ARTIGOS
“Peça a Ifá que me seja favorável”◊1 Roger Bastide e a generosidade como método
“Ask Ifá to be favorable to me” Roger Bastide and generosity as a method
“Peça a Ifá que me seja favorável”◊1 Roger Bastide e a generosidade como método
Revista Brasileira de Sociologia, vol. 10, núm. 26, pp. 153-177, 2022
Sociedade Brasileira de Sociologia
Recepção: 03 Junho 2022
Aprovação: 22 Novembro 2022
RESUMO: Este artigo tem como objetivo abordar os estudos de Roger Bastide (1898-1974), especialmente no tema das trocas culturais, desde a perspectiva de uma sociologia da generosidade, compreendendo generosidade como disposição para o uso da “simpatia intuitiva” na investigação e como rejeição de pressupostos etnocêntricos de análise. O trabalho propõe ser possível constatar a presença de tal perspectiva em pelo menos três dimensões. Em primeiro lugar, nos diálogos que Bastide travou com os meios intelectuais francês e brasileiro, referenciando algumas das opções tomadas e suas contribuições pessoais ao debate da época, quer nas áreas de estudo sociológico e antropológico quer na crítica literária e de arte. Em seguida, em uma dimensão propriamente metodológica, o método “caleidoscópico” empregado pelo autor, sem descurar das exigências disciplinares, garante a consideração de diversos pontos de vista na interpretação dos fenômenos sociais de modo coerente com a perspectiva assumida por ele de abertura para o Outro. Por fim, enfrenta-se o tema específico das trocas culturais através das questões da autenticidade das culturas e da reflexividade do conhecimento, apontando para a possibilidade de entender a relação de Bastide com seus objetos como uma troca cultural em si mesma.
Palavras-chave: Roger Bastide, reflexividade do conhecimento, sociologia da cultura, pensamento social no Brasil.
ABSTRACT: This article aims to approach the studies of Roger Bastide (1898-1974), especially on the topic of cultural exchanges, from the perspective of a sociology of generosity, understanding generosity as a disposition to use of “intuitive sympathy” in research and as a rejection of ethnocentric assumptions of analysis. The work proposes that it is possible to verify the presence of such a perspective in at least three dimensions. Firstly, in the dialogues that Bastide had with French and Brazilian intellectuals, referring to some of the choices made and his personal contributions to the debate of the time, whether in the areas of sociological and anthropological studies or in literary and art criticism. Then, in a properly methodological dimension, the “kaleidoscopic” method used by the author, without neglecting disciplinary requirements, guarantees consideration of different points of view in the interpretation of social phenomena in a way that is coherent with the perspective assumed by him of opening to the Other. Finally, the specific theme of cultural exchanges is addressed through the questions of the authenticity of cultures and the reflexivity of knowledge, pointing to the possibility of understanding Bastide’s relationship with his objects as a cultural exchange in itself.
Keywords: Roger Bastide, reflexivity of knowledge, sociology of culture, social thought in Brazil.
À guisa de introdução
Este artigo pretende discutir a generosidade não como uma categoria stricto senso, em suas propriedades de organização e apreensão de um dado domínio da sociedade ou de determinadas relações sociais, como, por exemplo, as de “dom” e “contradom” de Marcel Mauss; nem visa explorar suas prováveis bases religiosas, seja a partir da perspectiva durkheimiana, como fundamento das categorias do entendimento humano, seja como elemento do ideário cristão, a partir da conhecida filiação protestante de Roger Bastide.
Faço, portanto, um uso muito restrito da palavra generosidade para caracterizar o modo particular como Bastide opera com o método etnográfico e para me referir às suas implicações sociológicas mais amplas. O termo é instrumental, sobretudo ao colocar em evidência a diferença entre o seu método e o de Durkheim, diferença tratada de forma implícita neste trabalho. A ideia de generosidade é aqui enunciada, então, no sentido de uma sociologia metodologicamente fundamentada na “generosidade”, na “simpatia intuitiva” (Bastide, 1990) e na rejeição de pressupostos etnocêntricos de análise. Assim, diversa do sentido corrente, dicionarizado, de magnanimidade, altruísmo e empatia, a generosidade de Bastide será pensada como componente de uma epistemologia e de um método sociológico e etnográfico próprios, para os quais conhecer pressupõe a possibilidade de troca e compartilhamento de saberes de forma igualitária e descentrada.
A troca civilizacional proporcionada por esta abordagem metodológica pode ser vista como um jogo simétrico, fora do campo da dominação e da subordinação, abrindo a possibilidade para um cosmopolitismo de cunho universalista, ou seja, de inclusão e aproximação das sociedades humanas entre si. Desde o ponto de vista de seus resultados heurísticos, a troca cultural e civilizacional visada por Bastide tanto é viabilizada como só pode ser compreendida pelo abandono de uma mentalidade etnocêntrica, tornado evidente sobretudo em um momento de desvalorização das culturas negras no Brasil, como a dos tempos em que aqui viveu o professor e pesquisador francês.
Assim, este artigo se propõe a demonstrar que esse método foi empregado e diretamente tematizado por Bastide em muitos dos seus estudos sobre arte e religiões africanas, pois, do mesmo modo como ele se propôs a pensar a incorporação da poesia africana à poesia brasileira e a do “lirismo da paisagem e das paixões brasileiras” à poesia francesa,2 o estudo das religiões africanas também opera nesse mesmo sentido, trazendo ganhos tanto para o conhecimento sociológico e antropológico como para a valorização das culturas negras nas sociedades em que são praticadas.
Como se sabe, a vinda de Roger Bastide ao Brasil, em 1938, deu-se no contexto da missão científica francesa da primeira metade do século XX, da qual resultara a criação da Universidade de São Paulo, em 1934. Contudo, se não será o caso explorar aqui as relações tanto colaborativas quanto possivelmente conflituosas do sociólogo com esse projeto, na esteira do que acabei de propor acima, talvez a melhor definição do lugar desse intelectual surja na direção inversa, quando, ao invés de uma postura “civilizatória”, ele põe em prática uma sociologia da generosidade, uma sociologia e uma antropologia de abertura para o Outro.
Conforme ressalta Maria Isaura Pereira de Queiroz (1994, p. 219) em seu artigo “Roger Bastide, professor da Universidade de São Paulo”,
[u]m grande amigo seu e guia nos diversos templos afro-brasileiros da Bahia, Pierre Verger, francês inteiramente abrasileirado, descreveu-lhe as qualidades fundamentais; “antes de tudo um homem que sabia se pôr no lugar dos outros e compreender os pontos de vista deles. Tinha rara facilidade para raciocinar com os argumentos de seus interlocutores e ver as coisas com os olhos destes, fosse qual fosse a estranheza que ressentisse e, o que não prejudicava em nada as coisas, sabia se colocar na posição do outro de maneira fina e saborosa”
(Verger, 1978:52).Por conseguinte, o debate que proponho, ao definir a abordagem e o método de Bastide como que fundados na ideia de generosidade, implica demonstrar a presença dessa ideia em pelo menos três diferentes dimensões da atividade do autor, identificadas nos títulos das seções deste trabalho. A primeira delas, que tratarei a seguir, será a da forma como ele travou seus diálogos com os meios intelectuais francês e brasileiro, referenciando algumas das opções tomadas e as suas contribuições pessoais ao debate da época, quer nas áreas de estudo sociológico e antropológico quer na crítica literária e de arte.
Primeiros diálogos intelectuais
É consideravelmente extensa a bibliografia sobre a obra deste professor e pesquisador francês que chega ao Brasil em início de carreira, em 1938, para substituir Lévi‑Strauss na cátedra de Sociologia I do Departamento de Ciências Sociais na recém-criada Universidade de São Paulo, só retornando definitivamente ao seu país dezesseis anos depois para lecionar, já na condição de intelectual consagrado, na École des Hautes Études, na Universidade de Paris e no Institut de Hautes Études de l’Amérique Latine (Queiroz, 1983, p. 115). Além dos seus principais interlocutores brasileiros – Gilberto Freyre, Florestan Fernandes e grande número de autores modernistas –, dentre os seus contemporâneos, alunos e orientandos, escreveram sobre o mestre e orientador: Maria Isaura Pereira de Queiroz, Gilda de Mello e Souza, Antonio Candido e Renato Ortiz; dentre os trabalhos mais recentes, destacam-se os de autoria de Fernanda Peixoto, Peter Fry, Priscila Nucci, Maria Laura Viveiros de Castro Cavalcanti e Gloria Carneiro do Amaral.
Quer reconstituindo o contexto intelectual da época e acompanhando seus diálogos com a intelligentsia das várias nações com as quais travou contato, quer revisitando suas obras, os autores acima citados lidaram com diferentes aspectos do pensamento bastidiano, tornando praticamente impossível, nos limites deste texto, prestar o merecido tributo a todas essas contribuições.3 Assim sendo, muitos dos temas e questões presentes nos trabalhos sobre Bastide certamente convergem para o que ora nos ocupa, o modo específico como o autor travou seus diálogos com os seus pares a partir de determinadas opções teórico‑metodológicas.
Como se sabe, essas opções já vinham sendo tomadas por Bastide antes de sua chegada ao Brasil em 1938. Embora fosse um professor e pesquisador estreante no meio universitário, Bastide já havia se posicionado no ambiente intelectual francês, principalmente em relação aos autores que circulavam em torno de L’Année Sociologique, grupo que, àquela altura, já produzira suas divisões a partir do legado durkheimiano. Inclinava-se a seguir os passos de Maurice Halbwachs, Marcel Mauss e Maurice Leenhardt – no sentido da aproximação da Sociologia a outras disciplinas e da pesquisa de campo –, mas também os de não durkheimianos como Gabriel Tarde4 e sua sociologia dos contatos culturais, sobretudo no que diz respeito à incorporação da ideia de conflito nas suas análises (Laplantine, 2002). Esse vínculo e essas ideias serão aqui fundamentais para o entendimento do modo como a visão “caleidoscópica” de Bastide restaura os fragmentos culturais, compondo-os não como belos e harmoniosos mosaicos, mas como configurações nas quais contribuições oriundas de diferentes contextos – africanos, brasileiros e europeus – dialogam, com frequência asperamente, em uma perspectiva balizada pelo sincretismo e pela tensão.5
Reconhecendo a importância de uma investigação, ainda a ser feita, sobre a relação de Bastide com a sociologia francesa em seus diversos matizes, o que permitiria produzir questões e hipóteses mais finas sobre o que está em jogo na sociologia do autor e na forma privilegiada por ele – o ensaio sociológico –, algumas dessas questões podem ser brevemente enunciadas aqui, seguindo o que acabei de afirmar sobre as suas escolhas. No que se refere, por exemplo, à teoria do simbolismo religioso, tal como pensada por Durkheim e por Mauss, a inclinação de Bastide – assim como, na França, de muitos dos integrantes do Collège de Sociologie – se daria na direção do segundo, para quem, ao contrário do seu tio – que fundava habitualmente as categorias na morfologia social –, é o simbólico que torna possível a própria sociedade. Para Mauss, por conseguinte, são os atores que, quer em seus estados alterados, quer em seus papéis cotidianos, teriam, enquanto produtores de símbolos, um genuíno poder formativo na vida social, evitando, portanto, a ideia da sociedade como algo exterior aos indivíduos. Os estudos de Bastide sobre as religiões afro-brasileiras são, portanto, centrais para elucidar essas e outras questões. Por outro lado, atribuir tal potência aos atores sociais é fundamental para que essa lógica seja estendida às interpretações do Brasil, conferindo a elas um poder formativo da própria sociedade brasileira e, assim, levar em conta a importância das várias gerações de autores brasileiros, independentemente da sua adesão ao discurso sociológico stricto sensu, para o entendimento dessa sociedade. Como dirá na frase com que conclui a Introdução de Brasil, Terra de Contrastes, apontando para os limites da disciplina, “[o] sociólogo que quiser compreender o Brasil não raro precisa transformar-se em poeta” (Bastide, 1979, p. 15).
Os diálogos intelectuais com autores brasileiros e suas interpretações do Brasil também possuem uma importância decisiva para ele. O livro de 1957, Brasil, Terra de Contrastes, que acabei de citar, é o que se pode considerar o exemplo de um diálogo polifônico, sob a forma de ensaio, pois as diferentes regiões brasileiras são colocadas em contraste, mas sem qualificar negativamente e reduzir esse contraste àquele que se converterá no centro do debate intelectual da época: o desenvolvimento versus subdesenvolvimento. Bastide irá precisamente valorizá-lo, entendendo-o como variedade, modo multifacetado pelo qual se pode apreender o Brasil, tanto estabelecendo em cada capítulo um diálogo com um interlocutor privilegiado, quanto valorizando as inúmeras possibilidades de composição de quadros naturais, geográficos, históricos, sociais, econômicos e culturais contrastantes.
A título de exemplificação,6 dois interlocutores se fazem notar pela magnitude do diálogo que estabeleceram com Bastide. Com Gilberto Freyre, Bastide discute a formação da sociedade colonial brasileira, cujos aspectos centrais, analisados pelo primeiro em Casa-Grande e Senzala – latifúndio, escravidão e patriarcalismo – teriam marcado profundamente o seu desenvolvimento até aquele momento. Bastide irá concordar com a validade da tese freyriana para o conjunto do país e, ao mesmo tempo, discordar do autor pernambucano, principalmente no que se refere à integridade do patriarcalismo, pois, para ele, tanto a elite teria se refinado e incorporado uma formação mais cosmopolita desde o século XIX, o que altera as relações hierárquicas entre os membros da família patriarcal, como as relações entre a cultura “branca” e as das outras etnias teriam se modificado substancialmente no domínio privado com o fim da escravidão e a progressiva entrada da mão de obra estrangeira no Brasil. Conforme irá afirmar “há uma diferença considerável entre a civilização do açúcar e a do café; esta última não foi acompanhada de uma civilização luso-africana, nem mesmo nas regiões mais atingidas pelo sangue negro” (Bastide, 1979, p. 133). Dessa forma, sem aderir a uma valorização do passado, Bastide irá mostrar que, embora a violência e a dominação estivessem presentes na sociedade colonial, do ponto de vista das relações entre brancos e negros, o progresso antes os afastou do que os uniu, substituindo o contato físico e uma certa cordialidade das relações por um modo de vida racionalizado em que o negro tanto era considerado “um homem (embora inferior) [como] uma máquina de trabalho” (Bastide, 1979, p. 132).
Tal conclusão, por sua vez, evidencia o diálogo com Sergio Buarque, para quem as relações baseadas no coração, na afetividade e nas paixões dificultavam a consolidação de relações pautadas por critérios racionais-legais, constituindo, portanto, obstáculos ao ingresso do país no concerto das nações civilizadas. Para Bastide, a relação entre tradição e modernidade não será definida a partir de concepções típico-ideais distintas, mas por um modo de composição que aproxima ambos os termos segundo o princípio da colagem, ou bricolagem,7 assim como não participa necessariamente de um telos que aponta para o êxito da racionalidade capitalista na sociedade brasileira.
Por conseguinte, embora a discussão seja feita no campo e nos próprios termos dos seus interlocutores (basta relembrar sua “a rara facilidade para raciocinar com os argumentos de seus interlocutores”, na citação de Verger no início deste artigo), Bastide irá afirmar seu contraponto, buscando dar sua contribuição original ao que estava em questão em cada caso. Ambos os aspectos do diálogo com Gilberto Freyre e Sergio Buarque confirmariam o principal argumento deste trabalho, a presença de uma sociologia da generosidade, como abertura para o Outro e como compartilhamento de saberes ou interpretações.
Ainda no que diz respeito ao diálogo que marca o começo da trajetória de Bastide no Brasil, ele trava contato com o meio intelectual do país, mapeando a vida artística e literária da época e atuando como crítico de arte, sempre através do viés comparativo com que analisaria quaisquer outros tipos de manifestações culturais. Poetas do Brasil é, portanto, um título que mereceria um tratamento interpretativo cuidadoso. Vemos, então, que no capítulo “Bouquet de Poetas” Bastide analisa a relação entre subjetividade e mundo na obra de seis poetas brasileiros contemporâneos (pela ordem, Manuel Bandeira, Oswald de Andrade, Mário de Andrade, Guilherme de Almeida, Sérgio Milliet e Carlos Drummond de Andrade), em cujas obras o aspecto formal não é meramente derivado dos interesses e dos condicionantes sociais dos autores, mas interfere ativamente, como mediador, entre um determinado tipo de subjetividade e as circunstâncias objetivas nas quais estes se encontravam inseridos. Retornarei a este capítulo mais adiante, quando da discussão sobre o método bastidiano; por ora, cabe notar que considero esta sua atividade de crítico de arte e literatura, exercida na imprensa brasileira do período, como índice de uma busca de diálogo com intelectuais brasileiros que se encontravam, em sua grande maioria, fora das instituições acadêmicas.
Em 1950, Bastide aceita participar, a convite de Alfred Metraux, da pesquisa da Unesco sobre as relações raciais no Brasil. Esta, ao final, mostrou-se altamente idealizada ao supor que o Brasil exemplificava uma experiência de democracia racial, acabando por, no limite, inviabilizar o emprego do conceito de raça.8
Contudo, se levarmos em conta o conjunto dos trabalhos de Bastide sobre o tema, é possível supor que ele represente uma variante de afirmação da modernidade e do desenvolvimento material e intelectual das regiões atrasadas do mundo, no cenário político mais amplo em que se deu a institucionalização das ciências sociais no Brasil. Por conseguinte, vale ressaltar a hipótese da singularidade de sua trajetória, considerando a possibilidade de que sua pesquisa sobre as religiões afro-brasileiras represente uma crítica dessa concepção “desenvolvimentista”, a partir de seu diálogo com vertentes heterodoxas da sociologia francesa como a do Collège de Sociologie. São indícios para esta interpretação a visão idiossincrática de Bastide sobre arte, religião e crítica literária, quando ele elege seus objetos de pesquisa específicos, quando estabelece uma parceria com Pierre Verger e traça roteiros de viagem que consolidam a sua escolha, afastando-se do mainstream do tema do racismo.
Estes estudos, dotados de relativa autonomia, circunscrevendo-se ao campo da pesquisa antropológica e da sociologia das religiões mundiais da sua época, poderiam ser vistos como uma espécie de resposta àquelas circunstâncias de natureza “extra-científica” representadas pela “missão francesa”. Deriva desse conjunto de questões uma conclusão preliminar acerca do modo como exigências institucionais que afetam ou mesmo direcionam pesquisas e opções temáticas são moduladas pelo pesquisador, ou seja, no caso de Bastide, principalmente no modo como enfrenta as exigências que impuseram uma escolha do objeto, uma reflexão teórico-metodológica, assumindo atitudes práticas para lidar com as relações conflituosas entre o ponto de vista europeu e o das sociedades nativas.
O método “caleidoscópico”
A fim de lidar com a segunda dimensão na qual se coloca a ideia de generosidade na prática científica de Bastide, a de natureza metodológica, partirei da suposição de que, ao transitar entre uma grande variedade de temas ou ao tratar de um mesmo tema sob diferentes perspectivas disciplinares, Bastide forma, segundo o princípio da bricolage,9 um extenso e variado mosaico sociológico. Assim, é por intermédio de uma espécie de método “caleidoscópico” que ele irá nos mostrar que o resultado, sempre movediço, dependerá dos ângulos através dos quais cada detalhe, cada parte de um todo, é observado pelos envolvidos no processo de investigação – o que constitui, por si, um efeito-demonstração, ao mesmo tempo que uma mimesis, do modo como, a seu ver, opera cada cultura e cada civilização.
Ou seja, em seu método estão articulados a bricolage, como princípio de abordagem das questões que pretende examinar, e o ajuste de perspectivas multifacetadas que deslocam o objeto de seu contexto convencional ou canônico – a porta barroca, por exemplo –10 para um outro em que tantas adaptações foram feitas que dele só restariam alguns dos traços do desenho ou da forma original.
O trânsito entre o particular e o geral, entre o ponto de vista individual ou subjetivo e o social ou objetivo é, portanto, constitutivo da sua análise. Dependendo do que está sendo considerado, a perspectiva entre um polo e outro também irá variar, pois o pesquisador terá que mudar o seu foco para melhor perceber o que está em jogo.
O já mencionado capítulo “Bouquet de poetas”, de Poetas do Brasil, desde a escolha do título – que remete à sensibilidade, ao olfato, à visão –, ilustra bem esta ideia de articulação entre variações de pontos de vista e bricolage, sobretudo porque privilegia um modo de composição em que uma determinada lógica de formação do todo, que é a de explorar as diferentes tonalidades de uma mesma relação, tem tanta ou mais importância quanto as partes consideradas em si mesmas. E o próprio bouquet apresenta-se como apenas uma dentre várias possibilidades. Contudo, vale observar que, neste caso, não está em jogo a natureza do bouquet, um critério de seleção que se baseie no pertencimento dos autores a gêneros literários, por exemplo, mas o princípio de seleção que o constitui, ou ainda, a natureza da questão trabalhada, qual seja: a de que o que define um poeta é a relação peculiar de sua subjetividade com o mundo, a relação entre interior e exterior que, neste caso, é da maior relevância.
Também o ensaio de Bastide sobre a porta barroca é outro exemplo de uma lógica de análise em que uma relação entre opostos permite observar as múltiplas variações com que um determinado objeto se apresenta. Como parte da definição da função simbólica de uma porta, que é a de simultaneamente ligar e separar domínios, os pares de oposição entre público e o privado, o sagrado e o profano, o nativo e o estrangeiro, o pertencimento e a exclusão, o interior e o exterior etc. são também necessários para individualizá-la no tempo e no espaço (Frehse & Titan Jr., 2011, p. 133).
Ampliando a perspectiva de análise para a compreensão dos contatos, seja entre indivíduos, grupos, classes, culturas ou civilizações, já vimos que eles são balizados pelo sincretismo e pela tensão. O conflito, portanto, ao invés de dissolver, vincula-os internamente, num jogo infinito de aproximações e repulsas. Desse modo, a sociologia do conhecimento de Bastide irá se formar por uma composição peculiar das descobertas de Lévy-Brühl, como, por exemplo, a existência das participações de Durkheim e Mauss acerca das “classificações primitivas” e a teoria do conflito universal tal como desenvolvida por Tarde.
Bastide une os três primeiros quando considera que tanto as diferenças quanto as semelhanças que induzem às participações ocorrem em compartimentos diferentes do real, visto que “sendo elas estanques, a tal sistema de participação corresponde outro complementar, de repulsas e choques de forças.” (Bastide, 1961, p. 337). Em suma, quando afirma que
as magias africanas não funcionam contra o homem branco, e [...] mesmo numa mesma tribo, as magias de um clã nada podem contra os homens de outro clã [...] o que quer dizer que as participações mágicas, como as religiosas, se fazem no interior de determinados compartimentos do real e não funcionam mais quando passamos de um para outro desses compartimentos
(Bastide, 1961, p. 341),Bastide tanto visa compreender uma lógica do social, como também o modo pelo qual as articulações entre aqueles autores puderam ser produzidas.11
Desenvolvendo um pouco mais essa ideia, passo a duas passagens bastante iluminadoras dos modos como Bastide promove relações entre diferentes aspectos e dimensões da realidade em suas análises. O primeiro pode ser encontrado na discussão do sincretismo religioso afro-brasileiro, quando ele nos mostra como o seu significado tanto pode se definir formalmente, a partir da ideia de uma das soluções possíveis para um determinado confronto, quanto depende da natureza (resistência, acomodação, assimilação) da experiência.12 Exemplificando com a narrativa de sua pesquisa em O Candomblé na Bahia, sobre as diferenças entre os santos católicos e os orixás do candomblé, vemos que:
Desejoso de saber como os negros da Bahia e do Recife podiam pensar ao mesmo tempo estes dois termos contraditórios, fiz um inquérito, obtendo três espécies de respostas. [... para uns] o Orixá é o santo porque são a mesma coisa. Outros, pertencentes a seitas mais tradicionais, percebiam a diferença e rejeitavam indignados a identificação. [...] Confessam, então, que o nome católico do Orixá não passa de uma máscara branca sob a qual disfarçavam os escravos suas divindades a fim de celebrar impunemente as festas sem interferência dos senhores
(Bastide, 1961, p. 334-335).Por fim, a terceira resposta consistia em uma “curiosa racionalização”: antes só existiam os Orixás, que, depois de sucessivas reencarnações, penetraram no corpo dos europeus, cujo povo, ao perceber que se tratava de divindades, canonizaram-nos, sendo o nome de santo a tradução portuguesa do nome africano do Orixá.
Entretanto, esta seria uma visão de perto, ou sincrônica. De longe, ou em uma perspectiva diacrônica, a tese do desnivelamento cultural, que adota de Charles Lalo – e que se torna um dos motivos da polêmica que travou com Mário de Andrade (2013) – parece-lhe adequada para pensar a incorporação da cultura erudita pela popular e vice-versa. Ela expressaria, respectivamente, um fenômeno de acomodação da cultura dominante pela dominada, ou de valorização do popular por uma elite erudita em contraste com outras, em busca de sua diferenciação, ou, como se pensava na época, de sua autenticidade.
Desse modo, a maneira através da qual se produz a influência de uma cultura sobre a outra é mais importante do que a natureza do que está sendo “imitado”. A “cópia servil”, dependendo das transformações da estrutura social, pode se converter, no limite, em adaptação criativa, em um ato político de revolta contra a opressão; seja através de uma identificação com o outro ou de uma seleção ativa das influências. São as necessidades estruturais e funcionais, a morfologia social ou ainda o meio interno que, a partir de um certo ponto, determinam a própria escolha do que vai ser incorporado.13 A vinda do romantismo francês para o Brasil, por exemplo, expressaria tanto a luta da mulher e da criança contra a família patriarcal, algo bem diverso da imitação superficial de uma moda literária, como a recusa da descendência africana, valorizando-se no seu lugar o elemento indígena. Aqui, a análise de Fernanda Peixoto nos permite inferir o que talvez seja um ataque elíptico de Bastide aos modernistas, sublimado na crítica à geração dos românticos, quando se trata do recalque do tema da escravidão entre ambos.
Se existe algum acorde dissonante na afinidade – de plástica e estética de Bastide – com o grupo modernista, este é mais facilmente audível na preocupação recorrente do pesquisador francês com as marcas africanas na arte e na cultura brasileiras. Não que o tema fosse desinteressante para Mário e seu grupo, mas, de fato, a atenção aos temas africanos concorre de modo desigual com a enorme afinidade modernista com o universo indígena, não adquirindo neles a importância que assume nos textos críticos de Bastide
(Peixoto, 1999, p. 96).A condição social do país e as motivações dos que o fazem sobredeterminam portanto a imitação. Se os escritores negros no Brasil preferem o Parnaso ou o Simbolismo às outras formas de poesia, é porque “são escolas que defendem a dificuldade na arte, o trabalho artesanal contra a inspiração. Trata-se de um meio, para este setor da população, de lutar contra a imagem que a sociedade faz do negro como um ‘selvagem’” (Frehse & Titan Jr., 2011, p. 158). Por outro lado, a natureza do que está sendo incorporado também modifica o resultado final: a incorporação do barroco nos pontos riscados dos negros brasileiros é diferente do vévé dos haitianos, pelo fato de que este último aconteceu em um momento de ascensão e não de decadência – tal como ocorreu no Brasil – do barroco nos países centrais.14
Nesse sentido, a importância, para ele, de uma sociologia dos contatos civilizacionais, cujas possibilidades foram enunciadas sob a forma das leis sociológicas da imitação, da oposição e da adaptação ou invenção, expressa o modo como o conflito é solucionado, seja pela acentuação das diferenças seja por sua redução ou eliminação.
Nos capítulos que abrem e fecham Poetas do Brasil, respectivamente, “A incorporação da poesia africana à poesia brasileira” e “Incorporação do Brasil à poesia francesa contemporânea”, Bastide produz a comparação entre modos de assimilação do elemento subordinado – seja o negro e sua poesia, seja o Brasil imaginado pelos poetas franceses. Se a primeira incorporação tenderia para a fusão – “a obra de transfusão já está terminada; o sangue do homem de cor já corre nas veias da poesia do Brasil” (Bastide, 1997, p. 55) – a segunda mostraria o processo de uma assimilação do Brasil pela França, em andamento, discutindo as formas, feições e sentidos variados que o exotismo veio adquirindo ao longo do tempo.
Junto ao conflito interno, portanto, a ideia do diálogo, áspero ou suave, ao invés da pura e simples dominação cultural, é que parece estar presente quando se trata dos contatos entre culturas. Isso porque, embora os modelos ou as modas europeias sejam incorporados pelas sociedades do novo mundo, elas são profundamente modificadas nessa incorporação e adquirem significados tão diferentes que a distinção entre elas se faz não pela oposição radical, mas pelo reconhecimento das diferenças e similitudes. Além disso, vale reiterar, a análise de Bastide é multifacetada e, além das teorias antropológicas e sociológicas, ele irá incorporar mecanismos da psique individual, propostos pela psicanálise15 freudiana e junguiana, sobretudo as noções de recalque, deslocamento e condensação, à análise das relações entre culturas.
O que importa, em suma, em vez da busca de uma substância, é a investigação do modo pelo qual algo se torna o outro do outro. Importam os mecanismos da análise, a condensação, o deslocamento, os recalques e as catarses. “Variações sobre a porta barroca” começa com a pergunta: o que é o barroco? A resposta é provisória e só é dada para ser negada mais adiante. Não existe uma resposta única, nem definitiva: há o barroco do Aleijadinho e dos haitianos, o barroco europeu e o brasileiro. Determinados traços mais gerais o configuram, mas a sua substância, se é original, só o é por um instante, e só vale a originalidade que é tributária do modo de incorporação, da bricolage.
Por uma sociologia da generosidade
Passamos, assim, ao terceiro e último ponto desta exposição: à ideia de que a pragmática bastidiana, que vê nas formas culturais um dinamismo capaz de colocá-las em movimento permanente, está presente em sua obra também como contribuição para que ela própria, em vez de propiciar a estabilização ou enferrujamento do que seriam os patrimônios da cultura brasileira – sua literatura, suas manifestações religiosas, sua arte e sua arquitetura16 –, possa também colocá-los em movimento, o que torna explícita a relação de Bastide com seus objetos como uma troca cultural em si mesma.
Antes de prosseguir, é preciso, contudo, enfrentar duas outras questões correlatas: a da autenticidade das culturas e a da reflexividade do pensamento, ou seja, a dos limites da ação antropológica e sociológica.
No que diz respeito à concepção de Bastide sobre a autenticidade, penso ser oportuno fazê-lo por contraste àquela do antropólogo norte-americano, nascido na Alemanha, Edward Sapir, autor de Cultura: Autêntica e Espúria, para quem
cultura autêntica não é, por princípio, alta ou baixa; ela é apenas inerentemente harmoniosa, equilibrada e satisfaz seus próprios requisitos. Ela é a expressão de uma atitude ricamente variada, mas de algum modo unificada e consistente ante a vida, uma atitude que vê a significação de qualquer elemento da civilização em sua relação com todos os outros. Em termos ideais, é uma cultura em que nada é espiritualmente sem significado, e na qual nenhuma parte significativa do funcionamento geral traz consigo um sentido de frustração, ou de esforço inútil e desarmônico. Não é um híbrido espiritual de remendos contraditórios, de compartimentos impermeáveis da consciência que evitam a participação numa síntese harmoniosa
(Sapir, 2012, p. 42).Já a cultura espúria é a cultura da padronização, da massificação, em que os limites estão apagados e na qual os indivíduos não colaboram como membros ativos de uma comunidade, tendo as suas chances de inovação praticamente anuladas, posto que nada se cria do nada: “Criar significa submeter a forma a uma vontade, não fabricar uma forma ex-nihilo” (Sapir, 2012, p. 49).
Como podemos perceber, são notáveis as diferenças entre Sapir e Bastide no que diz respeito aos parâmetros utilizados para hierarquizar ou classificar as culturas que estudam. Em princípio, algumas hipóteses podem ser levantadas para tentar entender a questão.17 Em primeiro lugar, a diferença entre os contextos europeu e norte-americano e o brasileiro e africano, posto que, nesses últimos, o impacto da industrialização no plano da cultura ainda não se havia generalizado; uma segunda hipótese supõe que Bastide adota uma certa concepção de indivíduo como criador de cultura, ou melhor, de uma variada e efervescente noção de pessoa, de inspiração maussiana, que o leva a minimizar a preocupação com a ameaça de destruição de uma cultura pela outra, circunscrevendo sua pesquisa a regiões do Brasil e da África onde o vigor da cultura, quer em suas próprias criações, quer no modo de incorporação de outras tradições, mostraria o caminho para se superar uma discussão que ameaçava roçar o dogmatismo.
Além disso, consideremos que, para Bastide, este sujeito criador está descolado da ideia de uma origem como fonte de autenticidade, assim como de uma noção romântica de indivíduo criador. Duas passagens de O Candomblé da Bahia e outras duas de Psicanálise do Cafuné exemplificam este ponto. Comecemos pelas últimas.
Bastide entende a figura do Aleijadinho a partir do mito que se construiu sobre ele, que, se segue as leis da mitologia ocidental acerca da figura do artista, adquire no Brasil um matiz especial, ou seja, “ao tema do artista-herói atingido pela maldição divina se juntam dois doutros ciclos lendários bem brasileiros, o da macumba com a curandeira preta Helena” (Bastide, 1941, p. 19). Como podemos observar na citação seguinte, a permuta é o processo esperado do contato de culturas, mas a originalidade que possa ser atribuída a cada uma delas aparece antes como obstáculo do que como valor a ser preservado.
[...] não basta que duas culturas ou duas artes estejam em contato para se estabelecer imediatamente uma permuta de influências [...] seria necessário esperar uma certa maturidade espiritual, o advento de um determinado estado de espírito para que desejassem inspirar-se em tais obras tomando-as como modelos
(Bastide, 1941, p. 24-25).E, nesse sentido, a pesquisa é fundamental para poder captar a “originalidade”, ou seja, o quanto o mestiço
[...] pôs um pouco de seu coração, de seu complexo de inferioridade, de seu desejo de desforra por meio do êxtase celeste, na obra esculpida ou pintada. Não apenas no tema, mas também na técnica, na escolha das cores, no emprego de materiais, o que é muito mais importante
(Bastide, 1941, p. 26-27.)Quanto à questão da origem como fonte de autenticidade, Bastide irá negá-la na seguinte passagem, na qual o que importa é o modo como o Brasil pode ser visto como um campo de experiências capaz de desvendar processos de transformação equivalentes no outro continente:
Na medida em que reage sobre a mitologia ortodoxa para modificá-la, a luta dos indivíduos ou dos grupos sociais na Bahia vai nos ajudar, cremos, a melhor compreender o que deve ter ocorrido na África e de que maneira a história desagrega a metafísica
(Bastide, 1961, p. 32).Assim, Bastide irá explicitar seu método em dois pontos centrais: uma visão do objeto como algo idiossincrático e um certo afastamento das explicações tradicionais a seu respeito.
Neste trabalho, não nos preocupa a busca da origem africana dêste ou daquele traço, nem o possível sincretismo dêles com os da civilização luso-brasileira; indicamos ao leitor, quanto a êsse ponto, nossa tese principal.[18] Estudaremos o candomblé como realidade autônoma, sem referência à história ou ao transplante de culturas de uma para outra parte do mundo. Não nos preocuparemos também com o enquadramento das descrições em sistema de conceitos tomados à etnografia tradicional ou à antropologia cultural. Não porque os desdenhemos, mas porque nos parece mais útil abrir horizontes do que caminhar por sendas já percorridas
(Bastide, 1961, p. 11).Trata-se, portanto, de tomar o candomblé “como realidade autônoma [brasileira], que pode certamente compreender elementos de diversas origens, mas que, não obstante forma um conjunto coerente que pode ser estudado em si mesmo” (Bastide, 1961, p. 15), ou seja, em seus elementos sincrônicos, descolados tanto de seu passado como de suas perspectivas futuras. Por um lado, cabe aos propósitos de Bastide investigar comparativamente o modo como determinados fatos da cultura se modificaram ao longo do tempo, o que vai lhe permitir, de forma quase paradoxal, melhor compreender o sentido dos cultos africanos por intermédio do exame das transformações que eles sofreram no Brasil.
Por outro, a razão ocidental, cujo desenvolvimento levará ao que Sapir identifica como “cultura espúria”, continua sendo o Outro, com o qual se defronta a gnose afro-brasileira. O que faz com que, tentando conferir a essa última uma dignidade intelectual própria, ele não hesite em afirmar que: “os cultos ditos populares não são um tecido de superstições [mas], pelo contrário, subentendem uma cosmologia, uma psicologia e uma teodiceia; enfim, que o pensamento africano é um pensamento culto” (Bastide, 1961, p. 12).
É, portanto, no sentido que acabamos de ver que Bastide contorna o problema da massificação e da padronização tal como Sapir o coloca, como cultura espúria em contraposição à cultura autêntica. Assim, o Brasil e a “África” também aparecem como campos para a afirmação de sua própria epistemologia e, por outro lado, como contexto “perfeito” para descartar a ideia de autenticidade, pois, como sugere Laplantine (2002),
desde as primeiras páginas desse livro [De perto e de Longe] ele anuncia as interrogações, colocadas somente depois de alguns anos sob o nome de “globalização” e começa a nos dar alguns elementos para a resposta. Ele toma consciência de que uma nova relação com o espaço está em vias de se formar: uma relação com um espaço que diminui (e é então suscetível de nos aproximar uns dos outros) e com um tempo que se acelera e cria a distância, a “incompreensão” e a exclusão. Essa tensão entre o próximo e o distante, que Bastide não apenas percebe, mas começa a analisar desde os anos de l950-60, quando fica atento especialmente a essas formas reativas de anti-globalização e de anti-cosmopolitismo nacionalistas e identitárias, tais como os movimentos messiânicos do Terceiro Mundo, é tarefa dos antropólogos e sociólogos de nossa época reexaminar
(Laplantine, 2002, p. 148).Resta explorar, ainda, a título de conclusão, um último ponto a ser tratado na configuração de uma sociologia da generosidade de Bastide. Penso que sua prática sociológica modula o sentido de um conceito bastante explorado na sociologia contemporânea que é o da reflexividade, que expressa a capacidade das teorias sociológicas e antropológicas repercutirem sobre o real. Em Roy Wagner, por exemplo, tanto o antropólogo “inventa” a cultura em sua interação com as pessoas que estuda, quanto estas, por sua vez inventam um modo de incorporá-lo em sua cultura. Assim,
[a]o experienciar uma nova cultura, o pesquisador identifica novas potencialidades e possibilidades de se viver a vida, e pode efetivamente passar ele próprio por uma mudança de personalidade. [...] No ato de inventar outra cultura, o antropólogo inventa a sua própria e acaba por reinventar a própria noção de cultura
(Wagner, 2010, p. 30).Caberia perguntar, então: Bastide colocou-se como participante da cultura que estudou, foi elemento catalisador de mudanças, mas também aberto à conversão por essa cultura? Ou tratar-se-ia, pelo contrário, de uma participação contaminada por um etnocentrismo às avessas, conforme a observação de Peter Fry, citada e ambiguamente admitida, por Laplantine?
É sem dúvida essa verdadeira paixão por Salvador e seus candomblés, “me abrindo”, assim como ele declara em 1944 a um jornal brasileiro, “novos caminhos que eu jamais imaginaria”, que permite compreender um certo “etnocentrismo ao contrário”, do qual fala Peter Fry. Essa idealização da África reencontrada no Brasil, e com a qual ele tende a se identificar, o conduz, algumas vezes, neste livro, a certos julgamentos de valor (“o erotismo libidinoso do europeu e o amor casto do africano”) (p. 205). Ela o leva a perceber com um olhar mais solidário aqueles que partilham da fé no “verdadeiro candomblé” (p. 143), e a considerar com um olhar mais distanciado a “negritude” recomposta e reinterpretada na Europa, o surrealismo, por exemplo, e tudo o que é “reinterpretação da África através das categorias lógicas e afetivas da mentalidade ocidental”
(Laplantine, 2002, p. 147).Esta visão está longe de ser consensual e, pelo que vimos da concepção de cultura de Bastide, tendemos a apoiar a análise de Fernanda Peixoto, para quem a viagem do autor
mostra [...] como os intérpretes, eles mesmos viajantes e tradutores, contribuem não apenas para a decifração dessa trama de símbolos e figuras retóricas interconectadas, mas auxiliam a construí-la, na medida em que agregam novos elementos a esse complexo, sempre plástico e móvel
(Peixoto, 2010, p. 45).Grande parte do sentido da questão se deve ao reconhecimento da existência da reflexividade entre o pesquisador e seu objeto e, portanto, à tentativa de entender a relação de Bastide com o seu objeto como uma troca cultural em si mesma.
Em se tratando da relação observador-observado, para uma versão que a tornaria um pouco mais complexa, e numa linha de interpretação um tanto diversa daquela da antropologia, acredito ser proveitoso seguir com a afirmação do crítico literário e um dos fundadores do novo historicismo, Stephen Greenblatt, para quem “os observadores emprestam aos observados, como às terras de onde foram trazidos, um sólido conjunto de concepções mediadoras graças às quais assimilam representações exóticas em sua própria cultura.” (Greenblatt, 1996, p. 162). No caso de Bastide, essas mediações seriam naturalmente as concepções sociológicas e antropológicas, mas também suas próprias concepções pessoais, como, por exemplo, as derivadas da sua origem familiar protestante.19
Em 1945, ano em que publica Imagens do Nordeste Místico,20 Bastide, ao buscar explicações para o transe místico, corrobora o comentário do antropólogo americano Melville Herskovits, para quem o uso dos critérios de anormal e psicopatológico deveu-se ao fato de os observadores da vida religiosa afro-baiana terem sido, na maioria, homens de medicina, como Nina Rodrigues e Artur Ramos. Nesse sentido, a camada de concepções mediadoras já formada quando Bastide inicia os seus estudos – e que compõe, em grande medida, um quadro explicativo coerente – e os termos “normal e patológico” funcionariam como obstrução mimética, tanto impedindo a assimilação completa pelo outro, quanto permitindo, em alguns casos, a negação violenta do outro.
Contudo, longe de ser una e coesa,
a cultura é mais porosa, mais aberta, menos estável do que parece à primeira vista e somente como resultado da imposição social de uma ordem imaginária de exclusão – a “obstrução” – pode a cultura ser invocada como entidade estável na qual representações características são ordenadas, exportadas e acomodadas
(Greenblatt, 1996, p. 160-161).Será justamente essa ideia de porosidade da cultura o elemento que permitirá a Bastide, embora sem ignorar a possibilidade de uma explicação psicológica, preferir considerar a “natureza da cultura, e seu papel na influência que exerce sobre o procedimento do homem” (Bastide, 1945, p. 87), dada a larga distribuição geográfica e a antiguidade da experiência de possessão. Nesses termos e em oposição ao quadro explicativo dominante, para Bastide, esta camada de representações mediadoras revela uma certa abertura e expõe os mecanismos de circulação mimética21 subjacentes, sobretudo quando ele faz uso de termos da tradição cristã para entender o candomblé. Vejamos alguns exemplos.
A começar por seus objetivos, a partir da escolha do referencial para estabelecer o contraste: “[o] que nos interessa aqui é a própria estrutura da mística africana, em oposição à mística cristã”. Após enunciar a diferença – “enquanto esta última se volta para a fusão da alma com Deus, por uma lenta ascensão através da noite dos sentidos e da noite do espírito, a outra gira em torno de deuses que possuem a alma, em torno, em consequência, de uma descida do sobrenatural ao natural” (Bastide, 1945, p. 48) – uma série de analogias vão surgindo, quase que nas entrelinhas: a referência ao pai de santo como padre, ao significado do corte do cabelo das monjas, o uso de termos comuns a ambas as religiões, como sacrifício, iniciação, procissão, possessão.
Contudo, os contrastes dos sentidos não são simétricos ou correspondentes. À noite ele não opõe o dia, nem à visão, o paladar; e, mais importante, a anulação dos sentidos entre os cristãos não corresponde a uma sobre-excitação dos sentidos entre os praticantes do candomblé: antes disso, trata-se nestes das qualidades altamente sublimadas da beleza, da bondade e da doçura.
Foi lá, nessas vésperas de festa, que melhor aprendi a amar esse povo simples e bom, e que percebi como tinham permanecido africanos. A África não é para eles o que é para certos negros norte-americanos: um meio de protestar contra os preconceitos de casta anglo-saxões, ou um assunto poético, ou uma forma disfarçada de imperialismo ianque [...] não, a África aqui é um orgulho e uma fidelidade; nenhum complexo de inferioridade, mas pressentimento de conservar uma herança de beleza e bondade, a vontade não de se deixar perder na civilização brasileira, mas de integrá-la a essa civilização para enriquece-la e lhe dar uma doçura suplementar
(Bastide, 1945, p. 81).Por conseguinte, colocando uma barreira ou um limite aos princípios do universalismo cristão que, convicto “de que seus principais símbolos e narrativas são adequados para toda a população do mundo – impõe a livre circulação de seu capital mimético” (Greenblatt, 1996, p. 160), Bastide abriria a possibilidade do livre movimento de sistemas simbólicos alternativos como podemos inferir desta observação a propósito da dança dos deuses, em que está implícita a interpenetração dos símbolos e práticas de ambas as culturas, a sua própria e a dos afro-brasileiros que estudou na Bahia: “[o]s rostos se metamorfosearam em máscaras, perderam as rugas do trabalho cotidiano, desaparecidos os estigmas dessa vida de todos os dias, feita de preocupações e misérias” (Bastide, 1961, p. 30).
Pode-se perceber, assim, que os argumentos enunciados ao longo deste trabalho confluem para a ideia desenvolvida nesta seção – a de uma sociologia bastidiana da generosidade. Marcada por uma perspectiva antietnocêntrica, esta sociologia é pressuposta e praticada por meio de um método “caleidoscópico”, em que múltiplas visões e objetos formam unidades sempre móveis e provisórias, e por diálogos intelectuais do modo como foram por ele realizados, tanto levantando as principais questões do momento e ampliando seu escopo analítico como apontando para a possibilidade de que ideias e interpretações, sempre compartilhadas, reverberem sobre as realidades sociais sobre as quais se debruçam.
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Notas
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