RESUMO: Na década de 1970, o sociólogo malaio Syed Hussein Alatas propôs uma análise para dar conta do ensino de ciências sociais no mundo em desenvolvimento, especialmente na Ásia. Ele cunhou a expressão “mente cativa” para descrever estudantes cuja formação foi influenciada por teorias, conceitos, significados e autores ocidentais ensinados a eles por “mentes captoras”, sendo estas últimas ou instrutores asiáticos de ciências sociais que reproduzem o que lhes foi ensinado no Ocidente ou professores ocidentais meramente transplantando sua sociologia “universal” a estudantes onde quer que estejam. Mesmo que Alatas tenha escrito em 1974 que “não há contrapartida da mente cativa no Ocidente”, podemos nos perguntar se, no passado assim como hoje, o ensino sociológico no Ocidente não sofreu o mesmo revés, reproduzindo quase constantemente tanto o mesmo tipo de viés visual (hipermetropia no Sul e miopia no Norte) como a mesma forma de dependência quase contínua no mesmo cânone. O objetivo deste artigo é demonstrar que esse olhar “hegemônico” também se apoia num fim específico do ensino no Ocidente, examina seus efeitos e propõe uma alternativa centrada numa nova compreensão do universalismo.**
Palavras-chave: História da Sociologia, ensino de sociologia, mente cativa.
ABSTRACT: In the 1970s, the Malaysian sociologist Syed Hussein Alatas proposed an analysis to account for the teaching of social sciences in the developing world, and especially in Asia. He coined the phrase “captive mind” to describe those students whose training was biased towards Western theories, concepts, meanings and authors taught to them by “captor minds”, the latter being either Asian social science instructors reproducing what they had been taught in the West or Western teachers merely transplanting their “universal” sociology to students wherever they may be. Even if Alatas wrote in 1974 that “there is no counterpart of the captive mind in the West”, we may wonder whether, in the past and also nowadays, sociological teaching in the West has not suffered from the same drawback, almost constantly reproducing both the same kind of visual bias (hyperopia in the South and myopia in the North) and the same form of almost continuous reliance on the same canon. The aim of this paper is to demonstrate that this “hegemonic” gaze also relies on a specific end of teaching in the West, examines its effects and proposes an alternative centered on a new understanding of universalism.
Keywords: History of Sociology, teaching sociology, captive mind.
Dossiê
Quando o captor é cativo: ensinar a Sociologia do Sul no Norte?
When the Captor is Captive: Teaching Southern Sociology in the North?
Recepção: 25 Março 2023
Aprovação: 02 Abril 2023
A reflexão sobre o ensino da sociologia tem geralmente dois aspectos. Durante muito tempo, limitou-se ao ensino nos países ocidentais. Fundada em 1973 pela American Sociological Association, a revista Teaching Sociology só muito recentemente começou a publicar alguns artigos sobre países não ocidentais. Da mesma forma, o recém-fundado (2021) Thematic Group of the International Sociological Association, dedicado ao ensino de sociologia, foi criado por duas sociólogas canadenses, e sua revista Pedagogy Series – cujo Conselho Editorial é composto somente por acadêmicos canadenses – é quase inteiramente dedicada a países ocidentais. Por outro lado, depois de algumas reflexões iniciais sobre a importância de novas formas de ensino para combater a hegemonia acadêmica – por exemplo, com o sociólogo brasileiro Alberto Guerreiro Ramos, que, na década de 1950, insistiu no papel que o ensino poderia desempenhar na emancipação cultural dos estudantes (Ramos, 1957; ver também Ramos, 1996) –, desafiar a educação sociológica formal foi se tornando uma prática cada vez mais difundida em países não ocidentais. O reconhecimento de que o ensino formal em geral representava uma mera reprodução do cânone sociológico ocidental, assim como a permanência de vestígios do passado colonial ou imperialista, desencadeou contestações ao ensino sociológico.
Movimentos recentes como o Rhodes Must Fall na Universidade da Cidade do Cabo em 2015 – onde o descontentamento com a presença da estátua de Cecil Rhodes no centro do campus levou a demandas por mudanças curriculares e nas políticas de recrutamento (Chantiluke, Kwoba & Nkopo, 2018; Fataar, 2018) –, são naturalmente relevantes nessa perspectiva. Mas não é necessariamente útil ir tão longe. De fato, o movimento Rhodes Must Fall, em afinidade eletiva com outras formas de crítica do conhecimento nas humanidades e ciências sociais que se desenvolveram na Europa, América do Norte ou América Latina – em particular as abordagens pós-coloniais ou descoloniais –, serviu de gatilho para uma onda de demandas, principalmente na Holanda, mas também na Grã-Bretanha (Bhambra, Gebrial & Nişancioğlu, 2018). Isso resultou no lançamento de vários movimentos de “descolonização” em instituições prestigiadas como a London School of Economics and Political Science,1 a University of Cambridge,2 ou a icônica School of Oriental and African Studies (SOAS).3
Este nexo complexo que agora articula o Norte e o Sul deve nos convidar a pensar de forma mais específica do que habitualmente sobre as particularidades do ensino sociológico no Norte e, ainda mais precisamente, no próprio centro do centro, quer dizer, nos países ocidentais considerados como “pátrias fundadoras” sociológicas. Com foco no ensino da história da sociologia, tentarei mostrar o que pode significar “descolonizar” a sociologia ocidental.
Esta seção discute os mecanismos pelos quais a dominação ocidental é imposta, com foco nos conceitos de “história sinedóquica” e “currículo oculto”. O primeiro refere-se a como a escrita convencional da história da Sociologia é principalmente desenvolvida através da apresentação de autores, conceitos, teorias e livros vindos de um número muito pequeno de países ocidentais, enquanto se pretende cobrir toda a Sociologia – daí o uso do aparato estilístico de “sinédoque”.
A segunda vem de uma extrapolação do que o pedagogo estadunidense Philip Wesley Jackson (1990) havia chamado, em 1968, de “currículo oculto”, quer dizer, as expectativas das instituições de ensino sobre o que todo aluno deve dominar. Uma análise mais elaborada do currículo oculto foi fornecida três anos depois pelo psiquiatra americano Benson Snyder (1971), quando ele insistiu no fato de que o currículo acadêmico formal disputava espaço com outro, mais instrumental, visando ao êxito acadêmico. Ainda que essa noção esteja muitas vezes associada às regras implícitas da instituição em geral (Margolis, 2001; Fuentes et al., 2022), ela pode ser bastante útil quando ligada a um contexto cultural ou étnico mais geral (Soldatenko, 2001). Eu sugeriria aqui que o “currículo oculto” ou “invisível” da sociologia é precisamente o ensino da narrativa sinedóquica sob o disfarce da história real.
Frequentemente, a história da Sociologia é ensinada muito mais em termos de suas ideias, teorias e “fundadores”, ou principais autores, do que em termos da “disciplina” ou disciplinarização da Sociologia como tal. No entanto, permanece o fato de que é através desse meio que a maioria dos alunos aprende sua história. Assim, o estudo de manuais introdutórios ou de sínteses dedicadas à história da Sociologia tem especial importância para se tentar compreender e avaliar o conteúdo do ensino. Como mostra Dufoix (2022), os autores que mais persistem tendem a vir de cinco países de importância variante (França, Estados Unidos, Alemanha, Grã-Bretanha e Itália), reduzindo assim o panorama global da Sociologia a uma minoria muito pequena. Essa sinédoque restritiva – que considera uma pequena parte como representativa do todo – restringe a história das práticas e significados sociológicos do final do século XIX até hoje àquelas que se desenvolveram nesses cinco países. Apesar de sua qualidade geral, e independentemente de quando foram escritas, a grande maioria de livros francófonos (Bouthoul, 1950; Giraud, 2004; Simon, 2008; Cuin, Gresle, & Hervouet, 2017; Lallement, 2017; Delas & Milly, 2021), germanófonos (Kaesler, 1999; Korte, 2011; Fleck & Dayé, 2020) ou anglófonos (Chambliss, 1954; Coser, 1971; Hawthorn, 1976; Swingewood, 1984) não dá atenção a autores não ocidentais, tampouco a outros não europeus. É claro, alguns o fazem, seja considerando o desenvolvimento da Sociologia em quase todas as regiões do mundo (Barnes & Becker, 1938; Roucek, 1958; Maus, 1962), ou em algumas delas (Gurvitch & Moore, 1945; Cuvillier, 1950; Wiese, 1971; Jonas, 1981).
O que implica essa história sinedóquica? Escrever a evolução da disciplina como se ela orbitasse cinco países ocidentais permite justificar retrospectivamente a limitação de sua história àquela das ideias e teorias, com o argumento implícito de que a teorização e a conceituação só decorrem do centro. A ausência – ou relativa ausência – da Sociologia noutras partes do mundo, sobretudo nas primeiras fases do desenvolvimento disciplinar, permite assinalar esse desenvolvimento “tardio” e, ipso facto, a sua ausência nos trabalhos mais gerais sobre a disciplina. A “sociologia” não precisa estar situada ou indexada geograficamente, pois o artigo definido ou a ausência de qualquer indexação geográfica basta para “demonstrar” sua realidade universal. A lógica inerente à ausência de sociologias não ocidentais nos livros didáticos equivale ao que Tony Platt escreveu há cerca de trinta anos sobre o conteúdo sem classe, sem gênero e heterossexista dos livros didáticos de sociologia:
A maioria dos livros didáticos adota uma estrutura essencialista, a-histórica e compensatória que reproduz a bagagem dos paradigmas hegemônicos: subestimar os danos causados pelo racismo, tratar a “branquitude” como um monólito não examinado; reduzir a etnicidade a uma homogeneidade sem classes, sem gênero e heterossexista; romantizar técnicas de sobrevivência; e reforçar a viabilidade do sexismo
(Platt, 1992, p. 22).Outro bom exemplo disso é a International Encyclopedia of the Social Sciences, publicada em 1968 sob a coordenação de David Sills e Robert K. Merton. Embora seu título e introdução insistam na dimensão “internacional” do livro, a análise da sua autoria (Gareau, 1988) mostra que ela foi escrita principalmente por autores euro-estadunidenses: 78,1% da autoria total era de afiliação estadunidense. O conjunto dos autores do Reino Unido, Canadá e Austrália soma outros 10,6% de anglófonos. Pesquisadores de afiliação europeia continental (principalmente da França e da Alemanha) representaram 9,4% da autoria. No geral, a autoria ocidental representava 98,1% do total. Os 1,2% restantes representavam o Terceiro Mundo (0,9%) e o Leste Europeu Comunista (0,3%). Ao todo, havia apenas 14 colaboradores com afiliações do Terceiro Mundo. A América Latina teve apenas um, que escreveu um verbete sobre um etnógrafo alemão. Como Gareau (1988, p. 174) disse sem rodeios – mas com razão – aquela enciclopédia era “testemunha muda do provincianismo das disciplinas cujo nome leva”, disfarçando isso sob a bandeira do internacionalismo.
No que diz respeito ao ensino, nem sempre é fácil saber exatamente qual é o conteúdo dos cursos, principalmente quando não existe o hábito de elaborar currículos, como é o caso da França, por exemplo. A prática curricular anglo-saxônica torna mais fácil listar quais autores são de fato citados e ensinados. Seja nos Estados Unidos ou no Canadá, os autores citados com mais frequência são praticamente os mesmos (ver Figuras 1 e 2), a trindade Marx, Weber e Durkheim encabeçando a lista, seguidos apenas de estudiosos das ciências sociais ocidentais. É impressionante notar essa continuidade enquanto, ao mesmo tempo, ocorria a discussão sobre a necessidade e a própria existência de um “núcleo sociológico” (entre outros, ver Abbott, 2000; Keith & Ender, 2004; Ballantine et al., 2016; Oromaner, 1968).
A crescente pressão para “descolonizar” o currículo e os livros didáticos (Stein, 2017) não impediu que um estudo alemão sobre o cânone sociológico (Schneickert et al., 2019) perguntasse a estudantes alemães sobre seus conhecimentos das “grandes teorias sociológicas”, apresentando-lhes uma lista de 26 nomes com apenas uma mulher (Judith Butler) e nenhum sociólogo não ocidental. Na mesma linha, os resultados do estudo realizado por Philip Korom a partir de uma amostra de periódicos, livros didáticos, manuais e enciclopédias ocidentais nas décadas de 1970 e 2010 (2020) mostram perfeitamente que, embora os nomes na lista dos 50 sociólogos mais citados possam ter mudado em quarenta anos, Weber e Durkheim permanecem dentre as quatro primeiras posições. Na década de 1970, a única mulher era Margaret Mead, enquanto, nos anos 2010, há três listadas (Allie Hochschild, Saskia Sassen e Judith Butler). Em ambos os casos, nenhum sociólogo não ocidental é listado.
Essa predominância de autores ocidentais não é prerrogativa dos países ocidentais. Diego Ezequiel Pereyra (2008) demonstra que os livros didáticos de sociologia na Argentina e no México, no período de 1940 a 1960, também eram dominados por estudiosos ocidentais. Essa situação não mudou muito. Sergio Costa (2013) mostrou que listar os autores mais citados de 1999 a 2009 na Revista Brasileira de Ciências Sociais e na Revista Mexicana de Sociología resulta numa presença avassaladora de autores ocidentais. No primeiro caso, apenas dois estudiosos não ocidentais – Florestan Fernandes e Gilberto Freyre, na 7ª e 10ª posições – constam entre os dez mais citados, bem atrás de Bourdieu, Weber, Habermas, Giddens e Foucault; enquanto, no segundo caso, nenhum cientista social mexicano ou latino-americano aparece antes da 23ª posição, sendo o topo da lista ocupado por Bourdieu, Touraine, Weber, Habermas e Foucault.
De mais de 20.000 referências bibliográficas em 479 textos acadêmicos escritos por cientistas sociais chilenos entre 2000 e 2006, Claudio Ramos Zincke (2014) descobriu que apenas quatro autores não ocidentais constavam na lista dos 25 mais citados: o antropólogo argentino Néstor García Canclini (8º) , o biólogo e filósofo chileno Humberto Maturana (16º), o cientista político argentino Guillermo O’Donnell (17º) e o teórico da comunicação hispano-colombiano Jesús Martín-Barbero (22º), enquanto as primeiras posições foram ocupadas por Niklas Luhmann , Pierre Bourdieu, Anthony Giddens, Jürgen Habermas e Ulrich Beck. Além disso, a partir de dados baseados no Social Science Citation Index (SSCI) e no Arts and Humanities Citation Index (AHCI), Felix Valdés García (2019) pôde mostrar que, em 2007, 37 autores das ciências humanas e sociais foram citados mais de 500 vezes. Quer sejam referências clássicas (Marx, Weber, Durkheim, Freud, Nietzsche) ou mais recentes, desde o final da Segunda Guerra Mundial (Habermas, Bourdieu, Giddens), todas vêm de países ocidentais, com exceção de Edward Said. Outros exemplos poderiam ser dados vindos de outras regiões do mundo (para o Japão, ver, por exemplo, Nishihara, 2014).
Todas as características acima sobre a história sinedóquica da sociologia em livros didáticos e programas de estudos que omitem as sociologias antigas não ocidentais (Dufoix, 2022), bem como a confusão entre “sociologia” e “sociologia ocidental” e a presença avassaladora de teóricos ocidentais dentre os cientistas sociais mais citados ao redor do mundo, deveriam nos levar a considerar que essa situação nada tem a ver com o passado de fato da sociologia mundial. Se isso deve ser entendido como o produto histórico da hegemonia ocidental, seus mecanismos ainda precisam ser devidamente apontados.
Gostaria de sugerir que o relato de uma mesma narrativa “lendária” – etimologicamente entendido como “o que há de ser lido” – abrange a pesquisa, o ensino e a circulação de ideias sociológicas. Como parte obrigatória de livros didáticos e cursos, constitui de fato um “currículo oculto” no sentido mencionado acima. Constitui um dos principais vetores de canonização ao impor um número de pais fundadores e figuras importantes à exclusão de estudiosos e estudiosas mulheres, membros de minorias e não ocidentais. Embranquece a sociologia. Endurece e naturaliza a disciplina por meio do estabelecimento de uma verdade sobre ela que se torna a pedra fundamental do ensino e a compreensão fundamental da sociologia pelos alunos. Também perpetua a divisão de trabalho construída entre o Norte e o Sul no que diz respeito à construção da teoria.
A narrativa lendária da sociologia fornece uma estrutura dentro da qual a história da disciplina e as teorias sociológicas se misturam. Como a divisão internacional do trabalho epistêmico é estruturada em torno da distinção entre uma periferia que fornece dados sobre sociedades tradicionais e um centro que elabora teorias de progresso e desenvolvimento social com base nesses dados e trabalhos empíricos em alguns países ocidentais (Hountondji, 1990; Connell, 2007; Keim, 2008; Santos & Meneses, 2010; Collyer & Dufoix, 2022), o ensino da Sociologia não difere muito conforme o local do mundo em que é ministrado, mesmo após a independência política dos países não ocidentais.
O sociólogo malaio Syed Hussein Alatas elaborou uma explicação conceitual desse fenômeno. Depois de obter um doutorado em Ciências Políticas e Sociais pela Universidade de Amsterdã, em 1963, dedicando sua tese a “Reflexões sobre as teorias da religião” (Alatas, 1963b; ver também 1963a), ele voltou para a Malásia, onde ingressou no departamento de Estudos Malaios na Universidade da Malásia em Kuala Lumpur. Em 1967, ele fundou o departamento de Estudos Malaios na Universidade de Singapura, enquanto se dedicava intensamente à política na Malásia como presidente do Partido do Movimento Popular da Malásia, entre 1968 e 1971, membro do Conselho Consultivo Nacional da Malásia, de 1969 a 1971, e como senador em 1971 (sobre Alatas, ver por exemplo Hassan, 2005; Maia & Caruso, 2012; Byrd & Javad Miri, 2022). Desde o final dos anos 1950, ele foi extremamente ativo na denúncia das consequências da dominação acadêmica ocidental sobre as ciências sociais praticadas e ensinadas nos países em desenvolvimento. Sua análise parte da relação entre o colonialismo e o pensamento ocidental:
A história das sociedades coloniais mostrou como a introdução forçada de instituições ocidentais criou caos e desajustes em sua estrutura social. A incursão do pensamento ocidental no mundo intelectual das elites nativas trouxe resultados semelhantes. Isso, juntamente com outras influências, como o sentimento de inferioridade cultural, tornou-as mais suscetíveis e mais receptivas ao pensamento e aos modos de vida ocidentais, sem considerar seus méritos quando praticados em sua própria sociedade. A importação indiscriminada de ideias do mundo ocidental para as sociedades orientais só pode ser bem-sucedida se for baseada em um planejamento cuidadosamente pensado, pois, desprovidas de seu contexto socio-histórico, tais ideias podem criar apenas confusão e desajuste
(Alatas, 1956, p. 9).O problema crítico deve-se ao fato de que o imperialismo intelectual não é equivalente ao imperialismo político. Se este último pode chegar ao fim com a independência e seu reconhecimento por organizações internacionais, o “swaraj” intelectual (Bhattacharya, 1977; Uberoi, 1977) – da palavra sânscrita usada para denotar autodeterminação – é muito mais complicado de se alcançar, pois decorre de processos de incorporação e naturalização:
Esses problemas, por sua vez, precisam de uma solução, mas o próprio método e processo de resolvê-los tornou-se um problema; o mais vital e fundamental de todos. Inseridos nesse tipo de problema, encontram-se fenômenos como o transplante acrítico de pensamentos do Ocidente para as ex-colônias, a continuação do processo de introdução forçada de instituições ocidentais sem o cuidado necessário e a premissa de uma atitude corrupta por parte de uma parcela influente do grupo líder
(Alatas, 1956, p. 10).Esse “transplante acrítico de pensamento” levou ao que Alatas chamou de “mente cativa” em um artigo dedicado a “despertar a consciência dos cientistas sociais na Ásia para sua própria servidão intelectual” (Alatas, 1972, p. 214). Ele desenvolveu ainda mais a ideia em 1974, ligando essa servidão intelectual às consequências do imperialismo epistêmico. Ele cunhou a expressão “mente cativa” para descrever estudantes cuja formação foi influenciada por teorias, conceitos, significados e autores ocidentais ensinados a eles por “mentes captoras”, sendo estas últimas professores asiáticos de ciências sociais reproduzindo o que lhes foi ensinado no Ocidente ou professores ocidentais meramente transplantando sua sociologia “universal” para estudantes onde quer que estejam:
Não há uma única universidade na Ásia que perceba a necessidade de introduzir um curso especial sobre pensamento cativo nas ciências, para conscientizar os alunos sobre a necessidade de adaptar as ciências que absorvem de fontes ocidentais. O que acontece é um mero transplante de pensamento. Novamente, não me refiro aqui a uma simples adaptação de técnicas e metodologias, mas do aparato conceitual, sistemas de análise e seleção de problemas
(Alatas, 1974, p. 695).A mente cativa é, portanto, entendida como um grande problema na Ásia – embora seja óbvio que Alatas identificou um processo cuja realidade, relevância e eficiência vão muito além da Ásia. A definição de “mente cativa” é, na verdade, ampla e genérica o suficiente para capturar um fenômeno mais geral (o que não significa que ocorreria exatamente da mesma forma em todos os lugares). Dado o frequente desconhecimento da análise de Alatas nos círculos acadêmicos, parece importante dar uma citação completa dessa definição:
Uma mente cativa é produto de instituições superiores de aprendizado, sejam elas nacionais ou do exterior, cujo modo de pensar é dominado pelo pensamento ocidental de maneira imitativa e acrítica.
Uma mente cativa é pouco criativa e incapaz de levantar problemas originais.
É incapaz de conceber um método analítico independente dos estereótipos vigentes.
É incapaz de separar o particular do universal na ciência e, assim, adaptar adequadamente o corpus universalmente válido do conhecimento científico às situações locais particulares.
É de uma perspectiva fragmentada.
Está alienada das grandes questões da sociedade.
Está alienada de sua própria tradição nacional, se ela existe, no campo de sua atividade intelectual.
É inconsciente de seu próprio cativeiro e dos fatores condicionantes que a tornam o que é.
Não é passível de uma análise quantitativa adequada, mas pode ser estudada por observação empírica.
É resultado do domínio ocidental sobre o resto do mundo
(Alatas, 1974, p. 691).Os três termos que poderiam resumir essas afirmações são os seguintes: imperialismo epistêmico, irrelevância da ciência universal e colonização das mentes. Eles se relacionam com os três domínios principais – historicidade, vida intelectual e epistemologia – pertencentes ao cativeiro das mentes. Se os dois primeiros são imediatamente visíveis, o terceiro é mais difícil de perceber. Contudo, constitui uma pedra fundamental na análise de Alatas, pois deixa claro o quanto a persistência da colonização nas estruturas mentais não só tem consequências diretas na forma como as pessoas agem ou deixam de agir, mas também no seu quadro de pensamento, assim tornando pensáveis um determinado número de coisas, enquanto muitas outras não o serão. Mais uma vez, vemos aqui um exemplo concreto das consequências do currículo oculto:
Outro grande problema da mente cativa é que ela não consegue diferenciar o universal do particular: ela subsume ambos sob o universal. Quando uma mente cativa estuda as ciências do Ocidente, os fenômenos que são distintamente ocidentais são frequentemente considerados universais. Essa é uma tendência que, por falta de termos melhores, sugiro que chamemos de “imperialismo metodológico”
(Alatas, 1974, p. 691).Embora a consciência dos mecanismos em funcionamento no estabelecimento e reprodução do cativeiro intelectual seja essencial para a reflexão sobre como acabar com ele, de forma alguma ela é suficiente: “[o] que precisamos são modelos, metodologias e conceitos alternativos para modificar, complementar, ou substituir os já disponíveis. Isso poderia e deveria ser feito por estudiosos asiáticos por razões estritamente científicas” (Alatas, 1972, p. 20).
A grande originalidade da concepção de Alatas é associar a figura da mente cativa à da “mente captora”: “[a] mente captora é o acadêmico ocidental ou seu discípulo asiático que transmite conhecimento por meio de livros ou palestras de uma maneira que não promove a consciência dos fundamentos do pensamento e raciocínio científicos” (Alatas, 1974, p. 698). Muito claramente, as mentes cativas e captoras não se distribuem de forma binária, Sul x Norte, pois há que se considerar a presença ocidental no mundo tanto via colonialismo quanto pela Guerra Fria e, em sentido inverso, a migração de longo prazo de estudantes não ocidentais para a Europa e América do Norte. No entanto, sua singularidade é demonstrada pela aceitação e difusão dessa versão específica das ciências sociais que insiste no universalismo: “[a]s principais características da mente captora são que sua apresentação das ciências não é contextual, não é filosófica, não é relacional e não é intercultural” (Alatas, 1974, p. 698). Embora seja possível considerar essa postura como consequência de uma trajetória acadêmica singular, ela resulta principalmente de forças estruturais:
A mente captora não necessariamente se torna assim intencionalmente, assim como a mente cativa não necessariamente busca o cativeiro conscientemente. Elas são os instrumentos de uma gigantesca e imponente superestrutura intelectual
(Alatas, 1974, p. 698).Uma coisa importante a notar: para Alatas, nenhuma sociedade ocidental é tão inteiramente impregnada de pensamento oriental quanto as sociedades orientais o são de pensamento ocidental. Portanto, não existiria nenhum mecanismo de espelho: “A hipotética mente cativa no Ocidente estaria mais familiarizada com a história oriental do que com a sua própria” (Alatas, 1974, p. 698). Isso implica necessariamente dizer que não há mentes cativas e captoras no Ocidente? E se tentássemos entender a possibilidade de tal existência sem qualquer simetria estrita, mas com a possibilidade de um cativeiro específico do Ocidente?
Mesmo que Alatas tenha escrito em 1974 que “não há contraparte da mente cativa no Ocidente” (1974, p. 691), é preciso levar em consideração que de fato houve alguma forma de cativeiro ocidental também. Embora os teóricos do Norte e do Sul não estivessem do mesmo lado da corda, os primeiros dando conhecimento enquanto os segundos apenas recebendo – levando em consideração o que mencionei acima sobre a posicionalidade fractal do cativo e do captor –, ambos sofreram de algum tipo de viés visual (hipermetropia no Sul e miopia no Norte) e da mesma forma de dependência quase contínua do mesmo cânone.
De acordo com o padrão da “mente cativa”, as sociedades do Sul são caracterizadas por sua dependência acadêmica do quadro epistêmico do Ocidente – sempre a ser especificado conforme períodos, locais e dependência de qual país. Sua situação pode ser vista como caracterizada pela hipermetropia, aquela condição dos olhos em que objetos distantes são vistos com mais nitidez do que objetos próximos. A maioria dos acadêmicos apresenta uma relativa ou total incapacidade de compreender a singularidade de sua sociedade ou a irrelevância de conceitos estrangeiros. Ao contrário, o olho epistêmico ocidental sofre bastante de miopia, na medida em que as situações sociais mais próximas são as mais visíveis – maior confiança em autores e teorias ocidentais, mesmo considerando-os universalmente aplicáveis – enquanto sociedades distantes dificilmente podem ser distinguidas em sua singularidade por causa da narrativa ocidental universalizada da Sociologia.
Livros didáticos, currículos, programas de estudos, livros sobre a história da disciplina quase nunca se afastam da compreensão canônica, mas inconsciente, da Sociologia como uma mera ciência social ocidental e universal. Portanto, a “mente cativa” dos estudantes ocidentais está realmente presa à narrativa sinedóquica que mencionei anteriormente e que é transmitida a eles também por mentes anteriormente cativas. Onde quer que trabalhem – no Norte ou no Sul – mentes captoras também são mentes cativas, sendo cativas da própria narrativa em que foram formadas e que constantemente reproduzem e expandem através do prestígio social da erudição, formando assim novas mentes cativas para se tornarem mentes captoras que emulam a visão das ciências sociais que foi incorporada e naturalizada durante sua formação. Sua capacidade de cativar está subordinada à situacionalidade de seu próprio conhecimento. Acadêmicos orientais ou meridionais podem ser tanto mentes cativas – após sua formação no Ocidente ou em seu país por alguém formado no Ocidente – quanto captoras – apenas transplantando ou reproduzindo ideias ocidentais por meio do ensino. Os professores – notadamente aqueles que ministram cursos introdutórios da teoria sociológica – tornam-se os canais pelos quais a paradoxal des-historicização da disciplina se torna possível.
Embora não idênticos, os processos de captura são semelhantes no centro e nas periferias. O ensino da história da Sociologia como uma história das teorias sociológicas transforma o passado histórico da disciplina em uma narrativa consistente sobre a sua verdade e promove a aplicação dos conceitos sociológicos ocidentais a todas as situações sociais, independentemente dos contextos culturais e históricos. No Ocidente, apenas confirma a ideia de que a sociologia é uma disciplina ocidental e valida a superioridade de algumas sociologias nacionais sob o disfarce do conhecimento sociológico universal.
O cativeiro é, portanto, um círculo vicioso que se reproduz pela própria lógica das instituições acadêmicas e pela ampla circulação do conhecimento legítimo. A bifurcação analítica que implícita ou explicitamente desenha uma estrita dicotomia geoepistêmica entre o Ocidente e o Oriente, ou o Norte e o Sul (Go, 2017; Meghji, 2021), não se limita às epistemologias do Norte. Aparece também nas epistemologias do Sul, seja através de alguma forma de “Orientalismo às avessas” (al-Azm, 1981) ou em singularidades regionais (africanas, latino-americanas ou asiáticas). A proclamação de sociologias não ocidentais e do potencial teórico não ocidental exige um “nome próprio” epistemopolítico para garantir uma melhor relevância contra o falso universalismo. No entanto, a superação dessa fase (no centro e nas periferias) deve levar a uma discussão mais global sobre o significado do universalismo.
Essa busca por um universalismo alternativo está intimamente relacionada a uma nova compreensão sobre o ensino da história da sociologia. Isso exigiria três etapas.
A primeira é sensibilizar os silêncios e produzir o que o sociólogo português Boaventura de Sousa Santos chama de “uma sociologia das ausências” (Santos, 2002). De fato, o produto da relação entre mentes captoras e mentes cativas é uma amnésia quase total do passado real das disciplinas. A anamnese é o primeiro meio de abrir os olhos dos especialistas, sobretudo ocidentais, para a dimensão global das disciplinas em questão. Se a sua criação institucional é sempre europeia, a sua divulgação está longe de ser sempre uma simples exportação. A apropriação pelas elites intelectuais nacionais de ideias, teorias, conceitos e autores europeus ou americanos dá origem à formação de uma tradição singular marcada pelas histórias específicas de cada país. Ainda hoje, nosso conhecimento desse passado é muito incompleto, o que necessariamente influencia a maneira como ensinamos a história de nossa disciplina, de onde as formas particulares assumidas na América Latina, Ásia, Europa Central e Oriental, mundo árabe, África Subsaariana ou Oceania são excluídas.
Em segundo lugar, devemos observar que o ensino da história das disciplinas geralmente se limita à história de teorias ou autores. Os vínculos históricos entre o desenvolvimento das ciências sociais e o colonialismo – e/ou colonialidade – europeu e norte-americano têm imposto uma divisão internacional do trabalho epistêmico, onde o trabalho teórico e conceitual é prerrogativa do centro e, portanto, do Ocidente. Segue-se, logicamente, que a lista de “clássicos” a serem lidos ou conhecidos pelos alunos é quase invariavelmente a mesma em todos os países e, na maioria das vezes, inclui apenas homens ocidentais. Abrir o cânone é uma questão fundamental. Isso não significa que ele deva necessariamente ser representativo em termos de gênero, regiões do mundo, etnia, raça ou religião. Mas também não pode permanecer impensado. Produzir uma história mais aberta das disciplinas e trabalhar os processos de canonização deveria permitir não rejeitar todas as ideias do cânone en bloc e torná-lo mais inclusivo e diversificado. A antropologia do campesinato se beneficiaria da leitura do sociólogo chinês Fei Xiaotong (1992), assim como a epistemologia e a metodologia da Antropologia se beneficiariam do trabalho do antropólogo sul-africano Archie Mafeje (1991) ou da especialista em educação maori e neozelandesa Linda Tuhiwai Smith (2012), enquanto as questões de gênero dificilmente podem ser pensadas hoje sem os textos de Maria Lugones (2010) ou da socióloga nigeriana Oyèrónkẹ Oyěwùmí (1997). Esses são apenas alguns exemplos das possibilidades oferecidas por uma ampliação de olhares, principalmente para os esttudantes.
Por fim, um enfoque na própria história das disciplinas e na dinâmica da constituição do cânone também visa abrir um sentido do universal. A busca por leis gerais da evolução social, o desejo de modelar as ciências sociais pelas ciências naturais e o eurocentrismo dos teóricos clássicos muitas vezes levaram à fusão de duas formas de universalismo: a busca positivista por leis ou conceitos que são amplamente trans-históricos e transespaciais e o postulado de uma ciência do social para a qual a produção de conhecimento estaria desvinculada das disposições culturais e sociais dos produtores de conhecimento. De acordo com esse postulado, o conhecimento sociológico não poderia ser explicado e compreendido sociologicamente! Ele está, no entanto, bem ancorado, tanto na defesa da neutralidade dos investigadores, no ideal de objetividade da investigação, como na recusa de pensar a epistemologia das ciências sociais fora do modelo da epistemologia das ciências duras, ou de reconhecer que o conhecimento e a produção de conhecimento são situados, intimamente ligados à múltipla posicionalidade do investigador. Essa determinação não é unívoca (gênero, etnia, classe social, religião, filiação geográfica ou outra), mesmo quando uma ou outra dessas diferentes dimensões é apresentada. Podemos, então, nos perguntar: pode haver um universalismo situado?
A grande maioria das contestações ao universalismo ocidental baseia-se certamente numa defesa da pertinência e indigeneidade ou endogeneidade de conceitos e teorias, mas também na distinção entre um universalismo eurocêntrico e um universal científico a se construir a partir da pluralidade de situações e modos de conhecimento. Em 1958, Alberto Guerreiro Ramos (1996, p. 125) já mencionava o “universalismo equivocado” em que se baseia a negação da existência de sociologias nacionais. Isso não o impediu de proclamar a universalidade da ciência, como também pode-se ler em Syed Hussein Alatas (2002) ou no sociólogo egípcio Anouar Abdel-Malek (1975), em sua teoria da especificidade. Trata-se, portanto, de uma transformação do estatuto da universalidade, da busca do “universal lateral”, noção que o filósofo senegalês Souleymane Bachir Diagne toma emprestado do filósofo francês Maurice Merleau-Ponty para diferenciá-lo de um universalismo vertical e saliente (Diagne, 2017, 2018). O universal não existe desde sempre: ele é sempre um produto histórico de disputas para definir o que são as ciências sociais e o que é o social. Pode então ser visto como um horizonte a ser construído, como aponta o filósofo beninense Paulin Hountondji (2016). O universal é combinado ao plural para examinar a tensão entre o geral e o particular, entre o global e o local. Assim concebida entre o universalismo de lugar nenhum e a autoctonia de um pensamento endêmico, a universalidade a se construir é sempre uma disputa científica.
É utópico defender uma visão do universal a ser construída entre pesquisadores a partir da própria diversidade de suas relações com a realidade? Acho que não, por pelo menos dois motivos. Primeiro, baseado no fato de que, ao longo dos últimos trinta anos, as reflexões sobre epistemologias alternativas vêm se desenvolvendo de forma cada vez mais visível em periódicos de ciências sociais e nos catálogos de grandes editoras, seja na América Latina, Ásia, Centro e Leste Europeu, África subsaariana ou mundo árabe. Segundo, insisto em que a reflexão científica precisa mais do que nunca de uma dimensão utópica que está apenas esperando para ser realizada. O horizonte assintótico de um universal nas ciências sociais pelo qual se almejar, sem renunciar à pluralidade de meios que conduziriam a ele, parece mais razoável do que uma crença cega num universal que sempre existiu e que deve ser descoberto. A vontade de criá-lo a fim de direcionar-se a um objetivo comum que possa aproximar os pesquisadores, a fim de superar suas diferenças na produção de conhecimentos que poderão ser traduzidos e discutidos entre si, é um compromisso que se pode vislumbrar se aquilo que chamo de “descolônia” for progressivamente instaurado (Dufoix, 2023).
As condições de possibilidade dessas transformações me parecem ser de quatro tipos:
Parece indispensável oferecer um conhecimento do conhecimento numa perspectiva temporal e espacialmente mais ampla do que geralmente se tem erigido como uma narrativa unilinear, universalizada e difusionista (Dufoix, 2022a, 2022b). Em vez disso, é necessária uma história do conhecimento complexa, circulatória e global. A situação de descolonização requer, portanto, antes de tudo, uma consciência da hegemonia epistêmica e a obrigação de “provincializá-la” para restaurar seu caráter histórico e geograficamente situado.
Um segundo passo consiste em dar acesso a essa história complexa a alunos, professores e pesquisadores, encorajando traduções de textos que contestem o eurocentrismo ou proponham uma versão mais “aberta” de histórias disciplinares, sistemas teóricos e conceitos. No caso francês, há uma grave falta de tais traduções. Por exemplo, Southern Theory da socióloga australiana Raewyn Connell (2007) ainda não foi publicado em francês, e sua versão original em inglês é citada muito limitadamente na França. A publicação de obras latino-americanas, africanas ou asiáticas por editoras reconhecidas, ou a publicação de artigos críticos em periódicos generalistas nas diversas disciplinas, ainda é muito fraca para levar a outra coisa senão uma fixação nos aspectos mais diretamente políticos do pensamento pós-colonial ou descolonial, sem permitir uma reflexão mais distanciada sobre o valor científico dessas obras.
Da mesma forma que o conhecimento disciplinar – especialmente o conhecimento extraocidental, pois é este que tem sido objeto da maior injustiça epistêmica – deve ser apreendido em sua historicidade, o conhecimento atual deve ser apreendido em sua globalidade. As epistemologias alternativas que surgiram ao longo do último século precisam ser integradas, senão em um novo cânone, ao menos em um corpus mais geral que leve em conta a diversidade de ideias e as condições de desacordo entre aqueles que as carregam (Alatas & Sinha, 2017).
Envolver a universidade – ensino superior e pesquisa em geral – na integração dessas contribuições – tanto a crítica e desconstrução de narrativas lendárias quanto a formulação de novos quadros epistemológicos – proporcionaria um espaço para um debate real em torno da questão da descolonização. Apesar da presença em várias partes do mundo de trabalhos sobre este tema, este desenvolvimento sofre de dois defeitos. Por um lado, ainda raramente se vinculam entre si, concentrando-se, na sua maioria, numa lógica regional e/ou continental. Por outro lado, ainda são muito pouco discutidos em eventos acadêmicos internacionais oficiais. Este espaço de disputa inter-regional e internacional ainda hoje é extremamente escasso.
Por que a questão da “descolonização” nos leva a considerar a questão da colonialidade, da qual devemos sair? Em primeiro lugar, porque o imperialismo não desapareceu da face da Terra. Da Ucrânia às Índias Ocidentais e à Austrália, sua sombra ainda paira sobre muitos povos e culturas, embora de formas diferentes, mais ou menos visivelmente brutais. Em segundo lugar, porque, embora os franceses, americanos, ingleses e holandeses de hoje estejam longe de serem todos nostálgicos do império – sobretudo porque parte da sua população, ou seus antepassados, padeceu dele na carne e no espírito –, sua percepção e apreensão da vida cotidiana permanecem marcadas pela colonialidade das narrativas transmitidas e divulgadas. Daí resulta que os imensos desafios que devemos enfrentar coletivamente em matéria de igualdade, não discriminação, nossa relação com os princípios republicanos, universalismo e abertura à diferença e ao mundo não dependem apenas da atualidade. Dependem muito da nossa capacidade de mudar os quadros mentais em que muitos de nós ainda estamos presos, na maioria das vezes sem nem perceber. A sua transformação só pode se beneficiar do ativismo social e político, mas também requer, talvez acima de tudo, um compromisso por parte de professores e pesquisadores de atentar mais às estruturas epistêmicas globais, aos debates epistemológicos em curso em várias disciplinas (sociologia, antropologia, geografia, relações internacionais etc.) e à necessidade de abrir o nosso ensino a conceitos, teorias e movimentos de ideias diferentes daqueles a que ainda estamos presos.
Só um trabalho aprofundado de reflexividade sobre as condições sociais, intelectuais, políticas e epistêmicas da escrita da história das ciências sociais, tanto pelos cientistas sociais do Norte como pelos do Sul, permitirá, nos anos ou décadas por vir, transformar paulatinamente os quadros tradicionais herdados do último século e meio da sociologia. Immanuel Wallerstein (1991) nos convida a “despensar a ciência social” ao separá-la dos paradigmas que regeram sua constituição no século XIX. No entanto, se a sua abordagem neste livro, bem como no relatório da Comissão Gulbenkian (1996) ou no seu discurso presidencial ao Congresso Mundial de Sociologia de Montreal em 1998 (Wallerstein, 1999) preconizava uma maior interdisciplinaridade, uma atenção ao papel das mulheres nas ciências sociais, bem como um importante apelo para levar em consideração as especificidades sociais, não reivindicou uma forma inovadora de escrever e ensinar a história das ciências sociais. Esta tarefa nos resta fazer.