ARTIGOS
Recepção: 24 Maio 2022
Aprovação: 20 Junho 2023
DOI: https://doi.org/10.20336/rbs.868
RESUMO: Este artigo apresenta os resultados de uma pesquisa realizada entre 2018 e 2020 em Belo Horizonte, capital de Minas Gerais, Brasil. Trata-se de uma análise das formas de socialização a que foram submetidos homens autores de violência contra a mulher, condenada pela Lei Federal 11.340 (Lei Maria da Penha). Um dos objetivos do estudo foi localizar padrões referentes a práticas baseadas em crenças e costumes, valores morais em que esses homens, autores de violência íntima contra a mulher, eram socializados. Punidos pela lei brasileira, eles foram colocados, em 2019, em grupos reflexivos aos quais foram levados pelo sistema de justiça. Neste estudo, foram utilizados métodos qualitativos e quantitativos para reconstruir a memória dos perpetradores de violência contra a mulher e posterior análise dos dados gerados na pesquisa. Dentre os três fenômenos descritos nesta pesquisa, destacamos a “ordem social aprisionada” por se tratar de um impacto social da aplicação da Lei Maria da Penha. Para descrever os fenômenos, são analisadas práticas originadas de padrões morais e padrões de masculinidade aprendidos na infância e adolescência, relacionando-os às mudanças de costumes que estão ocorrendo no país, que por sua vez estão vinculadas a novas leis, aprovadas pelo parlamento para maior proteção das mulheres em situação de violência.
Palavras-chave: Violência nas relações íntimas, homens perpetradores de violência, ordem social, padrões de socialização.
ABSTRACT: This article presents the results of a survey conducted between 2018 and 2019 in Belo Horizonte, capital of Minas Gerais, Brazil. The survey involved men convicted of perpetrating violence against women (VAW) analysis of the forms of socialization to which were subjected male perpetrators of violence against women condemned under the Federal Law 11,340 (known in the country as Maria da Penha Law) that criminalizes VAW. Based on that survey, the study investigated how those men were socialized, aiming to determine patterns referring to practices based on beliefs and customs, moral values in which these men, perpetrators of intimate violence against women, were socialized. Convicted by Brazilian law, in 2019 they were sentenced to attend reflection groups. In this study, qualitative and quantitative methods were used to reconstruct the memory of VAW perpetrators and to analyze the data generated in the research. Among the three phenomena described in the study, I highlight “the imprisoned social order”. To describe this phenomenon, practices originating from moral standards and standards of masculinity learned in childhood and adolescence are analyzed, relating them to the changes in customs that are taking place in the country, which in turn are linked to new laws, approved by parliament for greater protection of women subjected to violence.
Keywords: Violence in intimate relationships, male perpetrators of violence, primary socialization, secondary socialization.
Introdução
Desde meados do século XX, reflexões acadêmicas sobre as dimensões da violência masculina praticada contra mulheres têm contribuído para a produção de políticas governamentais e/ou para a modelagem de ações sociais. Esses estudos foram, em geral, impulsionados pela ação de movimentos sociais, liderados por mulheres feministas ou simplesmente progressistas, dentro do que se convencionou chamar de segunda onda do feminismo. Sua origem tem sido associada ao contexto das rebeldias de jovens nos anos 1960-70 nos países centrais (Guzmán, 2001; Messner, 2002; Fraser, 2009; Blay, 2014).
Em meados dos anos 1980, interpretações do fenômeno se somaram na tentativa de esclarecer as questões envolvendo hierarquias de poder e manutenção da dominação masculina. Novos pontos foram trazidos à reflexão pela teoria das masculinidades construída por Carrigan, Connell e Lee (1985) – também por Connell e Messerschmidt (2013). Até então, especialmente no Brasil, era mais escassa a produção científica dedicada a analisar mecanismos que mantêm esse tipo de subordinação de mulheres em relação aos homens. Na literatura nacional, é preciso reconhecer as contribuições ao tema da violência masculina praticada contra mulheres desenvolvidas por vários autores, entre eles Beiras (2016); Beiras, Nascimento e Incrocci (2019); Medrado e Lyra (2008). Recortamos aqui, os argumentos apresentados por Chauí (1985), Gregori (1993) e Saffioti (2001), nem sempre concordando umas com as outras. Embora as mulheres não sejam vítimas passivas da violência masculina, Saffioti1 afirmava que os homens são o grupo dominante e as mulheres o grupo subjugado. Na interpretação de Bandeira (2006), a estudiosa Saffioti defendia que, visto que mulheres e homens não ocupam a mesma posição de poder, a participação das mulheres em relações violentas de gênero é informada por ameaças e violência concreta, ao invés de “consentimento” e conhecimento para tomar decisões conscientes. Em suma, as mulheres não seriam “cúmplices” da violência (Saffioti, 2001, p. 126), conforme interpretaram Chauí (1985) e Gregori (1993).
Por outro lado, teorias feministas que consideram a existência do chamado patriarcado moderno trouxeram para as ciências sociais a problematização acerca das bases sobre as quais foi construído o arcabouço da sociedade ocidental contemporânea, no qual as mulheres ficaram excluídas da vida pública e mantidas em situação de subalternidade na vida privada – o mesmo ocorrendo com sua entrada em massa no mercado de trabalho (Pateman, 1993; Walby, 1990).
Sylvia Walby articula o sistema de patriarcado privado ao de patriarcado público – descreve a dinâmica de um sistema no qual a violência opera como um dos seis elementos de suporte associados pela teórica à manutenção da hierarquia entre os sexos. O sistema repousaria, conforme detalhou a estudiosa, em seis estruturas: (i) um modo patriarcal de produção: o trabalho doméstico (reprodução social); (ii) relações patriarcais de trabalho remunerado: o emprego; (iii) relações patriarcais no interior das instituições do Estado; (iv) violência masculina; (v) relações patriarcais de sexualidade; e (vi) relações patriarcais no âmbito da cultura (escola, igreja e outros).
Por analisar cada uma dessas estruturas, a autora avalia que o patriarcado se modificou de uma forma privada, com sua base na produção doméstica e o controle do patriarca sobre a vida da mulher para uma forma mais direta, uma forma pública, que tem em sua base a esfera pública como importante meio de manutenção do patriarcado. Portanto, permite que a mulher, ao ir para o público, torne-se dominada e explorada em todas as esferas, inclusive no âmbito doméstico, a esfera privada
(Azevedo, 2016, p. 17).O propósito desenvolvido nesta pesquisa, realizada em Belo Horizonte com homens autores de violência contra mulheres e frequentadores de grupos reflexivos credenciados pelo sistema de justiça, foi explorar a noção de recrudescimento da violência associada a um movimento de mudança dos padrões de masculinidade, tendo em vista noções trazidas por Carrigan, Connell e Lee (1985), Connell e Messerschmidt (2013), Walby (1990), Pateman (1998), Bourdieu (1998) e Segato (2003). Nesta discussão, estamos levando em conta também ponderações de que os formatos de masculinidades existentes estão se abrindo a modelos mais flexíveis, apontados em algumas análises empíricas de pesquisadores europeus, canadenses e australianos citados ainda por Connell & Messerschmidt (2013) em revisão de suas noções de construção das masculinidades.
Em vista dos resultados encontrados nesses estudos empíricos e do desenvolvimento de noções que amparam uma discussão de estruturação de costumes, valores morais e crenças atravessados por marcadores socioeconômicos e determinações de classe, pretendi trazer para essa discussão a noção de habitus e a teoria da prática de Bourdieu (2009). Sua visão sobre a estruturação dos sujeitos sociais foi especialmente relevante para esta pesquisa do ponto de vista metodológico, sendo utilizada no enfoque adotado nos questionários de infância e juventude, construídos para remeter à memória dos entrevistados sobre sua socialização.
A despeito da criação de leis que ampliaram o conceito de cidadania das mulheres no Brasil e da criação de políticas públicas para mulheres nas três esferas de governo e, por último, mesmo com a aprovação no Congresso Nacional, em 2006, da Lei no 11.340 (Lei Maria da Penha) e, em 2015, da Lei do Feminicídio, seguem em alta as taxas de violência masculina praticada contra mulheres – fenômeno que se repete com variações regionais, em países desenvolvidos ou não (Fleury-Teixeira & Chrystus, 2019; European Union Agency For Fundamental Rights -FRA, 2012; Bandeira, 2006). Após mais de 40 anos de esforços nas casas legislativas, que produziram significativa revisão de leis brasileiras e a implementação de políticas públicas específicas para prevenção e combate a essas formas de violência, novas contribuições científicas têm sido feitas no sentido de fazer avançar a compreensão das dinâmicas que se processam nas relações íntimas e que carregam padrões de socialização com marcadores de raça e classe.
Bandeira (2006) localiza um paradoxo sobre o qual trabalham, no Brasil, estudiosos/as, formuladores de políticas públicas, setores político-sociais e esfera legislativa, diante da realidade do aumento dos números da violência e não sua redução. Isso ocorre a despeito de terem sido estruturadas no país, nos últimos 35 anos, em um longo processo de revisões jurídicas e aprovação de leis de proteção de direitos das mulheres em várias esferas da vida social, políticas públicas para prevenção e atendimento às mulheres em situação de violência. Nas relações entre homem e mulher, nas estruturas cotidianas do patriarcado privado, da família, assim como de instituições, do patriarcado público, a
premissa de partida mais segura é a de que essa gama de violências sempre surge como “produto” de uma relação – vivida ou imaginada, entre sujeitos comuns e conhecidos e entre diferentes e desconhecidos sujeitos. Para compreendê-la, é necessário decifrar as relações existentes, por intermédio de numerosas aproximações empíricas entre e intra esses indivíduos, perguntando-nos sobre o papel desempenhado pelas simbolizações hegemônicas de homem e mulher, nas estruturas cotidianas do patriarcado privado, da família, assim como instituições [do patriarcado público]
(Bandeira & Almeida, 2012, p. 4).Desenho teórico-metodológico
A explicação minuciosa dos mecanismos de manutenção das hierarquias e do poder masculino, estruturados socialmente e reproduzidos nos processos de construção das masculinidades (Carrigan et al., 1985; Connell & Messerschmidt, 2013), tributária das teorias feministas, traz à discussão a dimensão de uma sociologia dos processos. Tal contribuição clareia pontos ainda inexplorados a respeito dos mecanismos e das dinâmicas que garantem a manutenção da dominação exercida pelos homens e da subordinação das mulheres a um formato de vida social ainda em vigor, com maior ou menor ênfase, em todas as regiões do planeta.
Essas construções teóricas trazem reflexões que suscitaram algumas perguntas norteadoras da investigação realizada: (i) de que maneira tais movimentos de mudança, captados por estudos empíricos internacionais, estariam se reproduzindo e se expressando nos costumes de homens brasileiros a serem buscados nos grupos reflexivos em funcionamento em Belo Horizonte? (ii) Como foram formatados os padrões de masculinidade, as representações em torno da figura da mulher e propriamente do universo feminino – padrões morais, crenças, hábitos e costumes nas experiências de socialização2 de homens que frequentam grupos reflexivos credenciados pelo sistema de justiça em Belo Horizonte? (iii) Como os agentes constroem seus argumentos para compreender/explicar os conflitos vividos nas relações íntimas e de que forma consideram suas reações na vida ordinária, na dinâmica da construção desses conflitos em suas relações?
Para a realização deste estudo, foi construída uma hipótese que associa (i) a existência de uma mudança que se processa na construção das masculinidades subalternas e da masculinidade hegemônica (Carrigan et al., 1985; Connell e Messerschmidt, 2013); (ii) à manutenção e/ou incremento das taxas de violência masculina praticadas contra mulheres a despeito da aprovação de novas leis e políticas públicas, conferindo estatuto de cidadania às mulheres em várias nações do mundo desenvolvido ou não (Bandeira, 2006; Walby, 1990; Aguiar, 1997); (iii) haveria uma vinculação entre as dinâmicas de mudança e permanência e variações nos padrões de socialização primária e secundária aos quais homens autores de violência foram submetidos na infância e juventude – atravessados e constituídos pelos marcadores socioculturais ou, em outras palavras, por seu pertencimento de raça, classe e território. Essas são as três noções que, combinadas e relacionadas, constituem a hipótese que testamos ao longo da pesquisa.
Metodologia
Tendo em vista que a pesquisa analisa um objeto pouco discutido na literatura nacional – o tipo de socialização vivida na infância e juventude por homens punidos pela Lei Maria da Penha vis-à-vis à dinâmica de mudanças de costumes e o incremento nas taxas de violência –, o estudo foi desenhado tendo em vista dois momentos distintos: a) numa abordagem exploratória, realizando a observação sociológica de grupos reflexivos (homens punidos pela Lei 11.340 de 2006 são conduzidos a esses grupos por força do sistema de justiça);3 b) criação e aplicação de um instrumento de pesquisa (questionários) para, ao lado de reconstituir as experiências de socialização vividas pelos entrevistados, ao mesmo tempo aprofundar a discussão de tendências, costumes, visões de mundo observadas na etapa I. Em suma, registros realizados no tempo presente seriam, na etapa II, aprofundados, usando-se como recurso a memória social da amostra, buscada num tempo passado.
Portanto, decidiu-se unir dois caminhos metodológicos, conforme descrito em Newman & Benz (1998) e em Goodwin & Horowitz (2002), articulando os métodos qualitativo e quantitativo, de forma a: (i) proceder à observação sociológica (método qualitativo), de grupos reflexivos no Instituto Albam, em Belo Horizonte – entre março de 2018 e março de 20194 foram 48 semanas de observação; (ii) realizar a coleta de dados, com o resgate de memórias dos respondentes sobre socialização vivida na infância e juventude; ao mesmo tempo obter dados socioeconômicos, tipificação dos casos de violência, e ainda aprofundar o debate em temas recorrentes vistos nos grupos durante a observação; iii) proceder à criação do banco de dados, realizar a análise estatística e proceder à análise e interpretação dos dados quantitativos colhidos.
A segunda etapa foi destinada a construir, testar e aplicar os dois questionários (sobre infância e juventude). A coleta de dados compreendeu três fases: (i) construção do instrumento de pesquisa (método quantitativo e enfoque qualitativo nas perguntas/sugestões de respostas): dois questionários estruturados, um sobre a infância e outro sobre juventude desses homens;5 (ii) teste do survey, com aplicação a 20 entrevistados e revisão dos questionários; (iii) aplicação do survey junto aos respondentes nos dois organismos credenciados pelo sistema de justiça em Belo Horizonte: Instituto Albam e Programa Dialogar, da Polícia Civil do Estado de Minas Gerais. Vale lembrar, com Halbwachs (1990), que as memórias individuais são um ponto de vista a respeito da memória coletiva. Foi essa releitura do passado proposta aos participantes do survey que tornou possível criar e montar um banco de dados. Após isso, foi feita a análise propriamente dita do material obtido pela pesquisa.
O próprio método de coleta de dados se constituiu também em processo de validação dos dados qualitativos, na construção da triangulação necessária. De acordo com Easterby-Smith, Thorpe e Lowe (1999), houve, em 1979, importante experiência com a triangulação metodológica realizada por Todd Jick, a qual consistia na combinação de métodos qualitativos e quantitativos de coleta, como a entrevista e o questionário – no caso desta pesquisa, observação e questionário. Neste último tipo de triangulação, o uso de vários métodos exige que estes sejam congruentes com as perguntas de pesquisa,6 conforme Gray (2012). Como se sabe, o uso da triangulação nas ciências sociais remonta a Campbell e Fiske (1959) que desenvolveram a ideia de “operacionismo múltiplo”. Argumentavam que mais de um método deveria ser usado no processo de validação para garantir que a variância refletisse aquela do traço e não do método que “reforça nossas crenças de que os resultados são válidos e não um artefato metodológico” (Bouchard, 1976, p. 268). Esse tipo de triangulação é rotulado por Denzin (1989, p. 302) como o tipo “entre (através)” e representa o uso mais popular da triangulação. É em grande parte um veículo para validação cruzada quando dois ou mais métodos distintos são considerados congruentes e produzem dados comparáveis.
Zappellini e Feuerschütte (2015, p. 246-247) propõem um conceito básico de triangulação, entendendo-a como um procedimento que combina diferentes métodos de coleta e de análise de dados, diferentes populações/sujeitos (ou amostras/objetos), diferentes perspectivas teóricas e diferentes momentos no tempo, com o propósito de consolidar suas conclusões a respeito do fenômeno que está sendo investigado. “A triangulação deve utilizar um ponto de partida e confrontar os resultados obtidos com os diferentes métodos [...], bem como com as conclusões obtidas com base na perspectiva originalmente adotada para conduzir a pesquisa”.
Os questionários se constituíram em uma ferramenta de racionalização metodológica pela qual as tendências seriam (e foram) testadas e discutidas, possibilitando uma visão menos comprometida por vieses, visto que a técnica de aprofundamento e checagem de conteúdos proporcionada pelo uso de questionários permitiu, em diversos momentos, realizar as aproximações e distanciamentos necessários ao universo conceitual/cognitivo dos respondentes. Portanto, com a triangulação definida deste modo, foi possível realizar a validação dos dados unindo os métodos qualitativo e quantitativo num mesmo estudo. O método de triangulação escolhido para esta pesquisa poderia ter combinado observação sociológica e uso de grupos focais para aprofundar na discussão de símbolos de masculinidade, feminilidade, visões de mundo, valores que surgem como registros da observação realizada na Etapa I. Porém, tendo em vista o fato de a pesquisa não dispor de recursos suficientes para montar uma equipe mais diversificada (por isso ficaria focada na figura de um único pesquisador e um assistente), o uso de questionários na tentativa de estimular/acessar memórias sociais dos entrevistados representou um nível necessário de aprofundamento e checagem das tendências observadas.
Além das matrizes cognitivas e temáticas criadas na análise dos dados do survey, numa mescla de métodos quali-quanti (Goodwin & Horowitz, 2002), outras técnicas qualitativas foram utilizadas na pesquisa. Na última etapa deste estudo, na qual foi feita a análise dos dados do survey, também especial espaço foi dado à interpretação dos dados da observação sociológica. Foi feito o uso da metodologia emprestada ao campo da Linguística – a Análise do Discurso (AD). Na AD é necessário ir além do discurso manifesto e considerar a possibilidade de que nem sempre o que as pessoas dizem é o que elas sentem e vivem (Godoi et al., 2010). Desse modo, conforme Soares, Pereira, Suzuki e Emmendoerfer (2011), além do discurso manifesto (intradiscurso) é importante considerar as diferentes naturezas de exterioridade e as diferentes concepções do não dito.
Os dados obtidos por esta pesquisa resultaram da aplicação de dois modelos de questionários a 30% do total de frequentadores desses grupos reflexivos em funcionamento em Belo Horizonte no ano de 2019 – significando a aplicação de 137 questionários relativos à infância e 137 questionários sobre juventude (aplicados de maio de 2019 a fevereiro de 2020).7 Durante aquele ano, em Belo Horizonte (MG), 456 homens autores de violência, punidos pela Lei Maria da Penha, foram encaminhados pelo sistema de justiça para cumprir parte de sua pena alternativa em grupos de reflexão existentes nos dois programas de atendimento na cidade: o Instituto Albam e o Programa Dialogar da Polícia Civil do Estado de Minas Gerais. O Programa Dialogar existe há dez anos em uma delegacia comum (não especializada em violência contra mulheres). Foi criado e é executado por psicóloga/policial-civil, em delegacia da esfera estadual de Minas Gerais. Ali os grupos reflexivos funcionam na modalidade fechada – isto é, todos os participantes entram na mesma data e terminam as oito semanas de grupo reflexivo em conjunto. No Instituto Albam, o modelo é de grupos reflexivos abertos – os grupos reflexivos funcionam em fluxo contínuo; não há uma data única para a entrada dos participantes; quem termina as 12 semanas do programa finaliza sua participação e novos integrantes são admitidos.8
Os respondentes do survey foram voluntários que atenderam positivamente à exposição dos objetivos da pesquisa e ao convite feito pela pesquisadora. Os dois questionários eram respondidos durante duas horas em sessões de grupos reflexivos cedidas pelas organizações. Foram respondidos de próprio punho pelos participantes.9 Houve um aprendizado relevante no que diz respeito a essa dinâmica, quando se executa a aplicação e, posteriormente, a análise dos dados trazidos pelos questionários, buscando compreender que estratégias discursivas foram mobilizadas pelos entrevistados, por meio de respostas evasivas, rejeições e/ou aceitação de opções oferecidas como formas de contornar aquilo que não se quer deixar transparecer.
A aplicação dos questionários gerou uma base de dados, cuja análise estatística ficou a cargo do Serviço de Capacitação em Métodos Estatísticos da Fiocruz Minas.10 Para análise descritiva,11 apresentamos a frequência absoluta e relativa, transformada em porcentagens, das variáveis categóricas. Para avaliar a associação entre as variáveis categóricas, utilizamos o teste de Qui Quadrado de Pearson. O teste de Qui Quadrado avalia se a frequência observada entre duas variáveis se deve ao acaso ou não. Qualquer teste estatístico nos retorna o que chamamos de valor p, que é um valor de probabilidade que devemos comparar com o nível de significância do estudo.12 Para este estudo, consideramos um nível de significância de 5%. As tabelas e gráficos foram elaborados no software Microsoft Office Excel 2016. Os testes estatísticos foram realizados no software Stata 12.0.
Análise de resultados
Havia um frequentador dos grupos de reflexão que expunha de forma enérgica uma das faces da resistência à mudança de costumes. Era um dos raros jovens das camadas de renda alta que apareceram por ali em 2018, naquele período de um ano de observação sociológica – um advogado de 34 anos condenado por conflitos com a ex-namorada. Sua entrada em um desses grupos reflexivos suscitou novos debates sobre a forma como a justiça é hoje exercida no país – o que, nessa área, para os brasileiros em geral, é simbolizado pela introdução, em 2006, da Lei 11.340 (ou Lei Maria da Penha) no sistema jurídico do país. Nas sessões de grupos reflexivos que acompanhei, esse advogado chegou a afirmar com veemência que o principal resultado da ação dessa lei tem sido o aumento do feminicídio, como consequência da reação dos homens, conforme argumentou algumas vezes.
Sem ter consciência que o fazia, o advogado acabou por expor a seu modo o paradoxo da luta das mulheres – o aumento da violência, a despeito do avanço dos direitos no campo legal. Fenômeno tratado pela teoria como próprio das fases de transição de costumes e normas que regulam comportamentos nessa área, e que se tornou o problema central discutido nesta pesquisa – questão que embasa a construção da hipótese investigada. O que nosso estudo encontrou na investigação pode ser, grosso modo, resumido em três fenômenos que, articulados, comprovam o que a hipótese levantou como ponto de partida: (i) o fenômeno dos “cinco discursos”, representando o processo de reeducação desencadeado pela participação de homens punidos pela Lei 11.340 (Lei Maria da Penha) nos grupos reflexivos, como parte da execução de suas pernas alternativas estabelecidas pelo sistema de justiça. (ii) a existência do fenômeno que identifiquei como o “duplo padrão de resposta na transição”, em que os homens misturam referências morais da velha ordem e outros padrões normativos representando a transição para uma outra ordem (normatização da vida social) em que a rigidez da hierarquia de poder entre homens e mulheres se apresenta fragmentada, fendida e em mutação; (iii) observou-se o fenômeno da “ordem social aprisionada”, representado pela punição da prática de padrões de violência contra mulheres sancionados na ordem tradicional na qual os homens da amostra foram educados.
Análise qualitativa: análise do discurso
A Análise do Discurso foi a metodologia que produziu como resultado a identificação do fenômeno dos cinco discursos – expressão do processo vivido pelos homens frequentadores dos grupos reflexivos. Somente ao final de todo o processo, inclusive posteriormente à aplicação dos questionários e análise desse banco de dados (em que foram, de novo, observadas tendências registradas ao longo de sessões de grupo), é que houve a possibilidade de descrição desses discursos típicos. Na verdade, durante a digitação das notas tomadas durante as 48 semanas de sessões de grupo (feitas originalmente à mão em três cadernos universitários), observava-se repetições típicas que apontaram para a existência deste fenômeno.
Foi necessário separar por área temática as intervenções discursivas dos frequentadores de grupos (registradas nessas anotações) para assegurar que, de fato, havia ali tipificações discursivas. Ou seja, ficou claro que, mais do que reclamações de homens confusos, revoltados com a lei de proteção às mulheres, havia discursos típicos que se repetiam em ciclos. Ao fim dessas classificações por temas discursivos, foi se delineando o argumento que levou à descrição dos cinco discursos enquanto processo de reeducação. Ao analisar as notas do período de observação dos grupos reflexivos, fica claro que, não importando a classe social, o nível de renda ou de educação, esses homens mineiros têm um pressuposto comum em torno das questões da masculinidade e da hierarquia – o modo de compreenderem a relação amorosa, sua visão do mundo feminino e de como se conduzir na relação íntima. Recuperando os diálogos e discussões registrados nas sessões de grupos de reflexão acompanhadas na etapa qualitativa, observou-se que estão referidos a valores tradicionais e consolidados no mundo masculino, referidos a seu poder na vida social. São debates que transitam das questões de posse do Outro e do ciúme, passando pela divisão sexual do trabalho na vida doméstica, o papel do provedor, liberdade para homens e mulheres, limites da hierarquia existente entre os casais. Nesse sentido, só a crise instaurada é capaz de estabelecer a dúvida que poderá ou não conduzir à mudança de padrões e costumes em direção à flexibilização desses limites, para encontrar alguma democracia nessas relações íntimas e na vida social mesmo.
Nas discussões acompanhadas nos grupos reflexivos, observou-se que a crise de costumes que esse contingente masculino enfrenta é potencializada pela capacidade de a Lei Maria da Penha, ao legitimar as denúncias junto às Delegacias da Mulher. Ao mesmo tempo, por exigir que os homens autores de violência contra mulheres frequentem grupos de reflexivos, a Lei 11.340 abre possibilidades de transformação na vida de homens e de mulheres envolvidos nas situações de violência. Não há dúvida de que frequentar os grupos torna possível alguma reflexão para esses homens em torno de seu papel nas relações sociais e nas relações íntimas, a reconstrução de suas histórias de vida, colocando em questão os pilares que sustentam o poder masculino nas relações sociais.
À medida que avançam no processo de reeducação que esses grupos propõem, foi possível identificar cinco tipos de discursos produzidos pelos frequentadores. As manifestações discursivas sucediam-se, em geral, nessa ordem: Discurso da Ignorância; Discurso da Crise; Discurso da Origem; Discurso do Desamparo; Discurso da Cura. Essa mesma dinâmica se repetia com cada novo frequentador dos grupos, como se o processo de conscientização emulasse o processo de amadurecimento do sujeito social: ignorância como simbolização da infância e as várias fases do desenvolvimento da consciência até amadurecer a conduta.
Discurso da Ignorância
Raros foram os casos de integrantes dos grupos reflexivos, ao longo dos 12 meses de observação, que assumiam de início a consciência da prática de violência contra mulher. Isso nos recorda as noções de Welzer Lang (2001) ao descrever a construção das masculinidades. O autor cita alguns dos processos vividos pelos meninos em ambientes masculinos que ele denominou de “a casa dos homens”. Ali se refere às várias violências simbólicas ou físicas implícitas nos processos de socialização como conhecemos, vividas pelos meninos durante a infância e a adolescência. Em minha interpretação, tal processo se refere ao esquecimento que a ordem impõe a esses sujeitos, mostrando que a convivência com as várias violências é diária e seu esquecimento é parte implícita na institucionalização dessas práticas na vida social. Portanto, em minha interpretação, o próprio desconhecimento das violências que praticam contra mulheres é parte do processo social como um todo – um esquecimento que envolve tanto as violências praticadas como sujeito, como as vividas enquanto objeto.
Vim para ensinar e aprender. Vim pra cá porque bebia cachaça o dia inteiro. Aprontava muito. Fui sempre trabalhador e que assumi meus compromissos. A Justiça é doida porque eu estou aqui inocente. Trabalho de pedreiro desde que nasci. Bebia até rolar na rua. Conheci uma mulher que achei que tudo ia dar certo. No começo tudo parecia que ia dar certo. Ela é aquele tipo de mulher que joga a gente na rua. Muitas vezes me jogava na rua. Eu voltava quando ela chamava. Foi até que eu comecei a conhecer outra pessoa. Ela não me ajudava a largar a cachaça. Ela dizia que tinha nojo de olhar na minha cara.
(Pedreiro, Sessão de grupo de 25/04/2018)
Na maioria das vezes nós todos que estamos aqui, na hora a gente não sabe que está extrapolando.
(Pastor. Sessão de grupo de 11/07/2018).
Em que outra parte que você acha que eu estou errado? A gente não teve contato físico. Tivemos palavras ofensivas (de prostituta para lá). Só palavras de “alto” calão. Nesse caso, por ela ficar rebaixada por aquelas palavras, ela se machucou toda, chamou a polícia. O propósito que eu fiz com Deus foi maravilhoso.
(Sindicalista. Sessão de grupo de 11/07/2018)
Ela acreditava que a violência física era denunciável. Ela teve que marcar o corpo dela para conseguir te denunciar. Foi a saída porque não existe o entendimento de que a violência psicológica é também violência. E hoje 51% das denúncias não têm violência física.
(Resposta da psicóloga. Sessão de grupo de 11/07/2018).
Vim também sem expectativa, de mente aberta. Sem saber o que é. Sou comerciante (loja de bikes), tenho uma loja no Barreiro. Tive um problema com minha ex-mulher. Tenho um filho de 10 anos. Pelo que aconteceu, eu acho que não tinha histórico [de violência] para estar aqui. Meu processo tem só um empurrão que eu dei nela. Eu estava muito alterado. Meu advogado não me enquadrava na Lei Maria da Penha. Ela avançou pra cima de mim! Você vai me desculpar que a única coisa que eu fiz foi empurrar, mas para justamente evitar e não agredir.
(Comerciante. Sessão de grupo de 18/072018).
Nunca tive tempo para nada. Depois de 12 anos de serviço no trabalho de manutenção de impressora (em hospitais) ... Tinha quatro dias sem dormir, trabalhando direto. Foi questão verbal. A psicóloga me ajudou também. Eu fazia com ela a terapia, me ajudou no passado e vai me ajudar a passar por isso. Eu tenho três meninos. “Pai você melhorou demais”, dizem. Meus filhos me adoram. Graças a Deus estou ótimo. Foi só agressão verbal. Estou trabalhando pra mim agora. Abri uma empresa. Quando aumenta o serviço eu terceirizo. Eu tenho uma enteada, hoje com 20 anos. Foi juntando muita coisa. Pedi demissão da empresa. Tive um princípio de infarto aos 28 anos. Sorte que eu estava em um hospital. O médico disse que dos quatro que chegam lá, só um que sobrevive.
(Técnico de computação, 29 anos, usa tornozeleira eletrônica. Sessão de grupo de 18/072018).Discurso da crise
Não é parte do comportamento dos integrantes que chegam aos grupos reflexivos a consciência de sua própria responsabilidade na prática de violência. No entanto, é fato que estão envolvidos em uma denúncia, pela qual foram condenados. Há uma crise da relação íntima que se torna, então, o foco e objeto de longas análises durante as primeiras sessões. Desse modo, alguns deles se apresentam aos colegas de grupo – histórias cheias de detalhes, de dor e fúria, são reveladas aos homens ali reunidos. Nesses momentos, em que outros sujeitos se mostram em suas vulnerabilidades, supõe-se que aqueles que nada dizem – e são a maioria entre os cerca de 17 ou 18 participantes – revivam suas próprias histórias de vida.
Cheguei à conclusão que quem vive junto é abelha ou formiga. Se começa mal não tem como melhorar. Tudo começa de uma forma linda, ninguém casa para se divorciar. No meu caso foi traição. Ela falava comigo: “Vou acabar com a sua vida!” Ela queimou minhas roupas, quebrou meu celular. Até que ponto você tem que ficar aguentando? E me pergunto: será que ela ficou me provocando até o ponto que eu não aguentar mais? Eu vejo a situação dele [colega do grupo]: a mulher xinga até chegar a um ponto. Eu sou muito tranquilo e cheguei a esse ponto. [Conta que tentou suicídio.]
(Motoboy, rapaz jovem, 24 anos, diploma de ensino médio. Sessão de grupo de 18/04/2018)
Expliquei que achava que ela deveria fazer as coisas na casa. Meu serviço é pesado. Aí ela arrumou um serviço e eu não ajudava na casa. Os dois trabalhando... Então ela foi ficando irritada, irritada. Aí separamos. Ela arrumou um namorado. Eu cresci em uma cidade, em uma geração em que muitos amigos estão presos. Eu cheguei a ameaçar de morte. Eu passei a pensar mais nisso.
(Motoboy. [Eles foram morar juntos.] Sessão de grupo de 25/04/2018)
Viajar não vai adiantar. Eu maquiei o problema. Passava uma semana boa e na outra estava mal. A pessoa gosta de viver naquele jogo. Ela quer viver como coitada. Eu achava que cada um devia ir para um lado. Polícia prende. Mulher não prende homem não.
(Corvo. Sessão de grupo de 18/04/2018)
Eu acho que meu casamento acabou por causa disso: eu não ajudava em casa. Ela trabalhava e eu não ajudava em nada. Ela vai definhando... Eu não sabia fazer nada. Eu dizia pra ela que não fez faculdade porque não quis. Dizia que eu apoiava. Eu nem pegava os meninos pra cuidar pra ela poder sair e arejar a cabeça...
(Careca policial, 37 anos. Sessão de grupo de 25/04/2018)
Meu primeiro casamento acabou. A ex-mulher pediu a separação só porque eu fui para a fé evangélica. Antes de ir para a igreja eu bebia muito, era farrista mesmo. Ela pediu pra eu sair. Eu dei entrada em um apartamento e paguei as primeiras entradas para ela: “As outras são com você. Se perder o apartamento é problema seu.” Minha filha mais velha agora me deu razão. O namorado dela era mula de drogas. Eu falei que esse homem não era pra ela. O rapaz foi preso. Ele não quis ficar com ela mais. No caso da minha outra filha, estou esperando o mesmo – o namorado é usuário de drogas. Sobre minha filha mais velha, fiquei satisfeito dela ter visto o erro.
(Pastor/caminhoneiro. Sessão de grupo de 18/04/2018).
Eu acho que ela poderia ser companheira, me ajudar. Uma vez ela me deu umas marteladas na cabeça. Fui parar no Pronto Socorro. Não quis registrar ocorrência contra ela. Ela tentou voltar comigo, foi no pátio da empresa em que eu trabalhava. Ela tentou voltar para não assinar o divórcio. Tivemos uma despedida no motel. E, na manhã seguinte, avisei a ela: “Não vamos mais viver juntos.” Agora tô morando com a segunda mulher. A gente bebia e paramos de beber. Ela é uma mulher abençoada.
(Pedreiro, pegou três meses de serviço comunitário. E agora é que chamaram para frequentar o grupo reflexivo. Sessão de grupo de 25/04/2018)
Sobre machismo, eu tinha preguiça de fazer tarefa doméstica. Quando a mulher saiu de casa, eu olhei toda aquela roupa acumulada. Fui pro YouTube, Google, pedi conselhos de mãe, fiquei muitos meses nessa. E aí percebi que ela estava certa. Faltava diálogo, atrapalhou a falta de diálogo. Eu achava que ela estava errada. Para a Justiça ela ainda estava comigo: ela voltou para casa. Ela me denunciou porque ela não estava em casa e eu disse que ia pegar todas as coisas dela e tirar de lá. Aí ela me denunciou. A gente ficava uma semana sem conversar. E a gente ficava sem transar até um mês.
(Branco de boné. Sessão de 25/04/2018)
Grande (homem negro, muito alto, tem34 anos) - Ri e diz que já teve ciúmes. Mas dá poucos detalhes. Ao passar de carro, avistou a esposa conversando com um vizinho. E foi em casa pegar o revólver para matar o cara. Não conta o desfecho da história. Ele diz que, hoje em dia, só se beber se envolve numa situação assim.
Você começa a pensar nas consequências e você vê que não vale a pena.
(Careca policial. 26/08/2018)
Hoje em dia eu fico pensando sobre isso...” E mostra um sorriso largo.
(Grande. Sessão de grupo de 16/05/2018)
Sobre violência patrimonial foi até o que me trouxe aqui. Minha ex-esposa: eu tinha “pago” o telhado dela no Espírito Santo, o telhado da casa dela. Aí veio a questão do carro: comprei e paguei e era tudo flores. Na divisão [de bens com a separação] não falou do carro. Depois ela quis o carro. Mesmo eu tendo “pago” mais quando eu comprei. Passei o carro pra ela. Minha mãe me falou: isso é violência patrimonial. Mas eu não sabia... e a raiva, aquela mágoa de levar o que é meu. Não sou uma pessoa de muita raiva dos outros. Eu tinha o carro da empresa. Ela estava em mais dificuldade do que eu. A gente acha que o “sempre” é para sempre. Vem alguma coisa que destrói aquilo ali.
(Corvo. Sessão de 16/05/2018).
Eu fui injustamente acusado de uma coisa que eu não fiz. Tive uma discussão com a minha irmã – minhas irmãs são guerreiras. Aquela que me denunciou se feriu na mão, sozinha mesmo [descreve auto-mutilação da irmã]. Eu não ‘tava presente. Mas Deus me deu a vitória. Na primeira instância ganhei, na segunda instância ganhei. Eu tinha feito uma cirurgia, quebrei quatro costelas, clavícula do lado direito, quebrei a coluna – tenho 16 parafusos na coluna”.
(Sindicalista. Sessão de grupo de 16/08/2018)
Tô no shopping – o cara viu que a mulher era minha. Eu comecei a discutir, queria pegar ele na porrada. Na hora fiquei nervoso. Ele tinha visto que a mulher era minha. Eu larguei essa ex. E a atual estou com ela até hoje. Ela quebrou tijolo, arranhou. Avançou pra cima da menina que estou hoje. Eu fui e empurrei ela automaticamente. Ela estava com duas amigas. Elas queriam bater na minha namorada. Fui pra delegacia. Ela tinha cortado no meu braço. Fomos todos parar na delegacia. Eu tenho três filhas. Ela [a atual] trata minhas meninas como se fossem dela. Minha ex vai pra casa da minha mãe. Eu não posso ir lá com a minha atual mulher não. Meu braço estava saindo sangue, a namorada... a vida continua. Hoje em dia eu consigo controlar mais. Com a namorada atual... comprei uma casa, nós dois moramos juntos faz cinco anos. Minhas meninas já estão grandinhas... já estava ficando com a outra há muitos anos. Eu terminei com ela, disse a verdade. Eu mandei pra ela a real: “Estou me envolvendo com outra pessoa.” Ela era muito ciumenta. A menina era muito surtada!
(Da Ordi. Sessão de grupo de 18/07/2018)
Sou advogado, 34 anos, estou aqui por causa de uma briga com minha ex-namorada. [É um homem fino, arrumado. Chegava sempre às sessões do grupo de bike importada e capacete, roupas esportivas caras. Barba grisalha e olhos claros, meio esverdeados. Rosto muito branco, cabelos negros meio encaracolados.] Mas meu último relacionamento era bem difícil. Tudo o que eu fazia era um stress. Ela saía [com amigas] por vingança.
(Advogado. Sessão de grupo de 1º/08/2018)
Comecei a namorar essa ex-esposa e a mãe não deixava ela sair. A ex questionou a mãe porque ela ficava muito presa. Um ano antes da gente terminar ela começou a sair sozinha. Hoje eu penso o seguinte: acho mais viável cada um ter sua vida, sair. Sair todo dia não, mas sair com uma amiga. É preciso isso. Eu tinha várias amigas e ela questionou tudo. Parei de jogar bola, me desliguei dos amigos. Às vezes ela não se sente segura consigo mesma. Eu ia todos os dias ver essa namorada.
(Estudioso. Sessão de grupo de 1º/08/2018).
Minha primeira vez é hoje. Pensei que era serviço comunitário. Estou seguindo a vida, trabalhando. Era separado da minha mulher. Eu moro no Sion, um casarão velho. Eles [filhos] moram longe de mim, só tenho contato por telefone. Tenho seis netos. Eles moram em Betim. E vêm me visitar na cidade quando querem me ver. Só quando ela bebia e sentava ela mudava completamente. Aqui eu só quero escutar e não falar nada. Ela já morreu. [ele está de camisa preta em sinal de luto].
(Jardineiro. Sessão de grupo de 1º./08/2018)Discurso da Origem
É quando se inicia o processo de descer a camadas mais profundas de suas vulnerabilidades, falando de suas famílias e do modo como foram educados. Muitas vezes começam ali a associar valores recebidos e motivações para as violências praticadas. Parte do desenvolvimento de sua consciência crítica é enunciado na construção do Discurso da Origem: quando resgatam velhas histórias de seus pais, parentes, modos de vida aprendidos em família e têm os primeiros lampejos de consciência de que as práticas aprendidas estão conectadas às crises nas relações íntimas. Começa, assim, a crítica a respeito de valores da hierarquia masculina na relação com as mulheres.
Eu nasci em família grande. Meu pai não deixava filho ficar na cozinha. Minhas irmãs não trabalhavam fora.
(Pedreiro. Sessão de grupo de 25/04/2018)
Minha mãe me criou sem me deixar fazer nada dentro de casa.
(Motoboy. Sessão de grupo de 25/04/2018)
Eu sou criado no sistema do meu pai. “Lugar de homem é no serviço.” Eu com 18 anos já era profissional. Fazer um arroz eu não sei.
(Pedreiro. Sessão de grupo de 09/05/2018)
Eu fui sim do Movimento [tráfico de drogas], eu vivia na rua. Mãe cheirava [cocaína], fumava [maconha], era louca demais. Tenho dois filhos: não queria, pois sei como o mundo é. Fui na reunião dos pais do colégio porque o filho foi criticado na escola. Mas pediram para eu não ir, só a mãe. Um dos professores depois me pediu perdão – “porque te julguei”. Eu disse que perdoava. Me abraçou e chorou. Diretor falou: “Olha o que você tá fazendo.” Aí eu falei como eu saí [do tráfico, que chamam de Movimento]. A explicação que eu tive aqui eu passei pra eles. Eu aprendi uma coisa: aprendi a pensar. Foi isso que me ajudou.”
(Do Movimento. Sessão de grupo de 23/05/2018).
Fui criado numa periferia violenta. Fui um cara brabo. Deus tirou isso da minha cabeça. Seis meses depois [da briga] essa minha irmã faleceu. Minha família me chamou. No dia que essa irmã faleceu eu não fui ao velório. Andei armado. Deus tirou isso de mim. Eu nunca tive problema, amava um revolvinho. Foi Deus. Eu pedi tanto a Deus...
(Sindicalista. Sessão de grupo de 06/06/2018).
Olha, o que eu conquistei foi com dinheiro do crime: casa, dois carros, moto, lote, loja. Tá pela Ordi... Agora tô mais tranquilo, muito mais tranquilo. Fui preso, paguei. Fui preso com mandato. Não tem boi. Rolou um culto [religioso] na cela. Eu falei: “Não aceito ficar aqui. Se eu ficar aqui, consola meu coração, porque eu estou preso de novo.” Orando, orando. Às 6h da manhã, eu dormindo, os policiais chamaram: “C. A., levanta daí e vai embora.” Quem me tirou de lá? A juíza me mandou prender e mandou me soltar. Meu passado deu zebra e estou pagando. Eu creio só em Jesus Cristo; eu levo ele para minha vida.
(Da Ordi. Sessão de grupo de 11/07/2018)
Eu, dos 12 aos 25 anos, tive que fazer tudo. Saí de casa com 12 anos. Ela [a mãe] arrumou outro homem. Quem me ajudou foi um tio que trabalhava com caminhão e levava carga para Unaí. Ficou lá e nunca mais voltou. Minha mãe ajudou meus irmãos financeiramente. Eu discordei da escolha dela porque ele era casado [o segundo companheiro da mãe]. Eu estudava na Aeronáutica em Lagoa Santa [MG]. Amo minha mãe da mesma maneira. Cada um vivendo a sua vida. Eu estou com 52 anos e conheço o Brasil todo, e conheço outros países através do trabalho.
(Pastor/caminhoneiro; Sessão de grupo de 11/07/2018).Discurso do Desamparo
Falar de sua própria condição de punido pela Justiça conduz a memórias sobre a crise vivida. A etapa seguinte leva a longas sessões em que se debate a Lei de proteção às mulheres aprovada em 2006. Há uma sensação de desamparo dos homens punidos pela Lei diante do Sistema de Justiça. Nos grupos reflexivos os integrantes expressam de forma direta ou indireta o que um dos homens chegou a afirmar: “Estamos desamparados pela Justiça”. A sensação de desamparo é uma clara manifestação do fenômeno observado nos grupos e que denomino de “a ordem social aprisionada”. Esse fenômeno se torna visível no sentimento de abandono expressado por esses homens – eles se criaram dentro de certas expectativas e em certo modelo de sociabilidade no qual estava instituída e socialmente aceita a hierarquia de poder entre homens e mulheres. No entanto, esse sistema, que autoras feministas chamam de patriarcado moderno, está em transição para uma ordem mais democrática das relações de gênero. No interior dessa mudança, surge o sentimento de desamparo dos homens punidos. Uma ordem está sendo desmontada e suas estruturas vivem o impacto de uma flexibilização que não mais referenda os comportamentos aprendidos no sistema anterior. Tudo está em mutação e há uma ordem social sendo posta em questão, que talvez cairá em desuso, não recebendo mais amparo dentro da maioria das instituições. Esse desamparo se manifesta quando os sujeitos se confundem com suas práticas.
Você sempre nos pergunta o que a gente faz. Eu entro em conflito: o que a gente só pode fazer é ficar passivo.
(Motoboy. Sessão de grupo de 18/04/2018)
Na minha ficha não tem nada. Eu sempre deixei ela falar, falar e não fazia nada. Aquele dia aconteceu [a explosão da crise]. Hoje já estou em outro relacionamento. Um dia a ex ligou dizendo que não tinha nada pra levar pra uma festa. Levei os dois e comprei o presente. Voltei e ela “tava” xingando minha namorada. Ela disse que iria tirar tudo de mim. O Comandante da Cia. me mandou um zap com a mensagem: “A. o que está acontecendo na sua residência?” Ela chamou a polícia e tudo. Colocaram [a história] no rádio das viaturas. Até hoje sou revoltado com isto. Até hoje na Cia sou motivo de chacota. Todo mundo está sabendo. Eu morro de vergonha.
(Careca policial. Sessão de grupo de 06/06/2018)
Tem uma ausência de provas contra o homem. Essa lei [Maria da Penha] tem uma leitura parcial. Se eu tivesse feito queixa dela estaria numa situação melhor. Penso no caso do motorista que matou a esposa [motorista de uma dupla sertaneja]. Lembro que o motorista não reagiu contra a mulher, fazendo denúncia dela.
(Barbicha de Boné, homem negro de 35 anos. Sessão de grupo de 06/-6/2018)
Estou levando, mas está sendo difícil. Focando em trabalho. Agora está sendo difícil porque já está todo mundo sabendo. Difícil conviver com a denúncia, essa coisa toda. Vai ter um concurso agora em setembro. Eu trabalho em um escritório [de advocacia]. Vou levando, tem dias piores, outros melhores. Saí e até peguei uma gatinha. Tem essa restrição que não posso chegar perto dela [da ex-namorada]. Eu sigo em frente – apesar de que vai ficar uma mancha na minha imagem. Até sarar essa ferida mesmo vai demorar pra passar. Não desejo mal a ela. Estou tentando perdoar ela. Eu sinto falta e tal... [e se emociona].
(Advogado. Sessão de grupo de 25/07/2018).
A mulher chamar a polícia para um homem... O homem é orgulhoso. Não será jamais a mesma coisa. Vai ter consequências. Minha ex-namorada quebrou meu carro todo. Ela chamou a polícia para mim. Fomos para a delegacia da mulher. Eu tirei fotos, ela cortou fundo meu braço. Você quer entrar com processo contra ela? E esse cortado...? Ela [a policial] viu que ela cortou meu braço. Eu não quis fazer processo. Resumindo: tinha que ter uma investigação. Eu tive um advogado. Ele agora recente resolveu tudo para mim.
(Da Ordi. Sessão de grupo de 1º./08/2018)Discurso da Cura
No cotidiano dos grupos e especialmente quando alguém novo ingressa naquele horário, esse discurso surge entre os participantes mais antigos. O processo observado envolve um esforço para se adequar ao ideal do homem civilizado, adestrado em modos mais flexíveis ou democráticos nas relações de gênero. Os participantes começam a produzir o que denomino de discurso da cura. Para descrever o processo que os levou à cura, a maioria dos integrantes irá acionar o discurso da ignorância – dentro da lógica de sombra e luz. Há uma dinâmica interna nos grupos, de forma que os homens são “convidados” ou “induzidos” a aderir a uma nova ordem que pressupõe uma norma de igualdade de direitos entre homens e mulheres. O reconhecimento da violência cometida é seguido, ao final do processo, do discurso da cura. Emula os testemunhos de conversão religiosa. É a demonstração de adesão à proposta implícita na participação em grupos reflexivos – a ideia de se tornar um novo homem incorpora a noção da reeducação. Aderir ao “discurso da cura” é a demonstração mais cabal de que o participante está se propondo a incorporar uma norma de conduta mais democrática nas relações íntimas. Se, ao sair do grupo, isso se manterá e por quanto tempo, ou se é uma demonstração performática para ser assimilado pelo grupo, não é possível saber. E não foi o objetivo desta pesquisa. Seria necessária a realização de um estudo empírico específico com ex-integrantes de grupos reflexivos para analisar o quão profunda é essa adesão a uma nova ordem. Pode ser comparada às conversões religiosas? Emula de certa forma a mesma dinâmica, inclusive nos testemunhos que são feitos no momento de se deixar os grupos.
Antes de me converter eu usava revólver todos os dias. Faço três penitências de manhã. Antigamente eu falava o que queria falar; era um jeito que eu tinha de falar. Estou tentando entender.
(Pastor/caminhoneiro. Sessão de grupo de 09/05/2018).
Na nossa reunião de 10 ou 15 pastores, às vezes a gente sai, grita, parece que está tendo um problema e depois ora e fica tudo bem. Nesse caso, depois que estou aqui, minhas atitudes mudaram muito. Há 25 anos atrás, se um policial fizesse isso, me jogasse na caçamba de um camburão... Mudei, fica um medo que a gente toma das atitudes da hora, das palavras.
(Pastor/caminhoneiro. Sessão de grupo de 13/06/2018).
Aprendi sobre agressão, direitos e deveres. Fiquei feliz com a experiência. Levei muito dessa experiência pra fora daqui. Mudou minha mente demais. Só tenho a agradecer. Vou sentir saudades. Sobre psicólogo, eu tinha outra visão. Queria que ela fosse uma mãe presente. Só tenho a agradecer pela vida de meu filho. Tem cinco anos agora.
(Grande. Sessão de grupo de 16/05/2018).
Isso aqui está muito bom para mim. O que você ouve dos participantes... tem o caso de um e de outro. Você vai comparando e vê que todo mundo está no mesmo patamar.
(Corvo. Sessão de grupo de 23/05/2018).
Hoje é diferente. Eu casei com ela. Eu era cachaceiro e não sou mais. Eu converso com eles [amigos do Bar de Da. Terezinha]: eu falo com eles sobre parar de beber. Eu com meu testemunho eu tento ajudar eles. Mas ela xinga. Ela quer que eu deixe de ir lá. É perto de casa, eu bebia muito lá. Eu vou lá, bato papo, tomo café. Eu nunca mais bebi – tô cinco anos sem beber. Deus me ajudou muito. Todo mundo na rua fala comigo.
Pedreiro. Sessão de grupo de 23 /05/2018)
Domingo dá pra dar uma brincada pela “Ordi”. Às vezes vou para a casa de minha mãe. Rotina é essa mesma. E às vezes dou um rolé no bairro. Se a gente não arranjar o tempo para ela... Ela trabalha, estuda, vai para escola. Conversamos bastante. Antes era conturbado. Nós “dá” um rolê, a gente entra, nós “conversa” e acha onde tá o erro. Porque parei de beber, melhorou bastante. Quando saía pra beber eu saía na sexta-feira e não voltava, só na segunda.
(Da Ordi. Sessão de grupo de 18/07/2018)
Fiquei 12 anos só trabalhando...Trabalhava na madrugada, fiquei com stress e tive infarto aos 28 anos de idade. Quando é tempo de férias agora a gente dá uma relaxada. Esses dias conversei com os filhos sobre voltar à rotina quando acabarem as férias. Segunda-feira foi a primeira vez que meus filhos falaram que era legal sair. Tenho uma enteada também. A vida é assim. Eu vou voltar a estudar agora. Na rua da Bahia encontrei a diretora da escola, lá na rua. Ela disse pra eu voltar a estudar. Fiz o ensino fundamental. Com seis meses eu termino o supletivo do ensino fundamental. O médio eu vou poder fazer a partir disso. Por isso fiquei parado lá.... e vou voltar a estudar.
(Técnico de Computação. Sessão de grupo de 25/07/2018)
Rebeca [a psicóloga] diz que sou bem disciplinado. Eu não era não, mas comecei a ser. No sábado também estou estudando – sábado a aula vai até 13h. Fico um pouco com meus pais e domingo a gente vai para casa de minha avó. Se eu consegui mudar a chave de minha cabeça? Eu consegui quando decidi estudar. Já tenho um foco de fazer as coisas... Você vê que você pode. Eu imaginava que minha vida seria só ter filhos, trabalhar e mais nada.
(Barbudo. Sessão de grupo de 25/07/2018).
Cheguei, como todos, indefinido. Fiquei calado por três sessões, pensando em como aconteceram coisas. As reuniões me ajudaram muito a entender tudo o que aconteceu. Eu falei que ia enforcá-la e jogar ela do 4º andar. Liguei e disse que iria levar as coisas dela para a casa da avó, onde ela morava antes. Como pessoa eu mudei muito a partir dos vídeos [sessões passadas nos grupos]. Também ajudou ouvir as histórias de outros, comparando a outros, comparado a mim. Foi aí que percebi que isso aqui vale muito. Vejo colegas meus .... O grupo é excelente local para você falar, ouvir, trocar ideias. Ajuda a gente a seguir em frente. Me ajudou muito. Eu aprovo muito todo o Instituto Albam, os dois psicólogos... Um aprendizado!
(Estudioso. Sessão de grupo de 1º./08/2018)Análise de resultados quantitativos
A análise dos dados quantitativos extraídos dos questionários proporcionou informações reveladoras dos modos de socialização vividos e das representações sociais desses homens, autores de violência doméstica condenados pela Lei Maria da Penha em Belo Horizonte, sobre suas práticas nas relações amorosas. Na amostra desta pesquisa, a violência verbal (xingamentos, palavrões, alteração de voz) foi o motivo mais frequente de condenações, chegando ao índice de 37,4% entre os respondentes. E, para quase 30% desses respondentes, suas práticas nos momentos de conflito devem ser compreendidas como produto de um “mal-entendido” – opção escolhida por 27,5% dos respondentes.
Neste estudo, práticas de violência física contra mulheres somaram 16,5% da amostra. Separadas sob essa denominação, atos como surras, socos, pontapés e bofetadas aparecem em 16,5% das situações de conflito – quando vistas em separado, as surras foram observadas em 2,2% dos casos. Foram expressivos os índices de ameaças desses homens contra as mulheres: 13,2% dos homens desta pesquisa foram punidos pela Lei Maria da Penha por esse delito.
Entre os motivos elencados para explicar os conflitos vividos, falta de diálogo (41,8%), ciúmes (38,5%), falta de confiança e incapacidade de comunicação (33%) foram os que mais registros obtiveram dos respondentes desta amostra de pesquisa.13 Também tiveram índices expressivos os itens incapacidade para enfrentar crises (22%) e visões diferentes de mundo (20%). Entre outros registros dignos de nota estavam explicações de que o relacionamento tinha acabado (16,5%); havia outra pessoa (15,4%); e houve abandono (14,3%).
Conforme nossos dados, 60% dos respondentes têm menos de 40 anos e 40% têm mais de 40 anos.14 Ao relacionar as variáveis “idade do agressor” e “tipo de violência”, encontrou-se que os respondentes punidos pela prática de violência verbal são em geral os mais jovens, com idade menor do que 40 anos. Os delitos cometidos pelos participantes da pesquisa, descritos e enquadrados pela Lei Federal no. 11.340, na grande maioria dos casos, foram dirigidos a parceiras ou ex-parceiras nas relações íntimas – 44% cometeram algum tipo de agressão contra ex-companheiras e outros 41% o fizeram contra suas companheiras. Menores foram os percentuais envolvendo conflitos desses homens em outras relações familiares – 15% tiveram conflitos com amigas, filhas ou suas mães.
A separação entre os casais nem sempre significa ruptura nas interações conflituosas. Isso se observa, uma vez que 37% dos entrevistados têm dois filhos com suas ex-companheiras ou companheiras, enquanto 28% declararam ter três ou mais filhos.
Somadas as várias categorias de homens sozinhos no momento da entrevista, tem-se que 73,7% dos respondentes registraram em 2019 estar fora de uma relação afetiva. Ou seja, os dados revelaram que havia 36,3% de solteiros; 20,9% de divorciados; 13,2% de separados e 1,1% separados de união estável; além de 2,2% viúvos. Os que declararam estar vivendo relações afetivas no momento do survey somaram 24,2%, assim distribuídos: 12,1% viviam união estável; 11% seguiam casados e 1,1% amigados. Na categoria NR, 2,1% dos entrevistados não responderam à pergunta.
Aqui não estamos falando de homens das camadas de alta renda ou de altos níveis educacionais. Os dados do survey mostraram que 52,8% de todo o contingente desta amostra tinha diploma de ensino fundamental. Enquanto outros 28,1% chegaram a terminar o ensino médio e 19,1% tinham diploma de ensino superior.
Como se sabe, no Brasil, os baixos níveis educacionais estão combinados com baixos índices de renda e se refletem, também, em indicadores de raça\cor. Não estamos sugerindo que a prática da violência por homens contra mulheres nas relações íntimas esteja circunscrita ao universo dos baixos níveis de educação, renda, ou aos cidadãos não brancos. Porém, conforme dados de 2016, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública,15 no Brasil apenas 10% dos casos de violência cometida por homens contra mulheres chega às delegacias do país. O que significa dizer que os estudos ainda não têm acesso aos dados de 90% dos delitos praticados nessa área, envolvendo todas as classes sociais. O que se tem, e foi comprovado por esta pesquisa, é acesso a denúncias feitas em geral pelas classes trabalhadoras de baixa renda. Além disso, os respondentes que se identificaram como pardos representam 52,2% da amostra, estando o restante assim distribuído: 26,7% se reconheceram como brancos; 13,3% como pretos; e outros registrado por 7,8%.
Na aplicação dos questionários, observou-se que, em 2019, havia 36,3% dos respondentes com renda individual16 na faixa de 1 a 2,5 salários-mínimos;17 16,5% com valor menor ou igual a 1 salário-mínimo. O percentual cai visivelmente na faixa entre 2,5 a 3,5 salários-mínimos: 6,6% dos entrevistados registrou estar nessa faixa de renda. Da amostra, 14,3% tinham renda individual acima de 3,5 salários-mínimos. Desempregados eram 14% dos entrevistados. Os restantes 8% não responderam a pergunta. Mesmo numa situação financeira não confortável, os entrevistados mostraram rejeição às explicações de que vulnerabilidade econômica seria um fator de risco ou motivação para a violência.18
O que observamos aqui, ao longo de todo o estudo, sem sombra de dúvida, foi o reconhecimento da existência de sujeitos que encarnavam e representavam (mesmo que ambiguamente muitas vezes) a velha ordem com seus valores e práticas restritivas às mulheres. O cerne dos conflitos mostrados pelos respondentes do survey pode ser interpretado como resultado de uma longa e onerosa disputa entre cidadãos que são sujeitos de direitos e cidadãs por séculos consideradas sujeitos não portadores de direitos – no caso, as mulheres. A ambivalência reside justamente no fato de que, ao emergir uma nova ordem, esses homens mostraram que mesclam crenças e valores das duas ordens sociais.
Conforme Massella (2014, p. 270), “o vínculo entre a dimensão estrutural das relações frequentes e próximas e a dimensão normativa das regras fundamenta a estreita relação entre o direito e a vida social”. Na sua interpretação, a orientação substantiva mais fundamental é a da sociedade como causa determinante dos fenômenos sociais. Para o autor, se os fatos sociais manifestam a natureza das sociedades, então o estudo do Direito pela Sociologia está articulado a um postulado com implicações claras para um tema jurídico como o da legislação, por exemplo: “a legislação é a codificação dos costumes populares” (Durkheim & Fauconnet, 1975, p. 152). Na visão de Frédéric Vandenberghe (2015, p. 65), a sociedade não é apenas um objeto social a ser investigado, “é também um projeto moral e moderno que visa criar uma sociedade de indivíduos, com base no reconhecimento de valores comuns de igualdade, liberdade e solidariedade”. Para o teórico, a sociologia moral é uma perspectiva geral que traz à luz a dimensão moral da vida social e afirma que princípios, normas e valores não são apenas regulatórios, mas também constitutivos. São constitutivos não só de um certo domínio de ações, mas da própria vida social – “a moral, os costumes e a ética estão invariavelmente implicados na ação, na ordem e na mudança social” (2015, p. 66).
Como num retorno ao século XIX, o que se observa, numa leitura mais geral e conjuntural desse momento, é a tentativa de recuar ao período anterior, como se todo o fenômeno descrito na literatura especializada relativo às lutas de mulheres por leis que deliberassem e protegessem seus (novíssimos) direitos, não houvesse ocorrido. Esta situação, observada também através deste estudo, sugere a imagem da dança trágica de um pássaro, em seus estertores, simbolizando a ordem antiga que, ao mesmo tempo em que se vai, tenta resistir à sua extinção em vista de novos sujeitos de direitos entrando em cena.
Ao serem perguntados19 sobre o que teriam aprendido sobre as moças em suas famílias na juventude, 40,7% deles sinalizam que pensavam “escolher uma moça trabalhadeira dentro e fora de casa, para ajudar a criar a família”, sugerindo que a mudança nos valores e costumes é possível, porém sem grandes rupturas – confirmando que as moças escolhidas por eles poderiam trabalhar fora, mas o trabalho doméstico se manteria como importante referencial. Esses “aprendizados” parecem indicar que a fidelidade conjugal e a fidelidade ao lugar social da mulher eram grandes apostas feitas por eles e que buscaram concretizar nas relações íntimas.
Nesse campo da moral sexual, outras ambiguidades se somam e são parte do processo: 31% dos respondentes sinalizaram ser “totalmente favoráveis” à virgindade das mulheres. Colocou-se no survey a pergunta: “Em sua época de juventude, você percebia se havia costumes diferentes recomendados para a vida sexual de rapazes e moças?” Como retorno, 23,1% reconheceram: “Havia as moças para deitar, as fáceis; e as moças para namorar, as difíceis”. Outros 19,8% assinalaram com mais clareza a frase que contextualiza a questão: “Todos sabíamos os limites e as moças viviam com menos liberdade”. Como esperado, 19,8% defenderam que “moças deveriam se manter virgens até o casamento”.
Ao lado deste “duplo padrão de resposta na transição” apontado por nosso estudo, um ambíguo padrão moral, que não se confunde com este e já descrito por estudiosos, foi observado também entre os entrevistados de nossa pesquisa: o chamado “duplo padrão moral burguês”. Isto é, diferentes limites da moral são aplicados à vida social: quando se trata do tema sexo associado à experiência masculina ou quando o tema está associado à experiência feminina. Quando a discussão entra no terreno da igualdade de direitos entre homens e mulheres, a respeito da vivência sexual desses homens, vimos, por exemplo, que 43% fizeram sua iniciação sexual entre 15 e 17 anos; 29% entre 10 e 14 anos; e 12% entre 18 e 22 anos de idade.20
Não por acaso, raramente alguém iria se referir a uma suposta “iniciação sexual das moças”, visto que, na cultura brasileira, esse termo costuma ser usado para se referir aos jovens do sexo masculino. Parcela significativa dos entrevistados se diz “totalmente favorável à virgindade para as moças” (precisamente 31,9% dos respondentes). Ao mesmo tempo, observa-se que 15% assinalam apoio moderado à virgindade para moças, ou nenhum apoio, caso dos 25% indiferentes a essa restrição. Quando somadas, essas porcentagens constituem uma fatia não desprezível de 40% dos entrevistados – tendência que pode representar uma visão menos conservadora nessa temática.
Para tentar compreender quais indicadores interferem na opinião manifestada por esses homens sobre virgindade das moças, cruzamos esse indicador com variáveis socioeconômicas. Foi encontrada uma associação entre as variáveis “escolaridade” e “opinião sobre a virgindade”. De um extremo ao outro, vai-se de “totalmente favorável” para “totalmente contrário”, passando por “moderadamente favorável”, “Indiferente” e “moderadamente contrário”. No cruzamento dos dois indicadores foi encontrado percentual de respondentes com alta escolaridade que se declararam “Indiferentes” à questão da virgindade: 64,7% dos “indiferentes” são portadores de diploma de nível superior. Por outro lado, lembremos que 31,9% de respondentes de toda a amostra se manifestaram “totalmente favoráveis” à “virgindade”. Destes, 39,3% são portadores de diplomas de I grau; 46,4% têm diplomas de II grau, e 14,3% têm diplomas de nível superior. Conforme dados de escolaridade já discutido, devemos recordar que a maior incidência da amostra desta pesquisa fica com portadores de diplomas de I grau (o caso de 53% dos entrevistados); em seguida tem-se 28% com II grau completo e 19% com diplomas de nível superior.
Quando a discussão enfoca motivações para o conflito, pela ordem, os indicadores foram: Falta de Diálogo (41,8%); Ciúme (38,5%); Falta de confiança (34,1%); Incapacidade de Comunicação (33%); Incapacidade de lidar com Crises (22%); Visões diferentes de Mundo (20,9%). São nuances importantes que compõem o quadro das relações/questões em análise neste estudo.
De volta à ambiguidade, na mesma esfera da igualdade de direitos, 54,9% se dizem totalmente favoráveis a mais liberdade para as moças de sua época. E quase 70% se declaram totalmente favoráveis à igualdade de direitos entre homens e mulheres.
Vendo a dimensão religiosa dessa discussão, homens que foram socializados com maior religiosidade apontaram ciúmes como um importante fator de conflito. No cruzamento dos dois indicadores, aqueles que responderam sim para “minha família valorizava isso e crescemos recebendo educação religiosa” apareceram mais associados à resposta sim para ciúmes como motivação para conflito (p=0,027).21 Note-se que 65% dos respondentes acreditam que a religião significa “o caminho do bem”, enquanto 38% interpretam que as famílias reforçavam o ensino dos valores religiosos porque acreditavam que “transmitir valores religiosos ajudava na educação”.
Considerações finais
[...] as ciências sociais estudam “objetos” que são dotados de intencionalidade e que pensam a si mesmos. Os sujeitos produzem interpretações do mundo social. Cada ator social é também um teórico social, no sentido de que interpreta a sua própria conduta e a situação social em que se insere para poder agir. Essa circunstância impõe aos cientistas sociais a necessidade de procederem ao que Anthony Giddens (1978) chamou de “dupla hermenêutica”: o sociólogo interpreta a interpretação que os sujeitos produzem de sua prática. Além disso, as ciências sociais são autoinfluentes: o processo de estudar afeta o que será estudado
(Alonso, 2017).Entre os achados deste trabalho de pesquisa, um padrão foi se desenhando, emergindo da análise dos dados. Esta mostra da existência de um pensamento ambivalente é onde estes homens expressam a longa transição cultural e de valores morais que se processa desde o final do século XIX e se apresenta de forma pronunciada no século XXI. Na obra Violência de gênero e crime no Distrito Federal (Suárez & Bandeira, 1999), há um estudo em que Segato capta de forma clara uma dinâmica do sistema patriarcal relevante para essa discussão: a superposição de dois ordenamentos sociais, um moderno e outro arcaico. A visão moderna “eleva a mulher a um status de individualidade e cidadania igual o homem” e a outra “lhe impõe sua tutela” (Segato, 2003, p. 395-396). Ao tentar explicar o sentido da violação sexual, objeto de seu ensaio, Segato formula a ideia de “mandato” pensado como o uso dessa forma de violência na reprodução do sistema de poder auxilia na manutenção dos homens em seu regime de status. Assim funcionaria, em sua interpretação, a dinâmica da violência na manutenção das duas ordens ou na reprodução da economia simbólica do poder – manutenção das ordens patriarcal e de status.
A ideia de mandato faz referência aqui ao imperativo e à condição necessária para a reprodução do gênero como estrutura de relações entre posições marcadas por um diferencial e instância paradigmática de todas as outras ordens de status – racial, de classe, entre nações ou regiões (Segato, 2003, p. 45, 46).
O modelo formulado por Segato (2003) explica o fenômeno da violência a partir da relação entre dois eixos interligados: o ciclo cuja dinâmica violenta se desenvolve sobre o eixo horizontal (sistema de contrato) se organiza ideologicamente em torno de uma concepção de contrato entre iguais e que gira sobre o eixo vertical (sistema de status) – o que corresponderia ao mundo pré-moderno de classes e castas. Esta ambivalência, que denominei de duplo padrão de resposta na crise (dos agentes) em momentos de transição – pode ser vista como uma referência ao fenômeno descrito por Segato. Indo um pouco além: é possível que, nos momentos de crise, o padrão tradicional vença a disputa na dinâmica das relações íntimas, deslocando a ação dos agentes do padrão moderno (de equidade entre os gêneros) para a tradição.
Essa noção de “padrão de dupla resposta na transição” (ou na transição e na crise) também pode ser vista como complementar à interpretação desenvolvida por Connell (1998) de que o recrudescimento da violência acontece na dinâmica que se estabelece na tentativa de manter a hierarquia de poder nas mãos dos homens durante os períodos de mudança social. Tal noção poderá se constituir, sendo testada em nível nacional e com amostragem mais ampla, em uma explicação possível para o fenômeno identificado pelos estudiosos.
Como nos relembra Souza (2009), sobretudo ao colocar em questionamento a masculinidade hegemônica (Kimmel, 1987 apudSouza, 2009), Connell (1995) avança nessa discussão ao apontar para a multiplicidade das masculinidades,22 isto é, refere-se à existência de diferenciados padrões que serão caracterizados como masculinidades hegemônicas, de subordinação, de cumplicidade e marginalizadas (Connell, 1995, p. 77-81). Inicialmente pensada como um aprofundamento empírico do debate sobre a possibilidade de uma forma específica de dominação poder ser flexibilizada – aquela masculina sobre a liberdade das mulheres –, adquirindo formas mais democráticas de relacionamento, os resultados deste estudo sobre formas de socialização de homens autores de violência nos levaram a considerar a problemática da ordem social e sua possibilidade de mudança como a moldura principal a formatar esse debate.
Descrevendo o impacto na teoria social da obra A reprodução, de Bourdieu e Passeron, Ortiz (2013) interpreta a tese central do livro. Haveria, naquela época, a perspectiva althusseriana, para a qual a escola seria apenas um aparelho ideológico de Estado, “enquanto para Bourdieu e Passeron sua eficácia dependeria de como o social inscreve-se no habitus individual” (p. 85), razão pela qual o conceito de mediação, interpreta Ortiz, é central para os autores.
A noção de habitus visava justamente estabelecer uma mediação entre o sujeito e a dimensão coletiva partilhada pelos outros [...]. A associação com a temática da ordem e do conflito talvez pudesse ser explicada pela presença do estruturalismo, ou melhor, a controvérsia que o envolvia
(Ortiz, 2013, p. 86).É importante esclarecer que compreender o pensamento de Bourdieu foi uma referência decisiva nesta pesquisa para tentar estabelecer a correta abordagem metodológica a seguir no momento de construir os instrumentos de coleta de dados quantitativos. Em outras palavras, é desejável esclarecer que os termos utilizados na confecção dos questionários foram modelados a partir do conceito de habitus e de relatos anotados durante as 48 semanas de observação sociológica.
Contando com essas referências, o esboço dos questionários foi construído. Estudar as noções desenvolvidas por Bourdieu na construção de sua teoria foi central para obter algum domínio de ferramentas conceituais que guiaram toda a proposta desta pesquisa, inclusive no recorte do objeto escolhido – a socialização à qual estes homens haviam sido submetidos. Sem isso, teria sido impossível compreender como construir as questões nos dois questionários de maneira a acessar esses conteúdos relativos às experiências vivenciadas pelos respondentes e o sentido que davam a elas.
Nas relações de homem e mulher, nas estruturas cotidianas do patriarcado privado, da família, assim como de instituições, do patriarcado público, a
premissa de partida mais segura é a de que essa gama de violências sempre surge como “produto” de uma relação – vivida ou imaginada, entre sujeitos comuns e conhecidos e entre diferentes e desconhecidos sujeitos. Para compreendê-la, é necessário decifrar as relações existentes, por intermédio de numerosas aproximações empíricas entre e intra esses indivíduos, perguntando-nos sobre o papel desempenhado pelas simbolizações hegemônicas de homem e mulher, nas estruturas cotidianas do patriarcado privado, da família, assim como instituições, do patriarcado público
(Bandeira & Almeida, 2006, p. 4).A descrição dos três fenômenos identificados ao final da análise de dados transformou a essência dessa discussão. Ao se deslocar da especificidade dos temas da construção das masculinidades, a reflexão produzida aqui se aproxima dos temas de uma sociologia essencial – a problemática da ordem social e da dinâmica social diante da possibilidade de mudança. Esclarece bem esse tema o sociólogo português Pena Pires, no artigo “O problema da Ordem”, publicado em 2012, em que pontua:
A utilização da expressão “ordem social” para referir o objeto da sociologia gera frequentemente três tipos de objeções que assentam em equívocos fáceis de esclarecer. São eles os equívocos da reprodução, do consenso e do determinismo. [...] o centramento no problema da ordem não é sinónimo de atribuição de prioridade ao estudo da reprodução sobre o estudo da mudança social. Por um lado, porque a mudança não é a passagem da ordem ao caos, mas a substituição de um sistema de ordem por outro sistema de ordem. Por outro, porque é possível identificar, nos próprios processos de mudança, padrões (isto é, processos ordenados) de transformação, os quais devem ser analisados e explicados
(Pena Pires, 2012, p. 31).Pensando a interação das estruturas de categorias e práticas sociais, gênero e masculinidades, Connell & Messerschmidt (2013) tentaram construir um modelo teórico que pudesse interpretar a ação humana em termos de gênero e seus determinantes objetivos e subjetivos. “É por isso que Connell sustenta que uma teoria das relações de gênero requer uma teoria da ordem e das práticas sociais, em vez de um simples paradigma de papéis sociais e sexuais” (Bermúdez, 2013, p. 285). Estudiosos defendem que a dominação masculina não constitui uma forma que se reproduz automaticamente – ela é um processo histórico. Essa dominação seria aberta à contestação e exige forte empenho dos homens para sua manutenção. Por parte dos homens, seria necessária uma constância no uso das estratégias de exclusão das mulheres (Connel & Messerschimidt, 2013; Gonçalves, 2015). Essa é uma questão central nas discussões trazidas por este estudo. O que foi se esclarecendo à medida que a análise de dados avançava, descortinando os fenômenos identificados na pesquisa. A compreensão dos processos de socialização aos quais foram submetidos esses homens punidos pela Lei Maria da Penha em Belo Horizonte (frequentadores, por esta razão, de grupos reflexivos), foi nos conduzindo à reflexão acerca do que estaria sendo punido na esfera jurídica – pensando esses homens enquanto parte de um todo que se integra por seus costumes, valores, por sua moral, a uma comunidade maior, que assim denominamos sociedade.
Desse modo, foi-se esclarecendo para nós que não apenas sujeitos estavam sendo punidos, mas toda uma ordem social na qual eles foram socializados, pondo em questão os valores envolvidos nesse domínio exercido pelos homens sobre as mulheres nas relações íntimas. Visto que ensinam/aprendem, propõem, defendem um ordenamento moral/social que não mais encontra acolhida na esfera da Lei. Razão pela qual, o terceiro fenômeno que descrevemos na pesquisa foi denominado de “a ordem social aprisionada”. Um fato social que remete às experiências da transição de uma ordem para outra ordem social – a primeira que aqui tratamos como ordem tradicional diante da segunda, denominada de moderna, para estabelecer uma distinção.
Finalmente, importante registrar que o apelo ao recurso da lei não irá, por si só, saltar sobre as etapas das quais emergem esses conflitos existentes nos processos de mudança de tradições e costumes. A lei poderá sim, regular limites, estabelecer fronteiras – dotar cidadãos e cidadãs de direitos legitimados e trabalhar para que sejam do conhecimento de todos os recursos legais existentes, aos quais se pode recorrer no caso de desrespeito aos direitos garantidos pelas leis. É sabido que a ação dos operadores do Direito e do sistema de Justiça se exerce a posteriori em relação a conflitos produzidos nas mudanças em hierarquias de gênero na vida social e nas relações íntimas, nas diferenças de poder na vida ordinária, na vida cotidiana. E as conquistas jurídicas de direitos das mulheres (historicamente recentes) não permitiram ainda avançar no campo de políticas públicas preventivas. Estamos no estágio de assegurar a manutenção das políticas públicas de atendimento às mulheres em situação de violência, processo em construção. Por outro lado, muitos dos estudos citados observam que nesses espaços institucionais estabelecidos nas várias esferas públicas, pode-se (e pesquisas constatam isso) reproduzir e reforçar hierarquias e injustiças que estruturam nossa sociedade. Há evidências de que, nos espaços de atendimento públicos, práticas mais democráticas e esclarecidas mudam para melhor a experiência daqueles que buscam seus direitos (Araújo, 2005; Aguiar & D’Oliveira, 2010).
Finalizamos aqui com a reflexão de que o impacto produzido cotidiana e cumulativamente pelas práticas de violência contra mulheres nas várias dimensões da vida social não acontece no momento de uma situação limite como o assassinato das mulheres. Se, na vida familiar, o chamado “ciclo de violência” se inicia com pequenas agressões e retirada de direitos de mulheres/jovens/crianças nas famílias nessa situação, na vida social o impacto dessas vivências se amplia e se dissemina em ciclos que se retroalimentam.
Acreditamos na educação como prática transformadora da vida social. Toda essa hesitação diante do novo, observada na dinâmica social, pode ser alterada com auxílio dos processos educativos, tendo em vista a ação profunda que pode ser exercida sobre as consciências de crianças e jovens em processos pedagógicos construídos com este fim – esses efeitos também ocorrem nos processos de reeducação de adultos. Dessa forma entendemos que a educação pode ser decisiva para justamente auxiliar no rompimento da velha ordem e, afinal, possibilitar a realização do que dizia o poeta “pois o novo sempre vem” (trecho da canção Belchior, “Como Nossos Pais”, de 1976).
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Notas
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