Servicios
Descargas
Buscar
Idiomas
P. Completa
A noção de campo em Pierre Bourdieu
Monique de Saint Martin
Monique de Saint Martin
A noção de campo em Pierre Bourdieu
Pierre Bourdieu’s concept of field
La notion de champ chez Bourdieu
Revista Brasileira de Sociologia, vol. 10, núm. 26, pp. 222-235, 2022
Sociedade Brasileira de Sociologia
resúmenes
secciones
referencias
imágenes

RESUMO: A noção de campo foi gradualmente desenvolvida por Pierre Bourdieu, primeiro a partir de pesquisas sobre os intelectuais, os escritores, o mundo científico, bem como graças à releitura de Max Weber, particularmente sobre as religiões. Pensar em termos de campo é, antes de tudo, pensar relacionalmente, e pensar as relações de força e as relações de luta e dominação. Este texto não pretende dar uma definição do campo, mas evocar, mesmo que de forma um tanto subjetiva, alguns pontos importantes e centrais dessa teoria que Bourdieu vinha desenvolvendo. Também levanta algumas questões sobre o uso, por vezes abusivo, da noção de campo, para apelar à vigilância na sua utilização. 1

Palavras-chave: Pesquisa sociológica, dominação, espécies de capital, campo de poder.

ABSTRACT: The notion of field was gradually developed by Pierre Bourdieu, firstly based on research on intellectuals, writers and the scientific world, as well as thanks to rereadings of Max Weber, in particular on religions. To think in terms of field is first to think relationally, and to think of power relations and relationships of struggle and domination. This text does not attempt to define field, but rather to evoke, even if in a somewhat subjective way, some important and central points of this theory that Bourdieu was developing. It also raises some questions about the sometimes abusive use of the notion of field in order to call for vigilance in its use.

Keywords: Sociological research, domination, species of capital, field of power.

RÉSUMÉ: La notion de champ a été élaborée progressivement par Pierre Bourdieu, d’abord à partir de recherches sur les intellectuels, les écrivains ou le monde scientifique, ainsi que grâce à la relecture de Max Weber, en particulier sur les religions. Penser en termes de champ, c’est d’abord penser relationnellement, et penser des rapports de force et des rapports de lutte et de domination. Ce texte ne tente pas de donner une définition du champ, mais d’évoquer, sans doute de façon un peu subjective, quelques points importants et centraux de cette théorie que Bourdieu élaborait. Il soulève également quelques questions à propos de l’utilisation parfois abusive de la notion de champ afin d’appeler à la vigilance dans son utilisation.

Mots-clés: Recherche sociologique, domination, espèces de capital, champ du pouvoir.

Carátula del artículo

SOCIOLOGIAS EM DIÁLOGO

A noção de campo em Pierre Bourdieu

Pierre Bourdieu’s concept of field

La notion de champ chez Bourdieu

Monique de Saint Martin
École des Hautes Études en Sciences Sociales, França
Revista Brasileira de Sociologia, vol. 10, núm. 26, pp. 222-235, 2022
Sociedade Brasileira de Sociologia

Recepção: 22 Novembro 2022

Aprovação: 07 Dezembro 2022

A noção de campo foi progressivamente elaborada por Pierre Bourdieu, primeiro a partir de pesquisas sobre os intelectuais, os escritores, o mundo científico e graças à releitura de Max Weber, particularmente sobre as religiões.2 Essa noção (na verdade, uma metáfora emprestada da física) permitiu que apreendesse, de maneira nova e luminosa, as relações ou, melhor dizendo, as relações de forças e de dominação entre intelectuais, escritores, cientistas, juristas, religiosos e leigos assim como a solidariedade entre concorrentes e os desafios específicos de cada campo estudado. Bourdieu, assim como muitos pesquisadores e doutorandos, estendeu progressivamente a noção de campo a múltiplas esferas ou mundos; ao mundo econômico, burocrático, escolar, artístico e, também, a um grande número de países e lugares, da Austrália ao Brasil, da Alemanha à China.

Bourdieu planejava um livro de síntese sobre o campo desde os anos 1970. Ele estava em construção, e Bourdieu o esquematizou em 1995, quando já havia reescrito vários textos publicados que nele seriam incluídos. O livro Microcosmes. Théorie des Champs, publicado neste ano de 2022 e editado por Jérôme Bourdieu e Franck Poupeau, permite-nos conhecer o projeto de Pierre Bourdieu e a maioria dos textos escritos por ele sobre o assunto entre 1966 e 2001. O livro propõe, ainda, no final, um subcapitulo chamado “Notas inéditas sobre os campos”, intituladas por Bourdieu Propositions générales.  As notas são provenientes de um dossiê preparatório ao livro que ele queria escrever (Bourdieu, 2022).

Na primeira parte, em vez de dar uma definição de campo, tentarei evocar (provavelmente de maneira um tanto subjetiva) alguns pontos importantes e centrais dessa teoria que Bourdieu elaborou. Na segunda parte, levantarei algumas questões a respeito da utilização, às vezes abusiva, da noção de campo para que nos mantenhamos atentos à sua utilização.

Alguns pontos importantes e centrais

Pensar em termos de campo é, antes de tudo, pensar relacionalmente e pensar relações de força e relações de luta e de dominação, por exemplo, entre intelectuais, entre escritores ou entre jornalistas e cientistas. A noção de campo permite pensar as relações objetivas e subjetivas entre os diferentes atores ou os diferentes grupos sociais; também permite pensar as relações entre diferentes espaços e os diferentes tipos de relações – de dominação, de concorrência e de solidariedade.

Nem todo espaço mais ou menos estruturado constitui um campo. “Para determinar se tal conjunto de instituições constitui um campo nos interrogaremos”, escreve Bourdieu, “se estas instituições exercem efeitos umas sobre as outras, ou seja, se há proveito em pensá-las em suas relações objetivas” (Bourdieu, 2022, p. 580).

A noção de campo e o conceito de habitus, igualmente central na obra de Bourdieu, foram concebidos por ele para serem aplicados empiricamente e de maneira sistemática. Bourdieu sugere que é o campo e não o indivíduo que deve ser o centro das operações de pesquisa. Segundo ele, a ciência constrói os indivíduos como agentes e não como indivíduos biológicos ou sujeitos. Como observou Robert Castel, Bourdieu desconfiava demais das ilusões da vontade para falar de atores e desconfiava demais das seduções do subjetivismo para falar do sujeito (Castel, 2004).

Pierre Bourdieu utilizava frequentemente a imagem do “jogo” para explicar o que ele entendia por campo, deixando bem claro que, ao contrário de um jogo, o campo não é o produto de uma criação deliberada. O campo é “um jogo social” construído pelo sociólogo que pode, assim, tentar construir um campo científico, um campo religioso, um campo da alta costura e até um campo do poder; todos regidos por suas próprias leis e produzindo interesses e capitais necessários para seu sucesso (por exemplo, o capital cultural e o capital científico dentro do campo científico e o capital econômico dentro do campo econômico). “Um campo é um jogo que não foi inventado por ninguém e é mais fluido e complexo que qualquer outro jogo imaginável”, escrevia Bourdieu em seu livro Réponses. Pour une anthropologie réflexive (Bourdieu & Wacquant, 1992, p. 80).

O campo supõe desafios e investimentos que são o produto da competição entre os jogadores. Se os jogadores se enfrentam vigorosamente nesse jogo é porque eles têm como ponto em comum o fato de conceder ao jogo e aos desafios – por exemplo, ao jogo intelectual ou ao jogo do poder – uma crença, um reconhecimento incontestável. A competição e a concorrência não excluem a solidariedade entre os concorrentes nem a cooptação quando se trata de defender posições. Todos os jogadores ou agentes que estão engajados num campo têm alguns interesses fundamentais em comum; a luta entre eles pressupõe uma concordância, entre os antagonistas, sobre o que merece ser disputado. Eles dispõem de trunfos, de diversas espécies de capital (econômico, cultural, social, simbólico).

Para Bourdieu, um capital ou uma espécie de capital é aquilo que é eficiente num campo determinado, tanto como arma quanto como desafio de luta; o que permite a seu detentor exercer um poder, existir em um campo determinado. Um capital existe e funciona apenas em relação a um campo.

É ao campo do poder que Bourdieu dedicou muitas análises e textos, e é nele que me deterei por um momento. As relações de poder são, na verdade, relações de luta e de concorrência entre diferentes grupos – dominantes e dominados, ocupando posições conservadoras e de retaguarda ou posições inovadoras e de vanguarda – que se enfrentam, entre outros motivos, pela definição legítima da maneira de exercer o poder e, também, para ocupar posições de poder. Essas lutas não significam que não haja relações de cooptação e de solidariedade entre as diferentes elites. Bourdieu escreveu

[o] campo do poder é um campo de forças definido, em sua estrutura, pelo estado da relação de força entre formas de poder ou de espécies diferentes de capital. Ele também é, inseparavelmente, um campo de lutas pelo poder entre detentores de poderes diferentes, um espaço de jogo em que agentes e instituições – tendo em comum o fato de possuir uma quantidade específica de capital (econômica ou cultural, notadamente) suficiente para ocupar posições dominantes no âmago de seus respectivos campos – se enfrentam com estratégias destinadas a conservar ou transformar essa relação de força”

(Bourdieu, 1989, p. 375).

A emergência de um campo do poder é solidária à emergência de uma pluralidade de campos relativamente autônomos (campo político, econômico, intelectual, universitário etc.) e, portanto, de uma diferenciação do mundo social. Mais do que no campo universitário ou no campo político, em que existe geralmente uma espécie de capital particularmente eficiente – capital universitário no primeiro, capital político no segundo –, no campo do poder, a espécie de capital eficiente num dado momento – por exemplo, o capital estatal – é sempre submetida a amplas lutas e frequentemente questionada; e as lutas pela imposição do princípio de dominação dominante são particularmente fortes.

O campo do poder se organiza geralmente segundo duas hierarquias; a hierarquia do poder econômico e político e a hierarquia da autoridade e do prestígio intelectuais. O antagonismo entre os detentores do poder temporal e os detentores do poder intelectual constitui o princípio maior da polarização do campo do poder e não exclui uma solidariedade funcional que fica mais evidente quando o fundamento da ordem hierárquica se encontra ameaçado, por exemplo, no momento da crise de maio de 1968 na França.

Os desentendimentos e as lutas entre os diferentes grupos dirigentes decorrem, em parte, da distribuição desigual dos poderes e dos recursos. Podem ser lutas para que os recursos ou as espécies de capitais de que dispõem os membros dos diferentes grupos dirigentes sejam reconhecidos como legítimos. Os universitários, ou pelo menos uma parcela dos universitários, podem querer que os outros grupos reconheçam a importância dos estudos, dos diplomas, do capital cultural enquanto princípio de legitimação, enquanto fundamento do poder, e desacreditar o poder econômico. Muitas vezes, os diretores executivos de empresas, os banqueiros e os empreendedores privados procuram a legitimação cultural ou universitária através de operações de mecenato, por exemplo.

As lutas podem também existir dentro de um mesmo grupo dirigente. Durante a pesquisa que realizei com Bourdieu, nos anos 1970, sobre o patronato das maiores sociedades industriais e comerciais, dos bancos e das companhias de seguro francesas, pudemos mostrar o peso crescente do que chamamos “a oligarquia financeira de Estado”, e analisar esse patronato enquanto campo de lutas dentro do campo do poder econômico, notadamente entre os patrões do setor público e os patrões do setor privado, para definir e propor as medidas políticas mais favoráveis a seu campo.

Seria interessante nos determos um pouco na introdução e no desenvolvimento da noção de campo no Brasil. Isso demandaria, claro, um estudo aprofundado, o que foge ao escopo deste texto. Lembramos, no entanto, que o artigo de Bourdieu em torno da noção de campo “Champ intellectuel et projet créateur”, publicado na revista Les temps modernes, em novembro de 1966, foi o primeiro, dentre seus artigos, a ser traduzido no Brasil, em 1968, no Rio de Janeiro, pela editora Zahar, na coletânea Problemas do Estruturalismo, organizada por Jean Pouillon (Pouillon et al., 1968); antes da famosa e importante coletânea A economia das trocas simbólicas, organizada e apresentada por Sergio Miceli e publicada pela editora Perspectiva em 1974 (Bourdieu, 1974). Muitos pesquisadores e estudantes brasileiros se interessaram pela noção de campo sem, contudo, colocá-la no centro de suas pesquisas. É o caso das pesquisas de Sergio Miceli sobre o campo literário e intelectual (Miceli, 1981) e também das pesquisas de José Carlos Durand sobre o campo das artes plásticas em São Paulo (Durand, 1990), das pesquisas de Maria Rita Loureiro sobre os economistas (Loureiro, 1995) e as de Roberto Grün sobre as empresas e as finanças (Grün, 2013). Outros nomes e trabalhos poderiam ser citados.

Bourdieu incentivava aquelas e aqueles que trabalhavam com ele a não se fecharem ou se especializarem numa só área – educação ou literatura, por exemplo – e a pensarem uma pesquisa a partir de outra. É assim que Bourdieu – tendo pesquisado muito, primeiro, na Argélia e no Bearne e, depois, sobre a educação e a cultura, a fotografia, os museus e o gosto dentro das diferentes classes sociais – a partir das pesquisas sobre as Grandes Écoles, interessou-se pelo campo do poder e, ao mesmo tempo, pela produção da ideologia dominante ou pela sociolinguística. Nos seminários que ele conduzia na EHESS, aos quais eu assisti, havia uma forte incitação a cruzar os campos de pesquisa e a estudar as relações entre os campos.

Pierre Bourdieu não veio ao Brasil, ele não finalizou sua obra sobre a teoria dos campos na qual ele se propunha sistematizar as contribuições das pesquisas. Como escrito na introdução, essa obra emergiu agora; ela não encerra a elaboração da teoria dos campos que ainda está sendo trabalhada. Muitos pesquisadores e estudantes de vários países, notadamente do Brasil, a estudam, interessam-se por ela, fazem perguntas, trazem sua contribuição e, às vezes, seu olhar crítico e suas dúvidas.

Alguns comentários e questões a respeito da utilização de campo

Em cada pesquisa empreendida, por exemplo, sobre políticos, empreendedores, jornalistas, universitários, médicos, artistas etc., ou sobre um conjunto de instituições ou um espaço: o espaço da mídia, o espaço religioso – na hipótese de que esse constitui um campo – é necessário questionar a existência desse campo e jamais afirmar categoricamente, logo de início, sua existência ou sua ausência.

Para tomar um exemplo, nós não podemos, como li há alguns anos em uma tese, afirmar já de entrada a existência de um campo jornalístico na Turquia nos anos 1990 ou no começo dos anos 2000. Teria sido necessário perguntar-se, antes de tudo, se havia um campo, de fato. De maneira geral, o campo jornalístico é, como escreveu Bourdieu, bem menos autônomo que o campo científico. Na Turquia, havia tão pouca autonomia, em razão da dependência da imprensa em relação à ideologia oficial, do controle das novas tecnologias, do mercado e do forte peso da elite estatal, que se poderia duvidar da existência de um campo jornalístico. Tratava-se mais de um campo que tentava se constituir e, se chegou a existir no passado, tentava escapar à destruição; era no máximo um embrião de campo.

Ao reler o curto texto sobre a reunião da ANPOCS que aconteceu em Campos de Jordão, em 1986, publicado no Actes de la recherche en sciences sociales, em 1988, traduzido no Brasil por Rodrigo Bordignon (Saint Martin, 2022), notei que o tom um tanto peremptório e afirmativo de certas análises, e o fato de propor uma leitura sociológica do que tinha podido observar, aplicando a noção de campo sem primeiro me perguntar se era apropriada para analisar as relações entre ciências sociais e política, podem surpreender.  Nesse texto evoco, um pouco no modo da evidência, o campo político, o campo econômico, o campo jornalístico e o campo das ciências sociais apresentado como sendo antigo, “pouco reconhecido” e dominado pelo campo político.

Outro exemplo: a pesquisa sobre os bispos da Igreja católica, na França dos anos 1970, que conduzi com Bourdieu e vários colegas. A hipótese levantada era a de que havia um campo do episcopado francês, um pouco no modelo do campo do patronato, estudado pouco antes. Na hora de analisar os dados biográficos das carreiras e das atividades dos bispos, Bourdieu propôs realizar uma análise das correspondências a partir dos dados referentes aos bispos e, se possível, às dioceses das quais eram responsáveis – análise que, pouco antes, havia permitido extrair os princípios de estruturação do campo do patronato na França – esperando, assim, descobrir os grandes princípios de diferenciação e de constituição do episcopado. Após várias tentativas de análise das correspondências, seja levando em conta o conjunto dos bispos em atividade em 1972, seja procurando isolar as diferentes gerações de bispos ou eliminar tal ou tal variável considerada pouco importante, percebemos que, nessas diferentes tentativas, nenhum fator explicativo se destacava de maneira verdadeiramente significativa. Na verdade, o grupo de bispos em atividade em 1972 era bastante homogêneo em seu conjunto – muito mais homogêneo do que 20 ou 40 anos antes – no que diz respeito a seu recrutamento, suas carreiras e suas declarações; mesmo se algumas diferenças puderam ser observadas, particularmente com relação à origem social, entre os “oblatos”, que deviam tudo ou quase tudo à Igreja, e os “herdeiros” provenientes de famílias da burguesia, e com relação à geração. Levando em conta esses dados da investigação, Bourdieu aceitou desistir de utilizar a análise das correspondências para esta pesquisa, e não recorreu à noção de campo para analisar o episcopado. Na análise e publicação, na Actes de la recherche en sciences sociales, a ênfase foi dada muito mais ao episcopado no campo do poder religioso – incluindo os bispos, os responsáveis dos organismos de concertação da Igreja católica e os religiosos (teólogos e intelectuais) – do que ao episcopado enquanto campo (Bourdieu & Saint Martin, 1982). De fato, o episcopado não era, nos anos 1970, nem estruturado em torno de polos de atração mais ou menos fortes, nem atravessado por grandes oposições e nem sequer um espaço de lutas, entre bispos ou grupos de bispos, propriamente ditas.

Em contrapartida, os professores das universidades e de outros estabelecimentos de ensino superior, analisados, após longas pesquisas, no livro Homo Academicus, constituíam realmente, como o demonstrou Bourdieu, um campo universitário na França, um mundo social no qual, como salientava, ele mesmo se encontrava imerso; um mundo que ele estudou em período de equilíbrio relativo, mas também em período de crise, especialmente em 1968 e depois. Numa entrevista dada pouco tempo depois da publicação do livro, ele declarou:

[p]odemos e devemos ler Homo Academicus como sendo um programa de pesquisa sobre qualquer campo universitário. Na verdade, por simples experimentação mental, o leitor americano, japonês, brasileiro etc. pode fazer o trabalho de transposição e descobrir, através de um raciocínio analógico, muita coisa sobre seu próprio universo profissional

(Bourdieu & Wacquant, 1992, p. 55).

Bourdieu lançava, “naturalmente”, a hipótese de que encontraríamos, nos Estados Unidos (por exemplo), oposições semelhantes e tão essenciais como as encontradas na França: a oposição entre o capital universitário ligado ao poder sobre os instrumentos de reprodução e o capital ligado ao renome científico, notadamente. Com a ressalva de que, segundo ele, esta oposição se expressaria de formas diferentes. Isso não seria, da parte de Bourdieu, incitar a repetição ou a transposição de seu modelo de maneira meio apressada? Não estaria ele, assim, correndo o risco de rotinizar, de favorecer reproduções caricaturais do modelo inicial?

“Que descoberta pode-se esperar desta pesquisa sistemática do mesmo? Onde ficam o acaso, a contingência, as variações, as mudanças e o papel dos próprios atores/atrizes?”, perguntava-se a historiadora Michelle Perrot, quando da publicação do livro de Bourdieu La domination masculine (Perrot, 1998). A questão se coloca também a respeito do estudo dos diferentes campos.

Na maioria de seus trabalhos e pesquisas, Bourdieu esteve muito atento aos processos de constituição de um campo. No entanto, podemos nos perguntar se ele prestou tanta atenção ao estudo dos fenômenos de desestruturação ou de decomposição de vários campos. De tanto reafirmar a centralidade do campo do poder e de procurar as homologias entre os diferentes campos – campo econômico, campo político, campo científico, campo intelectual – não teria ele subestimado as possibilidades de deliquescência ou de desaparecimento de um campo? Cyril Lemieux, na obra coletiva Bourdieu théoricien de la pratique, pode se interrogar, com razão, sobre o que ele chama de “crepúsculo dos campos” (Lemieux, 2011). Além disso, ele salienta que no pequeno livro Sur la télévision – publicado em 1996, transcrição de dois cursos no Collège de France –, Bourdieu se interrogou sobre os mecanismos sociais através dos quais os campos podem experimentar regressões em direção à heteronomia, a ponto de sua existência enquanto campo chegar a ser comprometida.

Tratando-se do “campo econômico”, é possível ter algumas dúvidas, pois sua autonomia nunca foi conquistada; e, sobretudo, essa noção parece demasiadamente englobante e acaba, por isso, perdendo seu poder explicativo. Será que podemos estudar um “campo econômico”, ou seria preferível procurar estudar um campo de produção econômico, ou um campo das empresas, ou o campo das finanças, ou, ainda, o campo do poder econômico? O próprio Bourdieu evocava, em Méditations pascaliennes, a “tirania” para designar “uma intrusão dos poderes associados a um campo no funcionamento de outro campo” (Bourdieu, 1997). Ele pensava, então, nas situações em que “o poder político ou o poder econômico intervém no campo científico ou no campo literário, seja diretamente, seja através de um poder mais específico, como o das academias, das editoras, das comissões ou do jornalismo.”

Existiria um campo econômico na Rússia desde o fim de 1991? A questão está em aberto. No estado atual das pesquisas sobre o tema, a resposta é, provavelmente, negativa. Quando Natacha Chmatko estudou, durante a perestroika, a gênese dos empreendedores e as particularidades da constituição de um setor privado e de um mercado livre na Rússia, era muito difícil e complexo orientar-se nesse mundo em plena ebulição e fortemente atomizado, no qual se misturavam recém-chegados, que criavam uma ou várias pequenas empresas ou sociedades de comércio ou de serviços que desapareciam logo após serem criadas, com estatutos jurídicos muito diversos e em constante transformação, e antigos dirigentes de empresas estatais e organizações diversas.

A incerteza era muito grande em vista do futuro político e econômico. Nesta situação meio explosiva, era preciso – antes de tudo – observar, tentar entender, procurar os raros dados disponíveis, ou questionar-se e evitar qualquer afirmação categórica. Teria sido prematuro analisar o processo observado como sendo o da constituição de um campo econômico (Chmatko, 1994). Na prática, tratava-se de uma tentativa de constituição de um espaço econômico privado, sendo que este estava atravessado por lutas econômicas e lutas políticas sem real controle, ao que parece.

Essas observações embasadas em exemplos tirados de pesquisas, realizadas em diversos países, sobre as quais tive a oportunidade de trabalhar e refletir, são feitas no intuito de promover uma vigilância constante e uma grande reflexividade no que se refere à utilização de conceitos bourdieusianos; especialmente o conceito de campo, mas também o de habitus, o de capital e o de estratégias.

Para concluir, é necessário relembrar que a teoria dos campos que Bourdieu elaborou não tinha nada de definitivo e pedia para ser questionada. As fronteiras dos campos não são fixas, evoluem no tempo e são reavaliadas frequentemente. Os diferentes campos são, de fato, mortais e podem se desagregar ou desaparecer sob o efeito de coações internas ou, sobretudo, externas.

A sociologia pode ser um instrumento de libertação. O olhar sociológico de Bourdieu era um olhar engajado. “Restituir aos homens o sentido de seus atos”, aprender a se conhecer, a se situar, refletir sobre sua posição, eram algumas das grandes exigências de Bourdieu. A compreensão das coações, como ele sempre lembrava, pode possibilitar a libertação e a ação; e a sociologia pode, assim, ser um instrumento de libertação, “mas ela suscita muito pouca ilusão” para que o “sociólogo possa considerar-se, por um instante sequer, como tendo a função do herói libertador”, dizia Bourdieu em Homo Academicus (Bourdieu, 1984, p. 16). Por outro lado, acrescentarei que os sociólogos podem se imaginar, hoje mais ainda do que no passado, no papel de desportistas, mulheres e homens, engajadas e engajados em numerosos combates pela liberdade, a igualdade, a fraternidade e a dignidade.

Material suplementar
Referências
Bourdieu, Pierre. (2022). Microcosmes. Théorie des champs. In J. Bourdieu & F. Poupeau (ed.), Raisons d’agir.
Bourdieu, Pierre. (1997). Méditations pascaliennes. Liber.
Bourdieu Pierre. (1989). La noblesse d’état, grandes écoles et esprit de corps. Ed. de Minuit.
Bourdieu, Pierre. (1984). Homo academicus. Ed. de Minuit.
Bourdieu, Pierre. (1974). A economia das trocas simbólicas (col. Estudos). Perspectiva.
Bourdieu, Pierre, & Saint Martin, Monique de. (1982). La sainte famille. L'épiscopat français dans le champ du pouvoir religieux. Actes de la recherche en sciences sociales, (44-45), 2-53.
Bourdieu, Pierre, & Wacquant, Loïc J. D., (1992). Réponses. Pour une anthropologie réflexive (Libre examen Politique). Le Seuil.
Castel, Robert. (2004). Entre la contrainte sociale et le volontarisme politique. In J. Bouveresse & D. Roche (org.), La liberté par la connaissance. Pierre Bourdieu. 1930-2002 (pp. 303-317). Ed. Odile Jacob.
Chmatko, Natacha. (1994). Les entrepreneurs en Russie : genèse d'un nouveau groupe social (Introdução de Monique de Saint Martin). CSEC, MSH.
Durand, José Carlos. (1990). Mercado de arte e campo artístico em São Paulo, 1947-1980. Revista brasileira de ciências sociais, 5(13).
Grün, Roberto. (2013). A dominação financeira no Brasil contemporâneo. Tempo social, 25(1), 179-213. https://doi.org/10.1590/S0103-20702013000100010
Lemieux, Cyril. (2011). Le crépuscule des champs. Limites d’un concept ou disparition d’une réalité historique ? In M. de Fornel & A. Ogien (org.), Bourdieu théoricien de la pratique (col. Raisons pratiques). Ed. de l’EHESS.
Loureiro, Maria Rita. (1995). L’ascension des économistes au Brésil. Actes de la recherche en sciences sociales, 108, 70-78. https://www.persee.fr/doc/arss_0335-5322_1995_num_108_1_3148
Miceli, Sergio. (1981). Les intellectuels et le pouvoir au Brésil 1920-1945. PUG-MSH.
Perrot, Michelle. (1998, 27 ago.). Bourdieu et le mâle absolu. Femmes encore un effort. Libération. Recuperado de: https://www.liberation.fr/livres/1998/08/27/bourdieu-et-le-male-absolu-femmes-encore-un-efforton-peut-adherer-aux-theses-de-bourdieu-et-s-etonne_244473/
Pouillon, Jean et al. (1968). Problemas do estruturalismo. Zahar.
Saint Martin, Monique de. (2022). A propósito de um encontro entre pesquisadores : Ciências Sociais e política no Brasil. Política e Sociedade, 21(50), 162-173. https://doi.org/10.5007/2175-7984.2022.e89621
Notas
Notas
1 Artigo inicialmente apresentado no evento “Pierre Bourdieu e a sociologia como esporte de combate”, organizado pelo Nespom-UNESP. Traduzido e revisado por Maria Chaves Jardim e Cristina Prado.
2 Agradeço calorosamente a Maria Chaves Jardim, Júlio César Donadone, ao NESPOM da UNESP de Araraquara, ao NESEFI da UFSCar, à SBS e a seu presidente, o Professor Jacob Carlos Lima, assim como a todos os organizadores e organizadoras do colóquio “Pierre Bourdieu e a sociologia como esporte de combate” por me confiarem a responsabilidade da conferência de abertura e por me concederem esta honra. Também gostaria de agradecer a Marie-France Garcia por sua leitura atenta e por suas importantes observações e sugestões.
Autor notes
Socióloga, Diretora de estudos na EHESS e pesquisadora do IRIS, ingressou na VIª seção da EPHE, no CSE em Paris, em 1963. Após pesquisas voltadas para a sociologia da educação, dedicou-se à sociologia do poder, das elites e das antigas aristocracias (cf. L’espace de la noblesse), interessando-se pelos processos de reconversão das antigas elites e, atualmente, das elites africanas formadas na URSS ou em países do antigo bloco socialista. Participou ativamente da construção de diferentes grupos e redes de pesquisa internacional.

monique.de-saint-martin@ehess.fr

Buscar:
Contexto
Descargar
Todas
Imágenes
Visualizador XML-JATS4R. Desarrollado por Redalyc