education is relatively recent. The literature on the subject indicates that the adoption of affirmative actions by the graduate programs of Brazilian public HEIs dates from the early 2000s. The discussion was intensified in the second decade of the 21st century, in the context of the enactment of the 12.711/2012 Federal Law, which instituted the reservation of undergraduate vacancies for black and public school students in the federal higher education network, and of the 12.990/2014 Federal Law, which established the reservation of 20% of vacancies in public official selections for black candidates. More recently, the Ministry of Education published Ordinance No. 13/2016, which determined that federal higher education institutions should submit proposals for the inclusion of blacks, indigenous people, and people with disabilities in their graduate programs, also creating specific commissions for affirmative action. Within this broader context, we have sought to provide in this article an overview of the current scenario of affirmative action policies in graduate courses at the Federal University of Rio Grande do Sul (UFRGS). The results mainly show that the implementation of the reservation of vacancies in UFRGS programs started in 2016, which may be a reflection of Ordinance No. 13/2016. Following a national trend, other social markers of difference in addition to ethnic-racial ones have been considered as criteria for reservation of vacancies; there are significant differences between the rules of the notices, given the lack of a general rule within the university for all programs.
Keywords: Affirmative actions, graduate program, UFRGS.
DOSSIÊ
Ações afirmativas na pós-graduação brasileira: o caso da UFRGS
Affirmative actions in Brazilian graduate studies: the case of UFRGS
Recepção: 30 Setembro 2022
Aprovação: 31 Dezembro 2022
O ano de 2022 foi marcante na história das políticas de ações afirmativas no Brasil, pois representou dez anos da criação da Lei nº 12.711/2012, a Lei de Cotas, a qual instituiu a reserva de vagas para estudantes pretos, pardos, indígenas, oriundos de escola pública e pessoas com deficiência (a partir de 2016) nas universidades federais e nos institutos federais de educação, ciência e tecnologia. Se, por um lado, essa lei representa, sem dúvida, um grande avanço para a democratização do acesso ao ensino superior no país, por outro, a demora na criação de uma lei nacional – que não se deu sem resistência das elites brasileiras1 – evidencia os enormes obstáculos que historicamente se impuseram à implementação das ações afirmativas no Brasil.
A Lei de Cotas integra um conjunto amplo de políticas de ação afirmativa criadas nos últimos anos, as quais visam reduzir a gritante desigualdade socioeconômica e o racismo estrutural, problemas crônicos que acompanham o desenvolvimento do Brasil como nação. Dentro desse conjunto de medidas adotadas recentemente está a Portaria nº 13/2016, publicada pelo Ministério da Educação (MEC) com o objetivo de incentivar a implementação das ações afirmativas nos programas de pós-graduação das instituições federais de ensino superior (IFES) – iniciativa esta que, vale destacar, já vinha sendo adotada por alguns programas de pós-graduação (PPG) espalhados pelo país, pelo menos desde o início do século XXI.
Nesse cenário, o objetivo deste artigo consistiu em traçar um panorama atual sobre as ações afirmativas na pós-graduação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). O texto está dividido em quatro seções, além desta introdução e das considerações finais. Na primeira seção, apresentamos o contexto histórico-social em torno do debate sobre ações afirmativas no ensino superior brasileiro. Depois, fazemos uma breve contextualização das ações afirmativas na pós-graduação nacional. Na sequência, analisamos 18 editais de programas da UFRGS que possuem reserva de vagas em seus cursos de mestrado e doutorado. Por fim, tecemos algumas breves considerações sobre políticas de acesso e permanência na pós-graduação da UFRGS para estudantes cotistas.
O conceito de ação afirmativa é bastante complexo e amplo. Para Oliven (2007, p. 30), as ações afirmativas são “um conjunto de políticas públicas para proteger minorias e grupos que, em uma determinada sociedade, tenham sido discriminados no passado”. O objetivo central desse tipo de política, argumenta a autora, é remover as barreiras históricas que impedem ou dificultam o acesso de determinados grupos sociais a certos espaços, como o mercado de trabalho (especialmente os melhores cargos e ocupações), a universidade e cargos de liderança. Por sua vez, Feres Junior et al. (2018, p. 13) definem como “ação afirmativa todo programa, público ou privado, que tem por objetivo conferir recursos ou direitos especiais para membros de um grupo social desfavorecido, com vistas a um bem coletivo.” Para esses autores, os resultados da implementação desse tipo de programa envolvem acesso à educação, ao emprego, aos serviços de saúde, a redes de proteção social, à participação política, entre outros recursos igualmente relevantes.
O debate em torno da inserção de ações afirmativas no ensino superior brasileiro – materializadas sobretudo sob a forma da reserva de vagas, popularmente conhecida como “sistema de cotas” – não é de hoje: na verdade, essa é uma a discussão que se iniciou no final do século passado, mas que adquiriu força, de fato, a partir de meados dos anos 2000. A experiência com ações afirmativas para minorias raciais nos Estados Unidos nas décadas de 1960 e 1970 teria grande influência nesse processo. Domingues (2005) destaca que o termo “ação afirmativa” foi criado em 1963, no governo do presidente John F. Kennedy. Segundo Gomes e Silva (2001), a adoção desse tipo de política social visava apresentar uma resposta efetiva a um problema crônico da sociedade norte-americana: a marginalização dos cidadãos negros. Depois, a reserva de percentuais mínimos nas universidades também seria ampliada às mulheres, aos indígenas e outras minorias étnicas, tornando-se uma referência para outras nações (Gomes & Silva, 2001; Gomes, 2005).
Como o Brasil, os Estados Unidos também se construíram como nação após séculos de exploração da mão de obra de negros e negras escravizados, o que resultou num país com um profundo racismo estrutural. A adoção da reserva de vagas para minorias raciais no ensino superior estadunidense, embora tenha sido evento pontual,2 apresentou resultados importantes na redução da desigualdade racial: o percentual de estudantes afro-americanos entre 18-24 anos matriculados na educação superior passou de menos de 10% em 1964, para mais de 20% em 1976, mesmo percentual de estudantes hispânico-americanos (Gumport et al., 1997).
A experiência norte-americana – não obstante as especificidades históricas, políticas, econômicas, sociais e culturais dos Estados Unidos – mostrou ao Brasil o papel fundamental das ações afirmativas no processo de desconstrução do racismo estrutural e da criação de oportunidades para a população negra. É importante destacar, nesse sentido, conforme o argumento de Guimarães (2003), que, entre as décadas de 1970 e 1980, ocorreu uma mudança central nas pautas de mobilização do movimento negro no Brasil, de maneira que a situação de pobreza da população negra deixa de ser atribuída ao preconceito de cor, passando a ser associada sobretudo à discriminação racial e à desigualdade de oportunidades entre negros e brancos. Nesse sentido, no contexto do processo de redemocratização do país, passa a aumentar a demanda e a pressão das lideranças negras sobre o governo federal no sentido da adoção de programas de ações afirmativas para promoverem igualdade de oportunidades entre negros e brancos (Guimarães, 2003).
Assim, vale observar que, embora a pressão pela adoção de ações afirmativas no ensino superior brasileiro tenha se iniciado ainda no findar da década de 1980, a criação de uma legislação nacional para a reserva de vagas para estudantes negros nas universidades públicas só ocorreria mais de três décadas depois, com a publicação da Lei de Cotas em 2012. Toda essa demora na promulgação de uma lei federal para cotas raciais está diretamente atrelada a um conjunto de fatores, especialmente ao famigerado “mito da democracia racial”. Conforme Guimarães (2001), esse mito se baseia no falso argumento bastante difundido de que o Brasil se desenvolveu como uma sociedade “sem linha” de cor, de modo que negros e brancos teriam as mesmas oportunidades de ascensão social. Esse mito,
[...] no Brasil moderno, deu lugar à construção mítica de uma sociedade sem preconceitos e discriminações raciais. Mais ainda: a escravidão mesma, cuja sobrevivência manchava a consciência de liberais como Nabuco, era tida pelos abolicionistas americanos, europeus e brasileiros, como mais humana e suportável, no Brasil, justamente pela ausência dessa linha de cor
(Guimarães, 2001, p. 3).Consequentemente, embora a desigualdade racial esteja materializada em uma série de indicadores socioeconômicos amplamente conhecidos,3 durante muito tempo ela foi mascarada pelo mito de que no Brasil – devido à miscigenação e à suposta convivência pacífica entre as raças – não existe racismo. Mito esse, vale destacar, o qual permanece vivo até hoje. A infeliz fala proferida recentemente, em 2019, pelo ex-vice-presidente da República e atual senador, Hamilton Mourão nos mostra isso: “Para mim, no Brasil não existe racismo. Isso é uma coisa que querem importar aqui para o Brasil. Isso não existe aqui” (Mazui, 2020). Falas como essa não devem ser interpretadas como um mero desconhecimento da história e da realidade brasileira – o que por si só já seria extremamente preocupante, dado o fato de ter sido proferida por alguém que ocupa o cargo de senador da República. Na verdade, por trás da fala de Mourão, há todo um discurso que procura, por um lado, sedimentar um histórico de mais de 350 anos de exploração de mão de obra de negros e negras escravizados, que foram libertos sem nenhum tipo de projeto de integração social, e por outro, esconder (ao mesmo tempo em que legitima) a posição de dominância dos brancos em relação aos negros no Brasil.
O mito da democracia racial – materializado em discursos como o de Mourão – historicamente criou barreiras à formulação de políticas públicas direcionadas à desconstrução do racismo estrutural no Brasil. No caso do ensino superior, isso é bastante visível nos discursos favoráveis à adoção de cotas baseadas em critério de renda, mas contrários às cotas raciais. Os principais argumentos nessa direção baseiam-se na crença – equivocada e que ignora a herança de mais de 350 anos de escravidão – de que a criação de cotas sociais automaticamente beneficiaria os negros, maior parcela da população em situação de pobreza no país.4 Com efeito, a criação da Lei de Cotas, uma lei temporã que abrange toda a rede federal de ensino superior, foi uma vitória alcançada somente depois de vários projetos frustrados e, principalmente, após décadas de lutas, resistência e pressão dos movimentos negro e antirracista.
Também é preciso salientar aqui que o sistema de cotas começou a ser adotado no país uma década antes da criação da Lei nº 12.711/2012, por iniciativa própria de algumas universidades, ou a partir da criação de legislações em âmbito estadual. A Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) e a Universidade Estadual do Norte Fluminense (Uenf) carregam o título simbólico de primeiras universidades públicas brasileiras a adotarem o sistema de cotas raciais, o que foi feito em 2001. No ano seguinte, a Universidade do Estado da Bahia (Uneb) não apenas tomaria a mesma decisão, como também ampliaria a reserva de vagas raciais para a pós-graduação. Mais tarde, em 2007, a Uneb também adotaria reserva de vagas para estudantes indígenas (Mattos, 2010). Em 2004, a Universidade de Brasília (UnB) tornar-se-ia a primeira universidade federal com reserva de vagas para estudantes negros. A esse movimento por parte das IES públicas somou-se a criação da Lei nº 12.288/2010, que instituiu o Estatuto da Igualdade Racial, “destinado a garantir à população negra a efetivação da igualdade de oportunidades, a defesa dos direitos étnicos individuais, coletivos e difusos e o combate à discriminação e às demais formas de intolerância étnica” (Brasil, 2010, online). A promoção da igualdade racial, segundo o Estatuto, deveria ser assegurada através de um conjunto de medidas, entre elas, as ações afirmativas, entendidas como “programas e medidas especiais adotados pelo Estado e pela iniciativa privada para a correção das desigualdades raciais e para a promoção da igualdade de oportunidades” (Brasil, 2010, online).
Como desdobramento do Estatuto da Igualdade Racial, foi sancionada, em agosto de 2012 a Lei nº 12.711, que determina a reserva de 50% das vagas nos cursos de graduação nas IES federais para estudantes que cursaram o ensino médio integralmente em escolas públicas. Dentro desse percentual, a lei determina ainda que metade das vagas seja reservada para estudantes com renda familiar igual ou inferior a 1,5 salário-mínimo per capita, bem como que seja reservado um percentual mínimo para autodeclarados pretos, pardos e indígenas e pessoas com deficiência, de acordo com o percentual desses grupos nas respectivas unidades da federação, segundo o último censo do IBGE. Essa lei representa um marco na busca pela democratização do ensino superior público brasileiro, historicamente restrito às elites. Significa também um marco na desconstrução do racismo estrutural. O estudo realizado por Campos e Peixoto (2022) a partir dos dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) aponta que o percentual de estudantes das classes C, D e E no ensino superior público passou de 19,3% em 2001, para 50% em 2021. Nesse mesmo período, os estudantes pretos, pardos e indígenas saltaram de 31,5% para 52,4%.
É nesse contexto de implementação do sistema de cotas na graduação que começa a se aprofundar o debate em torno das políticas de ação afirmativa na pós-graduação. Embora se trate de um tema relativamente recente, ele tem adquirido centralidade nas discussões sobre ensino superior no Brasil. Há hoje um conjunto bastante relevante de produções recentes que merecem destaque, como, por exemplo, os trabalhos de Venturini (2017, 2021a, 2021b), Venturini e Feres Jr. (2020), Bernardino-Costa e Borges (2021), Vanali e Silva (2019), Feres Jr. et al. (2018), entre outros. Existe também um Observatório de Ações Afirmativas na Pós-graduação (OAAP), o qual monitora editais dos programas e as resoluções adotadas pelas universidades públicas.5
Venturini (2017) argumenta que hoje o acesso às melhores carreiras profissionais tem exigido mais do que o diploma de graduação, o que torna necessária a adoção de programas de ação afirmativa também nos cursos de mestrado e doutorado. Segundo a autora, o ingresso desse tema dentro das universidades públicas do país pode ser dividido em três momentos distintos: i) 2000-2011 – fase inicial de circulação de ideias, ainda restrita a poucos PPGs e sem difusão nacional; ii) 2012-2016 – momento em que o tema de fato ingressa nas duas principais instâncias decisórias do ensino superior no país, ou seja, o MEC e a Coordenadoria de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes); iii) 2016 para cá – momento em que as ações afirmativas começam de fato a se difundir pelos programas e pelo país (Venturini, 2021a). O início dessa terceira fase é marcado pela Portaria nº 13/2016 do MEC. Publicada em 12 de maio de 2016, o documento estabeleceu um prazo de 90 dias para que as IFES apresentassem propostas de ação afirmativa para a inclusão de negros (pretos e pardos), indígenas e pessoas com deficiência em seus programas de pós-graduação. Determinou ainda que as IFES deveriam criar comissões específicas para aperfeiçoar e concretizar as propostas então apresentadas. O documento estabelece também que compete à Capes a organização periódica do censo discente da pós-graduação brasileira e ao MEC organizar um grupo de trabalho com a finalidade de monitorar as ações então dispostas na Portaria (Brasil, 2016).
Como destaca Venturini (2021a), a pressão exercida por duas entidades, a Educafro e a Associação Nacional de Pós-Graduandos (ANPG), foi decisiva não só para a edição da Portaria nº 13/2016, mas também para sua manutenção. A autora afirma que a edição da Portaria acabou sendo feita em curto intervalo de tempo, em decorrência da abertura do processo de impeachment da então presidente Dilma Rousseff. Com o afastamento de Dilma, em 2016, o novo ministro da educação, José Mendonça Bezerra Filho, indicado pelo presidente Michel Temer, quis revogar a Portaria; entretanto, “foi convencido a não o fazer por membros da Educafro, que ameaçaram se manifestar na porta do MEC” (Venturini, 2021a, p. 276).
Um novo ataque à Portaria viria no governo de Jair Bolsonaro, mais precisamente em 16 de junho de 2020, quando Abraham Weintraub, em um ato totalmente arbitrário tomado em seu último dia à frente do MEC, revogou a Portaria de 2016. De imediato, o Partido Socialista Brasileiro (PSB) e o Partido Democrático Trabalhista (PDT) ingressaram com ações no Supremo Tribunal Federal (STF) para tornar sem efeito a ação de Weintraub. O Partido dos Trabalhadores (PT), por sua vez, propôs a criação de um Projeto de Decreto Legislativo para anular a decisão. Diante da grande pressão, menos de uma semana depois, em 22 de junho de 2020, Antonio Paulo Vogel de Medeiros, ministro da Educação substituto, revogou a portaria editada por Weintraub.
Nos últimos cinco anos, houve um grande salto no número de programas com ações afirmativas no Brasil. É o que nos revela um levantamento realizado pelo OAAP (Venturini & Penido, 2022). O estudo aponta que, em 2018, apenas 26,4% dos PPGs das universidades públicas possuíam algum tipo de ação afirmativa. Em 2021, esse percentual já havia saltado para 54,3%. Além disso, o levantamento mostra que pelo menos 49 universidades já possuem uma resolução que regulamenta a política de ação afirmativa na pós-graduação ou seguem alguma legislação estadual.
O debate para implementação de ações afirmativas no ensino de graduação da UFRGS iniciou-se em 2005, influenciado pelas experiências na UnB, na Uerj, entre outras IES pioneiras, aqui já mencionadas, que adotaram a reserva de vagas no início dos anos 2000. O engajamento e a mobilização acadêmica (professores, alunos, funcionários) e dos movimentos negros e indígenas pressionou o Conselho Universitário (Consun) a aprovar, em junho de 2007, o sistema de cotas para estudantes oriundos de escola pública e para autodeclarados negros e indígenas, o qual entraria em vigor no vestibular do ano seguinte. A votação no Consun terminou com 43 votos a favor e 27 contrários, após mais de seis horas de intensos debates. A véspera da decisão foi marcada por um clima de tensão. De um lado, manifestantes a favor do programa de ação afirmativa acamparam em frente ao prédio da reitoria. Do outro, durante a madrugada, grupos racistas picharam em alguns prédios da UFRGS frases como “Voltem para a senzala, cotas não” e “Negro só se for na cozinha do RU [restaurante universitário], cotas não!” (Figura 1). Além disso, tais grupos também passaram a semana proferindo insultos e ameaças racistas em redes sociais na internet.
No que diz respeito à pós-graduação, até o momento, não há ainda nenhuma resolução aprovada na UFRGS que estabeleça uma política de ações afirmativas para todos os programas. Nesse sentido, o que há até então são iniciativas autônomas que vêm sendo adotadas por alguns programas desde a publicação da Portaria nº 13/2016 do MEC. Um levantamento feito em 2020 pelo Departamento de Educação e Desenvolvimento Social (DEDS), órgão vinculado à Pró-Reitoria de Extensão, revelou que, dos 92 PPGs em atividade na UFRGS naquele ano, apenas 18 possuíam algum tipo de reserva de vagas em seus cursos de mestrado e doutorado – o que representa 19% do total de programas.
A partir do levantamento realizado pelo DEDS, analisamos os editais de seleção mais recentes (2022) publicados por esses 18 programas que atualmente possuem ações afirmativas na UFRGS, no sentido de verificar o número de vagas reservadas, os grupos contemplados, entre outras informações relevantes. Os resultados da análise podem ser observados na tabela 1, a seguir.
Um dado importante que chama atenção de imediato ao observarmos a tabela 1 é que a reserva de vagas nos PPGs da UFRGS se deu a partir de 2016. Talvez isso tenha ocorrido justamente por indução da Portaria nº 13º/2016, no entanto, não podemos estabelecer tal relação de causalidade com base apenas na análise dos editais. Para tanto, seria necessário entrevistar os gestores de cada programa, o que não pôde ser feito para este artigo. Entretanto, o que podemos sim afirmar é a relevância desse documento do MEC no processo de implementação das políticas de ação afirmativa na pós-graduação. Embora não se trate de uma lei e tampouco obrigue as IFES e os programas a adotarem reserva de vagas, a Portaria publicada pelo MEC, como já destacamos, determinou que os PPGs deveriam apresentar propostas para ação afirmativa, bem como criar comissões para viabilizá-las. Tal medida foi o catalisador para que o debate em torno das ações afirmativas na pós-graduação – uma discussão que já há algum tempo vinha sendo travada nas universidades públicas brasileiras – finalmente se materializasse nos editais de seleção para os cursos de mestrado e doutorado. É importante frisar também, como já mencionado, que os editais aqui analisados foram selecionados com base em um levantamento prévio feito pelo DEDS em 2020. Desde então, outros PPGs da UFRGS também passaram a adotar a reserva de vagas em seus processos seletivos. Verificamos, por exemplo, que os PPGs em Física, Letras, Ciência Política e Ciências do Movimento Humano, embora não constem no levantamento feito pelo DEDS, já implementaram reserva de vagas em seus editais de seleção. Logo, o número de programas que atualmente possuem algum tipo de sistema de cotas na UFRGS certamente é superior ao levantamento feito pelo DEDS em 2020.
Outro dado relevante que os editais nos revelam é que, ao contrário da graduação, na pós-graduação as ações afirmativas se expandiram a outros grupos para além do critério étnico-racial. A maior parte dos editais, além contemplar candidatos negros e indígenas, também contempla pessoas com deficiência, pessoas trans (transexuais, travestis e transgêneros), quilombolas, bem como refugiados/portadores de visto humanitário. Essa ampliação da cobertura das ações afirmativas a outros grupos minoritários na pós-graduação brasileira é uma tendência apontada na literatura. Venturini e Feres Jr. (2020, p. 891), por exemplo, afirmam que “as medidas voltadas para a pós-graduação têm incluído, entre os beneficiários, grupos que não haviam sido alvo de políticas para o ingresso em cursos de graduação, tais como as pessoas transexuais, travestis e refugiados”.
No caso da UFRGS, um destaque positivo é o PPG em Comunicação, o único a reservar vagas para pessoas não binárias.6 Isso denota a preocupação por parte dos programas em incluir grupos historicamente sub-representados no ensino superior. Já há algum tempo existe o reconhecimento – sobretudo à luz dos estudos sobre interseccionalidade – de que as desigualdades e as relações de opressão/dominação envolvem um conjunto amplo de marcadores sociais da diferença, tais como raça, gênero, classe, orientação sexual, nacionalidade, entre tantos outros. No que diz respeito às pessoas trans, por exemplo, dados trazidos pela Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra) estimam que 90% dessa população sobrevive da prostituição, devido à falta de oportunidades no mercado de trabalho. Consequentemente, é de suma importância que o debate sobre ações afirmativas seja ampliado para outros marcadores da diferença, além dos tradicionais (racial e econômico).
Também chama atenção nos editais a diferença no percentual estabelecido para reserva de vagas entre os programas. A resolução interna que normatiza o sistema de cotas no PPG em Administração, por exemplo, informa que serão reservadas até 20% das vagas. Isso significa dizer que não necessariamente os editais deverão assegurar esse percentual de vagas aos candidatos cotistas – o que se confirma na prática, já que no mestrado foram reservadas 14% das vagas, e no doutorado, ainda menos, apenas 5%. O PPG em Direito, por sua vez, reserva 20% do total de vagas, entretanto, estabelece o limite de 1 vaga reservada para cada professor orientador. Em contrapartida, a resolução do PPG em Educação estabelece que serão reservadas, no mínimo, 30% das vagas em cada curso (mestrado e doutorado). Na prática, observa-se que o número reservado no edital de 2022 foi bem maior: 45%.
Verificamos ainda que a maioria dos editais reserva cotas a partir do número total de vagas oferecido no edital; alguns, no entanto, organizam a distribuição de vagas por linhas de pesquisa, de forma que em algumas há a reserva de vagas, enquanto em outras não – é o caso novamente do PPG em Administração. Essa diferença entre os editais e as resoluções internas que normatizam a reserva de vagas nos PPGs da UFRGS se deve ao fato já mencionado de que não há ainda uma norma geral que regulamente a política de ações afirmativas para todos os programas da universidade. Com efeito, cada programa possui autonomia para decidir implementar (ou não) o sistema de cotas em seus processos seletivos, o percentual de vagas reservadas, bem como os grupos contemplados. Venturini e Feres Jr. (2020) destacam que essa é justamente uma das dificuldades em se investigar as ações afirmativas na pós‑graduação brasileira. Segundo os autores, além de haver um grande número de PPGs credenciados pela Capes (mais de 4,5 mil atualmente apenas em IES públicas), em geral, cada um deles tem autonomia para estabelecer os critérios de seleção e suas normas de funcionamento. Logo, analisar as resoluções que regulamentam as ações afirmativas em cada programa é tarefa que exige enorme esforço investigativo.
A implementação de ações afirmativas no ensino superior vai muito além da reserva de vagas nos editais de seleção. Tais políticas englobam todo um conjunto amplo de estratégias para ingresso e permanência dos estudantes até a conclusão do curso – sobretudo daqueles em situação de maior vulnerabilidade social. Nesse sentido, desde 2018, o DEDS tem oferecido o Afirmação na Pós, uma formação direcionada aos estudantes que têm interesse em inscrever-se nos cursos de mestrado e doutorado da UFRGS que possuem reserva de vagas. O curso engloba
encontros no formato de rodas de conversa e oficinas, abordando temas como elaboração de currículo Lattes, aspectos da definição de tema de pesquisa, organização de tempo de estudos, elaboração de projeto, escrita acadêmica, memorial descritivo e preparação para entrevista
(DEDS, 2022, online).Além do DEDS, alguns programas da UFRGS já começaram a oferecer suas próprias oficinas preparatórias para candidatos cotistas. O PPG em Sociologia, por exemplo, ofereceu em 2022 um ciclo de oficinas para a seleção dos seus cursos de mestrado e doutorado. A ação envolveu oficinas para elaboração de projeto de pesquisa, organização do currículo Lattes, preparação para a entrevista e para a prova dissertativa. O público‑alvo era formado exclusivamente por estudantes aptos a se inscreverem no processo seletivo nas vagas reservadas (negros, indígenas, pessoas transsexuais/travestis e refugiados). Além disso, todas as atividades foram realizadas em formato virtual, visando alcançar um número maior de estudantes.
No que diz respeito às políticas para permanência, destacamos que alguns PPGs da UFRGS já implementaram reserva de bolsas a estudantes cotistas. O edital de seleção do PPG em Educação informa que, embora o ingresso pelo sistema de reserva de vagas não assegure automaticamente acesso às bolsas, os estudantes cotistas terão preferência na distribuição. Os PPGs em Antropologia Social e em Psicanálise, de forma semelhante, também estabelecem que o ingresso pela reserva de vagas é um dos critérios levados em consideração pela comissão responsável pela distribuição das bolsas. O PPG em Sociologia, por sua vez, determina que
o cálculo da percentagem [de bolsas] destinada a ingressantes por ações afirmativas é feito considerando a proporção entre o total de candidatos aprovados que se inscreveram nesta modalidade sobre o total de ingressantes aprovados matriculados, sendo que o mínimo é sempre 30%
(PPGS-UFRGS, 2022, online).Este é o mesmo percentual de cálculo utilizado na distribuição de bolsas pelo PPG em História.
As bolsas de estudos fornecidas pelas agências de fomento à pesquisa – embora estejam hoje com seus valores bastante defasados, vale frisar7 – são fundamentais à permanência dos estudantes na pós-graduação, especialmente os mais pobres. O levantamento feito por Artes e Mena-Chalco (2019) com ex-bolsistas do Programa Internacional de Bolsas da Fundação Ford (IFP)8 demonstra a importância desse tipo de política de ação afirmativa. Os autores analisaram os currículos Lattes de 300 ex-bolsistas do IFP e identificaram que 30% deles conseguiram inserir-se profissionalmente em IES públicas – sobretudo federais (25%). Outros 15% trabalhavam em órgãos do governo, como secretarias federais, estaduais e municipais.
Mais do que custear os gastos acadêmicos (que por si só podem ser bem elevados), muitas vezes a bolsa de estudos é a única fonte de recursos financeiros que o pós-graduando possui para custear gastos básicos do seu dia a dia, como aluguel, transporte, alimentação, água/luz/internet e saúde. Além disso, em muitas áreas, o desenvolvimento de uma pesquisa de mestrado ou de doutorado exige dedicação exclusiva, o que impede o estudante de exercer outra atividade profissional. Consequentemente, é de extrema relevância que a política de reserva de vagas dentro dos PPGs esteja atrelada à reserva de bolsas aos estudantes cotistas de baixa renda. Vinculam-se, assim, duas modalidades de políticas de ação afirmativa fundamentais à democratização do ensino superior: acesso e permanência.
A análise dos editais de 18 PPGs – selecionados a partir de um levantamento prévio feito pelo DEDS em 2020 – que implementaram reserva de vagas a estudantes cotistas nos possibilitou traçar um panorama sobre o estágio atual das políticas de ação afirmativa na pós-graduação da UFRGS. Como visto, a Portaria nº 13/2016 do MEC teve um papel crucial na adoção dessas políticas, uma vez que todos os PPGs que adotaram o sistema de cotas na universidade o fizeram de 2016 para cá. Além disso, também verificamos que os grupos contemplados pelas cotas na maior parte dos programas abarcam outros marcadores sociais de diferença para além do critério étnico‑racial. Visando assegurar condições para a permanência dos estudantes cotistas, alguns PPGs adotaram a reserva de bolsas, ou então, incluíram o ingresso pela reserva de vagas como critério considerado na distribuição de bolsas.
Constatamos ainda que, dada a inexistência dentro da UFRGS de uma regulamentação geral para todos os programas, cada um deles possui autonomia para estabelecer as regras das políticas de ação afirmativa, o que gera diferenças significativas entre os editais de seleção, especialmente no que tange ao percentual de vagas reservadas. É preciso destacar que esse debate já vem sendo feito dentro da instituição. Em 2020, a Pró-Reitoria de Pós‑Graduação (PROPG) criou – através da Portaria nº 001/2021 – um Grupo de Trabalho (GT) para estudar e propor critérios para a implementação de ações afirmativas nos programas Stricto Sensu e Lato Sensu. Fora estabelecido um prazo inicial de seis meses para apresentação das propostas, com possibilidade de ampliação do período. Em agosto de 2021, por meio de nova Portaria (003/2021), a PROPG estabeleceu um novo prazo de seis meses para o GT. Isso significa dizer que já existe um estudo feito para embasar a adoção de normas gerais de ação afirmativa na pós‑graduação da UFRGS, que precisa ainda ser votado nas instâncias superiores da universidade – Consun ou Conselho de Ensino Pesquisa e Extensão (Cepe). Cabe saber, agora, quando a resolução será posta em votação em um desses órgãos e, principalmente, se ela será ou não aprovada. A história da UFRGS nos mostra que a adoção de uma política de ações afirmativas que englobe toda a universidade não ocorrerá sem a resistência de grupos conservadores. Logo, é fundamental que a comunidade acadêmica (professores, estudantes e funcionários) e os movimentos sociais continuem mobilizados e exercendo pressão.
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